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Anabela Mota Ribeiro

Maria de Fátima Bonifácio (sobre Portugal)

19.05.14

O Tribunal Constitucional é que decide sobre o que é essencial na vida de todos os dias? Esta Constituição está concebida para amarrar os pés e as mãos do presidente da República? É imprescindível um pacto de regime para dar passos em frente? Maria de Fátima Bonifácio responde que sim a todas estas questões. Dela se pode dizer que é uma historiadora que não acredita em revoluções. Acusa este Governo de não ter sabido insuflar esperança (entre outras coisas) nos portugueses. “As pessoas precisam de sonhos”, ainda que não precisem de ilusões.

Tem uma obra extensa. O último livro “Um Homem Singular – Biografia Política de Rodrigo da Fonseca Magalhães (1787-1858) foi editado em 2012 pela D. Quixote.

 

“Nasci entre brutos, vivi entre brutos, morro entre brutos” é uma frase que se atribui a Rodrigo da Fonseca. Parece uma frase desesperada para se dizer no leito de morte, sobretudo se pensarmos que nós, portugueses, somos esses brutos.

A frase é apócrifa. Não há a certeza de que ele a tenha proferido. E não a escreveu. Mas o facto de essa frase lhe ser atribuída já fala por si. O Rodrigo era muito céptico em relação às virtudes da nossa portugalidade. Achava que não existiam. Era muito céptico em relação à natureza humana. Mas convivia bem com as imperfeições do mundo e dos homens.

 

Um pessimista?

Era realista. Estava convencido da impossibilidade de alterar a natureza humana. E estava convencido de que muitos dos defeitos da sociedade em que vivia tanto decorriam da má organização política e social como dos defeitos dos homens. Tinha muito má opinião a respeito dos homens em geral.

 

E de Portugal em particular?

Se calhar dos portugueses em particular. Tinha a noção de que Portugal não era a Inglaterra, a Bélgica. Achava que havia países com regimes políticos mais civilizados do que o nosso. Também não era difícil, vivíamos numa guerra civil. A partir do fim da guerra civil com os miguelistas, até 1981 Portugal viveu num clima de guerra civil intermitente.

 

Quais eram as diferenças mais significativas entre Portugal, a Bélgica e a Inglaterra?

Aquilo em que Rodrigo mais se empenhou toda a vida: a radical incapacidade que os portugueses tinham de discutir pacífica e civilizadamente, em vez de se insultarem e de andarem à pancada. O sistemático recurso à violência política como meio de luta política deixava-o quase desesperado. Não é que achasse que devia haver unanimismo, de todo. Era um liberal, acreditava na divergência das ideias. Era completamente anti-dogmático. Mas não percebia porque é que as pessoas não eram capazes, em Portugal, de ter essa discussão civilizada, racional, livre, despreconceituosa.

 

No diagnóstico de Rodrigo da Fonseca, porque é que não conseguíamos dar esse passo?

Acabámos por dar esse passo, em grande parte graças a ele, com a Regeneração, a partir de 1851. Achava que Portugal estava infectado, como de facto estava, pelo vírus revolucionário que vinha da Revolução Francesa. A Revolução Francesa veio criar a ilusão de que todos os males se podiam resolver através da violência política, e que a revolução era um passaporte para o paraíso. A Revolução Francesa gera um revolucionarismo que perturba quase toda a primeira metade do século XIX em toda a Europa, excepto na Bélgica, a partir dos anos 30, e em Inglaterra.

 

E em Portugal?

O revolucionarismo era impeditivo de qualquer diálogo com o pólo oposto. Enquanto a crença revolucionária sobreviveu em Portugal, o diálogo entre a esquerda e a direita liberais era impossível. Todos os diferendos eram resolvidos pela via violenta.

Em 1848 toda a Europa é varrida por uma série de revoluções. É a chamada Primavera dos Povos – por isso é que se fala [agora] nas Primaveras Árabes –, que começa em Paris e alastra a todos os países. Tivemos essa revolução prematuramente na Maria da Fonte em 1846. Não houve 1848 em Portugal.

 

Não tivemos uma revolução com a dimensão das europeias, é o que está a dizer?

Houve uma revolta caricata que o governo sufocou com meia dúzia de prisões. A partir daí uma grande parte dos revolucionários portugueses chegaram à conclusão de que a via revolucionária conduzia necessariamente a um fracasso. E descobriram que a política não tinha importância nenhuma, que as Constituições eram desinteressantes, e que o segredo para a emancipação cívica e política do povo português estava no desenvolvimento económico. É aí que chegamos ao célebre fontismo. Fontes Pereira de Melo entra para o governo em 1851 juntamente com o Rodrigo. O José Estevão dizia que um quilómetro de estrada valia mais do que todos os artigos de uma Constituição.

 

É uma frase demagógica.

Posta no contexto a frase tem sentido. Levámos 15 anos à bulha por causa de artigos da Constituição. Tivemos três Constituições em 15 anos e isso não resolveu problema nenhum do país.

 

Estava a ouvi-la e a fazer uma ponte com o século XX português e com os passos que foram dados em momentos revolucionários.

A revolução em Portugal só acabou… Teve aquele interregno de Salazar, que é uma vingança do Portugal conservador e católico. Outra particularidade da história portuguesa é que toda a gente é de esquerda no século XIX. Toda a gente é progressista, não há conservadorismo. O conservadorismo desaparece com a morte do miguelismo em 34. Até ao fim da República, era tudo a competir a ver quem é que era mais anti-clerical, menos dinástico, mais republicano.

Depois de Salazar, a revolução só termina com a primeira revisão constitucional em 82. Só então a Constituição é expurgada dos elementos mais revolucionários que ainda lá estavam. É a partir daí que temos uma Constituição civil adequada ao século.

 

Ainda muito de esquerda? Essa ainda é a matriz da nossa Constituição?

Na nossa Constituição ainda está escrito que Portugal deve caminhar para o socialismo. É uma coisa anacrónica e disparatada. Eu não estou nada interessada em caminhar para o socialismo, e como eu centenas de milhar de pessoas. Aquilo está lá; também não se pode dizer que incomode muito, mas devia ser retirado. O problema da nossa Constituição não é ser de esquerda ou de direita; é a definição dos poderes dos vários órgãos de soberania que não é a mais adequada. Tenho dificuldade em aceitar a maneira como as competências e poderes do presidente da República estão definidos.

 

Nomeadamente?

A ideia que tenho (não sou constitucionalista, estou a falar como uma leiga) é a de que a Constituição está concebida para amarrar os pés e as mãos do presidente da República – coisa que verificamos todos os dias. A ideia de que intervém pela palavra é uma pura treta que nos vendem.

 

Tem, por exemplo, o poder de destituir o governo.

Só tem o poder da bomba atómica, mais nada.

 

Aí não está atado.

Não, mas exceptuando a bomba atómica o presidente da República não tem meios de inspirar, conduzir, orientar.

 

O poder efectivo do Presidente depende das suas características pessoais e da maneira como consegue andar entre os pingos da chuva?

O poder efectivo do Presidente é reduzido, independentemente dos seus atributos pessoais. Claro que pode sempre fazer como fez Mário Soares, que montou uma oposição ao governo à margem da Presidência da República, mas isso não é recomendável nem é saudável, nem é leal. É falta de fair play mas foi o que ele fez. Talvez assim se consiga ter influência. Mas é por um meio espúrio.

 

Cavaco interveio nos últimos anos, nomeadamente na saída do Sócrates.

Ele tem alguma influência. Mas se quiser ter um presidente da República que oriente, dirija, no sentido da linha geral, não tem meios para isso. Ou então tem que montar um circo, incomodar toda a gente. A coisa acaba mal. Aquilo está feito para o manter amarrado.

 

Insisto. Se ele intervém pela palavra e se o poder está na palavra…

Digo justamente o contrário, que a palavra não tem poder nenhum. Ele pode fazer uma mensagem à Assembleia da República – é uma forma de usar a palavra – e ninguém lhe liga nenhuma. Ou pode falar no 5 de Outubro. Quem é que ouve? Claro que pode mandar uns recados pelo meio do discurso do 5 de Outubro ou do Natal, e será muito citado nos jornais. Mas quem governa pode alhear-se completamente dos estados de alma e dos estados de espírito do presidente da República. E é o que faz.

 

Acha que se podem dar grandes passos sem revoluções?

Sou reformista. O Rodrigo era um reformista e um gradualista – era o termo que usava. José Estevão tem um discurso na câmara dos deputados em que diz que o problema com as revoluções é que são feitas por vanguardas. E as vanguardas descolam das caudas que as seguem. Essa cauda é triturada por quem combate a revolução e a vanguarda fica isolada e impotente.

 

Que alternativa a esse método?

Ele acha que é preferível caminhar devagar mas sem que nenhuma vanguarda se destaque e se separe do séquito, do povo português. Acha que é um método muito mais frutuoso do que o método revolucionário.

Sou reformista, não acredito em revoluções. As revoluções cometem, regra geral, crimes monstruosos, devoram os seus próprios filhos. São mais feitas para destruir do que para construir. Das revoluções contemporâneas do século XX, ou de finais do século XIX, aquilo que restou foram regimes ditatoriais ou mesmo totalitários e sanguinários.

 

1910, 1974: seria possível pôr fim à monarquia de outro modo que não matando o rei? Em relação a 74, seria possível pôr termo à ditadura sem uma revolução?

Mas em 74 não houve revolução nenhuma, aquilo foi um passeio [risos]. Estou a falar de revoluções a sério, onde morre gente, em que se luta de um lado e de outro. 74 foi a rendição do Estado Novo às mãos do Movimento das Forças Armadas. Foi a coisa mais pacífica deste mundo. Houve uma revolução no sentido em que houve uma mudança de regime, mas era uma mudança de regime que já estava madura. Aquilo que se seguiu, tirando a loucura de 74/76, e sobretudo a loucura de 75, foi uma coisa branda. Ficámos rapidamente todos amigos outra vez. Passado pouco tempo já aí estava toda a gente que tinha fugido.

 

Foi muita gente para o Brasil.

Foram precipitadamente para o Brasil. Bem sei que o Otelo disse que metia toda a gente no Campo Pequeno, mas ninguém o levou a sério. Estava doido. Mas numa revolução a sério ele não estaria doido, ele faria mesmo isso.

Quanto à monarquia, como historiadora, tenho apenas que constatar que acabou e analisar porque é que de entre as várias maneiras como podia acabar, acabou daquela e não de outra. Pessoalmente posso dizer que não vejo porque é que a monarquia tinha que ser abolida. Tanto mais que quando D. Carlos é morto já estavam convocadas eleições para Abril de 1908.

 

Não sabia que era monárquica.

Não sou, mas detesto jacobinos, e os republicanos são jacobinos. E sobretudo os republicanos do Afonso Costa e do Partido Democrático que depois se forma.

 

Ainda a frase apócrifa: “Nasci entre brutos, vivi entre brutos, morro entre brutos”. Rodrigo da Fonseca achava os portugueses brutos?

Ele não podia deixar de achar os portugueses brutos, porque a esmagadora maioria dos portugueses era analfabeta. Temos que ter sempre presente que Portugal era Lisboa. O que se passava no Porto contava vagamente se conseguisse ter reflexos e influência em Lisboa. O resto do país nem sabia quem eram os ministros. Sabiam vagamente que havia um rei.

 

Éramos brutos? Somos brutos?

Não há comparação nenhuma. Se vamos a Espanha temos a sensação de que os espanhóis são mais desenvoltos, mais descomplexados, mais audazes. Há diferenças que têm a ver com o ADN histórico dos dois povos. Mas não sei até que ponto são menos brutos do que nós. Não sei se hoje se pode falar em bruteza no sentido em que o Rodrigo falava.

 

Qual era o sentido?

Ele queria dizer que as pessoas eram ignorantes, analfabetas. Coisa curiosa: dizia que quando uma pessoa era individualmente interrogada, dificilmente sabia dizer o que é que convinha mais para a sua vida ou para a organização do país. Eram muito raras as pessoas que tinham uma noção prestável sobre esse assunto. Mas que o povo no seu conjunto, quando interrogado, mesmo através do voto – e as eleições deixaram de ser fraudulentas a partir do Rodrigo –, tinha um instinto que não se enganava.

 

Instinto?

Talvez o povo reconheça instintivamente de que lado está o seu interesse. E talvez hoje, e estou a pensar em Portugal, o povo reconheça instintivamente quais são as possibilidades, onde é que está o limite para além do qual não vale a pena tentar. Se assim não fosse, os partidos PCP ou BE teriam votações esmagadoras. Não têm porque as pessoas sabem que estão a vender sonhos. Se o governo do país fosse entregue ao BE, o melhor que tínhamos a fazer era desatar a rir à gargalhada ou emigrar rapidamente.

 

Surpreendeu-a o crescimento significativo do PCP nas últimas eleições?

De maneira nenhuma. O crescimento não é bem um crescimento. É uma recuperação de câmaras que o PCP tinha perdido, no Alentejo (Évora, a mais emblemática de todas).

 

Encara-o como um voto de protesto?

Houve uma recuperação autárquica do PCP que encaro como um voto de protesto. Vamos ver o que se passa em eleições legislativas. Não creio que se passe a mesma coisa. O BE perdeu o único autarca que tinha, apesar do seu discurso inflamado. Quem os oiça, dá ideia de que se governassem não tínhamos que apertar o cinto, não tínhamos que fazer sacrifícios. A Europa subscrevia a nossa dívida, mutualizava a dívida. Facilidades, alegria, flores e passarinhos. O povo sente, mesmo pessoas pouco instruídas têm noção de que isto é uma conversa do Além. Não é uma conversa deste mundo onde temos os pés.

 

As pessoas precisam de sonhos e de esperança.

As pessoas precisam de sonhos, mas não precisam de ilusões. As pessoas precisam de sonhar coisas possíveis, que podem vir a ser feitas um dia.

 

Qual é o papel da esperança em momentos como este que atravessamos? Não é o mesmo que ilusões e sonhos.

O papel da esperança é importante. Se pensássemos que íamos viver nesta apagada e vil tristeza per saecula saeculorum [eternamente], e não tivéssemos uma esperança mais ou menos fundada de que de alguma maneira, mesmo que demore algum tempo, isto há-de dar uma volta positiva, tornar-se-ia muito difícil suportar a situação presente.

 

Esse é um dos principais problemas com que este Governo tem que lidar, a desesperança dos portugueses?

Este Governo não soube insuflar esperança nenhuma nos portugueses. E não estou a falar de fazer propaganda. Não tem a ver com prometer mundos e fundos nem fazer promessas do Além. Mas este governo fez finca-pé em ostentar uma dureza, e até em matar qualquer ilusão ou esperança. Não percebo porquê. É um exercício um pouco sádico que revela muito pouca consideração pelos portugueses, pelas pessoas que estão a passar pelos sacrifícios. Passos Coelho tem tentado emendar um pouco a mão, mas nitidamente não é o jeito dele. Durante os dois primeiros anos comportou-se sistematicamente de uma forma um pouco acintosa. É um erro político.  

 

Aumentar os impostos e cortar a despesa são os dois caminhos usados para equilibrar as contas. Dois anos e meio depois elas não estão propriamente equilibradas. Mas não são só os problemas reais, quantitativos que estão em jogo. Ter um horizonte de futuro é um ingrediente seriamente considerado quando se analisam as revoluções?

É impossível enunciar uma teoria que lhe permita deduzir em que circunstâncias é que há revoluções. Assim como não há nenhuma teoria geral do desenvolvimento. Se houvesse, não havia países subdesenvolvidos. Às vezes há uma gota de água qualquer, é quase inexplicável, que põe as pessoas em movimento.

 

Não querendo fazer futurologia...

Não vai acontecer nada. Pelo que vejo, nada me faz supor que venha aí uma revolução nos anos mais próximos. Pode inclusive renascer a fé revolucionária, que está extinta, mas não está excluída. E se as pessoas acreditarem que a revolução lhes resolve o problema, é possível. A sua pergunta é muito pertinente, mas a minha convicção é de que não vai haver nenhuma convulsão. Mesmo à esquerda. O PCP é ele próprio um travão. O PCP nunca consentirá em nada que não controle.

