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Anabela Mota Ribeiro

António Barreto (sobre Portugal)

27.05.14

E agora, Portugal?, persistimos no triste fado? Onde está a aventura? Alexandre O'Neill dizia que em Portugal a aventura termina na pastelaria. Que é da ousadia que nos fez há séculos rasgar mundo? Que é da grandeza? Que é da agricultura, e da indústria? Devemos lamentar a Educação que temos, envergonhar-nos da Justiça? E dos políticos? Mas se os elegemos… E abstemo-nos nas eleições… De quem é a culpa? Quem responsabilizar?

Este é o semestre em que Portugal preside à União Europeia. Muito se tem falado do que somos. Dos desafios que nos são postos. Dos passos que foram dados. António Barreto confere as linhas essenciais deste mapa. Barreto fez recentemente uma série de documentários para a RTP, «Portugal - Um Retrato Social». Nele se pode ver o país que conhece a democracia há 33 anos. Somos outros. Somos?

 

As generalizações são sempre difíceis, erróneas, falaciosas. Mas, assumindo esta limitação, é possível traçar um retrato dos portugueses?

A generalização é arriscadíssima e fonte de erro. Fujo dela. Desde há 40 anos que digo que não existe um carácter nacional. Essas são invenções de escritores e antropólogos de meia-tigela. O que podem é existir traços comuns, porque as pessoas tendem a reagir dentro de uma cultura comum a certas circunstâncias.

 

Depois do périplo que fez pelo país para o seu programa de televisão, ficou com uma ideia diferente do que somos?

Quando regressei a Portugal, em 74, achava que a população portuguesa era um bocadinho apática, cansada. Que, cá dentro, a resignação era superior à energia. A rapidez com que Portugal entrou em mudança e se adaptou ao sistema democrático, à integração na União Europeia, às novas regras de vida em comum, foi enorme.

 

Fale-me dos aspectos que mais o impressionaram, a si que é um sociólogo habituado a olhar para o que somos.

Hoje, a maior parte dos portugueses estão endividados. As prestações, a casa, o carro: devem mais do que ganham num ano inteiro. Poderá dizer-se que os portugueses são todos gastadores, irresponsáveis? Não. Conheço muitos portugueses que não devem nada a ninguém, que têm as suas contas equilibradas e que têm uma vida de acordo com os seus meios.

 

A que é que se deve esse endividamento descontrolado?

O facto de Portugal ter conhecido um período de enriquecimento rápido, ter tido acesso ao consumo de massas, ao pluralismo, etc, fizeram com que a maior parte das pessoas perdesse o sentido da responsabilidade. Digo num dos meus filmes: parece que os portugueses não têm filhos... Eu não tenho filhos. Mas então, não fazem contas ao que vem a seguir? Podemos ter em comum o facto de uma grande parte deles viver obnubilado com grandezas passadas. Foram muitos anos de imposição de padrões...

 

Queria insistir no que encontrou agora e que foi surpreendente para si.

A desilusão. Quando escrevi os livros que deram origem a esta série estávamos em 95, 96, 97, ainda se vivia a recta final de um certo período eufórico. Não havia tanto desemprego, as perspectivas eram boas, havia muitos imigrantes a chegar, as universidades continuavam a crescer. Não reparámos que era um fim de festa. De repente, os portugueses perceberam que estão a ficar pobres, atrasados. Foram-se embora mais de 50 mil imigrantes. Ficaram africanos e brasileiros. E portugueses que emigram são agora 30 mil por ano. Estamos com números dos anos 60. As autoridades dizem-me que o número de emigrantes portugueses em Inglaterra já oscila entre os 400 e os 500 mil. Algumas pessoas perceberam que a festa tinha acabado, que estávamos a correr mais devagar, que estávamos a perder oportunidades, que os outros estavam a fazer melhor do que nós.

 

A juntar à crise interna, há uma reconfiguração da cena internacional, com as guerras e as oscilações dos mercados. Mais a concorrência da China e dos países da Europa de Leste.

Hoje há 50 mil desempregados com licenciatura. Mas no mundo ocidental, quem tem curso superior, encontra emprego ou cria o seu posto de trabalho cinco a seis vezes mais depressa do que quem não tem curso superior. Faz sentido que um licenciado em química esteja a trabalhar como gestor de um hotel? Não me preocupa. Parto do princípio de que uma universidade não deve ensinar uma profissão, deve ensinar cultura geral e uma maneira de pensar.

 

Gostava de falar da culpa, da responsabilidade e da falta de ambição. Os portugueses estão desiludidos; mas quem responsabilizam por isso? E incluem-se nesta factura? Ou a culpa morre sempre solteira? Ou um velho patriarca (chamado Estado) falhou com as suas obrigações?

