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Anabela Mota Ribeiro

Silva Peneda

08.05.14

Vamos a tempo? Silva Peneda, o presidente do Conselho Económico e Social, sublinha a cada linha do seu discurso: esta é a hora da verdade. Estamos a seis meses do fim. Estamos? De que fim?

Esta entrevista aconteceu antes do Natal e foi feita com a intenção de ser publicada na primeira semana do ano. Como quem faz um balanço e estabelece prioridades. Os números não são inspiradores. O desajustamento é o que se conhece. Mas até onde estamos dispostos a mudar? Até onde acreditamos no nosso destino? Os parceiros sociais entendem-se, diz ele. Porque não se entendem os partidos?

A voz de Silva Peneda não surge isolada. Resta saber se chega ao céu.

 

… o problema é que, mesmo que se trate de um ano novo, não podemos começar do zero. Temos sempre a ilusão de um momento zero, de pôr o conta-quilómetros no zero...

A vida é um contínuo. Embora haja uma ruptura, muitas vezes, nas nossas vidas.

 

É possível em Portugal encontrar esse momento disruptivo? O momento em que, se não podemos começar do zero, o conta-quilómetros permite uma velocidade diferente.

Julgo que o próximo ano vai ser [marcado] por um momento, que vai passar-se a meio do ano.

 

Junho? A data do fim do programa de assistência.

Não vejo que vá haver alterações profundas no primeiro semestre de 2014 em relação àquilo que está programado. E ninguém pode dizer exactamente o que vai acontecer depois de o programa terminar. Seis meses, em termos de política económica, é uma eternidade. Tenho a ideia de que pode haver uma ruptura com o passado a partir dessa altura. E que ela devia começar a ser preparada já no primeiro semestre.

 

A ruptura pode efectivamente acontecer? Com meses de antecedência, fala-se de um programa cautelar, da eventualidade de um segundo resgate.

Entendo que o modelo económico que vigorou até 2011, baseado no sector da construção civil, no imobiliário, no consumo e no crédito fácil, na ideia de que o aumento da despesa pública se repercutia rapidamente em crescimento económico, [acabou]. O desafio que se põe hoje à economia portuguesa é alimentar um novo modelo. Temos de passar de um modelo [assente] na produção de bens não-transaccionáveis para um modelo de bens transaccionáveis. Para construir um modelo com essas características, e há sinais de que ele pode ser construído, o ingrediente fundamental é tempo.

 

Tempo?

Se o problema do emprego pode ser resolvido de uma forma mais rápida se apostarmos em sectores que têm capacidade instalada – é o caso do turismo, sobretudo se for associado à cultura, à saúde, ao desporto, e partindo das vantagens competitivas que temos (clima, gastronomia, etc.) – no caso da indústria é diferente. Os últimos anos caracterizam-se por um forte desinvestimento. Aí sim, é preciso começar praticamente do zero.

 

As exportações têm crescido.

Sim, os sinais são positivos. A necessidade aguda o engenho. Conheço empresários do norte que sem grandes habilitações, sem o domínio de línguas [estrangeiras], se meteram nos aviões, mala feita, e foram descobrir novos mercados. As nossas exportações cresceram mais do que as de Espanha, Itália, Irlanda. Significa que apesar de termos desvantagens em termos competitivos – estou a falar do preço do dinheiro, dos custos da energia – as nossas exportações portaram-se desta maneira. Se tivéssemos as mesmas condições que têm os outros, imagine onde estaríamos.

 

Como dar o passo em relação a esse novo modelo económico?

Esse modelo para ser construído precisa de vários pressupostos. O primeiro é o tempo, já o disse.

 

Quer também dizer que precisamos de mais tempo para consolidar as contas públicas, para resolver problemas estruturais?

Os problemas estruturais da nossa economia não podem ser resolvidos em programas de dois anos. O juízo sobre se um programa correu bem ou correu mal, se foi um sucesso ou não, é comparar aquilo que se propunha fazer e aquilo que foi feito.

 

Qual é o seu diagnóstico?

É mau, é mau. O que estava previsto em termos de dívida pública era que estivéssemos nos 108% e estamos nos 127%. Em termos de crescimento do produto, devíamos estar a crescer 2,5% e estamos a crescer 0,8%. Em termos de défice, devíamos estar nos 2,7% e está previsto 4%. Há uma divergência entre aquilo que foi programado e a realidade.

O CES foi a primeira instituição a dizer que o programa da troika estava mal desenhado. Outros falam de o [programa] estar mal calibrado. É a mesma coisa. Entendemos que este programa não teve em conta as especificidades da economia portuguesa.

 

Nomeadamente?

Desde logo o elevadíssimo nível de endividamento das famílias e das empresas. Também não foi tido em conta o peso da retracção do mercado interno no emprego. Quando a taxa de desemprego começou a disparar os senhores da troika (tanto o FMI como a Comissão Europeia) mostraram-se muito surpreendidos com a evolução – ao que eu respondi: “Era evidente.” O nosso tecido produtivo é constituído por pequenas e médias empresas. Uma empresa robusta, quando vem uma aragem adversa, vai resistindo. Uma empresa pequena, quando vem um sopro, fecha as portas e acabou. Foi o que aconteceu a milhares de empresas.

Depois, [a troika] concentrou-se num objectivo: o défice orçamental. E de um ponto de visto económico, nos custos do trabalho. Quero dizer que os parceiros sociais não entenderam que a reforma da lei laboral devia ser uma prioridade (nem a parte patronal o entendeu).

 

Quais são as prioridades, no seu entender?

Redução dos custos de contexto, da energia, e o preço do dinheiro. São factores mais importantes para os empresários do que a alteração das leis laborais.

Voltemos aos pressupostos importantes [para alterar o modelo]. O segundo tem a ver com a necessidade de coerência entre as políticas. O que eu gostaria que acontecesse era que se desenhasse um programa que é um triângulo. Um objectivo seria a consolidação das contas públicas – a que não podemos escapar mas que tem de ser temperado com outros objectivos. O crescimento económico. A reforma do Estado (que está por fazer). No meio deste triângulo ponho a coesão social. É neste triângulo que se devem plasmar as opções político-económicas para a próxima década.

 

Diz de modo enfático “década”. Esse é o período de tempo necessário à implementação de mudanças?     

Propusemos isto no nosso parecer sobre o Orçamento de Estado.

 

Se fala numa década, isso implica um pacto de regime?

Exactamente. É o último pressuposto fundamental: um compromisso. Ao nível das forças sociais, esse compromisso existe. O nosso parecer, que não teve nenhum voto contra, tem uma proposta concreta sobre a saída da crise e baseia-se neste programa de dez anos, com este tipo de objectivos. Há ambiente nos parceiros sociais para alinhar nesta opção – que é uma opção de ruptura, porque se trata de acabar com o modelo do passado e encaminhar um novo modelo. É no compromisso político que as coisas estão mais complicadas.

Vou dar-lhe um exemplo. Imagine que Portugal é uma empresa, que está falida. Os sócios da empresa andam à batatada uns com os outros. Que é que o credor pensa? “Vou gerir aquilo, com aqueles tipos? Não me safo”. Imagine o contrário. Imagine que os devedores chegam junto dos credores e dizem: “Temos um problema, queremos resolvê-lo, mas têm de dar-nos tempo. E estamos unidos para cumprir este programa.” Vê a diferença de perspectiva que há do ponto de vista do credor?

 

Está a falar da maneira como somos olhados por quem nos empresta dinheiro. Se somos levados a sério ou não.

Uma coisa é querermos ser donos do nosso destino, e afirmar perante os credores como é que vamos pagar, qual é a estratégia que vamos seguir; outra atitude é não nos entendermos, e nesse caso são eles que vão continuar a mandar. Com uma agravante (de que pouco se fala): é que isto [o fim do programa] vai acontecer numa época em que o FMI vai deixar de ser parte activa e em que [o interlocutor] vai ser a Comissão Europeia. Em meados do próximo ano vamos ter eleições europeias, os comissários actuais estão de saída, lá para Outubro ou Novembro entram novos. Quem está em cena já risca pouco. O poder vai estar concentrado na burocracia europeia. Tenho muito medo da burocracia europeia.

 

Porquê? Depois de anos em Bruxelas deve ter uma noção mais fina de como as coisas se passam.

Tenho. Tenho receio porque [na Comissão] são avessos à inovação. É o chapa oito.

 

A Europa moderna é assim?

O funcionário típico europeu sobrevive se não fizer grandes ondas. Se não fizer o trivial bem feitinho e for inovador, arrisca-se. O funcionário europeu não é pessoa para arriscar. Pode propor em surdina ao seu chefe qualquer coisa, mas [é tudo]. No início, havia condições políticas excepcionais. Hoje isso degradou-se.

 

Com esses números, é normal que se degradem.

Com certeza. O programa foi mal desenhado e mal aplicado. Sobre o futuro: ou somos nós, portugueses, a comandar o nosso destino colectivo (pelo menos, parte), e somos capazes de nos entender e aplicar um programa com um horizonte temporal [dilatado], e há muito espaço para a luta político-partidária, ou não somos capazes de nos entender em relação a isto. Se não somos capazes, acho que vamos ter mais uma década, mais duas décadas de mais do mesmo. 

 

Quis dizer que há uma prevalência das lutas político-partidárias sobre o interesse nacional?

Neste momento a luta político-partidária é uma luta de tacticismo político. Visões de curto prazo. Em Portugal a política é feita para o dia a dia. A política é feita para as próximas eleições. A política é feita para o telejornal. Numa situação como aquela em que o país está temos de ter uma visão de mais largo alcance. Temos de ter uma visão que está para além de uma legislatura.

 

Como é que se pode deixar as questões de curto prazo para segundo plano?

É fundamental na política distinguir o essencial do acessório. Eu posso, porque estou mais aflito, desistir de ter um país mais equilibrado? Percebo que é um problema para as estruturas partidárias, compaginar uma coisa e outra. Mas precisamos de políticos que tenham uma visão de médio prazo. Sendo utópicos: precisamos de um sonho para o país. O que é que queremos que Portugal seja? Temos de ter um desígnio. Se estamos sem desígnio, andamos a reboque. A História demonstra que isto só é possível com interacção entre as partes. Pense nos descobrimentos, pense na chegada do homem à Lua – nunca foi um homem sozinho. Os parceiros sociais têm dado um excelente exemplo pensando como uma única força. Hoje a legitimidade política não se esgota no acto eleitoral. Tem a ver com a forma como o poder político se relaciona com outros poderes que não os partidários.

 

A nossa sociedade civil não é especialmente vigorosa, participativa.

Não é só a sociedade civil. Temos também o problema das instituições. O factor que hoje mais determina se um país é ou não é desenvolvido é [a força] das suas instituições. Um país com instituições débeis e com uma sociedade civil débil dificilmente é um país desenvolvido. Assistimos nos últimos anos a uma degradação da [qualidade] das instituições.

 

Ao falar de parcerias e dinâmicas, não falámos de uma coisa fundamental na história portuguesa, o Sebastianismo. Contrariando a ideia da parceria, o português continua à espera de alguém que o salve. De um gesto individual que traga a solução.