 

É conservador?

Bastante conservador. Se fosse o Bloco no lugar do PC já não diria a mesma coisa. Mas como o Bloco está a desaparecer… Provavelmente desaparece nas próximas legislativas, com grande benefício do país.

 

A ausência de alternativas ajuda a justificar isso que é a sua impressão?

Totalmente. É o factor principal que determina uma certa resignação. Na Europa não há alternativas. A Europa ainda agora repetiu que Portugal tem que cumprir direitinho o programa de endividamento até ao fim. Já não falta muito até Julho [de 2014]. E depois haverá uma coisa que não se vai chamar “memorando de entendimento” mas que vai ser muito parecido. Ninguém pense que vamos voltar ao forrobodó que era antes.

Cá dentro as coisas só mudariam, e talvez venham a mudar – não estou a falar em nenhuma convulsão revolucionária –, à força, se a Europa nos obrigar. Se a Europa disser na avaliação que só temos a próxima tranche se fizermos isto, isto e isto. “Se despedirem não sei quantos funcionários públicos, se diminuírem não sei mais quanto as pensões.”

 

E para isso seria preciso fazer um pacto de regime?

Sim. É aí que quero chegar. O PS não se coliga nem à esquerda nem à direita e não entra em combinações com este Governo. Mas no dia em que a Europa não mandar a tranche e não houver dinheiro para pagar salários, para pagar pensões, para pagar operações no Hospital de Santa Maria nem no Hospital de São José, garanto-lhe que os partidos se entendem. Sentam-se mesmo à mesa, fazem um pacto de regime e mudam a Constituição. E o Tribunal Constitucional deixa de governar Portugal como está a fazer.

 

Acha que é o Tribunal Constitucional que neste momento decide sobre aquilo que é essencial na nossa vida?

É. É inconcebível que o Tribunal Constitucional aprove ou reprove medidas que me parecem eminentemente governativas, que são do foro do órgão executivo.

 

Mas se os seus princípios, segundo o Tribunal Constitucional, violam a Constituição…

Por isso é que tem que se mudar a Constituição.

 

Isso é outro problema.

Mas por isso é que vejo este cenário. Vai faltar dinheiro, os partidos vão ser obrigados a sentar-se a uma mesa, e a fazer uma revisão constitucional e a rever as funções do Tribunal Constitucional. De outra maneira a Europa não nos manda dinheiro e não somos capazes de nos financiar nos mercados.

 

Por que razão o Governo apresenta orçamentos com princípios que sabe, ou pressente, que vão ser chumbados pelo Tribunal Constitucional? Da segunda vez era inevitável o chumbo.

Era. Mas eles têm que arranjar dinheiro de qualquer maneira e estavam a ver se passava. Estão no papel deles.

 

O papel deles é atirar o barro à parede?

Não sei o que é que lhes vai na cabeça. Sabem tão bem como eu que aquelas medidas vão ser chumbadas. Ou que a probabilidade de serem chumbadas é enorme. Talvez o Governo esteja a querer com isso mostrar que é mesmo preciso rever a Constituição.

 

Empatar, ganhar tempo, é outra possibilidade?

Não. Não vejo o que é que lucram em ganhar tempo. Pelo contrário, só perdem.

 

Vão iludindo a Troika e as revisões.

A Troika não é iludível, só se deixa iludir enquanto quiser. A Troika também se deixou iludir na Grécia durante um certo tempo.

 

Mesmo que o FMI tenha dito “mea culpa, mea culpa” em relação à Grécia e também em relação a Portugal.

O FMI diz: “Fizemos as contas mal, usámos os multiplicadores errados e nunca pensámos que as nossas medidas fossem tão recessivas”. Mas depois exigem [resultados] como se não tivessem dito nada. Só se fosse a Christine Lagarde é que lhe podia responder a essa pergunta. É um mistério.

 

Estava a dizer que o Tribunal Constitucional é quem tem governado o país.

Há um certo exagero nesta frase, mas a verdade é que o TC tem a faca e o queijo na mão. Pode paralisar o Governo. Custa-me aceitar a ideia. Estamos em circunstâncias especialíssimas. As virtudes ou os defeitos do TC não podem ser vistas à luz de critérios que seriam aplicáveis se estivéssemos numa situação de normalidade.

 

Gostava de voltar à falta de soluções alternativas. Disse que na Europa não há essas soluções.

Não acredito. Não acredito que a Merkel vá defraudar o seu eleitorado. Pode abrandar agora um bocadinho aqueles sonhos das mutualizações das dívidas.

 

Não acredita que parte da dívida, pelo menos, tem que ser perdoada?

Sim. Mas isso não é mutualização da dívida. Há uma parte da dívida que vai ter que ser perdoada se cumprirmos este memorando direitinho até ao fim, como temos estado a cumprir – ainda que os resultados não sejam fantásticos (pelo contrário, são muito fraquinhos). Para a Europa conta mais o cumprimento estrito do que é acordado do que os resultados.

Não vejo que possamos pagar a dívida que temos. O peso dos juros dessa dívida é esmagador, impede qualquer redução séria do défice. A Europa compreenderá isto. Mas vai obrigar-nos a fazer tudo by the book. O Tozé Seguro pode dizer e gabarolar-se de que vai a Berlim e que fala com A e com B, e que vai a Bruxelas e fala com C. Pode falar à vontade. Até pode falar sozinho em casa que o efeito é o mesmo.

 

Pacto de regime, a existir: com estes líderes, com outros?

Não sei. As gerações de políticos com fibra acabaram. Agora só há políticos de plástico que vêm das “jotas”. Nunca tiveram contacto com a realidade, nunca trabalharam. Todo o trabalho que fazem é arranjar emprego e benesses uns para os outros e subir no aparelho. Subir no aparelho faz-se arregimentando grupos de pessoas dependentes à volta. Cada aspirante a líder ou a figura importante do partido rodeia-se de um séquito de dependentes.

 

Quer Passos quer Seguro vêm daí. Um pacto com Rui Rio e António Costa, faria diferença?

Faria. Não estou a ver como, mas em política as coisas podem mudar quando menos se espera. Não tenho nenhuma dúvida de que um pacto entre Rio e Costa seria muitíssimo melhor para o país do que um pacto entre Seguro e Passos. O Passos é muito impreparado, viu-se pela quantidade de erros calamitosos que já fez, pela maneira como gere o país e pela atitude. O Seguro é nulo. Um pacto entre duas nulidades muito parecidas… mas se não puder ser de outra maneira terá que ser com estes.

 

Pelo menos até Julho do próximo ano…

Estamos financiados pela Europa.

 

Até aí não prevê alterações políticas substantivas? Depois é que pode haver mexidas, por causa da necessidade de assistência?

Há um desafio que ainda temos pela frente. Há certas medidas muito dolorosas cuja execução será avaliada na próxima vinda da Troika. Das duas uma: se não conseguirmos fazer cumprir as exigências da Troika daqui para a frente, alguma coisa tem que acontecer.

 

Quer se chame segundo resgate, quer se chame assistência cautelar, que não é a mesma coisa, uma delas é inevitável? Não há resultados, e é muito pouco o tempo para recuperarmos.

Acabar o memorando de entendimento e voltar alegremente para os mercados e recuperar completamente a nossa soberania financeira e política, é das tais ilusões que não vale a pena ter.

 

O problema do défice não é novo. Basta olhar, de novo, para o século XIX...

A verdadeira oposição era o défice. Os governos caíam porque não conseguiam fazer face ao défice. A direita tendia mais a ir pela via do aumento dos impostos.

 

E equilibrava as contas?

Não. A progressão do défice português ao longo do século XIX é um coisa [terrível]. Fizemos bancarrota em 1851 e em 1891.

 

E em 1891, demorou-se quase 20 anos a negociar como é que a dívida ia ser paga.

Eram outros tempos. Isso hoje era impossível.

 

Como é que alguém está 20 anos a negociar o pagamento da dívida? Ainda estamos a pagar essa dívida e os juros?

Acabámos há uns quatro anos.

 

A dívida e o défice são os problemas crónicos de Portugal?

A dívida, o défice e a falta de crescimento económico, ou o crescimento económico insuficiente, são os grandes problemas de Portugal. Na primeira metade do século XVII já havia quem escrevesse sobre o atraso de Portugal. No fundo só fomos grandes no século XV e no XVI. E depois efemeramente do princípio do século XVIII com o ouro e os diamantes do Brasil. Mas estafou-se tudo com Mafra e a Patriarcal.

 

Voltamos à desesperança.

Gostava imenso de ser mais optimista mas para isso teria de mentir.

 

Rodrigo da Fonseca tinha, apesar desta bruteza que nos caracteriza, um optimismo em relação à espécie humana e nomeadamente em relação aos portugueses. Procurava consensos e conseguia-os. Para isso era importante não ser um homem dos partidos?

Sim. Rodrigo sempre se gabou de que só pertencia à nação e a ele próprio. Era da Maçonaria, mas era impossível fazer política sem ser da Maçonaria, quer se fosse de direita ou de esquerda. Nunca foi chefe de partido, nunca esteve filiado em partido nenhum, nunca se deixou arregimentar por partido nenhum. Foi sempre extremamente independente. Mas tinha muitos – aquilo que se chamava na época – amigos.

 

Apesar de ser um contexto completamente diferente e de se tratar de personalidades diferentes, ocorre-me Rui Moreira, vencedor das últimas eleições autárquicas. Pode ser uma via, os portugueses começarem a votar em pessoas que não as dos partidos porque deixaram de se rever nos partidos?

É uma via com um potencial limitado. Com potencial bom, como foi o caso do Rui Moreira, que foi exemplar. Foi uma grande bofetada numa certa maneira de fazer política partidária viciada como a que o Menezes representava.

 

Porquê limitado?

Porque, por mais voltas que se dê, em última análise, uma democracia parlamentar precisa de partidos. Comporta independentes mas dentro de certos limites; não pode substituir os partidos por independentes, porque se não tem uma bagunça que ninguém se entende e não consegue ter uma democracia parlamentar. 

 

E aí vêm os perigos dos totalitarismos, não?

O perigo do caos, e do caos sabe-se lá o que sai.

 

Para terminar uma pergunta mais aberta. Como é que nos descreveria, aos portugueses?

É uma pergunta a que não gostaria de responder. É uma pergunta que permite todo o tipo de especulação arbitrária. Há quem diga que eles têm medo de existir – ainda gostava de saber porquê. Há quem diga que são muito fura-vidas e adaptáveis. Talvez um sociólogo possa responder. Há uma coisa que posso dizer: trabalhamos pouco e somos muito desorganizados. Quando vamos lá para fora e somos integrados em estruturas que nos disciplinam e nos organizam, funcionamos maravilhosamente.

 

Então o problema é que não temos boas estruturas que nos organizem.

Não temos. 

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2013

 

Irene Flunser Pimentel (s/ Portugal)

18.05.14

Irene Flunser Pimentel é historiadora. Houve um tempo em que encarnou a revolucionária soixante-huitard. A via que hoje preconiza para intervir social e politicamente é a reformista. Cita uma frase famosa: Chasser le naturel, il revient au galop. “Significa: mesmo que expulsemos o natural, aquilo que a pessoa de facto é, esse natural, vem a galope.” Qual é esse natural dos portugueses? Como somos, nomeadamente, quando se olha para a nossa história recente? “A História relativiza os grandes dramas. No meu caso, penso que, depois do Holocausto, se houve renascimento, se houve outra vez uma cultura possível, se houve política, também agora vai continuar a haver. Não sabemos é o quê. Nenhuma das chamadas ciências humanas nos permite ver o que vai ser o futuro. Basta ver os economistas: todos têm errado.”

Foi Prémio Pessoa em 2007.

 

É meia estrangeira. A sua mãe é suíça. Como é que apresentaria Portugal e os portugueses a um estrangeiro?

Tenho dificuldade em dar uma essência dos portugueses. Não se pode falar dos portugueses como uma entidade abstracta. Mesmo assim, diria que somos maníaco-depressivos. Tão depressa achamos que somos o máximo como achamos que somos os piores do mundo. Também temos o “nós” e os “outros”. Nós somos os bons, todos os outros não prestam para nada e não nos deixam avançar.

 

Os “outros” podem ser os estrangeiros, os “outros” portugueses, o colega?

Os outros portugueses. Quanto aos estrangeiros, há uma certa reverência e um certo racismo. Depende do estrangeiro. “Nós” é o meu vizinho do lado. “Eles não pagam impostos”, “eles não têm civismo a conduzir”. “Eu” pago os meus impostos; e se não pagar não digo, porque sou o espertalhão.

 

O “chico espertismo” é uma marca vincada dos portugueses.

Sim. E o “chico espertismo” está muito ligado à corrupção.

 

São dois pesos e duas medidas. Ser espertalhão é uma coisa à qual piscamos o olho quando é feita numa pequena escala – aplaudimo-la, achamos que eles a nós não nos levam. Quando é numa grande escala…

Quando são grandes corruptos, indignamo-nos. Isso está ligado a outra componente: a inveja. Ele conseguiu fazer aquilo, eu também consigo.

Estas últimas declarações de Cavaco Silva, além de tudo o mais, denotam no próprio Presidente da República, que se esqueceu que o era naquele momento, uma inveja. Como quem diz que outros ganham muito mais do que ele. Estas afirmações deviam ter consequências. Uma das características portuguesas é que a culpa morre solteira. Basta pensar no que aconteceu com os fundos da CEE; onde foram parar as verbas, como é que se gastaram? Como é que temos um Presidente da República que participou activamente nisso, e que ao mesmo tempo parece que está de fora, critica de fora? Muitos outros ex-elementos do governo, muitos outros ex-ministros das Finanças, quando falam, parece que não tiveram responsabilidades.

 

Defende a criminalização dos políticos e da sua acção governativa?

Sou contra. Mas tem de haver uma responsabilidade. E uma visão histórica dos acontecimentos. Espero que o que foi dito agora não esteja ultrapassado daqui a um mês. É como se estivéssemos permanentemente a viver no imediato, sem nada que nos tivesse antecedido e sem futuro.

A memória está ligada ao esquecimento, e é fundamental haver esquecimento. O problema é o que permanentemente esquecemos e o que permanentemente vamos buscar. O que vamos buscar é o ditador, a autoridade. O que esquecemos é a miséria ou a desigualdade de circunstâncias. Quantas pessoas ficaram pelo caminho porque não se puderam educar?  

 

Quando começamos a olhar para o nosso passado recente, tudo vai dar aos 48 anos de salazarismo?

Há uma tendência para isso. Em História não há profecias, porque o decurso dos acontecimentos depende de vários factores e de diversas combinações destes factores; tanto pode acontecer algo como o seu contrário. Mas diria que alguns vão começar, muito em breve, a responsabilizar o 25 de Abril. Há um certo revisionismo histórico, quando se diz que no marcelismo havia um desenvolvimento económico, um avanço e uma abertura, e que se não tivesse havido o 25 de Abril teríamos tido outro percurso.

 

Austeridade é a palavra mais usada, e sentimo-nos colectivamente num beco sem saída. Estamos?

A imagem que passou muito bem, e que continua a passar, é a de que não há alternativa. Há a austeridade, há o empobrecimento. Não digo que determinadas questões não devessem ser reestruturadas, havia coisas que não podiam continuar, e por isso já estavam a decorrer reformas. Mas estão a perder-se, com esta radicalidade, em nome de uma política e de uma ideologia, determinados direitos adquiridos. As pessoas estão apáticas, estão com medo, não vêem alternativa. Acham que vivemos acima das nossas posses e que agora temos que poupar.

 

E não vivemos? Sendo verdade que o problema não somos só nós ou o que os nossos políticos nos dizem que gastámos. A crise da dívida não é exclusiva de Portugal.

As actuais forças políticas de direita ganharam as eleições com a noção de que isto era só em Portugal. A narrativa era a de que, acabando com uma determinada forma de fazer política, de governar, passaríamos a ser bem vistos no estrangeiro, a dívida iria ser perdoada, os juros iriam baixar. Neste momento a narrativa é a de que estamos numa conjuntura mundial. Coisa que sempre aconteceu.