Aí está um traço comum: todos responsabilizam os políticos. Pessoalmente, acho que a classe política tem algumas responsabilidades sérias, mas não é responsável por tudo. Olha para trás e vê os governos de qualquer partido: todos eles se comportaram como se estivessem em período de desenvolvimento ilimitado, de enriquecimento ilimitado! Prometeram mundos e fundos. Pode dizer que o primeiro-ministro A ou B foi mais demagógico do que outros. Mas quando pensa que tivemos 27 ministros da Educação em 30 anos?! Não é possível. Na Saúde, Finanças, Obras Públicas encontra números parecidos.

 

Os portugueses não levam os seus políticos a tribunal por estes terem sido incompetentes. Estão, aliás, muito alheados da causa pública. Isso tem que ver imaturidade cívica, com uma democracia recente, com uma dificuldade em saber aquilo a que se tem direito e pugnar por isso?

A responsabilidade política tem regras próprias, mas, nalguns casos, devia poder chamar-se pessoas à responsabilidade, até judicial, quando há corrupção, despesas excessivas... No essencial, a responsabilidade política só pode ser posta em exercício se houver um parlamento forte. A fraqueza do parlamento é, a meu ver, a maior deficiência do sistema político português.

 

Por causa da qualidade individual dos membros que a compõem?

Sim. Ou por obediência pura e simples dos partidos do governo ao governo - e estes fazem exactamente como o secretário-geral e os ministros mandam fazer. São burros de orelhas a abanar. Quase nunca vem dali um gesto de soberania, de representatividade - eu represento os direitos dos meus eleitores. Se tivesse um parlamento com brio e com competências individuais e colectivas, os governos estariam mais sob controlo. Em Portugal, a imprensa mete mais receio a qualquer político do que o parlamento.

 

A fragilidade económica dos media, bem como das famílias portuguesas, faz com que sejam mais obedientes, questionem menos...

Vou começar pelos jornais: uma das grandes tragédias do nosso país é não haver hábitos de leitura com cem anos. Há 30 anos, ainda havia 50% de analfabetos! A televisão chegou a Portugal ainda os portugueses não sabiam ler nem escrever. Não liam jornais. Você é obrigada a pensar quando lê um jornal. Não há mistura de música, soundbytes, imagem, publicidade, como na televisão. A televisão é um instrumento fabuloso, mas não desempenha funções de promoção do ser individual, de autonomia, de concentração – isso é tudo a leitura que dá.

 

A televisão tem uma força que não se afigura fácil derrotar…

Isso não tem remédio nos próximos 50 anos, infelizmente. O Público e o Diário de Notícias, juntos, não vendem mais do que 50/60 mil exemplares por dia. Isto tem causas na pobreza, nas elites portuguesas, na Igreja Católica. Mas é uma das grandes falhas, que tem importância na passividade das pessoas. O poder económico e político dos jornais: o maior travão ao despotismo económico e empresarial dos proprietários dos jornais é o brio dos jornalistas. O consumidor escolhe – pode deixar de comprar. Não faço generalizações, mas há défice de brio e isenção e dignidade no jornalismo português. A mesma coisa exijo a um juiz: não quero que apareça com simpatias partidárias.

 

Saio em defesa da classe para dizer que é mais fácil manipular um jornalista do que se imagina: ganha tão mal, trabalha em condições tão precárias, que discutir numa redacção o que vai fazer, a orientação que é dada ou a rapidez que lhe é exigida na resposta, é arriscado...

Amanhã compra o Daily Telegraph, o Times: percebe que há qualquer coisa de programático (são jornais de direita), mas sente uma força... Podem pôr em causa os Tories, a direita inglesa, se for preciso. Pega no Guardian, cada vez mais reputado de Trabalhista, e vê artigos que podiam sair num jornal de direita quando são isentos. Este tipo de independência de espírito, não tem em Portugal. Aceito a sua explicação. Devíamos ter 100 anos de jornalismo livre e só temos 30.

 

Falta de ambição e humildade (nova generalização): parece que os portugueses querem é fins-de-semana prolongados e que não são especialmente briosos...

Tenho dificuldade em usar os mesmos termos que usa. O que me choca mais é a dependência. Que pode criar resignação. A dependência do Estado ou do patrão é um traço ainda perene e que há 20 anos esperava que houvesse cada vez menos. Mas são precisas várias gerações de viver sem os pais/patrões/autoridade.

 

A autonomia tem um preço.