Gosto mais de outra característica que dá os portugueses: a capacidade de fazer pontes. Disse isso no discurso do 10 de Junho em Elvas [Silva Peneda presidiu às comemorações do Dia de Portugal]. Porque é que fomos os promotores da globalização?, o que é que caracteriza os portugueses? A capacidade de se entenderem com outros. O mundo não é desconhecido para os portugueses. Integramo-nos noutras sociedades com facilidade, coisa que não acontece com outros povos.  

 

No início do programa de assistência, olhou-se para a troika como alguém de fora que ia pôr a casa em ordem. Trazia consigo a ilusão de que ia resolver tudo. Depois as coisas começaram a correr mal e pensou-se numa pessoa, exterior aos partidos, que pudesse encabeçar esse pacto de regime. O seu nome, como sabe, foi um dos apontados.

Eu disse que aquele programa [da troika] ia provocar muita dor. “Dor, vamos ter. Agora vamos ver se temos ajustamento ou não.” Nesta fase podemos dizer que tivemos muita dor, mais do que aquela que era previsível, e sofremos demais para os resultados que tivemos. Para termos estes resultados, não era preciso sofrer tanto. Houve uma desproporção entre os sacrifícios impostos e os resultados obtidos.

 

Mas isso é consequência da aplicação.

Também é o desenho.

 

Quem foram os grandes responsáveis?

A troika, claramente. O resgate foi negociado em circunstâncias complicadas, tínhamos um Governo que estava de saída, os credores tinham uma quota muito importante. Sou testemunha das muitas reuniões que fizemos aqui. Não estava nas mesas em que o Governo negociava com a troika, mas qualquer negociação pressupõe tensão... Não percebia, hoje já percebo que há alguma [tensão]. Posso dizer-lhe que a troika ficou surpreendida com o facto de haver sintonia no discurso dos parceiros sociais. Chegou a ser classificada de “sinfonia perfeita”. Houve uma cena curiosa. Um dos anteriores líderes do FMI numa reunião insinuou que os parceiros sociais tinham sido ensaiados.

 

Por quem?

Por mim. Respondi: “Isto é mais uma prova de que o senhor não percebe nada da realidade portuguesa. Está a imaginar uma CGTP ou uma CIP a serem ensaiadas por qualquer cidadão português?”.

Há uma novidade: o Parlamento Europeu vai fazer um inquérito à actuação da troika, e estar cá 6 e 7 de Janeiro. É um facto político muito importante. Querem reunir com os parceiros sociais, que vão dizer de sua justiça. Eu vou depor em Bruxelas no dia 9. Não é o presidente do CES, é o cidadão Silva Peneda que vai dizer qual é a sua visão do programa da troika.

 

Porque é que o Parlamento Europeu decidiu fazer este inquérito?

O Parlamento Europeu é um órgão político e vai julgar a Comissão. Houve 78 mil milhões que foram investidos no país, com determinado tipo de objectivos. Os deputados europeus têm toda a [legitimidade] para fazer este exercício. Como é que correu?, o que é que falhou? – até para correcções em futuros processos.

Muita gente diz que o modelo social esgotou-se. Não há um modelo social único, há quatro grandes modelos. O nórdico, o escandinavo, o central e o mediterrânico. Mas há valores que são únicos e mal vamos se mexemos neles. Temo que nos últimos tempos se estejam a violar aspectos essenciais do projecto europeu.

 

Qual tem sido o papel de Mario Draghi na defesa do projecto europeu?

Mario Draghi sofre muito. É presidente de uma instituição que não tem um pensamento estruturado sobre a zona euro. Faltam pilares fundamentais. Draghi está aflito com a união bancária, não há maneira de se resolver o problema – por oposição da Alemanha.

A zona euro tem um problema de fundo (e isto tem a ver com as teses do João Ferreira do Amaral, que é conselheiro aqui no CES). Será que é possível existir uma moeda única numa região com tantas diferenças culturais, diferentes níveis de competitividade? Se a resposta for sim, a resposta é: que instrumentos políticos podem ser postos no terreno e que tenham em consideração essas diferenças? Tal como está, é muito difícil a uma economia como a portuguesa ser competitiva.

 

É possível pensar numa zona euro a duas velocidades? Regras diferentes para diferentes países?

A Europa é um mosaico de diferenças, a riqueza da Europa é essa. Na economia não se pode fazer tábua rasa disto e aplicar as mesmas regras. A zona euro está a cometer esse erro. A leitura de que os do sul são uns malandros e não trabalham, o discurso punitivo (“agora têm de expiar as vossas culpas”) é redutor, simplista, não faz sentido. É uma visão de gente inepta.

 

Acabou de chamar inepta a Angela Merkel.

Não falei de pessoas. Compreendo que um líder alemão ou nórdico, se disser que vai tirar dinheiro [aos seus eleitores] para aplicar no sul da Europa, [perde votos]. Ninguém quer pagar as contas dos outros. Mas precisamos de líderes com visão de médio prazo. [Helmut] Kohl conseguiu explicar aos alemães porque é que era preciso acabar com o marco.

No Parlamento Europeu, convidávamos oradores e um dia foi o ex-chanceler Kohl. No final fazíamos um jantarinho, era a forma de pagar o cachet ao convidado... Um jantar pequeno, com poucas pessoas. Invectivei-o, estava quente, falei do comportamento da Alemanha. Ele disse isto: “Tem de perceber que fui o último chanceler que viveu a [Segunda] Guerra, e isso faz toda a diferença”.) Jean-Claude Juncker disse num discurso: “Os fantasmas da guerra estão apenas adormecidos e podem acordar.” A história da Europa é uma história de guerras fratricidas. A prece que foi rezada depois da guerra (“Guerra nunca mais”) foi transformada num projecto político. Um projecto que dura até hoje. Temo que essa oração tenha deixado de ser rezada.

 

Angela Merkel não viveu a guerra, mas viveu a derrocada do muro e a unificação das duas Alemanhas. Sabe quanto a Europa pagou pelo marco de leste.

Neste momento a política está capturado pelo sistema financeiro. Temos uma crise que é global, que foi originada pelo sistema financeiro (que deixou de emprestar dinheiro ao sector produtivo) e que levou os Estados a fazer o papel de companhia de seguros. Os Estados passaram a funcionar como socorro do sistema financeiro e a única forma que têm de fazer esse papel é [recorrendo] aos cidadãos. Aumentando os impostos ou cortando a despesa. A crise sistémica vai sendo resolvida, mas não há soluções globais. As finanças circulam com grande liberdade, o trabalho não circula com essa liberdade. Há aqui um desequilíbrio.

 

Quem falhou?

Quem falhou foi o sistema político. Não previu, não fiscalizou, não supervisionou nem puniu (tirando um caso nos EUA).

 

O mundo mudou muito nos últimos anos, a Europa mudou muito.

A Europa a que aderimos em 1986 não é a mesma. Houve a unificação alemã, a globalização (não estava tão pujante), o alargamento (tenho dúvidas em relação a ele). Tudo isto são factores que levaram a que o processo de decisão na Europa deixasse de ser o que era. Eram 12 à volta de uma mesa e os votos eram mais ou menos equilibrados. Hoje há claramente o predomínio de um sobre os outros.

 

A Alemanha tem a hegemonia.

A França esbateu-se. A própria Comissão deixou de ter o peso que tinha. Será que a Alemanha entende que deve assumir uma liderança em termos europeus? Nesse caso, deve pensar europeu e não apenas alemão? Não sei.

 

A crise na Europa, vai chegar a um ponto de agonia em que ou rebenta ou se refaz?

Se o euro soçobrar é o próprio projecto político europeu que está em causa. Os valores que estiveram na origem desta criação, e que foi a coisa mais fantástica que se fez a nível planetário... O fim da Guerra, a prosperidade, o compromisso entre socialistas e sociais-democratas... Pegou-se no carvão e aço com que se fez a guerra e os inimigos disseram: “Peguemos nisto em conjunto”.

 

Era uma maneira de deixarem de ser inimigos, a França e a Alemanha.

Ponha isso agora no plano português, político-partidário. Não estamos numa situação de guerra, mas estamos numa situação dramática. Porque é que não há um entendimento?

 

Acharia possível um entendimento entre PS e PSD se os líderes fossem outros? Estes não se entendem.

A componente pessoal tem muita importância na política. Mas temos de viver com o que temos.

 

Temos de facto de viver com o que temos?

São os partidos que temos. A sociedade tem um papel importante no sentido de mostrar aos líderes partidários que quer “isto”. Esta entrevista tem em si uma mensagem: nós podemos condicionar. Se a opinião pública entender que é fundamental o entendimento para um programa de médio prazo, com determinadas características, mais tarde ou mais cedo, até por uma questão de sobrevivência, os partidos acabam por se entender. Seis meses, temos seis meses. A minha batalha vai ser essa. Os parceiros sociais têm problemas internos também, não pense que as coisas são fáceis. Não são decisões pessoais, são decisões de instituições, de sindicatos, entidades patronais. Se eles conseguem entender-se não vejo razão para que a nível partidário não haja [o mesmo] entendimento. Estou convencido, acalento essa esperança...

 

Estar convencido e acalentar uma esperança são coisas diferentes.

Para ter esperança é preciso acreditar. Eu quero acreditar que será possível o entendimento. Porque? Porque a alternativa é muito complicada. A alternativa é mais do mesmo, independentemente de quem ganhe as eleições.

 

As eleições legislativas são em 2015. Daqui a uma eternidade.

Se daqui a seis meses as coisas não forem equacionadas na perspectiva que estou a defender, quando forem as eleições as cartas estão dadas. Chame-lhe programa cautelar, chame-lhe o que quiser: vai haver uma orientação que é definida pela Comissão Europeia. E o poder político em Portugal vai ter muito pouca capacidade para reagir.

 

Explique mais detalhadamente.

Se não tivermos a capacidade de apresentar um programa definido por nós, e se não tivermos uma frente comum a dizer: “É isto que queremos” – julgo que o presidente da República também apoia essa frente comum –, a Comissão Europeia impõe as suas regras.     

 

Onde é que situa isso no calendário?

Em meados do próximo ano. É a nossa capacidade de dizer que queremos honrar os nossos compromissos, negociar juros, dívida. É a nossa capacidade de dizer como é que queremos crescer economicamente e honrar os nossos compromissos. Para crescer, há regras que não podem ser aplicadas cegamente (como aconteceu). 

 

“Inconsequência” é uma palavra essencial no nosso vocabulário? Uma triste sina. A ideia que fica é que “nunca dá em nada”.

Em vez de inconsequência vejo outra palavra: inquietude. A sociedade portuguesa está cheia de inquietudes. A primeira é a falta de confiança. Falta de confiança nas instituições, nos mercados, até nas relações interpessoais. Outra inquietude resulta da opacidade. Há falta de transparência nos sistemas financeiros, nos negócios em que intervém o Estado (veja-se agora o caso de Viana do Castelo). Estivemos quase a ter uma crise perfeita. Sabe o que é?

 

Não.

Crise perfeita é quando os consumidores não consomem, os produtores não produzem, os financeiros não financiam e os trabalhadores não têm trabalho. A inquietude também resulta da imprevisibilidade. Alguém dizia no outro dia que o mais certo é o incerto. Há quem acrescente à inquietude a sustentabilidade financeira, económica...