 

Um alemão vive acima das suas posses? Pergunto isto com a ironia do português que não gosta do cumpridor exemplar, do aluno marrão que nunca se descai.

Estava a falar do discurso que é transmitido, não do meu discurso. Não posso dizer que a maior parte dos portugueses tenha vivido acima das suas posses, posso dizer que há pessoas que viveram acima das suas posses. O grande problema é a falta de produtividade. Mas nesse sentido, quem é que é responsável?

 

Dirigentes que não exigem outra produtividade ou não a imprimem.

Não imprimem, não sabem gerir, estão-se nas tintas. As elites, os gestores, os patrões, têm aqui uma enorme responsabilidade. Podem ser gastadores, ignorantes, muitos deles têm a 4ª classe.

 

No estrangeiro, o português é louvado pelos seus dotes de trabalhador.

Na Suíça, os portugueses são considerados os mais produtivos. Na restauração, há uma pessoa para servir 40, e aquilo anda. Evidentemente com salários muito superiores aos de miséria que aqui vigoram, e com um maior reconhecimento do mérito do trabalho de cada um. Em Portugal, num café, uma pessoa vai buscar uma coisa e não vai buscar três. Isto passa pela educação, pela organização, de alto a baixo da sociedade.

 

Mas como resolver o problema da produtividade?

Não é com o aumento exponencial das horas de trabalho e da redução do tempo de lazer e de descanso, não é com salários baixos, que se aumenta a produtividade. Não é com este ciclo vicioso de empobrecer, deixar de consumir – qualquer dia não há um restaurante aberto – que resolvemos o problema. Ao contrário da Alemanha, temos o hábito de jantar fora, fazer vida social no restaurante, o que é uma boa coisa. Vai acabar.

 

Muitos restaurantes queixam-se do aumento do IVA. E de haver menos dinheiro. Para um povo como o alemão ou o holandês jantar fora é um luxo. Olham para este hábito como sendo um desperdício. Olham para os países mediterrânicos como sendo perdulários.

É verdade.

 

Estas noções de que estamos a tratar, da relação com o trabalho e o prazer, têm que ver com uma matriz religiosa?

Não tenho dúvida nenhuma. O Espírito do Protestantismo de Max Weber ainda hoje é um livro fundamental [para compreender a Europa]. A minha família materna é toda protestante. A relação com Deus é directa e a nossa, católica, não é. Temos o acto de contrição, a confissão, que passa pelo padre, e que põe tudo outra vez a zero. Podemos pecar, e no momento seguinte, se nos formos confessar e comungar, estamos novamente puros. Eles têm uma visão completamente diferente. A graça divina, que para nós vem do exterior, para eles é uma coisa interior. “Tenho que trabalhar, tenho que poupar, para obter essa graça divina”. É verdade que é muito mais interessante a nossa cultura, do divertimento, do gozo gratuito, mas podíamos conjugar as duas coisas.

 

Por que é que nunca conseguimos conjugá-las? E por que é que, uma após uma, ao longo dos séculos, fomos desperdiçando todas as oportunidades de operar mudanças de fundo?

A minha interpretação é que achamos sempre que alguém vai tratar de nós. O Estado Novo, aquele regime, convinha muito, também, aos portugueses. Os portugueses aceitaram-no e não é por acaso que durou tantos anos. Não é por causa da repressão. A repressão era dirigida contra alguns. O grosso da população tinha a ganhar com aquilo, e tinha, sobretudo, a ganhar com esse aspecto de não ser responsabilizado.

 

Em liberdade, escolhemos. E somos responsáveis por essa escolha.

Com o 25 de Abril, com a democracia, passámos a protestar e a reivindicar como se tivéssemos direito a tudo, mas esquecemos que também tínhamos deveres e responsabilidades. Não temos a noção de que somos uma sociedade em que temos de atender aos outros e às suas necessidades. A falta de civismo é típica: as casas dos portugueses de certeza que não são como as nossas ruas – uma porcaria. Salazar era uma espécie de paizinho bondoso que olhava pelos seus filhinhos tontos. Ele próprio tinha os portugueses em muito má conta. Achava que os portugueses eram sentimentais demais. Odiava o fado, o fatalismo.

 

Era bonzinho porque, apesar de tudo, não foi uma ditadura tão violenta como a do franquismo?

Não. Era um pai severo que geria uma situação em que os filhos se portavam mal. Para o que ele queria, não precisava de mais violência. E era uma violência rasteira que perdurou durante anos, que teve resultados perniciosos. “Não te manifestes, não fales disto”. Uma violência que em Espanha seria quase impossível. Como é que se proíbe um espanhol de falar ou de berrar? Aqui bastava dizer que não fica bem, que o vizinho do lado está a olhar, que a polícia está atenta caso se ultrapasse o risco.

 

Era todo um dever ser, que grassava na sociedade.

Uma aparência. Aparência muito utilizada por Salazar, que sabia que “o que parece, é”.

 

Mas quando as pessoas diziam “parece mal”, isso era lido como um conteúdo despolitizado.

Despolitizado e cultural, atávico. Mas é claro que é politizado, é uma maneira política de ser. O carisma salazarista é o carisma do homem que não fala muito alto, que tem aquela voz, aquele sotaque da Beira. Um carisma que permitia uma certa identificação com o ditador da parte dos governados e que o punha, enquanto governante, noutro patamar. Num patamar diferente do do homem com o chapéu na mão, a olhar para o chão, no relacionamento com alguém que manda. Mas isso ainda cá está dentro. Acabamos por nos vender por tuta-e-meia, para estar bem com aquele senhor, e não nos importamos, até, de trair o nosso vizinho que está nas mesmas circunstâncias.

 

Um gesto na ditadura – não sei se hei-de dizer na ditadura ou no tempo dos grandes industriais – que impressiona: o empregado vai pedir ao patrão que chame à atenção do seu filho, para que estude, para que zele pelo seu futuro. É uma abdicação daquela forma de autoridade (na relação com o filho) e revela uma dependência do poder. Nós, portugueses, somos um pouco assim? Estamos sempre a pedir a alguém de fora que intervenha por nós.

Sim. Durante os últimos anos foi a Europa. Agora temos de nos confrontar com a situação de que nem a Europa [nos pode acudir]. Estamos completamente despidos. Quando saí da política tive uma enorme angústia de me sentir livre. É duro ter a liberdade de pensar, a liberdade responsável de tomar opções, de ter que ter opiniões. Se tivermos alguém que se encarrega de fazer isso por nós, de bom grado deixamos.

 

A ousadia que nos permite ir mais longe exige várias coisas. Entre elas, ter um horizonte futuro, o que contraria o que há pouco disse, de vivermos no presente. Preferencialmente devíamos ter uma estratégia, para que a persecução de um determinado objectivo seja bem sucedida. E precisamos de ter a confiança de que aquilo pode correr bem, ou, mesmo que não corra bem, que há uma segunda oportunidade.

Exactamente. Não encaramos o lado aberto do futuro, e no entanto todos temos futuro. Isso é o que a História nos dá e que é muito agradável: vermos que há mudanças e que o mal nunca perdura. No período em que estamos a mudar não sabemos para onde vamos. Não sabemos o fim da história, porque esta não tem fim. É o contrário do que Fukuyama disse, quando disse que [a Queda do Muro] era o fim da história; ele próprio já recuou relativamente a essa afirmação em toda a linha.

 

Uma das marcas do nosso tempo é a velocidade. Quando pensamos no Holocausto, constatamos que os nossos pais eram vivos quando o horror maior estava a ser perpetrado na Europa. E tanto aconteceu depois disso. Mesmo depois de 1989, uma nova matriz foi inaugurada e rapidamente chegámos a um ponto agónico onde não esperaríamos estar, tendo começado há tão pouco tempo.

A minha mãe viveu tudo isso, tem 89 anos, está muito lúcida. Não está tão apavorada, como um jovem, e eu se calhar também não, porque tenho a idade que tenho. Está a assistir do balcão, como se aquilo não tivesse consequências para ela, o que lhe dá uma postura de independência e de liberdade. O mundo que nos foi ensinado, e eu sou filha do pós-Segunda Guerra, tinha a característica, muito iluminista e marxista, de acreditarmos num eterno progresso. À medida que íamos crescendo, íamos progredindo. Um jovem não tinha acesso a praticamente nada, mas sabia que ia ganhando acesso às coisas. Esse paradigma está completamente posto de lado. Já está há alguns anos posto de lado do ponto de vista factual e objectivo, mas subjectivamente é agora que os jovens se estão a aperceber disso.

 

E sentem uma castração do futuro?

Sentem frustração, que é uma coisa tremenda. Na minha geração, a frustração vinha dos pais, da autoridade; e isto resolvia-se, saíamos de casa ou fugíamos, ou casávamos. Sabíamos que isso tinha um fim. Agora é ao contrário. Muitos destes jovens tiveram acesso a muita coisa a que vão deixar de ter acesso. É muito mais difícil perder do que vir a ganhar. É preciso ver que tipo de influência vai ter este novo paradigma na vida das pessoas. E na política. Ainda estamos a viver, no pensamento, um mundo político do pós-guerra, mas, na prática, este já não existe. Não há é um pensamento adequado ao que estamos a viver.

 

Explique isso.

A forma como as sociedades democráticas estão organizadas é como no pós-Segunda Guerra Mundial, só que já não temos as características desse período. O estado social, que nasceu pouco depois da Primeira Guerra, mas sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial – o Welfare State –, é muito recente. No entanto, já está a ser desmantelado. Nós, devido à ditadura, apenas vivemos com essa noção de Estado-Providência, uma benesse à qual nos habituámos, desde 1974. Sem quase nos apercebermos, ele está a desaparecer.

 

A criação de um Estado Providência, no pós-guerra, era forçosa. Era preciso valer aos que sobreviviam.

Apesar do recente horror, havia um lado optimista de recomeço, renascimento. Hoje, assistimos à expressão de noções outrora consideradas eugenicamente criminosas, como a de que o Estado não se deve encarregar dos velhos e desempregados. Isto faz-nos lembrar a deriva eugénica dos anos vinte e trinta do século XX, marcada pelo darwinismo social, segundo o qual quem tem unhas é que toca viola.

As guerras [têm na sua génese], desde a Idade Média, pelo menos, a falta de pão e procuram resolver essa falta eliminando as bocas. Por isso se pergunta se não estaremos…

 

… a viver o advento de uma terceira guerra?

Há elites que não se importariam com isso. E não estou a falar só da indústria de armamento, que sempre existiu. Basta ver, nos Estados Unidos, o que foram estas últimas guerras. Se não tivermos cuidado podemos caminhar para qualquer coisa desse género. Estamos em cima do vulcão, sabemos que alguma coisa está a mudar e não sabemos para onde é que vai.

 

Voltemos a Portugal e à situação a que chegámos.

Ao estado a que isto chegou [riso], como disse Salgueiro Maia.

 

Se tivesse de apontar as grandes razões pelas quais estamos onde estamos, o que é que diria?

Não há uma razão, há vários factores, e tudo está ligado à ideologia e à política. Sou defensora de um estado social. É uma opção política fazer tudo para que ele subsista, sabendo que vai ter que ser reestruturado. Não pode ser extinto. A saúde não é um luxo, a vida não é um luxo.

 

Porque é que se opõe à extinção do Serviço Nacional de Saúde?

Eu tenho um seguro privado; parece evidente, se tenho um seguro, se raramente vou à segurança social ou ao médico de família, por que é que hei-de estar a descontar? Tenho tido essa discussão com a minha mãe, que diz: “O teu pai tinha dinheiro, foi operado; como o hospital público era o melhor, foi operado no hospital público, e não pagou nada. Não é correcto”. A questão é que tem de se ir buscar aos impostos das pessoas que ganham mais, e esses não devem fugir, para poder pagar o estado social a quem precisa. Mas todos têm que pagar e ter esse acesso. Isto só é possível porque a lei é universal. Se não tiverem esse acesso, não vão pagar todos e, então sim, deixa de haver dinheiro para assistir a todos.

 

Sente que continua a ser de esquerda porque…

Neste momento, por causa disto. É uma esquerda tão reformista que não tem graça nenhuma [riso]. Tinha muito mais graça ser revolucionária. Hoje não sou uma revolucionária. Sei o que é que determinadas revoluções deram, movidas por determinada ideologia. Devemos avançar e os progressos são feitos através de reformas.

 

Fala a soixante-huitard.

Para uma soixante-huitard, não havia coisa pior do que um reformista. Hoje sou isso, por escolha própria, e porque não há outra alternativa, segundo penso. Ser de esquerda hoje é defender o estado social, a educação para todos, com a noção de que isto são opções políticas – o dinheiro vai para ali porque se opta politicamente que vá para ali. Há muitas circunstâncias que fazem com que as pessoas não possam tocar viola.

 

Voltemos às razões, porque não é só uma, que nos trouxeram aqui. O que é que apontaria?

Tem muito a ver com a falta de democracia plena. Não posso culpar os políticos. Os políticos são à nossa imagem. Em democracia, ninguém nos proíbe a participação política. Se não a temos, é porque não queremos, é porque desistimos de actuar. Vejo por mim: não me tenho metido em política, e cada vez que me meto fico arrependida. É um processo muito…

 

Destrutivo?

É. As pessoas já não ouvem nem querem saber de alternativas. Ficam todas acantonadas em pequenos grupos, sectários.. Ainda bem que há políticos, seria muito pior se não pudéssemos delegar em ninguém. Eu investigo História e não tenho tempo para gerir o bem público; por isso, quero delegar em alguém a administração desse bem, sob minha fiscalização. Mas se as pessoas deixam de votar, se se estão nas tintas para isto tudo…

 

Enquanto historiadora, o seu objecto de estudo, mais do que tudo, é o período do Estado Novo. O 25 de Abril aconteceu nem há 40 anos. Nos anos subsequentes, houve uma grande participação política. Por que é que o envolvimento e a crença no futuro se dissiparam tão rapidamente?

Tem a ver com a questão do fim, ou não, da história. Para Portugal, o 25 de Abril marcou o início de um novo regime e parecia que tudo era possível. Parecia o início de uma nova história, que estava, no entanto, marcada a nível mundial por ideologias que tinham nascido no início do século XX. Depois veio a acalmia democrática e o amanhã que canta europeu. De repente, estávamos na Europa, numa democracia consolidada, como noutros países europeus, e nestes a tendência era para a apatia, a demissão política, o entregarmo-nos a plantar o nosso jardim. Isso está a mudar, porque já não estamos felizes. Temos duas alternativas: ou passamos a discutir e a actuar politicamente ou deixamos que uma ditadura providencial o faça por nós.

 

Disse que a História não se repete. Mas estudando períodos especialmente marcantes, fracturantes, é inevitável estabelecer paralelos, similitudes. Repetidamente olha-se para os anos 30 quando se analisa o tempo que vivemos. Faz sentido?

Hoje há certos aspectos que metem medo e que nos remetem para o final dos anos 20 e 30 do século XX. A crise financeira de 1929, a crise do liberalismo e da representação democrática. De repente começa a haver chapeladas, pancadaria, a luta contra os políticos, que não representavam as pessoas. E vieram opções políticas, ditatoriais, cujo objectivo principal era eliminar o parlamentarismo e os adversários políticos. E com um líder carismático. Hoje, numa situação de crise da democracia, de crise financeira, pode haver a tendência de procurar a solução num ditador populista, demagógico, que chegue aqui a dizer que amanhã resolve isto tudo. Eliminando o conflito, eliminando greves, eliminando manifestações. E qualquer regime ditatorial que viesse agora, seria pior do que tudo aquilo que já vivemos, pelo poder da informação. O Estado Novo escutava 20 telefones por dia, hoje pode escutar-se tudo com uma antena parabólica.

 

É nos anos 30 que as ditaduras se afirmam na Europa. Hitler ascende ao poder em 1933.

O Salazar também, o Mussolini antes, em 1922. E tinha acontecido a crise de 1929, em que se viu que quem sofreu mais foram os países mais desenvolvidos – a Alemanha. É por isso que a Alemanha tem horror, por exemplo, a fazer moeda. Lembram-se de na crise de 29 as pessoas andarem com maços de notas que não valiam nada.

