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Anabela Mota Ribeiro

José Pacheco Pereira

26.05.14

Tem uma inteligência muito viva e uma afabilidade inesperada. A luz clara da manhã desenha-se sobre a mesa do pequeno-almoço, sob uma das suas árvores. As árvores, as pedras, os vulcões, as pinturas, os livros, os livros, os livros, são amostras da sua inesgotável paixão, da sua aguda curiosidade. José Pacheco Pereira está agora desvinculado de todos os cargos políticos que até agora ocupou. De regresso à vida civil, ao estudo que nunca abandonou, à universidade onde ensina, guia-nos numa visita pelo Portugal contemporâneo e pelo seu mapa de memórias. É uma impressionante viagem de um homem que alimenta uma desesperada esperança.

 

 

Há um princípio de coerência extrema que norteia a sua vida, apesar das oscilações do caminho. Disse numa entrevista: «Sou exactamente o mesmo homem que há 30 anos andava a fugir à polícia política, a combater o regime, apesar de as circunstâncias se terem alterado».

Não é confortável para o próprio falar da sua coerência. As pessoas são feitas na adolescência. Naquilo que pensam, que desejam, que querem; podem variar, mas não mudam. Na maneira como me vejo e relaciono com o mundo, não penso ter substancialmente mudado desde essa altura. As coisas de que gosto, que me fazem mexer, que me fazem dizer sim e não, são essencialmente as mesmas. Há pessoas que ficam, como numa expressão utilizada sobre Churchill, «adolescentes petrificados». Eu encaixo dentro dessa categoria.

 

Está a pensar no seu gozo com as máquinas, com os jogos, com a astronomia?

Tudo. Esse tipo de curiosidade activa não me conheço sem ela. Em casa do meu pai havia uma grande biblioteca, eu vivia praticamente no meio da biblioteca. Fiz e faço herbários, colecções de pedras...

 

É um coleccionador que pretende conhecer a diversidade e integrá-la num bloco unitário?

É uma coisa muito mais perigosa e muito mais sem sentido: o coleccionador obsessivo deixa-se prender pela ilusão de querer ter tudo e acumula sempre.

 

O desejo é ter?

O desejo também é ter. Mas várias vezes tive que pôr a hipótese de perder tudo, de tomar decisões que podiam implicar perder tudo.

 

Que tipo de decisões podem implicar perder tudo?

Antes do 25 de Abril, muitas decisões podiam implicar isso. Quando a PIDE me assaltou a casa, em 1973, não só não sabia se alguma vez recuperaria as coisas roubadas (parte delas nunca recuperei), como se podia voltar a uma casa que tivesse livros.

 

Mas isso é num período de ditadura...

Depois muda a forma, não é tão drástica a decisão.

 

Vamos imaginar que pode resgatar poucos objectos; conseguiria?

Não. O coleccionador funciona sempre em termos de tudo ou nada, qualquer amputação é sempre pior.

 

Hoje pode perder-se influência, emprego, algum conforto, mas não se joga o tudo ou nada.

Não tenho nenhuma nostalgia do tempo em que era assim. Felizmente que as pessoas não são confrontadas com esse tipo de decisão drástica. No passado era assim. No futuro, não sou um crente de que as coisas sejam estáveis, que a democracia e a liberdade estejam garantidas. A qualquer momento, estas opções se podem pôr.

 

As pessoas revelam a sua essência em situações limite. De outro modo, é mais fácil emergir uma certa hibridez.

O mundo a preto e branco pode parecer confortável em termos morais, mas não tem nenhum valor acrescentado. Para haver integridade moral não é necessário que as pessoas tenham que arriscar a sua vida, o emprego, o futuro. Para quem tinha um envolvimento político activo, a vida tinha um prazo. Hoje não se vive com prazos. É difícil perceber o grau de controlo do quotidiano. Era proibida a utilização de isqueiros de modo a proteger a indústria de fósforos nacional... A primeira vez que a censura me cortou um texto foi porque dizia mal do António Nobre.

 

Todavia, há uma romantização da resistência...

Não havia nada de romântico, não há nada que justifique a nostalgia deste tempo. Era uma vida miserável. Dormi em estações de caminho de ferro, em banheiras, no chão, ao ar livre.

 

E não há glória nisso.

Não há nenhuma glória nisso. Estou aqui a falar consigo, se estivéssemos num café ou restaurante e se houvesse alguém lá ao fundo atento à nossa conversa, eu lhe garanto que, mesmo estando de costas, dava por ela. Já atravessei o país, mais do que uma vez, metido numa mala de um automóvel. Já estive numa casa onde durante meses não podia fazer o mínimo baralho.

 

Como é que se entretinha?

Com a cabeça. Não podia ler porque não podia abrir luzes. Era como se estivesse preso.