 

Quando falava de “inconsequência” estava a pensar, por exemplo, que o FMI pode dizer que a receita aplicada estava errada. Mas nada muda.

Bagão Félix disse na televisão que o Governo devia criar uma delegação para ir ao FMI perguntar: “Quais são as consequências práticas disso que disse?” Nenhumas. Isto é a debilidade das instituições de que falava. Como é possível que uma instituição com o prestígio do FMI [a sua directora] dizer aquilo e não mudar nada? Nós, CES, dissemos isso há muito tempo. Não fomos ouvidos pelo FMI.

 

Outra amostra de inconsequência: rebentam escândalos, é um escarcéu momentâneo, toda a gente fica indignada, e nada acontece. Os portugueses deixaram de acreditar que alguma coisa vai acontecer.

É. Um autor dizia que somos geniais na tragédia e na glória. Somos fantásticos em termos de solidariedade. Nos momentos normais, não somos.

 

Não vivemos um momento normal.

As pessoas sofrem de forma isolada. Cada um vai tentando com as redes de solidariedade que tem (a família, sobretudo), [desenrascar-se]. E acham que isto se vai resolver, mais dia menos dia. Ainda não há a percepção na sociedade portuguesa de que isto vai ser para décadas. Esta crise que vivemos é de tal maneira profunda que nunca vamos regressar ao ponto de partida. Teremos uma fase de transição longa até atingirmos novos equilíbrios. Precisamos de ter uma economia a crescer e de fazer uma reforma do Estado a sério. Não é uma tarefa de carregar num botão e resolver no dia seguinte. Os eleitores já não vão na conversa fácil e demagógica. Esta crise teve essa vantagem. Mas a ideia de que a solução vai depender de nós ainda não está suficientemente apreendida.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014

 

 

Rosa Montero

06.05.14

A escrita permite-lhe coser-se, saber-se, estruturar-se. Não enlouquecer. Rosa Montero achava que escrevia sobre perdedores, anti-heróis. Um dia percebeu que, afinal, escreve sobre sobreviventes. Lágrimas na Chuva é o seu último romance.

Nessa noite, Rosa Montero tinha dormido na Casa Fernando Pessoa e parecia impressionada. Qual o seu heterónimo preferido?, perguntei. Não houve hesitação na resposta. A hesitação que corresponde a não reconhecer com facilidade com que Pessoa nos identificamos mais. A resposta foi pronta, ainda que inconclusiva. Rosa Montero gosta da existência de heterónimos. Do desdobramento em personalidades distintas, das suas vidas paralelas. É essa ideia que a toma. Não citou Pessoa uma vez durante a entrevista, mas Vargas Llosa sim, duas.

Passou por Lisboa, depois da Póvoa do Varzim, para apresentar o romance Lágrimas na Chuva. Um livro futurista que nos transporta para Madrid em 2109 e para o ambiente de Philip K. Dick. Há replicantes e “memoristas” (aqueles que concebem a memória e a identidade do replicante), uma replicante que se parece com ela, Rosa, e um “memorista” que acaba escritor, como ela, Rosa. Os replicantes não foram nunca crianças. Ela, de certa forma, também não.

“Gosto muito de anões, há muitos anões nos meus romances. Quem sabe se porque em criança não fui realmente criança e em adulta não sou totalmente adulta.” Rosa Montero é uma escritora que, ao escrever, procura suturar feridas antigas. É uma entrevistadora que, na qualidade de entrevistada, se recusa a falar da infância.

Nasceu em 1951, em Madrid. É colaboradora do El País desde os anos 70, e uma das mais premiadas jornalistas espanholas. Entrevistou toda a gente, em Espanha e não só (conta mais de duas mil entrevistas). Publica ficção desde os 28 anos, está traduzida em várias línguas, vende muito, ganha prémios. Falar com ela devolve-nos uma Espanha em convulsão, na transição do franquismo para os anos da Europa. É o tipo de pessoa que ajuda a rodar o sofá para encontrar a posição certa para a entrevista.  

 

“Diz-me três palavras que te doam.”

Que engraçado… Essa é a pergunta que o terapeuta faz à minha [personagem] Bruna Husky. E foi a pergunta que me colocou ontem a Inês Pedrosa, na apresentação [do livro nas Correntes D’Escritas]. Portanto vou repetir o que disse ontem, porque foi o que disse sem pensar: a crueldade, a morte e a perda.

 

Porquê?

A crueldade põe-me louca. Não o posso suportar. É o horror, o inferno. “O inferno são os outros”, como dizia Sartre. O inferno é a crueldade dos outros.

 

O psicanalista português Carlos Amaral Dias tinha um programa na rádio chamado O Inferno Somos Nós. É outro modo de pôr o problema. Acontece-lhe sentir que o inferno é você, com os seus demónios?

Não. Não sou nada depressiva, mas sinto angústia. Tive três fases de grande angústia na minha vida. Quando tinha 16, 17 anos, quando tinha 21 anos e quando tinha 28, 29. Continuo a sentir angústia, mas isso não seria o inferno. Poderia ser desassossego. O inferno é esse mal seco que nos deixa sem alento, e não o vejo dentro de mim.

 

Como ultrapassou essas crises de angústia? Estudou psicologia.

Não se sabe como é que passa. Noventa e oito por cento das pessoas que estudam psiquiatria ou psicologia fazem-no porque acreditam que estão loucos. O que não é mau. Permite-nos colocarmo-nos no lugar do outro. Eu vinha de uma família pobre, numa época em que ninguém nos levava ao psiquiatra ou ao psicanalista. Nem nos davam um ansiolítico. Senti as crises na pele, sem tomar um único comprimido. Estudando, dei-me conta de que as crises de angústia são como a gripe dos desequilíbrios mentais. É algo muito comum, que muita gente tem.

 

Traduziam o quê?

O medo da morte. O porquê. Cada um coloca as suas questões [à sua maneira]. Vamos aprendendo a perder o medo de ter medo. Sabemos que não vamos enlouquecer, que vamos regressar das crises. Acima de tudo, foi fundamental ter publicado um romance. A escrita é muito estruturante da personalidade.

 

Como assim?

Ajuda-nos a cosermo-nos. Estamos inteiros graças à escrita. Penso que é uma sensação que a maior parte dos escritores tem. Que, se não escrevêssemos, nos desfazíamos, enlouqueceríamos. Mas escrever sem publicar não serve para nada, não sara, não cura.

 

Era o medo da rejeição?, que diminuiu depois de publicar pela primeira vez.

Não diminuiu. Publiquei pela primeira vez aos 28 anos, tive a última crise pouco tempo depois e nunca mais voltei a ter. Ser lida, une-me. Coloca uma ponte sobre uma certa fissura, um certo abismo. Une-me ao resto do mundo e afasta-me dessa sensação alienante e de isolamento. A coisa mais terrível da dor psíquica é a sensação de isolamento agudo, a impossibilidade de explicar o que sentimos a outros. A impossibilidade de comunicação com os outros.

 

O que é paradoxal, sendo uma comunicadora, sendo uma escritora. Não encontrar as palavras certas e os caminhos certos para se comunicar ao outro.

É indiferente que o seja. Tendo escrito A Louca da Casa [2003], sinto que sou uma privilegiada por ter tido essas crises de angústia. Porque me permitiram compreender o que é fazer uma espécie de excursão. Uma pequena viagem, apenas durante o dia; apanhar um autocarro, visitar o outro lado. O lado selvagem, o lado da loucura. Ter estado ali de passagem, só a ver, dá um conhecimento muito maior do mundo e do ser humano.

 

Uma doença de outro tipo marcou a sua infância, a tuberculose. Implicou uma vulnerabilidade física, para começar.

Efectivamente, tive tuberculose dos cinco aos nove anos. Não tenho consciência de que fosse uma coisa especialmente estranha. Quando se é tão pequeno, a vida é assim. É assim e acostumamo-nos. Eu estava em casa, lia, escrevia. Não recordo ter tido tuberculose como uma coisa especialmente má. Toda a minha vida senti pouca fragilidade. Senti ser omnipotente. “Posso com tudo. Pude com a tuberculose.” Depois da morte do meu marido, voltei a sentir a fragilidade daquilo que somos. Mas toda a vida senti que podia passar num bairro perigoso de uma cidade perigosa e que não me aconteceria nada.

 

Na tuberculose, mesmo que disso não tivesse consciência, o perigo estava próximo. Era uma luta com a vida, ou contra a morte – uma coisa física. Não tem que ver com o medo da loucura que sentiu mais tarde. São fronteiras diferentes.

Sim. Absolutamente. Devem existir também predisposições fisiológicas. Sou uma pessoa nervosa, acelerada. Tenho uma coisa, que não é uma doença, que se chama “tremores essenciais”. Significa que tremem as mãos, às vezes, quando estou em tensão, quando não durmo. Herdei do meu pai. Tem vantagens. Uma grande capacidade de concentração, rapidez. Como se constrói a angústia? Tenho as minhas teorias sobre o que se pode passar numa infância... Sobre a minha própria infância, não vou contar o que pertence à intimidade de uma infância, de uma família. Não vou contar. Não acredito que tenha que ver com a tuberculose. Acredito que a tuberculose é um sintoma de outra coisa, como a angústia. Entende?

 

Um resultado da pobreza?

Não.

 

Até que ponto a sua vida foi condicionada por ter nascido pobre?

Por ter nascido pobre, nada. Eu não tive noção do que eram classes sociais até aos trinta anos.

 

Como foi isso possível?

Andava numa escola muito pobre. Todos eram igualmente pobres. A minha mãe e o meu pai, que só estudaram até aos dez anos, são gente culta, naturalmente. Com amor pela cultura. A minha mãe vem de uma família de artistas. Um irmão morreu agora, os outros dois tornaram-se pintores profissionais. A minha mãe era a que desenhava melhor. Mas como era mulher, não estudou pintura. O meu pai era toureiro. Não gosto de tourada, nada. Sou defensora dos direitos dos animais. Devo dizer que a complexidade do ser humano é tal que quem me ensinou o amor pelos animais foi o meu pai. Ser toureiro também era ser boémio. Tanto o meu pai como a minha mãe pertenciam a um registo boémio, artístico, fora de qualquer classe social. Não me passaram a ideia de classe, de que éramos pobres. Não tivemos água quente em casa até aos 16 anos, passávamos muito frio. Era uma vida precária. Mas isso não é o pior.

 

Essa ausência de noção de classes sociais é ainda mais espantosa numa Espanha franquista, onde tudo era estratificado.

Sim. Houve gente que sofreu mais [essa estratificação]. Alucinantemente, eu não. Quando morreu Franco, toda a gente queria parecer hippie, pobre, as classes não existiam. Foi um período divertido. Até aos 30 anos sabia que existiam classes sociais. Mas não me dei conta, pessoalmente, de que existiam. Comecei a trabalhar aos 14 ou 15 anos, no Verão, a atender o telefone de um vizinho advogado. Para poder ganhar algum dinheiro, para poder comprar uma camisola (senão, não podia). Aos 18 comecei a trabalhar como jornalista, porque precisava do dinheiro. Estudava ao mesmo tempo. E isso não me parecia nem heróico, nem mais difícil, nem muito interessante. Nunca me pareceu horrível. A minha vida foi condicionada por milhares de coisas, mas não senti que isso fosse um trauma. Qualquer vida, a sua, a minha, está condicionada. Não há vidas livres.