 

Uma alemã, casada com um chileno, contou-me que num jantar com alemães perguntaram, uma semana antes, se ele, chileno, tinha ideia de quantas batatas ia comer. Pareceu-lhe uma pergunta abstrusa. Ela explicou-lhe que, além dos lugares comuns que usamos para caracterizar os alemães, existia uma memória da guerra e do racionamento. Este gesto traduzia isso.

É verdade. Uma amiga minha alemã, que adora Lisboa, perguntou-me ao telefone: “E os restaurantes, continuam cheios?”. Eu disse: “O que é que estás a querer dizer?, que continuamos a gastar dinheiro e a viver acima das nossas posses?”. Ela responde: “Sim, porque aqui os restaurantes estão vazios”. Sempre estiveram. Havia já uma pontinha de racismo. Logo a seguir ela muda o discurso e começa a atacar os gregos. “Eles são culpados”. Mas é verdade que a memória [dos alemães] e doutros europeus é muito maior do que a nossa. Outro dia estava a ler o livro do Tony Judt, o último que escreveu antes de morrer, O Chalet da Memória, em que descreve a austeridade no pós-guerra em Inglaterra, que durou até aos anos 60. Disso não temos a noção, porque não vivemos a guerra e não o tivemos no pós saída da ditadura. Embora não se deva esquecer que, em Portugal, até aos anos 60 do século XX, houve fome, e as pessoas tiveram de emigrar em massa para sobreviver.

 

Voltando à forma como se dissipou tão rapidamente esse entusiasmo colectivo.

Logo a seguir ao 25 de Abril vivemos uma crise tremenda, chamou-se o FMI. Lembro-me das manifestações de bandeiras pretas, sobretudo na margem sul, de pessoas que não tinham ordenado ao fim do mês, ordenados pequenos. Foi antes da CEE. Muito rapidamente, muita gente achou que estávamos pior do que antes. O entusiasmo foi até 76, 77, não chegou aos anos 80. Nos anos 80 vivíamos em democracia mas foram anos duros, negros.

 

Qual é que acha que foi a grande oportunidade, ou as grandes oportunidades, que Portugal desperdiçou? E isto também é uma narrativa recorrente acerca dos portugueses.

Foi a entrada na CEE. Não é muito original, toda a gente diz isso, mas já na altura tínhamos a noção de que o dinheiro não estava a ser bem aplicado. E não estou a falar das estradas, tínhamos que ter estradas. Houve tanta corrupção… Havia cursos para tudo e para nada, ninguém fiscalizava nada. Alguém é responsável, há uma responsabilidade política.

Mais a questão da agricultura e da pesca. Hoje fala-se, numa atitude utópica, de um retorno serôdio ao campo, à semelhança do que parece estar a acontecer na Grécia, onde certas pessoas tentam assim completar a dieta familiar. De novo, a atitude ruralizante de Salazar. Na Segunda Guerra Mundial, havia uma campanha em todos os jornais, muito bem feita do ponto de vista gráfico, “Produzir e Poupar”. Dizia-se, bem à portuguesa, à salazarista, que cada pessoa que tinha um canteiro podia plantar umas batatinhas.

 

Mesmo que a responsabilidade não seja inteiramente nossa, a verdade é que não poupámos e não produzimos.

E é verdade que temos dívidas para pagar. Mas é preciso ver como é que estas dívidas foram produzidas. Não me sinto nada responsável por esta dívida, mas vivo em Portugal e acho que todos temos que pagar. Não sou como certas pessoas que dizem que não se devem pagar impostos.

 

Quem são os grandes responsáveis pelo estado a que isto chegou, retomando a expressão?

Não consigo dizer que é o antigo governo, que são as pessoas dos vários governos que estão aqui desde o 25 de Abril, até porque isso seria retirar responsabilidades às forças políticas que nunca estiveram no governo. Ora todas têm responsabilidade. Não me esqueço que o chumbo do PEC 4 foi da autoria da direita, hoje no poder, e de uma certa esquerda. O que é que esta pensava? Que com eleições ganharia a esquerda? Mas o grande responsável é a alta finança. É um processo complexo e que ainda não está muito à vista, mas alguém andou a destruir isto tudo em nome de interesses financeiros, em nome de ganhar, ganhar, ganhar. A especulação financeira que aconteceu é crime.

Outra coisa muito perigosa é que os valores europeus, que são fundamentais e que são os meus valores, pelos quais sempre quis lutar e gostaria de continuar a lutar, estejam a desaparecer.

 

Com o iminente ou eventual colapso da Europa?

Sim, e tenho muito medo que o paradigma chinês ou que até o paradigma norte-americano, que não é igual ao europeu, triunfe sobre o nosso. Esta percepção, já a tive há alguns anos, quando comecei a pensar em como as coisas eram produzidas na China, e quão baratas eram. A solução era um proteccionismo? Mas isso seria possível? Acho que não, o mundo global não o permite.

 

Para terminar, e voltarmos ao ponto de partida, como falaria de nós a um estrangeiro?

Embora sabendo que esse nós não é uma entidade colectiva, mas uma colectividade de indivíduos, vou utilizar esta linguagem: “Já cá estamos há muito tempo. Por vezes, falhamos, outras, nem tanto. Conseguimos sempre encontrar a nossa própria via de sair do aperto. E para o conseguir, contamos com as vossas sugestões. Temos de fazer algo contra as terríveis desigualdades existentes entre nós, portugueses”.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Janeiro de 2012

 

 

José António Tenente

15.05.14

Do que falamos quando falamos de José António Tenente? Falamos do canto barroco de Cecilia Bartoli, da leitura arrebatada de Ligações Perigosas, da sensualidade carnal da seda lilás sobre a pele, do desenho gráfico e rigoroso de um casaco de inverno? Falamos de referências que vão da dança à pintura, do aprumo luxuoso de Givenchy dos anos 50 à espectacularidade de Gaultier nos anos 80? Falamos da radicalidade sombria do inverno, da luminosidade revigorante do verão? José António Tenente é um designer que não poderia existir apenas nas páginas de um calendário de moda. A amplitude do seu mundo, das suas referências, é imensa.

Conversámos numa manhã de um dia carregado, no atelier, entre dezenas de peças, charriots carregados. Por esses dias, Tenente dedicava-se ainda à tarefa ciclópica de separar peças da sua história que pudessem dialogar com as peças que escolheu no acervo do MUDE. Como seleccionar?, como conjugar?, como dizer as coisas que ele quer dizer?

Perceber os mecanismos da escolha, perceber quem ele é, quem foi sendo, como trabalha, e a razão porque escolhe umas peças e não outras, porque faz umas peças e não outras, foi o ponto de partida para a conversa. Ficam algumas pistas do seu processo criativo. Fica uma resposta possível à pergunta inicial.

 

JAT por Fernando Guerra

fotografia de Fernando Guerra 

 

Esta mostra obriga a um trabalho de selecção de peças que fazem parte de 24 anos de carreira. Qual foi o critério base?

Estou a orientar a selecção de acordo com o conceito que criei para o todo da exposição. Tento perceber quais são as peças que vale a pena mostrar neste contexto. Há peças de que gosto muito e que objectivamente tenho de excluir por não se enquadrarem nesta arrumação. E também há peças que resistem melhor ao tempo do que outras. Na exposição, que se insere no formato do creative lab do MUDE (ou seja, de dar a conhecer o processo criativo dos designers), interessou-me privilegiar um dos aspectos do meu processo criativo: as referências e pesquisas de moda.

 

O ponto de partida foi a colecção de moda do museu?

Sim. As visitas às reservas do MUDE e a selecção que fui fazendo da colecção de moda do museu orientaram o trabalho desde o início. Não tinha uma ideia pré-concebida do que queria fazer. Fiz uma primeira abordagem com uma abertura de espírito grande. Como observador, espectador, que tem a oportunidade de ver um acervo extraordinário. Fiz anotações breves sobre as peças onde estava a demorar mais o meu olhar. Houve escolhas imediatas.

 

Quais? O que há nessas peças? Alguma constância entre elas?

Por exemplo, um vestido Balmain dos anos 50, umas peças Givenchy, outras Yamamoto... Percebi rapidamente que o factor decisivo da escolha não é objectivo. Comecei por tentar fazer uma cobertura da colecção, incluir peças importantes no panorama da história da moda, trazer contributos incontornáveis. Mas o que me interessava era uma escolha subjectiva, de paixão. O que é que me faz gostar? É a cor, é a forma, a silhueta, o material, o universo de referências para o qual aquela peça me remete.

 

As suas peças, permanentemente, evocam outras disciplinas, outras referências. (Já falaremos mais detalhadamente da dança, do teatro, da ópera…) Na sua selecção da colecção MUDE isso também o influenciou? Sem dúvida. Por exemplo, as peças muito teatrais levaram-me de imediato para o universo barroco – grandes volumes, grande sofisticação, sumptuosidade dos materiais, com detalhes de construção que me seduziram logo. Outras, para ambientes cinematográficos de Fellini ou Hitchcock.

Tentei não ser influenciado pela autoria das peças e só mais para o fim, com as escolhas quase completamente ditadas pela emoção, é que também me preocupei em verificar se havia uma cobertura cronológica da colecção. Há sobretudo peças dos anos 50 e 60 (que têm que ver com o meu imaginário) e peças dos anos 90 (que me lembro de já ter acompanhado na época). Arrumei as minhas escolhas em núcleos temáticos: a cor, o teatro, o gráfico e o artesanal.

 

São palavras-conceitos essenciais no seu trabalho.

São. Inconscientemente identifiquei também, no meio daquele conjunto de peças, as minhas referências, encontrei denominadores comuns com direcções em que já tinha trabalhado ou que me interessam particularmente.

 

JAT por Luísa Ferreira

fotografia de Luísa Ferreira

 

Os seus 24 anos de trabalho estão cobertos de igual modo na exposição?

Esta exposição não pretende ser uma retrospectiva. Há colecções que são mais representativas da ideia que envolve este projecto. No entanto, vou tentar apresentar um espectro alargado do meu trabalho. Há pontos de união que me interessa realçar. De repente, pego numa peça que tem dez anos e noutra que tem quase vinte e elas têm coisas em comum. Se bem que isto possa ser contraditório com a noção de moda…

 

E com a noção de evolução.

Creio que a partir de certa altura, no trabalho criativo, e não me refiro exclusivamente à moda, há uma essência que é a mesma, e que depois tem várias declinações, formulações, outros resultados. Para mim, esta constância na essência do que fui fazendo não tem uma conotação negativa. Não é fazer sempre a mesma coisa. É ter uma linha condutora com pontos comuns.

 

Quando olha para estas peças, quando as reencontra, está a olhar para aquele que foi sendo?

Consigo fazer associações entre algumas peças e o que era, ou o que fazia. E encontro muitas diferenças em mim. Até relativamente ao modo como encaro o trabalho. Nunca pretendi ser um artista tempestuoso, cheio de dúvidas. Continuo a ser difícil de contentar – sou um insatisfeito por natureza. Mas vivo as coisas de uma maneira mais equilibrada, consigo ter uma relação mais pacífica com o meu trabalho.

 

Há várias constâncias nas peças que foi fazendo. Uma delas é haver muitos nós e laços. Que simbolicamente querem dizer relação.

Engraçado, nunca pensei nisso dessa maneira. Decorativamente é um detalhe de que gosto muito. Tem muito que ver com algumas das minhas referências mais marcantes. O barroco. Os anos 50 (onde há uma enorme profusão de laços). Estão muito ligados à feminilidade, a uma certa delicadeza. Gosto de trabalhar essa ideia de harmonia, de ligação afectiva. São elementos marcantes e espoletam nos utilizadores uma reacção extremada. Ou se adora ou se odeia laços.

 

O que é que havia no guarda-fatos da sua mãe com laços?

Lembro-me de ver laços mas apenas nas suas fotografias dos anos 50. Nasci em 66 e a elegância da minha mãe a que assisti nos anos 70 era muito diferente da dos anos 50, mais decorativa, menos consentânea com a vida moderna. Nos anos 70, a elegância ficava mais próxima da vida de todos os dias, mais real. A minha mãe foi sempre uma mulher atenta à sua imagem. Mesmo jovem, solteira, ela própria ia à costureira, desenhava ideias, via figurinos. Em miúdo, ia com ela à modista. Lembro-me de peças pontuais: um vestido verde jade com um casaco castanho chocolate, para um casamento; a associação de cores era muito particular. Um outro vestido camiseiro, estampado com gravuras de motivos campestres, cinza e preto.

Além dos laços, há fitas. Muitas delas estão soltas, não estão arrumadas num laço ou num nó.

É interessante ver que outras leituras se fazem do meu trabalho, que outros significados lhe podem dar, extrapolando o plano bidimensional da roupa. Quando estou a criar, e começo a mexer nestes materiais e ideias, nunca lhes dou esses significados. Não é um processo consciente. É consciente, sim, ligar o que faço a certas referências e a aspectos mais concretos. Muitas dessas características que refere, devem-se sobretudo ao lado decorativo no meu trabalho. Mas nem sempre é um decorativo barroco, excessivo, impositivo…

 

Há fases em que é o oposto disso. É a contenção, a depuração, sobretudo na primeira fase.

Mesmo na fase da contenção os detalhes decorativos podem surgir. Não sou um fundamentalista purista.

 

O geométrico é outra das referências constantes.

Sim, e de resto, nesta selecção, esse foi um tema que emergiu logo à partida. O meu trabalho é muito gráfico com duas variantes principais: uma mais geométrica e outra mais decorativa. Penso que isto resulta de uma coisa fundamental: o desenho. No meu processo criativo o maior input é no desenho.

 

É também no desenho que faz a síntese, a condensação entre as várias disciplinas que são inspiradoras daquilo que cria. Da dança à ópera.

Sim. O desenho é o meu material. Não corto, não coso. Em algumas colecções o trabalho manual é maior, com montagem de peças no corpo, ou sobreposição de tecidos no corpo. Mas de um modo geral não é assim. Desenho várias vezes, desenho várias proporções, desenho a mesma peça com outras possibilidades de conjugação...

 

Ela fica resolvida no desenho?

Só quando está resolvida no desenho é que passa para a fase seguinte. Se não resulta, se não estou contente com o desenho, dificilmente passa dali.

 

O lado geométrico, que encontramos em várias peças, de diferentes fases, traz-nos a pintura e a influência que ela tem no seu trabalho, de Mondrian a Delaunay. Uma pintura não figurativa. Simultaneamente, essas linhas, rigorosas, trazem a arquitectura – disciplina que começou por estudar. O desenho parece ser uma pulsão original da qual não se consegue desligar.

A minha formação em arquitectura, que não acabei, tem uma óbvia relação com o desenho. E o desenho adquire uma enorme importância. No trabalho de atelier, ao apresentar o croquis de um vestido de noiva, por exemplo, frequentemente tenho de fazer esta reserva: determinados aspectos gráficos do desenho não vão ter aquela importância no tecido. No papel, uma pinça, um corte, uma geometria podem ter um impacto muito maior do que na realidade. A não ser que os sublinhemos. Em algumas colecções foi mesmo isso que quis: desenvolver cortes que eram sublinhados com um pesponto de cor contrastante ou com uma fita de cetim aplicada. Outras vezes, não quero mesmo sublinhar. Talvez me aconteça isto mais vezes. Gosto do jogo na relação com o hipotético utilizador: o da subtileza, o da descoberta, o da surpresa.

 

JAT por Luísa Ferreira

fotografia de Luísa Ferreira

 

As peças dos primeiros anos são mais depuradas e quase andróginas. Não por acaso, as modelos que mais passaram coisas suas ou ilustraram catálogos, a Maria João Baginha e a Paula Raposo, têm uma beleza andrógina, diferente da beleza clássica das musas da segunda fase.