Um grande preço: Solidão, combatividade, corrigir e melhorar. É um cliché, mas diz-se que lá fora os portugueses trabalham muito bem...

 

Trata-se de organização.

Vão para um sítio onde a dependência é menor, têm de fazer pela vida eles próprios, são postos à prova, se trabalharem bem ganham melhor. É o dinheiro e o reconhecimento. Cá, é difícil sermos reconhecidos.

 

Há uma espécie de carência emocional? Uma necessidade de se ser reforçado.

Mas isso é capaz de vir da pobreza num sentido mais lato. Tem pouco para receber e quer ser gostado. Lá fora todo o sistema põe à prova as pessoas. Se o sistema social, político e cultural pedir que as pessoas se ponham à prova, podemos esperar uma alteração de comportamento em três ou quatro décadas. Não vejo nada isto a curto prazo. Hoje, continua à espera de arranjar um lugar no Estado, através de uma cunha, de uma "palavrinha" – e isto é generalizado.

 

Dizer que os portugueses são dados à "palavrinha" é uma generalização; mas esta, infelizmente, parece que não é arriscada ou enganadora…

Os partidos são grupos de pressão, são agências para conquista de poder. Há 30 anos poder-se-ia pensar que os partidos teriam uma atitude menos caciqueira do que tiveram. Os notáveis das aldeias continuam a existir, mas agora é pelas regras dos partidos. Os partidos nada fizeram para ser meritocráticos.

 

Ainda não tínhamos falado nessa palavra, que é talvez essencial para compreender o Portugal contemporâneo.

Há 10 anos ou 15, eu estava convencido de que o caciquismo, o sistema dos favores e das cunhas, das famílias e do nome, tinha levado um grande abanão. E levou. Mas foi muito frágil. Na verdade, o sistema foi substituído e modernizado por um sistema partidário que veio casar muito bem com o sistema anterior. A meritocracia teve muitas dificuldades em progredir em Portugal.

 

Porquê?

As razões são sempre muitas, desde a pobreza ao sistema político. O sistema político tem uma coisa importante: a visibilidade. E a visibilidade é o exemplo. Se vê uma corrupção pequenina na política, uma mentira, a impunidade... é exemplo para toda a sociedade.

 

E lá diz o ditado que o exemplo tem de vir de cima…

As obras públicas no Terreiro do Paço: estão atrasadas oito a dez anos, custam mais 20 ou 30 milhões de contos do que o previsto: é o Estado que paga! Os erros da privada, o fiasco dos engenheiros e das firmas que fizeram aquilo, é tudo pago pelo contribuinte. Grande parte dos portugueses chegam atrasados a tudo... você chegou às seis menos um minuto, eu cheguei às seis menos quatro minutos... Há muito poucos portugueses pontuais. Uma reunião do governo nunca começa a horas, um chefe de um partido acha bem e importante chegar atrasado! Duas a três horas! Isto fica impune: pode chegar atrasado! Está a dar o exemplo.

 

Fala da impunidade; a Justiça é uma área central para compreender o atraso português?

Se me fizesse uma pergunta que se faz habitualmente aos políticos - e eu já não sou político: o que há de mais importante e mais urgente para resolver em Portugal? Eu não diria Educação, Saúde, Obras Públicas. Diria Justiça. Porque é o sistema que mais envolve todos os outros. Mexe com impunidade e recompensa, sentido de responsabilidade – paga o que deves, não há almoços de borla, a sua responsabilidade é a sua... Isto só funciona com um sistema de Justiça a sério. Rápido, eficiente, democrático, igualitário. Devia ser revista muita coisa: dos Códigos à formação dos juízes, funções e poderes dos advogados.

 

Enquanto sociólogo, trabalha sobretudo áreas ligadas à educação. Que dizer da Educação em Portugal?

É a nossa grande tragédia. Houve uma enorme ilusão no fim dos anos 60, que explodiu com o 25 de Abril: com igual educação para todos e muito dinheiro, numa geração isto fica fino. E não. Fez-se depressa demais, com maus professores (hoje são 200 e tal mil e muitos deles muito mal preparados), demorou-se tempo a fazer escolas decentes. E progredir sob ponto de vista da instrução no sistema escolar nos anos 50 ou 60 era uma coisa, nos anos 90 é outra.

 

É estonteante pensar no que o mundo mudou em 30 anos, sobretudo com os computadores.

A concorrência hoje é outra: não havia a noite, a televisão, a internet, a playstation, a bebedeira, a droga. Hoje, o sistema escolar, que em muitos aspectos continua regido por regras parecidas com as de há 40 anos, tem esta concorrência. Há pouco tempo visitei uma boite de crianças. Sexta-feira abre com limite de idade: só podem entrar pessoas até aos 16 anos.