 

Escreveu no seu último romance: “Eu não sou a minha memória, que além disso sei que é falsa. Eu sou os meus actos e os meus dias”. Não quis ficar presa à memória? A sua construção faz-se nos seus actos, nas suas escolhas?

Isso diz a minha personagem, que renuncia à sua memória porque é falsa, não eu. Somos, em parte, a nossa memória, mesmo que essa memória seja um conto que inventamos. Mas o que diz é interessante, porque, verdadeiramente, tenho a sensação de me ter feito a mim mesma. Nas minhas acções, nos meus dias, contra uma herança que rejeitei desde cedo. A herança sexista, do papel da mulher na sociedade, do que era esperado de mim. Ninguém esperava nada de mim, aliás. Não tinha um ambiente intelectual de onde pudesse recolher alguma coisa. Tenho a consciência claríssima de me ter inventado a mim mesma. De ruptura com o passado familiar, com o que havia, com o que me deram como testemunho.

 

Como é que se fez tão forte, para ser capaz de se construir assim?

Não sei. Deve ser a necessidade, também. Não queria o que via, como opção de vida. Parecia mau, horrível. Adoro a minha Bruna Husky, é a personagem que escrevi mais próxima de mim. Exagerada, como se exageram sempre os personagens. É muito forte e ao mesmo tempo tem uma certa fragilidade, como eu.

 

O que é que escrevia? Quando era criança. Quando tinha crises de angústia. Antes de publicar.

Comecei aos cinco anos, com histórias de ratinhos que falavam, que a minha mãe guardava e ainda tenho. Com 13, 14 anos escrevia contos (tenho guardados, alguns), e começava romances que não terminava. O jornalismo teve que ver com a facilidade da escrita. Sempre fiz jornalismo escrito, nunca fiz televisão nem rádio. Acontece que eu tinha uma grande ambição literária. E continuo a ter. Percebi que algum dia escreveria algo. “Aprenderei. Tenho que aprender! Algum dia escreverei bem, escreverei melhor.” Trabalhava muito como jornalista e escrevia quando podia.

 

Como é que deu o salto para a ficção e a publicação? Conte a história do primeiro livro.

Um editor pediu-me que fizesse um livro de entrevistas, feminista. Eu disse que sim porque era colaboradora freelancer, trabalhava em tudo o que me indicavam. Deram-me um adiantamento pequeno, que gastei. Escrevia muitas entrevistas no jornal El País. Ao fim de uns meses, como ainda não o tinha conseguido terminar, disse-lhe: “Se quiseres, em vez de um livro de entrevistas escrevo um livro de ficção. Queres histórias de mulheres, mas inventadas?” Ele aceitou. E saiu, a Crónica del Desamor [1979]. Fez com que eu escrevesse um romance. Não é um romance, no sentido em que é um romance mau, um romance juvenil. Saiu antes do seu tempo, empurrado pelo tema.

 

O que há nesses anos é que dá voz a outros. Como entrevistadora, está a dar espaço a outros para que transmitam a sua narrativa. Paralelamente, estava a encontrar a sua narrativa, a sua voz?

Habilidosa pergunta, mas não sei se é assim. Como romancista, estou a dar voz a outros – aos personagens – e tenho que encontrar-lhes a voz. Converter-me numa boa romancista, ou pelo menos numa romancista mais madura, [implica] a capacidade de me excluir a mim mesma, e deixar-me atravessar pelas personagens, deixá-las falar. Não pense que há uma diferença tão grande… Há diferença na maneira como me aproximo, no estilo. O jornalismo – que considero um estilo literário – e a ficção são em muitos casos antitéticos. Por exemplo, quanto mais clara e menos imprecisa for uma peça jornalística, melhor. Num romance, a ambiguidade é um valor. O romancista procura a sua perspectiva única, com que contempla o mundo. Uma música. Quer captar uma música que mais ninguém escuta.

 

O seu livro mais famoso, A Louca da Casa, tem um registo autobiográfico. Corresponde a uma voz mais autêntica?

Não é o mais famoso. O meu livro que vendeu mais, em todo o lado, foi A Filha do Canibal [1997], que nem é o meu preferido. Vendeu um milhão de exemplares em espanhol e em outros vinte países. O outro que vendeu mais de um milhão de exemplares foi Te Trataré como a una Reina [1983]. A Louca da Casa é um livro menor, em muitos sentidos.

 

Assumidamente, era um exercício autobiográfico romanceado. Recebeu muitos prémios.

Recebeu, mas os outros também receberam. É um livro híbrido, difícil de classificar. É mais um conjunto de contos. Gosto muito dele, é muito meu, mas é um livro mentiroso. Tremendamente mentiroso! Muitas das coisas que relata não são verdade. Não tenho nenhuma irmã, por exemplo.  

 

Aparece mais numa personagem de ficção como a protagonista de Lágrimas na Chuva [2012]?

Sim. Não tem nada que ver com o biográfico, isso é o menos importante. Uma pessoa que leia os meus romances com atenção sabe, melhor do que eu, como é que sou. Tem que ser uma leitura atenta, inteligente. Não pode ser uma leitura literal.

 

O seu mundo ficcional tem núcleos coincidentes? Marcas que reconhece e que transitam de livro para livro.

Imensos. Isso só se descobre a posteriori. Descobri há apenas quatro ou cinco anos uma coisa essencial sobre os meus romances – são sempre histórias de sobreviventes. O romance do século XX é sobre perdedores, anti-heróis. Eu achava e afirmava, e publico romances há 32 anos, que escrevia sobre perdedores e anti-heróis. Num acto público perguntaram-me o que estava a preparar, e eu disse que estava a terminar um romance sobre um taxista que perde a mulher – Instruções para salvar o mundo [2008]: “Em resumo, uma história de sobreviventes, como todas as outras.” Ouvi-me a dizer aquilo e fiquei pasmada, a questionar-me a mim mesma. Foi uma revelação.

 

Qual é para si a grande a diferença entre um perdedor e um sobrevivente?

Podem ter a mesma vida, externamente. Mas ainda que aparentemente tenha a mesma vida, o sobrevivente não se rende, continua a lutar. E assim muda a sua vida. Muda-lhe o sentido, a forma como a vive. O perdedor é um ser passivo, que se rendeu.

 

Como é que achou que escrevia sobre perdedores se os seus personagens não são passivos?

Os meus personagens muitas vezes são passivos, inicialmente são passivos. Lucía, n’A Filha do Canibal, inicialmente é passiva, e termina tomando nas mãos as rédeas da sua vida. Há outra coisa que aprendi: os meus romances parecem distintos, mas têm uma estrutura básica parecida, consistente. Um personagem, homem ou mulher, que inicia a acção isolado, numa situação crítica, e que ao longo do percurso vai reunindo uma família paralela, de personagens marginais e estranhos, que se revelam mais válidos que os personagens mais ortodoxos e dentro do poder. Essa colecção de amigos, uma colecção freaks, crio-a uma e outra vez nos meus livros.

 

Isso tem alguma relação com o colégio que frequentou, quando finalmente foi para a escola, aos nove anos? Já o descreveu como uma espécie de Bronx. Era frequentado por pessoas pouco integradas socialmente, que começaram por ser uma ameaça.

Não. Em pequena estive fechada em casa porque estava doente, mas quando voltei à escola fiz milhares de amigos. O melhor da minha vida são os meus amigos. Tenho muitos, alguns há mais de 40 anos. Tenho uma enorme capacidade para me envolver com as pessoas. É um dom. O que representa [essa colecção de amigos marginais]? É algo muito profundo e oculto. Disfarçado.

 

Pareceu-me haver semelhanças entre a capacidade de estar com diferente, e constituir uma tribo com ele, e esse momento em que, pela primeira vez, está fora de casa, sem a protecção que se tem em casa.

Eu não me sentia muito protegida em casa. Gosto de ler biografias, e descobri que a maioria dos romancistas tiveram, antes da puberdade, dos 12 anos de idade, uma experiência de decadência violenta nas suas vidas. A morte de um pai, a ruína, uma coisa dessas. Em alguns casos, podia ser uma experiência mais oculta, mas havia uma perda. Vargas Llosa acreditava que estava só, que o seu pai tinha morrido. Vivia como um rei entre um harém de mulheres, que o adoravam. De repente apareceu o pai, tirânico e autoritário, que se tinha separado da mãe, que o envia para um colégio militar. Destrona-o. Vivemos infâncias inadequadas, por uma ou outra razão, e por isso vivemos uma infância na idade adulta que não pudemos viver [quando éramos crianças].

 

Bruna Husky não teve infância. O “memorista” que lhe escreve a memória transporta para ela a sua própria infância; e há um elemento de perda, do pai, aos nove anos.

Exacto. E a mãe do “memorista” suicida-se. Isso ele não dá a Bruna, por piedade. O meu “memorista”, logicamente, terminou como escritor, porque teve uma infância adequada a um escritor.

 

O que fez, desde sempre, foi escrever memórias para outras pessoas ou sistematizar as memórias de outras pessoas.

Sim, sim, sim. Isso divertiu-me muito. Um romancistaé um“memorista”. Porque não? Se eu vivesse no século XXII estaria a escrever memórias para os replicantes. Quinhentas imagens, quinhentas cenas... Que acha? Que cenas recorda [da sua infância]? Não mais de quinhentas.

 

Fez psicanálise?

Estudei psicologia até ao quarto ano, não me interessou mais. E não aprendi muito. Uma boa psicanálise é uma experiência intelectual maravilhosa. Fiz um ano de psicanálise, há vinte anos; foi muito interessante. Depois fiz outro ano de psicanálise, com outra pessoa, há oito anos; também foi muito interessante. E agora estou há um ano a fazer psicanálise, com o mesmo psicanalista; e está a ser fascinante. Foi muito importante para situar a perda.

 

Perda foi uma das palavras que apontou no início da entrevista, quando, reproduzindo uma frase do livro, lhe pedi três palavras que doam. Quais foram as grandes perdas da sua vida?

A maior perda é viver. Já disse isto muitas vezes, e é óbvio. Vamos perdendo tudo. Primeiro perdemos o futuro, a possibilidade de vida, possibilidades de escolha. Vamos perdendo as pessoas queridas, a família, vão morrendo. Amores, dentes, cabelo, força física. Opções. Antes tinha a opção de ter ou não filhos.

 

Posso perguntar porque não quis ter filhos?

Não quis nem deixei de querer. Nunca tive o desejo de ter filhos. Nunca coloquei a questão. Não brinquei em criança com bonecos, brinquei com animais de peluche, nunca me imaginei com filhos. Também nunca disse: “Não vou ter filhos”. Quando cheguei aos 37 anos, tinha acabado de me juntar com meu companheiro, que foi o meu marido; tivemos que pensar nisso os dois, porque tínhamos a mesma idade e poderia não haver tempo. Tentámos, não conseguimos. E foi assim. Não fizemos análises, nem inseminação.

 

Uma criança representa quase sempre uma ideia de inocência e de descoberta. Não por acaso, esta Bruna não teve infância. Nunca foi menina.