Sempre fui mais sensível a esse ideal de beleza não tão evidente. Sempre gostei de caras marcantes. Na Maria João agradava-me o perfil teatral; fotografias dela fazem-me pensar na Greta Garbo. A Paula tem uma beleza escandinava; temos dela imagens muito diferentes. Contrariando novamente a moda: ligo muito pouco às caras que estão na moda. Tanto assim que não me faz confusão nenhuma ter tido como imagem da marca, a Maria João, seis anos e a Paula, dez. É comum e curioso associarem o meu trabalho inicial a um estilo mais sóbrio. Talvez fosse a característica mais marcante, mas a cor, o lado festivo e decorativo também estavam presentes.

Por exemplo, o Verão 89 era o oposto dessa ideia da depuração. Mais do que a oposição, entre depuração e decoração, tive sempre uma oscilação entre os invernos e os verões. Os invernos são rigorosos, nocturnos. Nem sempre contidos, mas mais pesados, escuros, sombrios. As paletas são densas. Os temas são propícios a resultados teatrais. Os verões têm mais cor, são mais leves, mais sensuais. Um branco luminoso. Um colorido vibrante.

 

O que é que mudou?

Agora sou mais verão. Antes, sem qualquer dúvida, diria que gostava mais de fazer colecções de inverno. E gostava de dias como o de hoje – ameaçador, cinzento, carregado.

 

O que é que quer contar do que aconteceu na sua vida e que tenha importância naquilo que faz? Ser mais solar e viver mais com os sentidos é uma mudança significativa.

Será que vivia menos com os sentidos? Possivelmente o equilíbrio entre eles é que era diferente. Exteriormente era mais soturno. Na intimidade era bastante diferente do que passava para a esfera pública. Essa diferença é agora muito menor. Esta profissão veio desenvolver em mim um lado que não tinha. Tenho que ter descoberto em mim, algures, um sentimento fortíssimo em relação à moda.

 

O apelo vem de onde? O seu cenário não era o do mundo da moda.

Não tinha nenhuma ligação à moda, nem à indústria têxtil; só o grande gosto da minha mãe por esta área, mas isso era um parêntesis. Lembro-me de já no liceu desenhar colecções inteiras! Sem saber bem o que eram colecções. A minha amiga Cristina Gomes (éramos colegas de liceu) chegou a fazer para ela peças que eu desenhava. Estamos a falar de um período em que a moda não tinha, à excepção da Ana Salazar, qualquer expressão – a emoção gigantesca que foi assistir a um desfile da Ana Salazar… Não havia as revistas de moda que hoje existem. Estudava arquitectura, tinha tido dúvidas entre arqueologia e história de arte. Era um miúdo totalmente voltado para mim, complicadíssimo, gaguejava, odiava falar em público, tinha uma timidez doentia. De onde veio o apelo?! Como é que me meti nisto? Não sei…

 

Como é que conjugou essa timidez com a exposição que esta profissão exige? Nos anos 80, os designers tinham uma popularidade de estrelas pop.

Houve um período em que isso foi muito conflituoso. Entre a minha maneira de ser (que era contrária ao que começava a perceber que seria necessário neste mundo) e o gosto em fazer isto. Durante anos fui inflexível. Entrevistas?, custavam-me horrores. Fotografias?, parecia que me iam roubar a alma. O final dos desfiles, o momento de ir à passerelle?, um tormento.

Não fiz uma opção radical, como Martin Margiela (também não era da minha natureza). Tinha de encontrar um compromisso e uma forma de evoluir. A partir do momento em que interiorizei que era uma componente do meu trabalho, como o desenho, a escolha dos tecidos, as provas, aprendi a lidar com isso. E cresci.

 

Começou a trabalhar cedo.

Muito cedo. Com alguma inconsciência. Tinha um conhecimento muito imberbe do que era ser designer de moda. Só isso justifica que aos 20 anos me tenha lançado sozinho na apresentação de uma colecção. O que vivi seria hoje impensável. Hoje a formação é outra, há outros níveis de exigência e consciência. (Hoje queremos acumular experiências, trabalhar para outras marcas, desenvolver outros projectos, e depois, quem sabe, pensar na nossa marca.) Tinha a estranha noção de que ia começar a apresentar o meu trabalho e que não podia parar. Queria construir um percurso. Sabia que as colecções se apresentavam de seis em seis meses e que tinha de arranjar maneira de as fazer.

 

Que criadores o inspiravam?

A minha formação foi mais marcada pela cultura francesa. O grande boom de moda nos anos 80 surge com os criadores franceses. E quando não eram franceses, estavam em Paris (os japoneses, os belgas…). O que não acontecesse em Paris, não acontecia. Talvez por tudo isto, as minhas referências se liguem mais à moda francesa. Naquela época, Gaultier, Claude Montana, Thierry Mugler, Azzedine Alaïa eram muito fortes e chamavam a minha jovem atenção, mesmo que fosse mais como espectáculo, já que em termos de estilo não tinham muito que ver comigo. E depois os incontornáveis mestres da costura: Madeleine Vionnet, Jeanne Lanvin, Christian Dior, Balenciaga, Saint Laurent, que fui descobrindo mais detalhadamente mais tarde.

 

É fácil pensar, olhando para o que faz, que a influência de outros criadores e tendências é apenas mais um aspecto da equação. É uma influência equiparável à da pintura ou do teatro.

Penso que sim. Ouvir isso é muito positivo. Sempre trabalhei a informação de moda como uma parte de um todo; é importante, mas não sou um consumidor ávido. Acontece-me frequentemente estar num espectáculo de dança, no cinema, a ler e ter uma ideia, muito mais do que se estiver a ver uma revista ou uma montra. Tenho referências que são constantes. A minha maior proximidade com formas de arte contemporâneas acontece sobretudo com trabalhos que exploram referências clássicas. Estou a lembrar-me de um bailado que vi este ano do Alain Platel, o Pitié, a partir da Paixão Segundo S. Mateus, de Bach. Na pintura, foco-me no renascimento, no retrato inglês do séc.XVIII ou na escola flamenga do século XVII. O claro-escuro, as sombras… As golas brancas, gigantes, sobre o fundo preto.

 

Foi ficando cada vez mais Vermeer e menos Rembrandt. Ou seja, mais luminoso, junto à janela, e menos contrastado e rígido, como alguns quadros de Rembrandt.

Sim, mas não fui sempre ‘rígido’ No início, por exemplo, tive uma ‘fase Klimt’, que é muito mais exuberante. A colecção de 89/90 era marcada por um trio de referências do começo do século XX. Klimt, Oscar Wilde e Schoenberg. (Música atonal?, hoje, não ouviria, sequer!) Passados muitos anos voltei ao universo da pintura do início do século XX com a colecção de inverno 2008/9. Mas aqui, mais do que a pintura, interessava-me o ambiente que eu imagino ter sido o dos artistas, a boémia, os mentores e mecenas.

 

Na colecção seguinte, mantém uma relação estreia com a pintura. Encenou um quadro para apresentar a colecção; a propósito desse, é possível falar de Velásquez ou Caravaggio. 

Foi o que a Cristina L. Duarte escreveu sobre essa apresentação que me fez pensar em Velásquez; apareço no final do ‘desfile’ tal como Velásquez se vê reflectido no espelho no quadro As Meninas. Confesso que não pensei nisso antes. Era uma representação de uma aula de desenho, com modelo nu – que segundo outras opiniões remetia para Caravaggio. Foi uma apresentação muito cenográfica, de uma colecção em tons que liguei aos materiais de desenho e escultura (gesso, mármore, alabastro, papel); e formas com pregas e panejamentos trabalhados à volta do corpo, como os tecidos que tapam e destapam os corpos nas poses dos modelos.

 

Essa trilogia, baseada na pintura, fica completa com uma colecção de homenagem a Paula Rego. Fez uma citação quase taxativa de alguns quadros, como O Anjo.

Fascina-me o universo dela. O estímulo visual e criativo é riquíssimo. Desenvolvi a colecção a partir das obras mais figurativas, e onde é visível a importância que a própria Paula Rego admite dar ao figurino. 

 

JAT por Luísa Ferreira 

fotografia de Luísa Ferreira

 

Na obra de Paula Rego, o figurino é essencial para a composição de personagens e situações. No seu caso, em muitas colecções, mais do que fazer vestidos, parece compor personagens que vão habitar esses vestidos.

Sempre me agradou a ideia de construir personagens. Satisfazem-me especialmente as colecções que, nesse sentido, são mais radicais, que levam até às últimas consequências uma ideia. Normalmente são as colecções que suscitam reacções mais díspares. Como a do inverno 2006/07, inspirada no universo da Idade Média e da Joana d’Arc; era também uma visita aos nossos arquivos de inverno (foi o ano em que assinalámos o 20º aniversário). Houve pessoas que adoraram e outras que odiaram. Outro caso: o verão de 2002, inspirado no romance Ligações Perigosas; a colecção era toda bege, as peças tinham frases bordadas, recados de amor, cartas, medalhões pendentes…

São os trabalhos de que mais gosto, sempre. Interessa-me mais isso do que apenas pensar em roupa para apresentar. O desfile é sempre uma representação de uma imagem. Ainda que todas as peças se possam vestir e que a proximidade do personagem com a realidade seja maior ou menor.

 

Ambiciona ser, mais do que tudo, um criador?, e menos um “desenhador”.

Tenho uma certa rejeição dessa palavra, que parece pretensiosa. Adoptámos dos franceses o le créateur, que é pomposo. Gosto do termo inglês: designer.

 

 

Entrevista feita para o catálogo da exposição retrospectiva de JAT no MUDE em 2010. No seu lançamento, estive à conversa no museu com o designer e outros que estiveram ligados à exposição. Aqui fica uma amostra. 

JAT e AMR por Gustavo Ramos

 fotografia de Gustavo Ramos

 

 

E passou um ano, um ano de blog

14.05.14

E passou um ano. E pergunto-me agora como pude chegar tão tarde.

O projecto inicial do blog, que se confunde com a sua identidade, era partilhar o meu arquivo. Era e é. Procuro novas formas de me relacionar com os leitores, evoluir, e nisso falhar, falhar sempre, falhar cada vez melhor (para trazer aqui um gigante), mas o osso é o mesmo.

Talvez metade do arquivo, extenso arquivo, esteja já disponível. Em regra foi disponibilizado um conteúdo novo por dia, por vezes mais do que um, numa segunda fase fi-lo apenas nos dias úteis. E agora? Agora preparo um novo grafismo, que estará disponível muito em breve e procuro não me desviar do principal: as palavras. O testemunho que espero que fique, que recebi, que partilho. Elos da cadeia.

Quero, de novo, agradecer as diferentes formas de apoio. No Sapo, nos que me são próximos, nos entrevistados. Mais do que tudo: nos leitores. Que bom que estão desse lado. A sério.

 

Partilho alguns números (redondos)

- visualizações : 520 mil

- visitantes: 200 mil

Dados relativos a estes totais:

- 33,50% dos visitantes na faixa etária dos 25-35

- 27,50% na dos 18-24

- 15,50% na dos 35-44

- 54,15% Homens

- 45,85% Mulheres

- 88% Portugal

- 3% Brasil

- 1% Reino Unido

 

As entrevistas mais visitadas este ano:

1º Clara Ferreira Alves

http://anabelamotaribeiro.blogs.sapo.pt/56513.html

 

2º Miguel Esteves Cardoso e Maria João Pinheiro

http://anabelamotaribeiro.blogs.sapo.pt/miguel-esteves-cardoso-e-maria-joao-92126

 

3º Rui Moreira

http://anabelamotaribeiro.blogs.sapo.pt/24958.html

 

4º Daniel Oliveira

http://anabelamotaribeiro.blogs.sapo.pt/65426.html

 

5º Fernanda Serrano

http://anabelamotaribeiro.blogs.sapo.pt/16978.html

 

6º Alexandre Quintanilha e Richard Zimler

http://anabelamotaribeiro.blogs.sapo.pt/16838.html

 

7º Clara de Sousa

http://anabelamotaribeiro.blogs.sapo.pt/75481.html

 

8º Eduardo e Helena Nogueira Pinto

http://anabelamotaribeiro.blogs.sapo.pt/eduardo-e-helena-nogueira-pinto-118955

 

9º Maria Elisa Domingues

http://anabelamotaribeiro.blogs.sapo.pt/maria-elisa-domingues-115789

 

10º Assunção Cristas

http://anabelamotaribeiro.blogs.sapo.pt/79353.html

 

 

Sou grata.

14 Maio 2014, Lisboa

 

 

António Vitorino

13.05.14

É um homem redondo. Na forma, no discurso. É um homem que ri muito. De que ri ele? Ou melhor: porque ri ele? Sentido de humor?, boa disposição? E se o riso for uma arma e uma defesa? Um esconde esconde com o outro. Não é de todo um esconde esconde consigo, que sabe bem quem é. Sabe muito bem quem é e o que quer. É rectilíneo no discurso, é omisso em relação ao que pensa. Os seus assuntos são os Assuntos. Parlamentares, diplomáticos, estrangeiros, coisas assim. Também são assuntos como a impotência – mas isso só a propósito de um escritor que admira. Ou a ironia – a propósito de um realizador que admira.

Viveu uma vida sem pathos. Viveu uma vida cheia. “Comecei aos 23 anos como deputado, fui Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares do governo do Bloco Central, fui Secretário do Governo de Macau, fui Juiz do Tribunal Constitucional, fui deputado no Parlamento Europeu, fui Ministro da Defesa e Ministro da Presidência, fui Comissário Europeu. O que há na biografia além disso? Advoguei, esparsamente, mas advoguei sempre. Fiz o estágio em 1982, mal acabei de me licenciar. Fui assistente de faculdade. Uma coisa de que me orgulho é de ter tido várias gerações de alunos, alguns deles hoje em posições de destaque”.

Tem fama de ser brilhante, arguto, infatigável. Um homem do sistema. Um homem que sabe muito bem mover-se no sistema. Espertíssimo. Não abre portas onde quer que elas permaneçam fechadas. Podia ter sido tudo. O seu título triste poderia ser: o homem que não foi primeiro-ministro porque não pagou a Sisa. O seu título alegre? Sei muito bem o que faço e como chegar lá!

O que ele é? Um negociador. Alguém que faz a ponte.

Tem 51 anos. É capaz de se sentir mais velho do que é. Não por acaso, o embate com o físico não foi ter pouco mais de um metro e meio. O embate foi ter começado a perder o cabelo antes dos 30. Um homem é, também, um corpo. Ele deslocou quase tudo para o intelecto. Apesar do esconde esconde, uma entrevista surpreendente. Um António Vitorino surpreendente.  

 

 

Com quem é que aprendeu a falar? Uma das coisas que se dizem de si é que é extraordinariamente articulado.

[risos] Foi com a minha mãe, em casa. Reconheço que tenho um fascínio pela língua; sou um linguista frustrado. Fui sempre um leitor compulsivo, e esse impulso pelas palavras resulta também de um gosto ávido de leitura.

 

A sua mãe exprimia-se especialmente bem?

A minha mãe era professora de francês. Tinha o hábito de nos contar, durante a hora do almoço, o último filme que tinha ido ver com o meu pai ao cinema. A mim, ao meu irmão e aos meus avós maternos que também estavam em casa. Aquilo era uma espécie de telenovela clássica: tínhamos um bocadinho do filme e no almoço do dia seguinte a continuação. Nós, que não tínhamos idade para ver aqueles filmes de crescidos, acabávamos por ter uma imagem do filme através da descrição. O que é muito curioso do ponto de vista imagético. Mais tarde tive ocasião de ver alguns filmes que tinham sido previamente narrados pela minha mãe... Por exemplo, O Grande Ditador, do [Charlie] Chaplin, que é difícil de descrever, tem uma parte importante que é física...

 

Como era a sua casa?

Vivíamos numa casa social do bairro de Alvalade, por detrás da Avenida Estados Unidos da América. A escola primária era privada, a Augusto Gil, e ficava três quarteirões à frente; ia-se a pé cerca de cinco minutos. É uma escola que já não existe, hoje está um prédio de duzentos andares. Tinha uma qualidade de ensino muito apreciada e reconhecida.

 

A palavra tinha uma presença fortíssima em sua casa, e surgiu antes da imagem.