 

É o desejo de saber que predomina a sua vida?

A curiosidade. Tenho ideia de nunca ter tido na vida um minuto de aborrecimento por não ter nada que fazer. Desde que tenha coisas para ler, coisas para escrever... Não me vejo com «estados de alma»... As pessoas deviam maçar-se com o que é importante.

 

E que é?

- As coisas que afectam as pessoas são a doença e a morte. Não há nada que seja tão irremediável. As pessoas estão sempre a ter desejos que não conseguem realizar, convencidas de um mundo ideal que não conseguem ter. Temos dificuldade em perceber conceitos como o da Aurea Mediocritas, em perceber a mentalidade antiga, que vivia mais da adequação entre desejos e realidades.

 

Quando o leio, identifico uma certa amargura, mas nem por isso desesperançosa...

Eu chamar-lhe-ia um certo cepticismo. Se me perguntar: é a democracia uma coisa frágil? Fragilíssima!, está sempre em riscos de se perder. A única coisa que a salva é a vontade das pessoas de que ela não acabe. A vontade é uma força. Estamos sempre na iminência de a perder porque a democracia é puramente cultural e civilizacional, não tem nada a ver com natureza das pessoas. Acho que se deve ter esperança, sabendo que ela está sempre no limite de falhar. O título de um dos meus livros, «Desesperada esperança», traduz isso.

 

Muitas das posições politicas que assume revelam uma liberdade que conquistou para si e um desapego em relação ao poder.

Isso é verdade. Por exemplo, eu era presidente do grupo parlamentar do PSD, houve uma atitude da direcção do partido com que não concordei, estava fora de Portugal, e, quando cheguei, demite-me. Tinha uma série de vantagens: secretária, carro de apoio, motorista, gabinete. Nesse mesmo dia entreguei tudo. Custa muito? Verdadeiramente não, custava mais não ter feito isso e não dormir direito. A pessoa sente uma certa alegria interior.


O que é que as pessoas procuram verdadeiramente quando manifestam um apego ao poder?

Depende do que se entende por apego ao poder. Há pessoas que têm uma ideia de missão, que se acham capazes de mudar o país. Essas precisam de poder, o apego ao poder tem esse sentido. O que existe em Portugal, nos grandes partidos é uma coisa completamente diferente. Muitas vezes é atractivo para pessoas que fora daquele meio não teriam nada de semelhante_ porque nunca tiveram um emprego, ou preparação profissional, ou experiência de gestão. Essas pessoas querem é manter um poder baixinho, não se metem em grandes cavalarias, porque aquilo lhes chega, é muito mais do que teriam na sua terra ou na sua profissão.

 

Insisto: passados 30 anos sobre a instauração da democracia, experimenta uma desilusão? Por exemplo, a qualidade da classe política é duvidosa, a participação cívica é inexistente. 

Mas Portugal mudou radicalmente. As pessoas não têm ideia do Portugal de onde vinham. Um Portugal onde a maior parte da população rural andava de pé descalço, em que o analfabetismo atingiu níveis recordes na Europa, a mortalidade infantil era das maiores do mundo ocidental, a maioria das casas fora da cidade não tinha esgotos, luz, água canalizada. O que se passa é que hoje o padrão de referência é a Europa. A vida que as pessoas desejam ter é a vida que se imagina que se tem em Paris ou em Londres.

 

Não deixámos de ter uma atitude provinciana, é isso?

O que temos é o desfasamento entre aquilo que fazemos e o que desejamos. É um problema complicado de gerir na política: os portugueses têm expectativas muito acima das suas possibilidades – da sua formação profissional, da sua escolaridade, do seu grau de conhecimentos úteis, da sua especialização, da sua produtividade. Este país tem um problema muito complexo de auto-organização: gastamos muito dinheiro mal, organizamo-nos mal, temos muito pouca capacidade para trabalhar, temos uma mentalidade que não favorece o esforço, a dedicação.

 

Não somos uma sociedade meritocrática. 

Somos uma sociedade que prefere um certo grau de mediocridade garantista. Enquanto formos assim estamos na cauda da Europa. O problema é político, sem dúvida. Mas, em democracia, não é apenas um problema dos políticos. A verdade é que o nosso eleitorado também não deseja mudanças drásticas: pune e premeia.

 

Pune e premeia numa percentagem relativa. Convém trazer à conversa a abstenção eleitoral...

Lembro-me muito bem de uma conversa que tive no início da maioria absoluta de Cavaco Silva. Estávamos a falar da grande revolução que era a maioria absoluta, um instrumento que nunca tinha existido em Portugal. Pus uma dúvida: «E se as pessoas não quiserem mudar?». Isto é, há uma inércia para a mudança e essa inércia existe objectivamente, manifesta-se em muitas coisas. Quando se fazem inquéritos num local de trabalho, as pessoas são hostis à diferenciação de salários pelo mérito.