Vê? Como digo, parece-se muito comigo. Sou criança sendo adulta. Eu tenho uma mistura grande entre o racional e o fantástico. A imaginação é fortíssima em mim, e é de criança. A criança é quem cria. Um artista tem que ter algo de criança em si, algo puro, inocente, que ultrapassa os limites.

 

Algo que não sofreu ainda? Intacto.

Sim. Uma parte capaz de acreditar. De sentir admiração. De viver emocionalmente sem o superego do intelectual. De entregar-se a cem por cento. Que não tenha vergonha de sentir emoções puras, porque isso é uma maneira de ser livre. Conseguir manter essa criança atrevida, que é valente porque não tem limites... Como um Peter Pan que temos dentro.

 

Agustina Bessa Luís tem um aforismo famoso: “Nasci adulta, morrerei criança.” Condensa um pouco essa ideia.

Que bonito.

 

Perguntava pelas grandes perdas da sua vida…

Perdi o meu marido. Faz três anos dia três de Maio. Tinha cancro, foram dez meses, e morreu. Ainda que não seja excepcional, não deixa de ser muito duro. Em Janeiro do ano passado senti que não estava a conseguir recuperar alguma ligeireza e por isso voltei ao psicanalista.

 

Quando penso em perdas, penso em fracturas. Como quando a Terra se parte e temos blocos tectónicos diferentes. E aí passamos a ser outros.

Só tive essa sensação de fractura com o Pablo, com a sua morte. Dizemos: “Vais recuperar”. Mas não é verdade. Há uma vida que se acaba com essa fractura. No entanto, somos capazes de inventar uma nova vida, que até pode ser melhor. Temos uma enorme capacidade de adaptação, somos sobreviventes inatos.

 

Foi uma criança muito desejada pelos seus pais?

Não faço ideia. Somos dois, o meu irmão tinha cinco anos quando nasci. Sei que queriam um casal, eu fui a menina. Nesse sentido, suponho que foi bom. Mas não tenho uma sensação nem de mimo nem de privilégio. Nem de rejeição.

 

Como era a sua mãe?

É. É uma mulher incrível. Vitalista, tremenda, uma artista sedutora. Capaz de ser o centro das atenções para um monte de gente, porque é muito divertida, com chama. Uma personagem estupenda.

 

Uma personagem ou uma pessoa?

Personagem! A minha mãe é uma personagem estupenda. E tem 91 anos. Que barbaridade, não quero viver tanto. Não quero ser tão velha. Não gosto da velhice. Não queremos morrer. Estamos agarrados [à vida], ainda que seja numa cadeira de rodas. Mas por agora, não, não quero viver tanto.

 

Há uma passagem em que fala de as crianças serem esperadas pelos pais: “Nunca fomos verdadeiramente únicos, verdadeiramente necessários para ninguém. Refiro-me à forma como as crianças são necessárias para os seus pais, ou os pais são necessários para os seus filhos”.

Não só isso. Aquele verso de Wordsworth – “A criança é o pai do homem” – é verdade. Até aos cinco anos há uma construção da possibilidade do ser. Se não fomos tocados, se não fomos suficientemente queridos, há algo que não se constrói depois. É irremediável. Eu, felizmente, tive isso.

 

Teve?

Claro. Se ficamos danificados, nota-se muito. Não sei como explicar-lhe, mas estou a falar de danos verdadeiros. De uma destruição do núcleo básico emocional. E isso, tive de sobra. Agradeço à minha mãe, fundamentalmente. O meu pai trabalhava imenso, coitado, quase não estava em casa. Mas a minha mãe deu-me essa segurança de ser querida.

 

Como é que se traduzia essa segurança de ser querida para ela?

Era muito carinhosa, engraçada, falava comigo, contava-me histórias, contava-me os filmes que via. Era uma grande narradora. Dava-me atenção. Sempre teve jeito com crianças, sempre lhes reconheceu inteligência. (Pode dar voltas e voltas, mas não lhe vou contar a minha infância! [risos] Pode passar a outro assunto!

 

Não estou a dar voltas e voltas. Vou tentando chegar ao âmago, para compreender...

Mas há uma parte que é da minha intimidade, que não vou contar, exactamente por ser íntimo.)

 

O seu pai estava mais ausente, disse. Havia nele esse lado dramático, próprio de um toureiro?

O meu pai deixou os touros quando eu tinha cinco anos. Montou uma fábrica de tijolos, trabalhou como um louco, estava fora 18 horas por dia. Ia numa motoreta, com um jornal metido na camisa para não ter frio, e voltava coberto de pó, desesperado. Foram anos muito maus, havia mau ambiente em casa, angustiante. O meu pai era um homem com força, cheio de valor. Mas muito machista – típico dos toureiros. Eu dava-me muito mal com ele. Fui-me embora de casa, estive um ano sem lhe falar. Depois vim a dar-me bem. Felizmente viveu até aos 84 anos, deu-me tempo para recuperar, ficámos amigos.

 

Pode contar mais da zanga e da reconciliação?

Acho que tinha medo que eu me perdesse, agora entendo-o. Era tão parecida com ele, fazia teatro. Podia mesmo ter acontecido alguma coisa. Foi a época hippie, das drogas. A maioria do grupo daquela época, uns 70%, morreram. Das drogas psicadélicas, que todos tomávamos, alguns passaram para a heroína e depois para a morfina. Nunca passei. Eu era mulher e ele era super-conservador. Quando saí de casa não foi para casar. Envolvia-me, vivia com homens, e isso custava-lhe a aceitar. Foi aceitando quando viu que eu estava a construir uma vida séria, normal, que trabalhava. A partir dos 26, 27 anos começámos a unir-nos.

 

Pouco depois, saiu o seu primeiro romance. Influenciou a vossa relação?

O meu primeiro romance era brutal. Falava sobre sexo, de Deus, de tudo. Não o discutiu comigo. Deve ter sido complicado para ele.

 

Ficou impressionado com o seu sucesso?

Seguramente ajudou. Não num sentido miserável, que o impressionasse que eu fosse famosa, não. Ajudou porque para um homem tão tradicional, católico, que tem uma filha que faz tudo o que ele considerava abominável, que a filha tenha êxito, implica que não está assim tão louca. Que há outros valores, que há quem a apoie.

 

Ele era franquista?

Era franquista requeté (uma forma de franquismo). Como dizia Vallé-Inclan: “Feio, católico e sentimental”. Ele era muito jovem, de uma cidade pequena perto de Madrid, onde se conheciam todos. Quando começou a guerra [civil, 1936/39] foi detido e condenado à morte. Passou os três anos da guerra na prisão e não o mataram. Não tinha feito nada. E assim, foi uma sorte, porque estando na prisão, não lhe aconteceu nada, e não teve que matar ninguém. Quando saiu da prisão, como tinha sofrido represálias, deram-lhe um lugar, um posto na cidade. E ele foi tourear! Tenho um papel em que o despediam ao fim de três meses, com desonra, porque não se tinha apresentado. Podia ter feito carreira política e não quis.

 

Porque é que guarda tudo? Porque é que guarda esses papéis, esses vestígios do passado?

Não guardo tudo. Tenho uma memória terrível, gostaria de recordar-me de tudo. Um dos motivos pelos quais nunca escreverei uma autobiografia é que não me lembro de nada. Tenho uma teoria, justamente para não morrer de medo, que é: talvez não me lembre das coisas porque tenho muita imaginação. O que lhe estou a contar é elementar. A minha mãe tem uma memória esplêndida. Eu, da minha infância, lembro-me de pouco, pouquíssimo.

 

Isso é porque a quis esquecer.

Primeiro, porque tenho má memória e, segundo, porque – e é a única coisa que lhe vou dizer – não gosto da minha infância. Nem é um lugar [onde goste de voltar]. Não gosto nada, nada.

 

O machismo do seu pai não era único na Espanha franquista. Era a cultura de um tempo. Tinha 25 anos quando Franco morreu.

O meu irmão era cinco anos mais velho do que eu, viveu mais o franquismo. Entre 1968 e 1975 a Espanha mudou muito. Entraram no mercado de trabalho um milhão e meio de mulheres que nunca tinham trabalhado antes. Significa que passaram a ter o seu próprio dinheiro, o que mudou também a sua maneira de estar. Eu fazia parte dessa nova Espanha.

 

Como é que, sendo mulher, se conseguiu afirmar num mundo marcadamente masculino, como o do jornalismo, tão cedo?

O meu primeiro trabalho: pedi para fazer um estágio num jornal em Alicante, três meses. Estava no primeiro ano de jornalismo. Quando comecei a procurar contactos em Madrid, muitas vezes me disseram que não contratavam mulheres. E podiam dizê-lo, era legal. Diziam com convicção: “Não. Mulheres, não contratamos”. Lutava, lutava, lutava para que me reconhecessem. Sempre tive uma grande capacidade de trabalho, sempre gostei muito do que fazia, sempre tentei fazê-lo o melhor possível. E fui fazendo. A sociedade estava em movimento. Pequenos tremores de terra que trouxeram o terramoto. Mas não fui a única mulher...

 

Toda a cidade, todo o país, estavam a consolidar a diferença e a abrir-se.

Sim, era maravilhoso. Tive sorte em viver os anos que vivi. A transição foi muito dura. E foi magnífica. Foi o momento de graça da sociedade espanhola, depois de duzentos anos miseráveis. Não tínhamos tido uma verdadeira revolução industrial, nem uma verdadeira revolução burguesa. Nem tinha existido um processo de democratização real. Uma história triste, alienados da evolução, matando-nos uns aos outros, com várias guerras carlistas sempre a repetir-se. Uma tradição caimita [seita fundada por Caim] de matar, de intolerância. E de repente, a sociedade disse: “Vamos fazer um esforço para deixar de ser esta Espanha, para ganhar o futuro.” A direita foi muito generosa, a esquerda foi muito generosa. Por outro lado, a ETA matava 100 pessoas por ano, assassinava. É uma cada três dias. Era uma coisa tremenda. Tinha-se muito medo.

 

A movida dos anos 80, famosa em Madrid, acaba por coincidir com o seu amadurecimento. Participou nela?

Se entendemos por movida o [Pedro] Almodovar e tal, foi sempre analisada desproporcionalmente. Era uma coisa pequena, num movimento geral de um país enorme. O que tinha a movida? Tinha um génio, Almodovar, que, ao tornar-se famoso em todo o mundo, acabou por amplificar tudo o que estava à volta.

 

Porque foi tão boa nas entrevistas, que fez muito?

A questão fundamental, e você entende-o porque também o faz, é ter verdadeira curiosidade para compreender quem é o outro. Uma curiosidade ardente, para levantar um pouco a capa do outro. Uma curiosidade que não avalia, não julga. Se conseguir transmitir esse interesse, sem preconceitos, o outro abre-se. Porque todos queremos ser escutados dessa maneira profunda.

 

Você, enquanto entrevistada, porque conheces os truques, mantém as capas. Decide que capas deixa cair.

Deixo cair umas quantas capas. Mas não todas. Não como entrevistadora que o percebe, mas como pessoa que foi entrevistada montes de vezes. Sou pudica e acredito na intimidade. [risos].