Há uma riqueza atribuída à transmissão de ideias e sentimentos através da palavra, um estatuto próprio, antes de aparecer a imagem na minha vida. Só por volta dos meus dez anos é que tivemos televisão em casa.

 

Foi um aluno especialmente dotado?

Eu não sou o meu assunto preferido! [risos] E não é por falsa modéstia. Talvez seja por excesso de autoconfiança. Isto é, não preciso de andar a falar muito de mim. Pode ser uma forma de arrogância – não estou a dizer que seja um bom sentimento. Sempre fui um aluno aplicado. A primeira [regra] era cumprir com as obrigações, a segunda assumir desafios. Nada se faz por um toque de genialidade, faz-se com esforço, com disciplina, com empenhamento. O sentido da responsabilidade e de não decepcionar os meus pais, foi-me incutido por eles.

 

Eram ambos exigentes? Como era a dinâmica da vossa família?

A minha mãe estava mais tempo em casa, e portanto era a guarda avançada e seria mais “pressionante”. O meu pai era empregado bancário do Banco de Angola. O meu irmão é mais novo do que eu dois anos.

 

Competiam pelo afecto dos vossos pais?

Não sou capaz de pôr a relação nesses termos. Tivemos uma relação de igualdade, graças ao facto de termos interesses diferentes. O meu irmão viveu num universo ligado ao desporto e ao futebol. É de Engenharia, eu segui Humanidades. Nunca tivemos terrenos onde se pudesse dizer que havia uma grande competitividade... [Tensões], terão existido, porque existem sempre, mas não sou capaz de reconstruir um discurso sobre elas. Não deixaram marca, senão seria capaz de as ir buscar.

 

Quis deixar rapidamente a infância? Quis crescer rapidamente?

Esse é um síndrome da minha vida. Vivi sempre rapidamente, fiz sempre coisas muito cedo. Isso pode ter duas explicações: a explicação maligna, que é ambição – e em Portugal ter ambição tem um sentido pejorativo; a versão benigna, que é aquela que dou, é que sempre tive uma grande avidez de conhecer e de experimentar. Para poder viver, provavelmente, duas vidas numa só.

 

Por isso eu perguntava se quis sair rapidamente da infância. Parece ter um desejo precoce de estar no mundo dos adultos, estar no palco onde os grandes acontecimentos se dão.

Sim. Algumas testemunhas oculares dirão que sempre preferi o convívio com os mais velhos. A minha atenção era sobre os factos da vida, os grandes valores e os grandes desígnios, as pequenas coisas, o drama familiar por que a empregada partiu a terrina que era da avó e que vinha na família há 200 anos. A minha família sempre foi um referencial de estabilidade afectiva, nunca houve dramas que podiam provocar sobressaltos ou curiosidades angustiantes para uma criança.

 

Pathos?

Não. O meu interesse ia para a vida social, a vida cultural, alguns conflitos políticos que havia entre a geração dos avós – que tinha vivido a República e para quem a estabilidade do Estado Novo era um valor fundamental – e o meu pai, que era muito crítico do regime e com algum envolvimento oposicionista.

 

Vamos à Wikipedia, introduzimos António Vitorino, e as notas biográficas que aparecem são mais notas curriculares: nasceu em Lisboa, Deputado, Juiz, Ministro, Comissário... Estou a tentar perceber quem é este homem que parece não ter biografia pessoal.

Se descobrir é melhor avisar-me! [risos]

 

Nunca teve curiosidade sobre si?

Não, não vou cair nessa! Vai ver que isto tem fronteiras! [risos]

Não sou um personagem que justifique essa dimensão. Eu sou aquilo que fiz.

 

Vamos ao Liceu Camões. Marcou a sua vida?

Fiz do primeiro ao sétimo ano no Liceu Camões, e o sétimo ano coincidiu com o 25 de Abril de 74. Lembro-me perfeitamente de no dia 25, às oito e meia da manhã, ter tido uma aula com o Vergílio Ferreira, (meu professor de Latim). A aula foi interrompida, ou nem chegou a começar, as tropas na rua. Tínhamos fascínio pelo Vergílio Ferreira. Falava de filosofia, de literatura, falava da vida, das relações humanas. Tive vários professores que tinham um peso cultural próprio: o Mário Dionísio foi meu professor de Francês durante cinco anos. A Eduarda Silva Melo, que era professora de Inglês e de Alemão, irmã do Jorge Silva Melo. A filha do Mário Dionísio, a Eduarda Dionísio, a Português.

 

 O Liceu Camões trouxe uma mistura e uma abertura à sua vida? Até então, e até geograficamente, o espaço era circunscrito à redoma da família e do bairro de Alvalade.

Sem dúvida. A passagem da escola primária para o liceu representou um choque. Um choque de abertura de horizontes. Mas desde os meus dez anos de idade passávamos férias no estrangeiro. Íamos acampar em família. Isso significa que sempre tivemos uma capacidade de entender o mundo lá fora – o que nos ajudava a entender o mundo cá dentro. Conhecemos toda a Espanha, o sul da França, o norte da Itália, Paris. Foi estimulante e fatigante! Porque, além de fazermos 600 km por dia, era eu quem tinha de montar a tenda!

 

Foi no Liceu Camões que se interessou por política?

Inscrevi-me no Partido Socialista em Maio de 74. Tínhamos um movimento cultural, dentro do Liceu, que organizava festas; tive problemas com a censura por causa de uma peça do [Bertolt] Brecht, Aquele que diz sim, aquele que diz não, que ensaiei no final de 74, para uma festa de Natal.

 

Essa adesão ao PS acabou por ditar a sua vida.

Estive no PS e saí no final do Verão Quente de 75. Situava-me nessa área política mas andava à procura de uma orientação que só a prática permitiria encontrar Fiz parte da Federação da Área Urbana do Partido Socialista; o Dr. Mário Soares, preocupado com essa deriva, destacou para vigiar os perigosos esquerdistas o Eng. António Guterres!

 

É daí que se conhecem?

Conheço o Eng. António Guterres na qualidade de meu controleiro e vigilante perante os meus desvios esquerdistas! Depois saí, tive um período mais à esquerda, autogestionário. Vivia muito interessado nos estudos de uma coisa chamada Ceres (Centre de Études et Recherche Socialiste).

 

Nessa altura, já era claro para si que queria ser político?

Sim. Não pude ser delegado no primeiro congresso do Partido Socialista porque não tinha 18 anos.

 

Porque é que quis ser político? Porque é que não quis ser um latinista, ou um professor de francês ou um advogado de barra?

Nunca olhei para a política nem como uma profissão nem como uma carreira. Porque é que quis ser político? É uma pergunta tricky [traiçoeira]. Queria-se ser político para mudar o mundo. Naquele tempo, embalados pela revolução, o desejo era esse. Mas nunca quis ser só político, nunca descurei os estudos, nunca descurei a actividade académica, profissional. Quando acabei o curso e fiz o estágio de advocacia, já era deputado. Um excesso de dependência da política é uma forma de perda de liberdade. A liberdade é o valor estruturante, é o único pelo qual vale a pena morrer. E também nunca achei que [a política] fosse uma carreira, no sentido de dizer: “Hoje estou aqui, amanhã ali e depois acolá”. Não tenho essa presciência.

 

Para quem não previu as coisas dessa maneira, o seu percurso foi notável.

Errático. E não racional.

 

Muito ascensional.

Todas as revoluções geram um vazio etário, o que leva a que as gerações mais jovens tenham um processo ascensional rápido. Isso não é mérito delas próprias, é fruto das circunstâncias. Quis muito ser deputado, não nego isso.

 

Olhando para a sua carreira política, não é claro o que é que pretende dela. Vai aceitando coisas, vai recusando outras. Não se percebe se aquilo que pretende é ser Primeiro-Ministro, se é ter poder...

A ideia de que a política é uma carreira... Nunca a vi assim. Pressupõe algum desprendimento, mas pressupõe também uma frase que [Bill] Clinton diz no seu livro: “Nunca aceites um cargo onde desconfies que não serás feliz.” Posso ser acusado de ser hedonista.

 

Ou materialista? O que se diz é que “o Vitorino quer ganhar dinheiro cá fora”.

Sim, em Portugal as pessoas acham que ganhar dinheiro é pecado, há ainda uma costela judaico-cristã muito forte. Quem deu 25 anos da sua vida à causa pública tem alguma autoridade para perguntar o que fizeram pelo país os que atiram essa pedra.

 

É uma pedra que magoa?

Não. É censura moral, it’s a fact of life, há que viver com ela.

 

Como é que acontece um rapaz de 20 e poucos anos ser Secretário de Estado?

Eu era, e sou, muito amigo do Dr. Almeida Santos. O Dr. Almeida Santos precisava de alguém que tivesse alguma capacidade de intervenção no parlamento e que fosse capaz de fazer a ponte entre os dois partidos da coligação.

 

É sempre negociador. É sempre alguém que faz a ponte.

Sim. A advocacia tem muito a ver com isso, com a necessidade de encontrar plataformas. Do ponto de vista intelectual, é bastante estimulante, é isso que eu gosto na advocacia, é isso que eu encontro na política.

 

Como é que foi viver esses anos quentes no parlamento?

Foi uma experiência muito enriquecedora do ponto de vista pessoal. O parlamento não era como é hoje, nessa altura havia substância. Hoje, um debate ganha-se em função dos sound bites, e o efeito replicador que aquilo que se diz tem nos meios de comunicação. Naquela altura, sabíamos quando tínhamos perdido um debate em função da força dos argumentos. Todos os debates de 82, 83 eram uncharted waters, águas não marcadas. Era muito estimulante e motivador.

 

Era olhado como odelfim de uma geração. Uma promessa.

Não vou falar sobre delfins ou “delfinados”, ou expectativas…

 

Como é que isso mexia com a sua vida, com a sua auto-estima?

Não sei, não tinha essa percepção. Quer que eu lhe diga o quê? Nunca me motivou particularmente a ideia de exercer o poder. Conhecer, perceber as regras, a vários níveis, nacional e europeu, é um factor de motivação. A ideia de transformar a vida das pessoas está presente e tem a ver com o ideário da esquerda. Com o decorrer dos anos percebemos o relativismo da capacidade de mudar.

 

O que é que é ter poder? Quando é sentiu que tinha poder? Poder, nessa acepção mais comum, está conotado com dinheiro, status, autoritarismo; também com a capacidade de mudar e de fazer coisas.

O poder só se justifica se for para transformar a vida das pessoas em função de um conjunto de valores. Todo o meu perfil é de sensibilidade à autoridade mas de rejeição absoluta ao autoritarismo. Não vai com o meu feitio, não vai com o meu percurso, não vai sequer com a minha formação intelectual – não acredito nos argumentos de autoridade porque sim, ponto. A experiência chinesa é interessante: os chineses dizem que “Não há verdadeira vitória que não seja aquela em que o adversário sai com face.” Sou um chinês nesse aspecto!

 

Como foi a experiência de Macau? O que é que aprendeu?

Foi curta, felizmente. O meu filho mais velho, quando voltou, ao fim de um ano e meio, não falava português, só cantonense. Todos os pais têm problemas de comunicação com os filhos por volta dos 15 anos de idade, o meu começou aos dois anos e meio! [risos] Obviamente que foi um período enriquecedor. Era uma área em grande ebulição. Hoje, o maior desgosto é ir a Pequim e quase não ver bicicletas. A imagem que tenho dos primeiros impactos com a China é, às seis da manhã, ver hordas de bicicletas de pessoas que iam para o trabalho, com os aros das rodas a cortar o vento – faz uma tonalidade particular. Foi preciso fazer uma aprendizagem acelerada de uma cultura e de uma postura diferente daquela a que estava habituado.

 

“Só há vitória completa quando o adversário sai com face”. Que outras coisas aprendeu com os chineses?

A paciência. A ideia de que o tempo é um factor importante em qualquer processo de decisão. O domínio do tempo é muito importante. A temperança é uma virtude, também se aprende.

 

Aprendeu a fazer negócios nessa altura?

Não. Vivíamos numa praça livre, um porto franco. Os negócios corriam de uma forma vertiginosa. Era possível observar. Conheci um bispo que jogava na bolsa de Hong Kong!

 

Jogou na bolsa de Hong Kong?

Nunca. Não me seduz a ideia do jogo. Os chineses são capazes de apostar se a próxima pessoa que vai virar a esquina é um homem ou uma mulher. Há uma dimensão lúdica que é cultural e que tem pouco a ver com aquilo que são os meus valores e os meus referenciais.

 

Não é fácil imaginá-lo na rua, perdido entre a multidão, a apostar com ela. A imagem que se tem de si é a de homem agarrado à sua secretária, ao telefone, ao livro.

Os meus momentos de libertação eram, sem ninguém saber, pegar no jetflyer, o barco movido a turbinas, e em 40, 45 minutos ir a Hong kong, e estar uma hora a passear nas ruas, no anonimato, vendo as pessoas, como reagiam, como se comportavam, ouvindo os sons (uma coisa que sempre me fascinou).

 

O quero dizer é que não o imagino numa vidinha de todos os dias. Vai ao supermercado?

Vou, naturalmente. Mesmo quando era ministro ia ao supermercado. A minha mulher nunca me deu folga nisso! E, na óptica dela, não vou o número de vezes que devia ir.

 

Quando é que foi ao supermercado a última vez, para comprar detergentes ou salmão?

A semana passada! Temos uma casa grande e o abastecimento é necessário. Tenho dois filhos e dois enteados, filhos do primeiro casamento da minha mulher, que vivem connosco; um filho do meu primeiro casamento, e um filho do meu segundo casamento.

 

Vai ao supermercado porque a sua mulher não lhe dá folga ou porque sente prazer nesse prendimento à realidade?

Mas não me sinto nada distanciado da realidade! A vida quotidiana é muito importante. Até quando estava em Bruxelas, como comissário, ia ao supermercado. Jogo jogos de estratégia no computador; não creio que seja justo acharem que sou um rato de biblioteca, não é o meu perfil. Sou um workaholic, isso sim. Trabalho muito, muitas horas; enquanto a idade e a saúde física e mental mo permitirem faço isso.

 

É um homem novo. Porque é que está a dizer isso da saúde mental e física?

Cinquenta e um anos. Thanks for the compliment [obrigado pelo elogio].

 

O que é que gostava ainda de fazer? O que é que ainda quer da vida? Quer ganhar dinheiro, quer reconhecimento?

Várias vezes me colocaram essa pergunta, e sempre disse que era mais ambicioso que aquilo que as pessoas podiam imaginar; respondi sempre: “O que quero é ser feliz”.

 

Respondia isso a quem?

A jornalistas. Que é quem faz esse tipo de pergunta, convenhamos, irritante. [ri-se muito]

 

Não estou a ver o Guterres a perguntar ao Vitorino: “O que é que você quer? Em que Ministério é que eu o coloco?” E o Vitorino responde: “Quero ser feliz”! É uma pergunta depurada, que nos ajuda a perceber como se escolhe isto e não se escolhe aquilo.

A minha vida pessoal responde a isso. A frase do presidente Clinton é iluminante. Porque se a pessoa exercer um cargo a contragosto, apenas porque existe uma espécie de imposição supra moral para o exercer, mas se não tiver a convicção de que é feliz nesse exercício, tenho a certeza absoluta que exercerá esse cargo mal. Não abdico desta grelha de leitura. Eu respondia desta maneira há 20 anos. E vou continuar a responder.

 

Politicamente, houve momentos em que podia ter sido tudo… Os mais altos cargos políticos estavam ao seu alcance. 

 Não estou a perceber o contexto da sua pergunta.

 

Há 15 anos atrás, antes do episódio da SISA, pensou que era legítimo ambicionar ser Primeiro-Ministro? Ou até Presidente da República, num horizonte não muito dilatado, porque viveu tudo muito cedo.

Já percebi. O que são esses estados de alma, é como o fado da Amália, nem às paredes confesso! Não é a si que vou confessar.

 

Porquê?

Porque é a minha maneira de ser. Nunca criei em ninguém sinais nem expectativas de que queria qualquer lugar. A pergunta certa não é essa, a pergunta certa é: onde é que surgiu da minha parte um acto, uma declaração, um indício, de que era isso que eu pretendia? Ficamos conversados sobre esse assunto em definitivo?