A baixíssima produtividade dos portugueses é um elemento fundamental para perceber o nosso atraso?

É. Mas tem muito a ver com sistema educativo e a dificuldade de organização. Por exemplo, a leitura. Não é valorizada no sistema escolar, não é valorizada socialmente, não é valorizada em relação a outras formas mais instantâneas de obtenção de conhecimentos. A leitura tem elementos que são contra as características do nosso tempo: é lenta, é totalitária – quando se está a ler não se pode fazer outra coisa –, e isso contrasta com a facilidade da televisão e do cinema.

 

Como é que se instiga a curiosidade numa sociedade que está formatada para a instantaneidade e a passividade?

Reconheço que eu tinha um meio familiar que favorecia a curiosidade. O problema é que nada funciona: as famílias reproduzem este tipo de desatenção, a escola tem grandes responsabilidades, as televisões (com 500 horas de futebol!) não valorizam qualquer aspecto que implique mediação. Toda a sociedade funciona para eliminar o tempo longo, o silêncio, a discrição, é tudo a favor do consumo imediato, da fruição imediata e de uma certa preguiça colectiva.

 

Somos preguiçosos.

As pessoas, em si, não são nada. Somos feitos e moldados para ser preguiçosos, isso sim.

 

Estes problemas de que estamos a falar são estruturais, Portugal conhece-se desde sempre assim...

Não é desde sempre. Os que iam com Fernão Mendes Pinto, não eram preguiçosos. Os Jesuítas que iam para a Índia, não eram preguiçosos. Nestes últimos anos vivi muito tempo no estrangeiro e, por muito que as pessoas a queiram ocultar, a diferença vê-se. No Parlamento Europeu e nas cidades europeias, tudo está a funcionar às oito e meia da manhã. Era muito difícil trabalhar com Portugal antes das dez, onze (hora de cá).

 

Entre Portugal e o estrangeiro, a diferença mais notória é na organização?

A organização traduz uma pobreza, falta de preparação, más escolas, más fábricas, más instituições do Estado e, depois, poucos meios para mudar. Se combinarmos má administração pública, maus serviços de justiça, de saúde, de educação, com o garantismo, tudo fica muito rígido. O poder político é muito frágil, são raríssimas as áreas onde tem força.

 

Ou seja, o poder político está cada vez mais refém das medidas populistas.

É refém do poder político em que os ministros e secretários de estado não fazem mais nada senão despachar coisas burocráticas; é refém dos órgãos de comunicação social cuja pressão para a imediaticidade e para a superficialidade é gigantesca; é refém de uma ideia errada de transparência da vida pública que limita espaços de mediação. Muda-se? Com certeza. É necessário que haja uma linguagem reformista clara, sem ambiguidades, que haja pessoas que façam a sua vida política com uma dureza de palavras.

 

Mas depois essas pessoas não ganham eleições. Um Churchill não encontraria espaço nos tempos que correm.

O Churchill, o DeGaulle, os que consideramos grandes governantes em democracia hoje não ganhavam uma eleição. O populismo político é, em grande parte, reflexo do populismo mediático. É cada vez maior a separação entre as condições para ganhar eleições e as condições para governar. As qualidades necessárias para ganhar eleições não são as necessárias para governar bem. Há excepções, há momentos de crise...

 

Quando a crise é tão aguda que as pessoas desesperadamente procuram uma saída.

Ou há gente excepcional que sabe falar em linguagem apropriada e consegue essa mobilização.

 

Dessa estirpe, Cavaco Silva foi o último que tivemos em Portugal?

Claramente. Em Portugal depois do 25 de Abril há três personagens que têm um papel decisivo. A primeira é Mário Soares; deve-se-lhe em grande parte [ter evitado] que o país se tornasse numa ditadura comunista. Depois Sá Carneiro, que não aceita um socialismo militar copiado da América Latina e exige que o regime se torne numa democracia plena, com civis a decidir tudo, inclusive a política de defesa e das forças armadas. Se Mário Soares garantiu as liberdades públicas, Sá Carneiro ajudou a tornar civil a nossa vida política. Cavaco fez uma outra revolução: acabou com os restos da Constituição que vinha do período do PREC. O 25 de Abril termina com o cavaquismo.

 

O facto de Sá Carneiro ter morrido numa situação trágica...

Claro, isso favorece a mitificação. É uma morte-martírio.

 

Um povo como o nosso, espera sempre um salvador, um D. Sebastião.