 

A terceira palavra, das que apontou inicialmente, foi morte. Voltei a lembrar-me dela quando disse que os espanhóis mataram-se durante muito tempo uns aos outros. No livro também há muitas mortes.

A grande tragédia do ser humano – e disso fala o livro – é vir para esta vida tão bonita, com tanta vontade de viver, tantos desejos, tantas expectativas, e ser devorado a esta velocidade, pelo tempo e pela morte. O ser humano faz de tudo contra isso. Inventaram-se religiões. Faz-se guerra contra a morte. Mata-se. Faz-se amor contra a morte. Nós, os romancistas, talvez nos dediquemos a escrever porque temos menos capacidade para esquecer que somos mortais. Talvez porque tivemos na infância uma experiência forte de devastação do tempo. Não podemos esquecer que o tempo nos desfaz, temos uma espécie de taxímetro. Tic tac, tic tac, tic tac. A escrever, a morte não existe.

 

Porque o que se escreve fica?

A posteridade não me interessa nada. Mas enquanto escrevo, detenho o tempo. Quando saio de mim mesma, quando estou nas personagens, a morte não existe. O Vargas Llosa disse numa entrevista, quando recebeu o Nobel: “Quando escrevo sou invulnerável.”

 

Como pano de fundo, e cita Shakespeare no livro, “É tudo fúria e ruído”. Escrever é uma maneira de se destacar desse ruído e dessa fúria?

Sim, claro.

 

Domesticar a fúria?

Não diria domesticar. Escapar. Criar uma ilusão de paz e de sentido. Ao escrever, inventamos o nosso passado, a nossa memória, fazemo-lo para dar um certo sentido à nossa história. Para dar-lhe uma aparência de destino. Para poder suportar o ruído e a fúria, o choque sem sentido que é a vida. “Escrevo para tentar conceder ao mal e à dor um sentido que, na realidade, sei que não têm.” Penso que é a melhor definição a que pude chegar durante os meus sessenta anos de vida. Aquilo que digo é o mesmo que diz Braque, o pintor: a arte é uma ferida feita luz. Não só lhe dou um sentido que sei que não tem, como tento retirar do mal, do horror, dessa obscuridade algo de belo. Pelo menos, que não seja tão inútil, tão arrasador, tão atroz.

 

Ferida é uma das palavras que a personagem aponta quando o terapeuta lhe pede três palavras que magoam.

Sim.

 

Em que momentos se comove? O livro chama-se Lágrimas na Chuva. “Duas lágrimas densas e redondas, como gotas de mercúrio, deslizaram, surpreendentes, pelas faces de Bruna.”

Cada vez me comovem mais coisas. Estou cada vez mais mole. Em geral, comove-me a percepção. Compreender a beleza e, ao mesmo tempo, compreender a sua condição efémera, a beleza que não dura. Comove-me a bondade, a solidariedade, a imaginação, a empatia, o desejo do ser humano de se sentir próximo dos outros.

 

E quando é que chora?

Posso chorar muito. Sou uma chorona! A sério, uma llorona total.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2012

 

Ana Jorge

05.05.14

O que é que Ana Jorge tem? Ela é a mulher que sabe ouvir. Também lhe chamam a ministra estrela do Governo de Sócrates.

Escutar, fazer, talvez falar são os seus verbos. Não por acaso, na entrevista, há pausas entre as perguntas e as respostas. Uma pausa de segundos, de quem ouve atentamente, de quem não responde maquinalmente. Não, isto não é chapa cinco.

É raro que um governante se exponha assim, sem filtros. Que conte que cresceu e aprendeu muito fazendo psicoterapia. Que não esconda a insegurança e a timidez. Que assuma as incertezas e que o que diz agora pode não ser verdadeiro amanhã.

O que é que esta entrevista permite? Conhecer Ana Jorge, e aceder a um Portugal rural onde as raparigas não passavam do quinto ano do liceu. E tinham confrontos com a autoridade paterna na adolescência. E que aprenderam, assim, a lidar com o conflito. (Vulgarmente esquecemos que o que somos e sabemos vem de algum lado… E ela lida, hoje, com o conflito de uma maneira particular.)

A entrevista também permite equacionar o que são as mulheres no espaço político. O seu modo de fazer, dialogar, conseguir. Talvez elas, ou ela, não estejam interessadas num jogo de ganhar ou perder. Talvez não seja disso que se trate. Do que é então? Ela responde.

A vida de Ana Jorge seria outra, se não fosse a sua professora primária. A vida de mulheres no Alentejo seria outra se não fossem as consultas na área do planeamento familiar em que Ana Jorge participou. As vidas destas pessoas, pessoas como nós, cruzam-se. No início da trajectória, nada diria que ela seria Ministra da Saúde. Mas é, e popular. No início da trajectória, o que ela quis, foi ser pessoa.

Ana Jorge tem 60 anos, um filho rapaz e duas filhas gémeas. Tem netos. É divorciada. Aqui ficam algumas memórias de uma menina bem comportada.

 

 

Porque é que é pediatra?

É uma pergunta difícil. Fiz a opção por Pediatria a meio do percurso do internato geral. Primeiro, foi a escolha para Medicina que não foi fácil. Só a escolhi no sétimo ano do liceu. Antes disso, inclinava-me para as engenharias ou para as matemáticas. Desisti porque achei que não tinha a ver comigo. Não tinha pessoas com quem lidar. Optei por uma coisa que implicava uma relação humana. Entre a Medicina Interna e a Pediatria, estive relutante. Entretanto aconteceu o 25 de Abril. Eu estava a fazer estágio com uma pessoa que era pediatra, e que me disse: “Tens que ir substituir-me, que agora vou trabalhar para a revolução!”. Foi assim que comecei a trabalhar, em Alenquer, num dispensário materno-infantil. Ganhei o gosto.

 

Queria voltar ao momento do liceu em que percebe que a sua vida, como a queria, passava por estar com pessoas. Porquê isso?

Eu tinha trabalho comunitário, enquanto jovem, na minha terra. Lourinhã. Pertencia a organizações católicas. Senti que gostaria mais de trabalhar com as pessoas, e não confinada a um laboratório.

 

Qual era o background familiar?

Não tinha ninguém licenciado, não tinha médicos nem ninguém dessa área. O meu pai era comerciante, tinha uma pequena, média empresa. Marcou-me muito a minha professora primária. Era uma mulher que não era da terra, casada com um homem com o qual não podia viver, porque Salazar não deixava. Era muito lutadora, algarvia; vivia na mesma rua que eu. Quando não estava na escola, ia muito para casa dela. Ajudou-me a crescer, a ter acesso a revistas. A um meio diferente do da Lourinhã, que era muito mais fechado.

 

Impressionava-a o romantismo e heroísmo dela? Como é que se chamava?

Emília Pessanha. Teve de criar três filhos, sozinha; uma era bailarina, os outros dois estavam licenciados. Heroísmo, de alguma forma. Estamos a falar dos anos 50 – fui para a escola em 54/55. Tinha uma pedagogia diferente do que era o tradicional. Foi um estímulo. Mesmo nos primeiros anos de liceu, houve um apoio, nomeadamente nas escolhas. De ir para o liceu ou para a escola industrial.

 

Se tivesse ido para a escola industrial, o seu destino seria diferente.

Completamente diferente.

 

Ela adoptou-a?

Não. Era uma mulher muito dura, defensora das suas causas. O que senti foi que tive nela um apoio. Sou a mais velha de um casal com dois filhos. O percurso não era fácil. O meu pai tinha altos e baixos do ponto de vista financeiro. Com nove anos, fiz exame de admissão ao liceu, à escola industrial e exame na catequese. Esta mulher era a que dizia: “Vale a pena fazer, vai!”. Fui primeiro para uma escola industrial, estive quatro meses em Peniche, e concluí que não gostava de estar ali. Saía de casa às nove da manhã e havia dias em que regressava às nove da noite. Tinha dez anos. Sozinha. Uma violência. Reuniu-se uma espécie de comité familiar em que a professora entrou, e decidiu-se que eu iria para o colégio da Lourinhã. Privado, do Patriarcado. Entrei a meio do ano, e ela ajudou-me. Mais uma vez.   

 

Conte-me da sua relação com o catolicismo. Acreditava piamente?

Tive uma educação católica e cristã. Tive influências familiares. Mas por minha opção, aos 10, 11 anos, entrei para o Movimento Católico da Lourinhã. Fui militante muito activa.

 

Era uma via de socialização? O que é que a cativava no catolicismo?

Eu tinha prática religiosa, e convicta. Estive envolvida em grupos de jovens, em retiros, em discussões, em campos de férias. Para desenvolver os ideais traçados pela igreja católica, para uma sociedade mais justa, mais humana, mais judaico-cristã. O que me marcou, obviamente.

 

Queria saber o que persiste disso.

Há coisas que aprendi aí e que mantenho. Fui dirigente nacional da Acção Católica, da JAC. Tive compromissos quer no liceu, na JEC, quer na JUC, como elemento universitário. Marcou. No respeito pelo outros, pelos ideais, por aquilo que é o ser humano. Afastei-me em 1971. Não houve uma ruptura abrupta, mas um afastamento progressivo. Alguma desilusão em relação a coisas que existiam à volta da Igreja, não em relação aos ideais.

 

Percebeu com clareza o que queria fazer com a sua vida. Não tem um percurso titubeante, depois logo se vê. O que revela alguma certeza e conhecimento de si.

Como é que eu era? Voltando ao colégio, ou seja, à minha adolescência. Era um meio muito pequeno. Os interesses: a escola. Estava no quadro de honra. Fui catequista anos. Aproveitávamos o aniversário do colégio para fazer uma festa, no Carnaval outra festa. Todos os anos tínhamos um almoço num pinhal, íamos passar um dia às Berlengas (ir de manhã e voltar à noite). Duas ou três pessoas eram as cabeças disto, nas quais eu me incluía. Durante muito tempo era considerada uma menina bem comportada. Era da idade das outras pessoas e as mães diziam: “Se ela vai, tu podes ir”.

 

A sua mãe devia ter orgulho.

Sim. Mas cobrava. Ela não teve a filha que gostava de ter: gostava que eu tivesse sido professora. Ela achava que as professoras tinham uma vida mais certinha do que as médicas. Sem urgências, com fins-de-semana, com um horário normal, mais férias. Aprendi tudo o que as meninas aprendem. Só não conseguiu ensinar-me a cozinhar. Sempre gostei de arrumar gavetas. Aprendi a bordar, a fazer tricot, croché, costura. As coisas que as pessoas aprendiam no meu tempo. Pelo menos na Lourinhã, toda a gente sabia os lavores femininos. E isso era ser bem comportadinha.

 

Ser obediente e poupada: eram características que se esperavam das meninas?

Eu não tinha muito por onde gastar, por isso tinha de ser poupada. Obediente, era um pouco. Era muito reivindicativa em casa. Na escola, não era um cordeirinho. Sempre tentei manifestar a minha vontade. Não era conflituosa. Não sou, nunca fui. Em casa, tive confrontos sérios com o meu pai.

 

O que é que os motivava?

Embora achasse que a filha podia fazer o curso, contrariamente à minha mãe, o meu pai achava que as mulheres não podiam fazer certas coisas. Portanto, eu não podia sair à noite, não andar com determinadas companhias, não podia ir passear para a avenida.