 

É um título que se lhe cola: O homem que não chegou a Primeiro-Ministro por não ter pago a SISA.

[risos] Como título, é divertido! É a única coisa que posso dizer!

 

Mas como é que olha para isto? Imagino que na altura não tenha sido nada divertido.

Não, não foi. Mas a questão de não ter chegado a Primeiro-Ministro, na minha modesta opinião, não tem nada a ver com isso. A minha resposta está dada: nunca dei sinais de andar a correr atrás [disso].

 

Como é que viveu este episódio da SISA?

Matéria sobre a qual falarei nas minhas memórias... Aí tem um pequeno toque de vaidade.

 

Pergunto-me se o seu pai ou a sua mãe lessem as suas memórias, se o reconheceriam completamente como o filho deles?

É o tipo de resposta pessoal e intransmissível, que nunca me atreveria a dar em nome dos meus pais. As memórias são uma forma de dialogar com a posteridade. Ao longo destes episódios na minha vida, uns felizes, outros infelizes, só me preocupou o que é que pensavam e como é que reagiam aqueles que gostam de mim e de quem eu gosto.

 

Serão memórias de que tipo?

A experiência acumulada merece uma reflexão. Uma reflexão sobre a natureza da política e a natureza humana. São, aliás, indissociáveis. Acho que acumulei, so far [até agora], essa experiência de reflexão e de avaliação. Não é apenas uma auto justificação – como muitas memórias são – não é um diálogo com a transcendência – não aspiro a isso – mas acho que pode haver interesse para outros num testemunho sobre um quarto de século onde muitas coisas mudaram profundamente na nossa vida colectiva.

 

Como negociador e como homem que viveu no centro do poder, presumo que tenha aprendido a perceber o que são relações gratuitas e o que são relações interessadas.

Talvez tenha sido nessa dimensão que tive ao longo destes anos as maiores desilusões.

 

Não há almoços de graça. É isso?

Sim, se quiser utilizar a expressão clássica, eu diria que a natureza humana é extraordinariamente volúvel. Como se costuma dizer, há males que vêm por bem. Já passei por fases em que tive a oportunidade de testar o perímetro desse grupo, e de me sentir reconfortado.

 

Voltando ao exercício da sua mãe: vamos imaginar que ao almoço conta a história de um filme ou de um livro; o que é que contaria?

 Depende do meu estado de espírito, do momento em que vivo. Há autores a quem sou fiel, o Philip Roth...

 

É extraordinário que o aponte. O corpo, a condição humana, a decadência física são o tema central dos últimos livros de Roth. Não se imagina que esses temas o interessassem especialmente.

É muito simples: porque fazem parte da natureza humana. A dimensão física: lá porque sou pequenino e baixinho, e por o meu corpo ser finito, não significa que não atribua importância ao corpo.

 

Ter sido tão ávido, tão trabalhador, tão articulado era uma forma de deslocar a atenção de uma coisa que podia ser estigmatizante, que é ser tão pequenino, para um domínio no qual se distinguia?

Essa teoria da compensação nunca me motivou. Costumo dizer a brincar, mas a sério, que a única circunstância em que a altura me prejudica é quando tenho que pôr a mala na bagageira de cima nos aviões. Temos que estar bem com o corpo, essa é que é a questão essencial. E eu estou muito bem.

 

Não deve ter sido fácil, na adolescência por exemplo, ser mais baixo que os outros.

Se tive problemas, eles não ficaram na minha memória. O único momento em que posso ter tido alguma angústia foi quando o cabelo começou a cair prematuramente! [risos] Quando o cabelo começa a cair aos 29, a ideia do envelhecimento ainda é distante..

 

Em Patrimony, fala da doença do pai. No Exit Ghost fala da impotência.

Da impotência e da incontinência, ligada com o cancro da próstata. Há uma dimensão prosaica da vida, que não percebo porque é que me deve estar excluída.

 

É só a imagem pública que tem.

Eu gosto muito de ler, de ouvir música, de ver filmes. Sou fã do Woody Allen, identifico-me muito com uma ironia de vida que está subjacente ao Woody Allen.

 

Aqui estão temas de que nunca que pudéssemos falar: impotência, incontinência… Com quem é que fala destes temas?

Those are facts of life. [São factos da vida] Falo com a minha mulher, naturalmente, que é médica. Sou hipocondríaco e casei com uma médica. Ela é ginecologista e não me serve de muito...

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2011

 

 

António Capucho

12.05.14

António Capucho não quer parecer ressabiado. Tem uma zanga que não é muda. É feroz com Passos, a austeridade, o neo-liberalismo. Elogia um traço, vários traços de opositores políticos. Porquê? Mais do que não querer parecer ressabiado, Capucho goza da distância de quem olha da plateia. De quem está razoavelmente – ou melhor, momentaneamente – fora de cena. É sofisticado. Sabe que pode sentar-se na beira do rio e que vai ver passar um ou outro dos seus inimigos. Sem ressentimentos. Anda nisto há 40 anos. Já viu muita coisa. Já se enganou. Já despediu amigos. Já sabe que esta cepa não é a mesma da Europa onde esteve (onde os nomes eram Mitterrand ou Kohl). Nem o PSD é o mesmo. O seu é o de Sá Carneiro. Foi expulso há pouco desse partido, é sabido. Agora é avô a tempo parcial. Recusou umas coisas.

Esperem um pouco. Ele não está arrumado. Entretanto olha para um teatro político e um país.  Olha com distância e lucidez. A análise faz-se a frio.   

 

Impressionou-me, numa sondagem recentemente publicada no Expresso, não que o Governo tivesse uma popularidade de -29,3%, mas que o Ministério Público tivesse uma popularidade de -9,6; a dos juízes era de -11,2. Que o sector da justiça tenha uma visibilidade tão grande e uma reputação tão negativa, é espantoso.

Não encontro outra explicação que não seja a que resulta de duas especificidades da nossa justiça. Primeiro, a morosidade. Há uma lentidão assustadora que não é responsabilidade da justiça, é da legislação com que lidam. Em segundo lugar, a convicção, que grassa na população, de que há uma certa impunidade para crimes de corrupção ou colaterais.

 

Grassa a convicção de que nada tem consequência e que se pode passar entre os pingos da chuva.

Vou trazer a questão dos submarinos. Como é possível as coisas terem corrido como correram na Alemanha, com celeridade e com resultados práticos, e nada ter acontecido em Portugal? Certamente porque não foi produzida prova bastante, não ponho isso em causa.

 

A justiça é o cancro de Portugal?

É um dos grandes problemas que temos, nomeadamente para a economia. Investidores e potenciais investidores têm graves reservas em relação a instalarem-se em Portugal por força da morosidade da justiça e da burocracia.

 

Não estou a vê-lo concordar com António José Seguro quando o líder do PS advoga um tribunal especial para investimento estrangeiro.

Venho de antes do 25 de Abril. Estive na luta contra o regime anterior. Tudo o que são tribunais especiais faz-me confusão. É um disparate. O que tem é de se fazer uma reforma da justiça a sério, e não às pinguinhas, como esta parece estar a ser feita. Como, aliás, todas as reformas que deviam estar a ser feitas e que continuam no papel ou às pinguinhas.

Fazendo um diagnóstico do país, além da justiça, que problemas centrais afectam seriamente o nosso desenvolvimento?

A reforma das leis eleitorais e do sistema político em geral. E a política neo-liberal que este governo está a imprimir e que está a matar a economia (embora não negue a absoluta necessidade de austeridade). Os cidadãos não se revêem no sistema partidário. Nas últimas eleições autárquicas, a proliferação de listas independentes, muitas delas com enorme sucesso, [espelha isso].  Na Assembleia da República vemos uma assembleia gigantesca para as necessidades do país. E o cinzentismo dos deputados..., a maioria dos quais, anónimos, se limita a levantar e a sentar. A diminuição do número de deputados não prejudica a representatividade, a proporcionalidade.

 

Fala da alteração da lei eleitoral numa altura em que a classe política merece grande descrédito. Como se exercer cargos públicos fosse uma nódoa no currículo. Como é que chegámos a esta descrença na política?

Porque o sistema eleitoral actual favorece a baixa qualidade. É indiferente aos dirigentes partidários porem uma pessoa de grande ou de pequena categoria em número três, quatro, seis ou sete por Lisboa. Com círculos uninominais, não. Têm que pôr os melhores. Ou, pelo menos, os que tenham maior apelo eleitoral (o que também conflitua com uma certa tendência para o populismo).

 

Não é exclusivo de Portugal, a falta de qualidade dos políticos.

Os tempos que vivi na Europa com o Delors como presidente da Comissão, o Kohl na Alemanha, a Thatcher em Inglaterra, o Mitterrand na França, eram tempos de muito maior qualidade. Em Portugal as pessoas não se preocupam com a qualidade porque é irrelevante em termos eleitorais. E as pessoas não gostam de ser vasculhadas. E as pessoas com maior qualidade não estão disponíveis para ganhar aquilo que a carreira política pode proporcionar. Basta comparar o que António Pires de Lima, de quem sou amigo, ganhava no [emprego] antecedente e o que ganha agora. Faz isto porque é jovem, porque tem possibilidade de o fazer e porque está a prestar um serviço ao país e ao Paulo Portas e ao governo e ao Passos Coelho.

 

E porque ser ministro dá uma certa patine.

Também dá. Ele não precisa. No mundo empresarial chegou ao top numa grande empresa. Mas reconheço que é impensável rever o estatuto salarial da classe política. São privilegiados em relação a um conjunto de cidadãos que têm sido fustigado pela crise, nomeadamente os reformados e os funcionários públicos.

Outro problema é o da lei dos partidos. (Aquele a que pertenci até há poucos dias, onde ainda tenho o coração e a expectativa de voltar, se um dia aquilo se regenerar... O que é pouco provável.

 

É pouco provável?

Por dentro? É muito pouco provável. Enfim, não sei, com uma derrota eleitoral pesada…) Nos partidos, a lei actual permite que se consiga estabelecer colégios eleitorais fidelíssimos através da distribuição de lugares no seio do poder. Estou a falar dos partidos do arco governativo. Há este sistema fantástico em que, para ser militante do PSD, se paga um euro por mês.

 

Está a falar do financiamento dos partidos.

Isto é assim porque o Estado resolveu – e eu sou co-responsável – financiar os partidos de uma forma generosa. Os partidos são financiados para a sua actividade política ordinária, para a sua actividade no Parlamento e ainda nas campanhas eleitorais. Os militantes não financiam os seus próprios partidos. E os militantes podem ter as suas quotas pagas por interpostas pessoas. É fácil, para quem não tem escrúpulos, arregimentar rebanhos de votantes e perpetuar-se no poder.

 

O que é preciso é ter o partido na mão?

Sim.

 

Isso leva-nos a Miguel Relvas, considerado o homem que controla o aparelho partidário. Viu com surpresa o seu regresso no congresso do PSD?

Sabia que o primeiro-ministro era teimoso, determinado. E que alguma coisa insondável o ligava a Miguel Relvas. Só essa razão insondável permitiu a presença de Miguel Relvas no governo durante tanto tempo apesar das trapalhadas todas em que estava metido. Não estou a acusar Miguel Relvas, estou a constatar a situação em que ele se deixou envolver. Isto deixou-me perplexo. É de tal maneira prejudicial à imagem do partido e do primeiro-ministro a presença de Miguel Relvas (como cabeça de lista, ainda por cima, do Conselho Nacional), que não é a mera teimosia que a pode justificar.

 

Pode ser uma fidelidade de Passos Coelho a Relvas? Outra possibilidade: perpassou no congresso a ideia de que “há ainda um ano e meio para dar a volta a isto”. É preciso atenção às bases. Passos bem pode engolir o sapo que o nome de Relvas desencadeia se este começar a trabalhar nas autárquicas de 2015.

Pedro Passos Coelho pretendia ser líder do partido e teve nas trincheiras Relvas a cavar os apoios necessários a esse desiderato – no qual teve manifesto êxito. Agora, que ele é insubstituível nessa matéria ou que é melhor que outros, nomeadamente que Marco António Costa, não tem qualquer cabimento. Não é isso que vai levar o partido a ganhar eleições. Isto pode dar lastro à liderança, mas junto da opinião pública não tem qualquer relevância. Basta ver o Facebook: é arrepiante a reacção a essa matéria.

 

Então é um tiro no pé?

É um monumental tiro no pé. Estragou um congresso que não lhe ia correr nem bem nem mal. Estragou tudo perante a base, mas, fundamentalmente, perante os eleitores com este gesto gratuito de chamar outra vez Miguel Relvas.

 

Foi uma espécie de bomba. Estava à espera?

Não, de todo. Pensei que as tais motivações insondáveis já tivessem sido ultrapassadas. Todos temos no decurso da vida política – levo 40 anos disto – que afastar pessoas de quem somos amigos. Disse isto, apelando a Miguel Relvas: “Se são amigos, faça-lhe o favor de sair do barco temporariamente”. Se ele regressasse ao parlamento, a historieta da licenciatura podia passar.

 

Acha que é uma historieta?

Não quero atirar com mais pazadas para cima de uma pessoa que também sofreu.

 

Disse isso a Miguel Relvas?

Não disse a Miguel Relvas, disse-o publicamente. Tive uma última conversa com Miguel Relvas a convite dele enquanto ministro, para almoçar, e a partir daí percebi que era persona non grata. Não dele, mas do primeiro-ministro (por força daquela situação do [Fernando] Nobre). E suspendi a militância no partido.

 

É por apego ao poder que as pessoas não saem facilmente de cena? Noutros países há sinais de crise que fazem com que as pessoas se demitam imediatamente.

Não há uma tradição de assumpção da responsabilidade política. A pessoa pode não ser culpada de um incidente ou de uma situação, mas deve assumir a responsabilidade política. O Jorge Coelho, tiro-lhe o chapéu, não tinha culpa nenhuma da queda da ponte. Assumiu a responsabilidade política e afastou-se. Isso em nada prejudicou a carreira política dele (futura), nem a carreira profissional.

 

Não é comum.

Não. Repare no que aconteceu nas eleições autárquicas, em Lisboa e no país. O partido [PSD] perdeu os três maiores municípios a seguir a Lisboa: Porto, Gaia e Sintra. Por erro flagrante na escolha dos candidatos. A área metropolitana de Lisboa foi uma desgraça completa. Quais foram as consequências políticas? O Marco António Costa acha que ganhou. O Sr. Engº Miguel Pinto Luz? Na maior. Como se nada tivesse acontecido. Nem sequer confessam a derrota.

 

Já nos habituámos a ver, nas noites eleitorais, que são todos vencedores.

Há limites. Que os pequenos partidos venham com essa história nas noites eleitorais, pode-se compreender. Dentro do PSD, a derrota nas eleições legislativas conduz à demissão do líder. Se ele não se demite, é demitido no congresso porque os militantes do PSD exigem que o partido esteja no poder.

 

Usei uma expressão e passou por cima dela: “apego ao poder”. E por apego ao poder queria dizer que é preciso ter o poder na mão para fazer e para distribuir benesses pelas tropas. Lugares políticos, negócios. É assim.

Nunca foi tanto como agora.

 

“Casa em que não há pão todos ralham e ninguém tem razão”? Houve um tempo em que o dinheiro chegou a rodos da Europa, e chegava para tudo e para todos. Era por isso que os conflitos não eclodiam desta maneira?

Neste momento há mais pressão da base militante para o acesso a lugares remunerados na máquina do Estado (nos gabinetes ministeriais, nas câmaras municipais), porque o emprego rareia. Há menos pudor e a legislação está a favorecer isto. Tenho preconizado que se acabe com esta possibilidade de assessores de gabinetes ministeriais, que têm seis meses de estágio, 24 anos e uma licenciatura ganhem mais do que…

 

Um médico.