Eu considero o Sá Carneiro um homem muito interessante. Tinha um pensamento estruturado. Quando leio aqueles textos, pergunto: como é que ele tinha possibilidade de fazer hoje um discurso destes? Hoje não passava nem um segundo na televisão! Não há aqui um sound-byte, há um pensamento. O carácter argumentativo não passa na comunicação social. Uma vez escrevi um texto que dizia das três coisas que os gregos identificaram como fundamentais da actividade política: o logos, o ethos e pathos. Hoje a vida política não tem ethos, (a referência ética), e o discurso lógico não cabe nos noticiários. Vivemos numa vida de pathos, de excitação, espectáculo. Isso significa uma degradação, que os clássicos também conheciam, da democracia em demagogia.

 

Estamos a caminhar a passos largos para o fim de um ciclo?

Nós já estamos no fim de um ciclo. Estamos com problemas portugueses e problemas comuns a todas as democracias. A democracia nunca conheceu este tipo de tensões. O problema não é tanto definir as fronteiras da democracia contra o fascismo, contra o nazismo, contra o comunismo; é a sua usura interna a caminho de formas demagógicas do poder.

 

Como é que se resolve isto tudo?

De muitas maneiras. Exactamente porque a democracia é cultural e civilizacional, todos os combates culturais e civilizacionais favorecem a democracia. O terrorismo é uma forma nova de ameaça sobre o funcionamento das sociedades democráticas que pode levar a uma perda de qualidade democrática. Mas é inevitável que tudo o que seja uma tensão grande sobre as sociedades leve as pessoas a terem comportamentos mais assentes no poder e na força. A solução está sempre nos combates democráticos, no debate público, no exemplo cívico. A única forma de combater a espectacularidade dos maus é a espectacularidade dos bons.

 

Encarnar o bom exemplo, portanto.

O comportamento exemplar impressiona. Deve ser favorecido, da mesma maneira que a punição do mal. A recusa de determinadas imediaticidades – por exemplo, recuso entrevistas de quinze segundos. Se todas as pessoas começassem a recusar algumas coisas, distinguia-se as que faziam e as que não faziam. Há um conjunto de regras a um nível mais comezinho e ao nível do comportamento: a pessoa deve expor as suas ideias, não deve dar opiniões de forma anónima; valorizo os políticos que não expõem a sua vida pessoal. Acho que estes combates, muitas vezes micro-combates, outras vezes macro, merecem a pena.

 

Gostava de governar? Até onde lhe agrada esse tipo de poder?

A resposta aí é sempre tudo ou nada. Não tenho nenhum programa de poder, nunca tive. Fazer isto, depois isto, secretário de estado, depois ministro, depois primeiro-ministro, depois presidente da galáxia... Há certas coisas que gostaria de pôr em prática; se para isso for preciso poder político e se tiver oportunidade, faço. Não é um programa de vida, mas sem dúvida que sim.

 

Havia um entusiasmo quando se envolveu politicamente...

Nunca deixei de estar envolvido politicamente desde que me conheço. O carácter formal desse envolvimento é que muda. Neste momento sou um vulgar cidadão, não tenho nenhum cargo político, sou militante de base do PSD e sou um civil.

 

Custa-lhe?

Não me custa nada.

 

E desilusão?

Nunca me afastei de um cargo por desilusão. A desilusão não é motivo para uma pessoa se afastar de um cargo político. Já me enganei, e já me enganei por ingenuidade, mais sobre pessoas do que sobre eventos ou cargos; mas desilusões propriamente ditas, não.

 

Então não vale a pena perguntar-lhe se está desiludido em relação ao país, porque nunca esteve verdadeiramente iludido.

Exactamente. Sempre tive consciência de que o lastro que temos é muito pesado. Precisávamos de perder o excessivo garantismo do Estado. Temos uma sociedade que vive abafada por um Estado que é, ele próprio, em grande parte incompetente. Isto mata o dinamismo social. As pessoas podem estar irritadas com o poder, zangadas, mas verdadeiramente não desejam as peripécias da mudança, a mobilidade profissional, geográfica.

 

Vive agora na Marmeleira, a uma hora de Lisboa, entretido com o seu blogue, (Abrupto), os seus livros, a sua leitura.

Não estou nada entretido. Estou a acabar o Cunhal [terceiro volume da biografia].

 

Está com um ar satisfeito.

Não gosto de muito coisa e isso introduz uma certa tristeza. Mas gosto do meu país, é um bocado ingénuo, mas gosto de Portugal e gosto que as pessoas vivam melhor. Apesar de tudo, não tive sempre uma vida protegida por motoristas, secretárias e staff. Apesar de tudo, conheço relativamente bem o meu país, sei o que é a miséria, o atraso cultural. Pode parecer presunção, mas conheço muito bem a realidade fora dos livros. Sei que estamos num mundo europeu, complicado, de competição cada vez maior e que os portugueses vão continuar a ter uma vida relativamente medíocre. Isso não desejo para o meu país.

 

 

Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em 2004