 

Como é que aprendeu a lidar com o conflito? Tem uma maneira particular de lidar com situações conflituosas ou potencialmente conflituosas. Vê-se, hoje.

Sempre vivi mal com o conflito. Tive experiências de grande conflito, muito jovem. É difícil falar nisso, aqui. No segundo ano da faculdade, comecei a fazer grupanálise. Na verdade, primeiro fiz uma experiência na faculdade, depois fiz dez anos de grupanálise, e depois cinco anos de psicanálise. A experiência de viver e lidar, em grupo, os conflitos e os afectos, ajuda a perceber como é que nós somos, como é que lidamos com os nossos afectos.

 

O que é que aprendeu aí?

A conhecer-me melhor, a saber como é que reajo, a saber como é que as pessoas reagem. Em grupo, aprende-se muito sobre o modo como as pessoas reagem: em situação de crise, conflito, tristeza, alegria. Foi uma experiência de vida muito grande.

 

É um desafio diferente fazer psicanálise. Está-se de um para um, e a pessoa fica mais enfiada em si, em quem é. Foi difícil a exposição que a grupanálise implica?

Não. Fazer grupanálise teve a ver com a minha dificuldade de relacionamento com as pessoas. A vinda para Lisboa, sozinha, para casa de umas pessoas conhecidas, para fazer o sexto e sétimo ano, foi violenta. Vinha de uma turma de 15 alunos onde era a Ana Maria para passar a ser a menina número 49 – era como me chamava a professora de Física. Uma despersonalização muito grande. Caí no meio de um liceu (o Dona Leonor) em que, quem caísse, caía. Ninguém olhava para trás. Nessa altura fechei a minha concha. O relacionamento, não era difícil, mas superficial. Era difícil entrosar-me. A grupanálise possibilitou-me falar, partilhar coisas com outras pessoas, perceber que os outros também tinham dificuldades.

 

Era desconfiada em relação aos outros?

Não era desconfiança. Eu não sou como os outros. Essa é que era a dificuldade. Eu não consigo fazer o que eles fazem. Eu não conhecia o que os outros conheciam (línguas, museus…). Por exemplo: os livros chegavam à Lourinhã na biblioteca itinerante da Gulbenkian, e eu lia às escondidas. A leitura não era valorizada no meio onde eu estava.

 

Não percebi ainda o que é que os seus pais valorizavam.

Valorizavam que eu fosse boa aluna e bem comportada. 

 

Quando é que leu as Memórias de uma Menina Bem Comportada, de Simone de Beauvoir? Quando é que o feminismo chegou até si?

Muito mais tarde. Na grupanálise. O Segundo Sexo, também da Simone – li parte, não li todo. Impressionou-me em pequena a vida da Madame Curie. Foi na minha fase de cientista de laboratório.

 

Pensou que tinha de fazer escolhas entre carreira e família? Rompeu para ser uma mulher independente, que investe na vida profissional?

Achei sempre que as mulheres são mulheres, mães e mulheres, e que têm direito a uma vida profissional por causa da sua competência e daquilo que fazem. Eu tenho três filhos, tenho netos, tenho família. Tinha de ter um percurso que me permitisse conciliar as duas coisas. Com muitas dificuldades, grandes opções. Mas não podia deixar de fazer isto porque sou mulher… Só houve uma coisa de que desisti por razões familiares: o doutoramento. Não me arrependo.

 

Acabou o curso em 73. Como viveu o período pré-revolucionário, com o mundo pronto a ser descoberto, e em ebulição?

Comecei a trabalhar em Janeiro de 74 e a revolução foi logo a seguir. Um percurso iniciado numa grande confusão e com uma grande esperança de que tudo fosse diferente, e que a saúde fosse diferente. Não tive um compromisso político, a não ser nas políticas da saúde. Depois, foi a preparação para o Serviço Médico à Periferia, que começou logo a seguir. Na altura, era casada com uma das pessoas que estavam envolvidas nessa preparação; era um ano mais velho. Nós, os mais novos, olhávamos para aquilo como uma coisa de extrema importância.

 

Era um regresso às origens, à província, mesmo que se tratasse de uma outra geografia? Com um estatuto diferente e acreditando que podia intervir na vida das pessoas.

Nunca me afastei da terra de onde sou. No Serviço Médico à Periferia optei por uma terra que não era a minha. Essa ida: estávamos muito próximo das comunidades e tentando responder a uma ideia que defendíamos, e que eu defendia: a saúde é um direito das pessoas. Toda a gente tem direito, pelo menos, aos cuidados essenciais em saúde. Envolvi-me na saúde materno-infantil, no planeamento familiar (que era uma novidade), no desenvolvimento do trabalho nas escolas e cooperativas (estávamos em plena Reforma Agrária) Um trabalho nunca politizado, mas sim com as comunidades.

 

Conte-me uma história desse período.

No regresso da Periferia, as pessoas com quem tínhamos estabelecido muito boas relações deram-nos alguns presentes. Um homem, idoso, que vivia perto de Alcácer do Sal (onde fiz a Periferia), tinha de vir todas as semanas a Alcácer. Era para ele uma coisa difícil e passei a levar-lhe a medicação. Quando me vim embora, levou-me um presente: uma garrafa de água mel embrulhada em papel de jornal. É o presente mais singelo, mais simples…; de quem não tinha nada. (A água mel é a água de lavar os favos de mel e serve para adoçar, em vez do açúcar.)

Chorando, despedindo-se. Outra história: com as mulheres, tínhamos reuniões à noite. Discutíamos os problemas das mulheres.

 

Eram os seus problemas, também? Revia-se neles?

Não. Era capaz de as entender, mas não era uma identificação, propriamente. Eram, como eu costumava dizer, umas reuniões clandestinas!

 

Pensou alguma vez que, se não tivesse estudado, o seu destino podia parecer-se com o daquelas mulheres? Mesmo que tivesse seguido o curso industrial, ficaria confinada a outro espaço.

Nunca senti isso. Não. Por acaso não. Às vezes dava vontade de sacudir: “Acordem para os vossos direitos. Como pessoas. Não é como mulheres”. Mas nunca me passou pela cabeça que pudesse ser uma delas. Se tivesse feito outro percurso, sentiria sempre a necessidade de fazer outras coisas. Fiz sempre muitas coisas ao mesmo tempo. Mesmo na Lourinhã, apesar das dificuldades, tinha acesso a coisas que as outras pessoas não tinham. Por exemplo, sou das primeiras raparigas que dá o salto e vem para Lisboa fazer o curso. As raparigas ficavam-se pelo quinto ano. O grupo da minha geração que faz uma licenciatura é muito pequeno; e não tem a ver com o poder económico. Lisboa era muito distante.

 

Quem é que a põe nesse caminho, lhe injecta essa inquietação?

Diria que fui buscar algumas coisas à mãe e outras ao pai. Mas a pessoa que me faz voar mais longe foi a minha professora. Era a promessa de qualquer coisa. Uma vez contou-me uma história que nunca mais esqueci: começaram a aparecer umas telefonias que tinham um óculo, uma bailarina e uma luzinha. Ainda não havia televisão. Ela explicou-me que íamos ter televisão, e que era aquilo, em grande ecrã, que íamos ver a realidade na televisão. (Eu tinha sete ou oito anos quando apareceu a televisão em Portugal, e só ao fim de muitos anos tivemos televisão em casa). Tenho uma imagem de mim, antes dos seis anos, na sala dela, a ver revistas, que não tinha em casa. Não me lembro que revistas eram. E de muitos livros à volta. Essa imagem está tão marcada que sou capaz de descrever a sala.

 

Conta a sua história como uma sucessão factual. Mas poucas vezes se refere ao ambiente. Como eram os espaços, as pessoas.

[pausa] Há outra pessoa de que não me tinha lembrado, e que é muito marcante na minha infância. É um tio, irmão gémeo da minha mãe. Eu era afilhada dele, tínhamos uma relação próxima. Fui sempre muito mimada por este tio e pelos avós maternos. Lembro-me do colo do meu tio e dos meus avós, e não me lembro do colo da minha mãe. Embora tivesse com ela uma relação próxima e aberta. Este tio talvez me tivesse dado o que a minha mãe não deu: um grande estímulo em relação ao curso que eu tinha decidido tirar. Eu já estava em medicina quando ele morreu. Era um bom vivant. Sempre me contaram as histórias de ele ter muitas namoradas. Mas era muito afectivo e encorajador.

O meu pai era conservador, mas sempre gostou de viajar. Sempre teve alguma inquietação, no sentido de querer coisas diferentes. Nesse sentido, sou mais parecida com o pai do que com a mãe.

 

Tinha confiança em si?

Nem sempre. Ou melhor, eu conhecia-me suficientemente bem, mas tinha alguma insegurança e timidez. 

 

Ainda parece muito reservada e tímida.

Era mais tímida.

 

Como é que passou à acção? Apesar da timidez, estava no quadro de honra, nos grupos católicos. Não estava manietada pela insegurança. O que é que a fazia vencer a insegurança?

O querer fazer coisas. O querer ser pessoa. O achar que as pessoas têm direito a ser consideradas pessoas. A serem reconhecidas. Pelo seu trabalho.

 

A afirmação faz-se pelo trabalho?

Sim. Raramente exijo uma coisa que não saiba fazer. Tenho de experimentar. Até nas pequenas coisas da casa. O que faz com que diga: “Isto pode fazer-se porque eu sou capaz de fazer”. Dizia-se que uma dona de casa, para saber mandar, tinha de saber fazer. É verdade. Leva também ao respeito pelos outros, a não exigir coisas que não se possam fazer.

 

Ainda em Alcácer do Sal: não disse com o que é que sonhava esta jovem mulher. Só falou de trabalho. O que é que pensava para o seu futuro?

Eu teria 25, 26 anos. O meu filho tinha três meses e levei-o comigo. Estava casada. O que eu desejava era ter uma família (um marido, filhos, uma casa) e ter isso equilibrado com uma vida profissional. Cheguei a pensar que não seria possível trabalhar a tempo inteiro… Depois, trabalhei a tempo inteiro e em duplo emprego. Era preciso ganhar dinheiro. E havia experiências profissionais que seria interessante desenvolver. Levei o meu filho comigo porque achei que ele não podia ficar um ano inteiro sem a mãe, ou estando com ela só aos fins-de-semana. Tinha apoio dos avós. Quando eu estava de banco e sozinha, ele ia para o hospital comigo, e as enfermeiras, que tinham uma espécie de camarata, tomavam conta. Ou então ia para casa das pessoas da creche. Mas isto era possível numa vila como Alcácer. 

 

Como, quando, com quem aprendeu a ouvir?

Ouço muito? [riso]

 

Dá ideia. Ouvir é parte do seu segredo?

Aprendi a ouvir no trabalho de psicoterapia de grupo. Treinei-me. O grupo tinha oito pessoas e cada um tinha a sua vez para falar – tem que se ouvir [os outros]. No contacto com os doentes, tem que se ouvir muito. Na Pediatria ainda mais. E tem que se ouvir pais, tem que se dar espaço.

 

Pais ansiosos.