Muito mais. As câmaras foram obrigadas a diminuir dois ou três por cento o número de funcionários. Soube que não houve necessidade de despedir. As pessoas reformaram-se ou chegaram a acordo e saíram. Mas nas empresas municipais não é assim. Em Sintra, o Dr. Basílio Horta foi obrigado a eliminar (salvo um médico e um enfermeiro) todas as pessoas contratadas para além do quadro que tinha nas empresas municipais e na própria câmara. E colocou o dinheiro – estou a fazer um elogio ao meu adversário político – a favor dos problemas de assistência social.

É possível exigir-se, numa câmara com 1500 funcionários, que o presidente tenha que escolher metade do seu gabinete de entre os funcionários da câmara. Quando fui presidente da câmara, a minha chefe de gabinete era funcionária da câmara. Não faço a mínima ideia de qual é a sua inclinação política ou partidária, por muito difícil que seja de acreditar.

 

Está a distinguir confiança pessoal e confiança partidária.

Sim. O mesmo se diga de um primeiro-ministro ou de um ministro do Ambiente. Pode ter essa capacidade e só terá vantagem nisso.

 

Ainda é possível este PSD, apesar da austeridade, apesar desta terrível nota, -29,3, ganhar as legislativas?

É extremamente difícil porque tudo indica que a austeridade se vai reforçar.

 

Tem essa convicção, apesar da saída que se deseja limpa?

Tenho porque estão anunciados mais dois ou três mil milhões de cortes durante este ano. [Vai] passar a definitivo o que é temporário e agravar-se ainda mais [a situação]. E para atingirmos a meta do défice em 2014 já não há receitas extraordinárias que possam ajudar a esse objectivo. O eleitorado vai ser penalizado. Especialmente um eleitorado nada despiciente como os pensionistas e os funcionários públicos. É certo que isso pode afastá-los das urnas, em vez de votarem contra o Governo. Por outro lado, a questão põe-se em saber se a alternativa é credível ou não, e a alternativa é o Partido Socialista.

 

O Partido Socialista ou António José Seguro?

António José Seguro. Há uma campanha muito curiosa em termos de marketing político para tentar denegrir e achincalhar a capacidade dele. Tem tido algum êxito. O Partido Socialista não sai da cepa torta. Tem havido erros, como agora a designação de Francisco Assis para cabeça de lista ao Parlamento Europeu. O PS tem tido dificuldade em afirmar-se como alternativa, e com políticas alternativas credíveis, assimiláveis. Mas daqui até às eleições ainda vai um caminho.

 

Um volte-face dentro do Partido Socialista, com mudança de líder, mudaria as coisas?

Isso só seria possível se houvesse uma debacle completa do Partido Socialista nas eleições para o Parlamento Europeu. O que não creio. Vão ser umas eleições complicadas em termos eleitorais dada a abstenção.

 

É sempre muito forte nas europeias.

Desta vez vai ser mais, e vai condicionar e influenciar o resultado eleitoral. O aparecimento de falsas listas independentes, com as barrigas de aluguer, como acontece com a lista do ex-bastonário [Marinho Pinto], e o aparecimento de mais partidos à esquerda, podem captar nichos de mercado e influenciar o resultado eleitoral.

 

Estávamos à espera de o ver numa lista. Criou-se a expectativa de que depois da expulsão pudesse ser sugado por um desses movimentos e ser candidato ao Parlamento Europeu.

Não. Jamais iria numa barriga de aluguer por uma questão de ética e de princípio. Fui sondado por um movimento pelo qual tenho simpatias, pelas suas orientações políticas, por muitas pessoas que lá estão dentro. Não vou revelar qual é porque está iminente o seu aparecimento. Expliquei que não estava disponível. Ia como independente, com alguém com quem simpatizo.

 

Porque é que recusou?

Porque agora tenho actividades de natureza pessoal muito mais importantes. Sou baby-sitter da minha neta Mariana e do meu neto Francisco. Estou em standby. Já dei para esse peditório. Estive nove anos no Parlamento Europeu e não tinha paciência para, aos 70 anos, andar itinerante entre São João do Estoril, Lisboa, Bruxelas e Estrasburgo.

 

É mesmo a fase da vida em que está?

E por já ter lá estado. Quando estive lá, gostei. Não percebia nada dos dossiers europeus e foi uma experiência riquíssima. Entrei numa época áurea do Parlamento Europeu.

 

Não está a dizer que arrumou as botas só porque vai fazer 70 anos.

Não. Continuo com o bicho da política. Os meus netos preenchem as segundas, quartas e sextas. Mas estou disponível e sinto-me com vontade de fazer política.

 

Quando disse que ainda há muito caminho até às eleições de 2015 lembrei-me de Matteo Renzi, novo primeiro ministro italiano, e da rapidez com que tudo foi feito. Em Portugal não é assim. Não temos um Renzi e as coisas não se fazem no espaço de uma semana ou de um mês.

Porque a lei eleitoral e a legislação italiana permitem isso. Na generalidade dos países, em Inglaterra é a mesma coisa, cai um Governo e outro daí a bocado está pronto. O caso belga: as negociações eternizam-se, mas não há problema nenhum, aquilo funciona sem governo. A máquina da administração pública resolve o essencial, e a defesa e a política externa estão garantidas.

 

Em Maio vamos ter eleições europeias e, supostamente, a saída da Troika. O primeiro-ministro já disse que será uma saída suja se estivermos obrigados a um segundo resgate. Sérgio Godinho disse que nunca será uma saída limpa porque ficaram alguns anéis mas cortaram-se os dedos.

Ele tem razão. A generalidade dos economistas em quem confio escreveram nos jornais que a saída limpa era um risco desnecessário e perigoso. Entendiam que devia haver um programa de apoio a essa saída. O primeiro-ministro fez bem, nunca se comprometeu com uma nem com a outra. Elogio-o porque isto na Europa dá muitas voltas e a situação interna do país também, no sentido da macroeconomia.

 

Qual é o papel da Europa nisto?

Percebeu-se que a Sra. Merkel não quer cá quaisquer apoios. Quer que a gente se desenrasque sozinhos e não mace. Saída limpa… “limpa” sempre entre aspas, por causa do que disse o Sérgio Godinho, mas também porque vamos continuar a ter uma supervisão, que é a tal “terceira via”. Não é nada a terceira via. É a saída supostamente limpa que sempre esteve prevista. Vamos ser acompanhados à lupa pelas instâncias europeias competentes, pelo Banco Central e pela Comissão Europeia. Limpos do FMI, talvez, mas dos outros dois, não. Não temos visita da Troika, mas continuaremos a ter uma supervisão. A célebre frase de Paulo Portas, de que nos vamos ver livres [dessa tutela], é uma patetice.

 

É Merkel que manda mais e que, por isso, decide como será a nossa saída? Ou decide como será o acompanhamento findo o programa da Troika.

A minha tese é que são os funcionários europeus quem tem um peso enorme na determinação dos caminhos da Europa. É o funcionalismo público.

 

Explique isso.

É simples. Quando estive na Europa percebi que os papéis que chegam para decisão são fabricados nos corredores das instâncias europeias pelos altos funcionários – [sobretudo] alemães, ingleses, franceses e italianos. Os alemães tinham uma preponderância porque eram eles que pagavam as facturas. A influência dos directores gerais da Comissão Europeia e dos altos funcionários, seja na Comissão seja no Parlamento Europeu, era determinante. Os papéis vinham feitos e havia muito poucos desvios aos papéis.

Mesmo assim o Delors ainda mandava, o Kohl, a Thatcher, o Mitterrand mandavam. Agora, tenho as maiores dúvidas que mandem. A política foi substituída, de forma perigosíssima, pela tecnocracia. Quando vejo uma senhora do FMI a reconhecer erros crassos e vejo os funcionários cá a dizer o contrário, e a borrifar-se para o que os superiores hierárquicos dizem, ou para o que a senhora Merkel pensa, isto alimenta a minha tese de que não é a Merkel.

 

É a máquina?

A máquina dominada por alemães.

 

O que isso quer dizer, também, é que não há líderes. Se Christine Lagarde diz o que diz e não acontece nada, se Merkel diz o que diz e é engolida pela tecnocracia…

É ao contrário. A Merkel diz o que a tecnocracia indicia que ela deve dizer. E isto é válido na administração pública alemã e não só; veja o que acontece no Banco Central Alemão. Vemos muitas vezes o seu ministro da Economia, que parece todo poderoso, seguir as pisadas daquilo que o Banco Central diz.

 

Então temos líderes pífios.

A média dos líderes na Europa é bastante pífia. Digo-o sem sobranceria. Qualquer observador comum, comparando os nomes que referi com os nomes que neste momento estão à frente dos governos…

 

A Europa, que começou por ser um oásis, nos anos 80, transformou-se num dos maiores problemas de Portugal?

A Europa ainda é a nossa tábua de salvação. Apesar de tudo, continua a ser generosa. É o maior financiador do Terceiro Mundo e dos países da periferia no seu seio, na União Europeia. Vamos ter agora mais um maná de dinheiro de fundos estruturais. Deixou de ser uma Europa política. A partir do momento em que alargaram sem aprofundar as instituições, deu asneira.

 

O politólogo Pedro Magalhães dizia há umas semanas no Negócios que a Europa deixou de ser olhada como uma coisa benigna (indicavam estudos recentes). Apesar do maná que aí vem.

O cidadão comum entende que a Europa é igual a Merkel, é igual a austeridade. Os males de que estão a padecer resultam de um Governo incompetente, que os trata mal, discriminatoriamente, porque está a seguir subservientemente as pegadas da Merkel, da Europa. Responsabiliza a Europa pela austeridade.

 

O PSD de Pedro Passos Coelho e da austeridade não é o seu. Não foi o partido em cuja fundação participou. Gostava que sumariasse este PSD e os pontos em que ele é mais distante da matriz original do partido.

Tem a ver com a orientação política e ideológica que ele assume. Fê-lo de uma forma coerente e que merece registo, em livro, quando se candidatou. Mas a social-democracia que eu ambicionava em 74, a social-democracia à sueca, não era aplicável hoje em dia ipsis verbis. Em segundo lugar [é diferente] pela forma como [Passos] lida com o partido. Com o favorecimento da criação indiscriminada de oligarquias que dominam, através de processos menos claros, os colégios eleitorais em cada uma das secções, em cada uma das distritais. Distritais que se perpetuam, não servem para nada a não ser dar favores na escolha dos presidentes de câmara e das listas de deputados. A organização interna [do partido] morreu. O partido não existe.

 

Em que sentido?

As sedes estão fechadas, não há debate. Não há vida partidária como existiu no início. As despesas estão asseguradas pelos contribuintes, que financiam o partido, não há preocupações dessa natureza. E [é diferente] a nível governamental devido a esta política que classifico – porque não tenho melhor termo – de neo-liberal e que errou na dose e na distribuição dos sacrifícios que era necessário impor ao povo português.

 

Foi pela ameaça, ou quase morte, do estado-social que este governo mais se distanciou da social-democracia à sueca?

Foi. Embora muita coisa houvesse para fazer, e que já tinha começado a ser feita pelo Partido Socialista. A reforma da Segurança Social foi feita pelo ministro Vieira da Silva, e bem feita. E entretanto desmantelada e desvirtuada. Há uma enorme insensibilidade. Dizem-me que o Sr. Provedor da Misericórdia de Lisboa fez um discurso em que explicou que era preciso tomar atenção. Não apenas a pobreza aumentou e o país empobreceu, mas ainda, para agravar essa situação, o fosso entre ricos e pobres acentuou-se.

 

Foi a classe média que foi engolida?

É isso. Este mês há um número arrepiante, o aumento de dois por cento dos casais desempregados. Apesar dos números [indicarem] alguma inversão no número global de desempregados, mais por força da emigração do que por méritos do governo ou do crescimento da economia, a situação de desemprego e de pobreza extrema começa a grassar.

 

No fundo é aquela frase de Luís Montenegro: “o país está melhor, as pessoas é que ainda não”?

São frases infelizes. São sound bites que tentam emitir, como o Sr. primeiro-ministro com a história das “próximas pancadas”, as medidas de austeridade. São expressões infelizes que vêm reconhecer que vai continuar a austeridade, e sobre os mesmos.

 

Quando ouvi essa frase pensei no sentido da política. A política faz-se para quê? Faz-se para um país ter as contas certas?

Compreendo que para se fazer uma política social séria é imprescindível ter as contas certas. Mas fez-se de uma forma brutal, cega, com uma dose em que se mata o doente da cura. E aí estou sintonizado com o António José Seguro quando falava, de forma genérica, da questão da dívida. Era fundamental fazê-lo devagar. Com mais tempo e melhor distribuído.

 

Passando para o assunto da sua expulsão. O que é que emocionalmente isso lhe provocou?

Muito pouco e por pouco tempo. Há dois anos que estava afastado, em rota de colisão com o Governo, com o partido a nível local e nacional. Apesar de tudo, não deixa de acorrer à minha memória – enquanto estou acordado, porque continuo a dormir bem – aqueles tempos passados, gloriosos, desde 74 até há pouco tempo. Enquanto fui presidente da câmara, não tive uma actividade partidária intensa, mas sentia-me a representar os interesses do partido e dos meus eleitores em Cascais.

 

Dê-me uma história feliz de 74 relacionada com o partido. Um desses momentos que evoca.

A história que guardo com maior emoção é o convite que o Francisco Sá Carneiro me fez, no carro, para abraçar a vida partidária. Eu já era casado e pai de duas crianças muito miúdas, tinham nascido em 68 e 70. Disse que sim. Primeiro em part-time, durante um bocadinho ao fim da tarde, depois meio dia. Em Fevereiro de 75 já era secretário-geral adjunto do secretário-geral Sá Carneiro. Estive até 83. Foi esse contacto com Francisco Sá Carneiro que me motivou e me moldou politicamente.

 

De que é que gostou nesses anos? Os anos 70 foram um tempo em que esquerda e direita se comprometeram com a construção de um país.

Houve um destapar da panela de pressão. Às vezes transbordou do realismo, e no próprio PSD. O Marcelo outro dia contava o que foi o primeiro congresso do PSD, as propostas que apareciam eram revolucionárias. Desde a auto-gestão a outras coisas miríficas. Sá Carneiro percebeu que tínhamos que chegar rapidamente a todo o país, rejeitando infiltrações. Especialmente à direita, havia uma tendência para que pessoas comprometidas com o regime fascista pudessem aderir ao PSD. Foi um trabalho que durou anos, com o apoio dos vários dirigentes nacionais. O Marcelo era especializado em todo o Alentejo, onde teve uma coragem... A Helena Roseta [cunhada de Capucho], também. Levámos muita pancada no Alentejo e no Algarve.

 

Pancada, como?

Pancada, pancada [risos].

 

Apanharam?

Várias vezes tivemos que fugir. O Marcelo andou pelos telhados em Beja. Vi o Francisco Sá Carneiro em Beja a desviar-se de pedradas. Vi a Helena Roseta a ter atitudes de uma enorme coragem física. Isso deixa marcas.

 

Animava-os uma ideia de serviço público?

A construção de um país novo. E tínhamos um modelo. Olof Palm tinha conseguido construir um estado-social assombroso em que os pobres tenderiam a desaparecer. Era tudo classe média e ricos. Tínhamos esse objectivo idealista.

 

A sua cara muda quando fala disso.

São muitos anos.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014

 

 

Para o Chico, um ano depois

12.05.14

Hoje quero falar do meu amigo Chico Grave. Era um solitário da Quinta da Calçada, bairro paupérrimo, que confirma a frase "as flores nascem do estrume". A sua cara de menino maravilhado pelo cinema é uma das mais belas ilustrações da infância e da Vida (com V grande, mesmo) com que já topei. Está nesta fotografia.
Nesse fim de semana ele não tinha vindo a nossa casa trocar livros, fumar um charuto, dar coices - estar, simplesmente estar. A irmã encontrou-o morto na segunda feira. Que aflição. Que dor. 
Continuo a chorar, e sobretudo a ter muitas saudades, um ano depois. 
Vejam o blog dele, Citizen Grave, "para quase todos", que tinha tudo o que amava muito. É uma forma de o conhecerem um pouco e apanharem o milagre da sua vida.


http://citizengrave.blogspot.pt/
Chico Grave