 

Até que horas?

Eu estive lá às quatro da manhã. Bebe-se álcool e fumam-se ganzas. Portanto, o sistema escolar, mesmo que fosse bem organizado e consolidado, teria de ser diferente porque é submetido à concorrência.

 

De qualquer modo, deram-se passos gigantescos. Há pouco mais de 30 anos havia 50% de analfabetismo.

Há 40 anos tinha 25 mil estudantes universitários, hoje tem 400 mil. Mas metade ou dois terços, saem da universidade e o que aprenderam lá dentro não serve para nada. Aprenderam vagamente bocadinhos de uns ofícios. Os alunos que recebo no primeiro e no segundo ano da universidade, é frequente encontrá-los à beira do analfabetismo! Uma parte da responsabilidade do nosso sistema de educação, tão medíocre, reside no facto de se ter feito depressa demais, e mal, e muito demagógico. É inimaginável que um país, no século XXI, tenha taxas de insucesso ou abandono no 9º ano de 35% ou 39%. A educação deu uns ares de estar em melhoramento durante uns anos e agora descobre-se que é um falhanço.

 

Não há exagero no que diz?

No principal, é um monumental fiasco. Acabou com o ensino industrial. A ilusão igualitária (isto é, vamos fazer um sistema igual para toda a gente, que assim os filhos dos trabalhadores têm os mesmos direitos dos filhos dos ricos) foi um erro colossal. Hoje os filhos dos trabalhadores têm tanta ou mais dificuldade em aceder à universidade que tinham antes. Retirou-lhes a capacidade de aprendizagem técnica – uma arma que eles tinham – e não lhes deu nada em troca.

 

O corte é ainda litoral/ interior? Essa é a assimetria mais vincada? Meios urbanos/espaço rural?

A unificação do país fez-se nos últimos 20 ou 30 anos. Eu sou transmontano e tinha vindo uma vez a Lisboa até aos 25 anos! Havia muito pouca deslocação, poucos transportes, muita pobreza. Quando chegou a televisão, não havia escolas ou água canalizada em muitos sítios. As estradas, a televisão: Portugal ficou mais pequeno do que era há 30 anos, mais rápido e mais unido. As pessoas saíram do campo, vivem em pequenas vilas do interior. A televisão, a escola, o correio, as forças armadas, a banca, tudo isto cobriu o país inteiro.

 

Mas a realidade urbana e rural são distintas.

Já não há rural. População agrícola, são 4 ou 5%. A UE e as políticas portuguesas deram cabo da agricultura e das pescas. Por isso, já não pode encontrar uma diferença entre o rural e o resto. Indústria? A população industrial nos anos 60 para 70 chegou a 35%, e a agrícola eram 40%. Mas quando a agrícola baixou, quem subiu foram os serviços, a administração, o comércio. Portugal nunca foi uma sociedade industrial.

 

Então, qual é a diferença mais importante?

Quem tem dinheiro e quem não tem, quem tem poder e quem não tem. Os subúrbios de Lisboa e do Porto são esquálidos, sórdidos. Não há espaços públicos, não há equipamentos, não há alegria, não há verde, não há espaço para descansar, não há apoio aos velhos nem às crianças. É esta diferença que é hoje mais contrastante na sociedade.

 

Se o cenário é tão cru, e não queria dizer tão negro..., o que é que podemos fazer?

Estou cada vez mais modesto em relação ao "há que". Há que encontrar soluções. Para o Estado, ainda sou capaz de alguns "há que" - há que reformar a Justiça, por exemplo. Para os indivíduos, tenho pudor. Na actual desilusão em que vivemos, por causa das dificuldades que recomeçaram, há sete, oito anos, é possível que os indivíduos repensem as suas prioridades. Que pensem que têm filhos. Que pensem que talvez seja melhor gastar na educação dos filhos do que nas férias no nordeste do Brasil. Que pensem os pais que podem ocupar-se mais dos filhos. As crianças portuguesas vêem quatro a cinco horas de televisão por dia. A TV é dada aos filhos para eles estarem calados e sossegados, porque os pais não querem ir estudar com eles. É um cliché: a televisão é uma baby sitter.

 

Mas neste cenário de crise, como reagir?

Justamente: pode ser que com este período de crise, as pessoas reajam com energia e não com resignação. Só há dois factores que podem ajudar a isto: a crise e a Europa. Não pode sobreviver numa sociedade europeia sem mais responsabilidade, mérito, energia. Pode ser que ajude. Não tenho a certeza. 

 

 

 

Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em 2007