A primeira coisa a fazer quando os pais estão ansiosos é sentá-los e ouvi-los. E não interromper. Treinei isso, também.

 

Essa experiência de saber ouvir tem sido fundamental nestes quase dois anos em que é ministra? Isso e sossegar pessoas em estado de ansiedade.

Sim, mas ouça: fiz outras coisas na vida. Na minha vida de pediatra dediquei-me a um sector de que ninguém gostava. O das doenças crónicas. Ora, tratar uma família com uma doença crónica é estar disponível para ouvir e acompanhar. Aprendi muito com os pais, com as crianças. Obviamente tinha um background, um espaço onde podia falar de mim, das minhas dificuldades, dos meus sentimentos. Tinha um espaço onde podia dizer: “Hoje aconteceu-me uma coisa terrífica”. Aprendi a ser capaz de falar com as pessoas quando estão em sofrimento. No Hospital da Estefânia, criei um espaço onde, quando alguma coisa não corria bem no serviço, se falava disso. Não sobre o facto, mas sobre os sentimentos de cada um dos profissionais.

 

Aprendiam a lidar com coisas terríficas, a dizer coisas terríficas?

Há crianças que morrem. Temos de ser capazes de viver com esta situação – e também somos mães, também somos pessoas. O ser capaz de partilhar isto, e fazer com que falemos destes assuntos, ajuda-nos a crescer. E ajuda-nos a, quando estamos com outros em situações de tensão, não levar a nossa tensão. Ela já está gerida noutro local. Não sei se isto é o segredo, ou uma técnica; é o que podemos desenvolver enquanto capacidade.

 

Trata-se de não atropelar o outro com a nossa história, a nossa narrativa?

Se já me conheço, não tenho de contar o meu caso. Tenho de estar disponível para ouvir os outros. Depois, talvez, possa contar um pouco da minha experiência.

 

Nas conferências de imprensa e nas intervenções públicas transparece uma enorme tranquilidade. Mas ao mesmo tempo, assertividade. Nunca se descontrola?

Eu também grito. Também dou dois berros. Não é o habitual. Mas isso, eu treinei: em situação de crise, de tensão, temos de ficar tranquilos. Depois, logo se vê. Não lhe consigo explicar… Tem a ver com todo um historial de vida, e alguma resiliência. Que é da pessoa. Se olhar para trás, tive situações de tensão que exigiram que fosse assertiva. Apesar de tudo, acho que consigo dominar-me. Tenho algum controlo. Quando me pedem explicações sobre estas situações [da Gripe A], o que é preciso é tranquilizar as pessoas. 

 

A gestão da informação relativa à epidemia da Gripe A foi uma estratégia sua? Decidiu que ia fazer o mesmo que fazia no consultório: sentar-se e falar com as pessoas, usar uma linguagem que elas possam seguir, dizer coisas sensatas?

No dia em que apareceu a epidemia da Gripe A não nos sentámos aqui a pensar: “Agora vamos fazer assim”. Foi pensada uma estratégia, mas não foi pensado que eu ia falar calminha. O que faço aqui é o que fiz muitas vezes aos pais. Durante muito tempo, tive que explicar aos pais que o seu filho ia ficar deficiente para o resto da vida, que podia morrer, que ia morrer, ou que tinha morrido, ou que a doença era grave mas que há sempre qualquer coisa para fazer a seguir. O importante é nunca fechar a porta. Em saúde há sempre qualquer coisa para fazer. Nem que seja ajudar a morrer tranquilamente. Depois, tive aqui algumas ajudas [no Ministério]: “Faça assim, faça assim”.

 

Nunca teve dúvida de que ia conseguir lidar com isto com esta tranquilidade?

Ai tive, tive. Houve alturas, mesmo na fase inicial, sobre a maneira como isto ia correr. Ainda hoje, quando há uma situação de crise, nem sempre percebo, quando me disponibilizo para falar, se no final as coisas vão correr bem. No sentido de esclarecer tudo, de encontrar respostas. Às vezes não há respostas completas para dar. Há incertezas.

 

“Incertezas” é uma palavra que não costuma ir bem com ministros, nem com política.

Pois. Mas há uma diferença: em Medicina, não há certezas. Assumo isso. O que sei hoje, amanhã pode ser mentira. Não há muito tempo, afirmámos uma coisa e 48 horas depois a OMS veio dizer: “Afinal, não é assim”. O conhecimento científico está a mudar todos os dias, e somos confrontados com isso.

 

O que é que mudou, nestes quase dois anos?

Mudou em quê?

 

Em si. É uma pessoa diferente depois desta experiência? Na maneira como percepciona os outros, o poder.

Mudou uma coisa: deixei de poder ir à rua sem ser identificada.

 

Está na fila do supermercado e as pessoas dizem: “Olha, olha a ministra”?

[Abana a cabeça afirmativamente] E ficam muito espantados porque vou às compras, como outro ser humano normal. Normalmente são agradáveis. Mesmo quando contestam – “podia ser assim ou assado” – é dito de uma forma que não considero agressiva. Não há uma agressividade em relação a mim. Em relação ao poder: eu não gosto do exercício do poder.

 

A Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo é só um dos exemplos da sua passagem pelo poder. Porque é que não gosta do exercício do poder e várias vezes esteve em cargos de poder?

São desafios que me põem. E não gosto de dizer que não aos desafios. Não pelo exercício do poder, mas porque são funções que, em determinada altura, acho que tenho obrigação de desempenhar. Obrigação no sentido de exercício de cidadania, como pessoa. 

 

A que se empenhou, há 30 anos, na periferia, na construção de um mundo melhor: é essa que a faz aceitar?

E foi um pouco o que me fez aceitar ser ministra há dois anos. Achei que, em função de uma série de coisas que estavam a decorrer, estava na altura de assumir uma posição. Esta continuidade [no Ministério] tem a ver com a continuidade do trabalho que se estava a fazer.

 

Nomeadamente a reformulação do Serviço Nacional de Saúde (SNS)? É nisso que se empenha?

E a requalificação dos profissionais de saúde. Do seu reconhecimento como factor essencial para a Saúde. São as duas grandes coisas [que me proponho fazer].

 

Quando aceitou, mediu a herança, que não era pacífica, que Correia de Campos lhe deixava? Sentiu isso como uma enorme dificuldade? Ainda por cima, é uma “deles”, faz parte da classe.

Senti. Na altura, não pensei que se acalmasse o sector tanto quanto se acalmou.

 

Diz-se que o estilo é que mudou, que as medidas não são tão diferentes assim. Concorda?

Concordo um pouco. A reforma da Saúde é necessária e importante, até para a existência do SNS. Posso não concordar com uma ou outra medida que foram tomadas, mas que eu até continuei. Mas na essência, no global, estou de acordo. Houve duas coisas – e disse-o publicamente. Por um lado, era o combate aos profissionais de saúde. Eu era profissional de saúde do hospital. Muitas vezes a pessoa sentia-se não-reconhecida. Investe, trabalha, e depois…; uns vão lá buscar o ordenado e pouco mais; outros, muitos, estão lá porque acreditam, porque estão envolvidos, porque querem fazer melhor. E isso não era reconhecido. Era uma das coisas que nos faziam sofrer. Por outro lado, algumas das medidas eram mal explicadas. Medidas que eram essenciais. Não se era capaz de chegar ao outro. É preciso que uma pessoa se ponha no lugar do outro, para perceber o que é que o outro gostaria de ouvir.

 

Que é o que faz?

Faço muitas vezes esse exercício. Mesmo agora. O que é que eu gostava de ouvir se estivesse do outro lado? Pode-se chamar a isto a veia cristã… [sorriso] Mas não, é a veia das pessoas. É o respeito pelas pessoas.

 

A matriz é cristã, mas já não lhe chama assim?

Não tenho dificuldade em assumir que muitas das coisas que aprendi e desenvolvi vêm daí. 

 

A sua imagem de marca é esse sinal, o penteado, os óculos.

Este sinal!, ando há que tempos para o tirar.

 

O que quero perguntar é há quanto tempo tem essa imagem e se isso é uma coisa que a ocupa.

Que tenho preocupação em manter boa cara, tenho. Primeiro para me sentir bem. Se olho para o espelho de manhã e não gosto de me ver, é o horror! Sou um bocadinho conservadora na maneira como visto, e não quero mudar. Mudei qb [nestes dois anos].

 

A verdade é que tem 60 anos e já podia ter tirado o sinal. Há quanto tempo pensa nisso?

Não tenho este sinal há muito e nem tinha dado por ele. A não ser quando cheguei ao Ministério e uns colegas da dermatologia mandaram-me este recado: “Quando é que queres cá vir tirar o sinal?”. Foi por isso que pensei em tirar.

 

Não é possível que olhe tão pouco para si.

Não me incomodava. Os óculos: uso há muitos anos e preciso deles. O penteado: sempre usei o cabelo curto. Porque tinha muito cabelo e forte e armado. [olha para o relógio] Tenho que me ir embora!

 

Que é que tem que fazer agora?

Vou ao Ministério das Finanças. Não vou ouvir, vou ser ouvida!

 

 

Publicada originalmente na Revista Pública, em 2009

 

 

Albano Homem de Melo

04.05.14

O que toda a gente sabe: é um dos três amigos da empresa h3. O tipo dos hambúrgueres. O que foi antes publicitário. Um homem influente que não partiu para o trabalho com ambição. Pedro Bidarra salvou-o de ser um fracasso. A mulher, Sofia, salvou-o de ser infeliz. As palavras são dele.

Houve um tempo em que achou que era um erro grave não saber jogar bem à bola. Depois, não ser inteligente. Agora, não ser boa pessoa. 

Tem 43 anos. É um tipo gregário que faz dos amigos da rua a primeira família. Fora os primos. É um tipo que não é fácil enquadrar. Um trovador fora do seu tempo (expressão que usou para falar de um antepassado Homem de Melo que escrevia poemas). Não quis ter um modo funcionário de viver. Gosta de Alexandre O’Neill. Fez o liceu francês. Fala da estranheza de se estar a mostrar.

Como é a cabeça de um tipo que é um sucesso?

Na entrevista mostram-se as costuras da entrevista. Bagunçou-se o conforto de uma entrevista do costume. Perceberão o que quer isto dizer. As enormes provocações e acasos. Uma entrevista é uma construção. Albano Homem de Melo, “co-autor”, achou que não estava a escrever grande coisa. Angustiou-se. Não é verdade.

Tem andado a pensar sobre o que é a cozinha portuguesa. “Descobri recentemente que a cozinha portuguesa é amarela, esquálida.”

- Essa cor é por causa do bacalhau?

“O bacalhau, o grão, qualquer coisa que faz com que tudo fique amarelado. Os doces de ovos. Os italianos têm o verde, o encarnado. Os franceses têm os castanhos, os gratinados, os dourados.”

 

 

Vamos propriamente começar. Isto foi a entrada. Porque é que se chama Albano?

Porque é que todas as pessoas se chamam Pedro, Miguel, e a mim calhou ser Albano? Foi uma cruz. Tenho um avô Albano. A certa altura coleccionei nomes mais feios do que o meu. Descobri que havia um tipo chamado Libório.

 

E há sempre Hermenegildo.

Já me conformei. Até gosto.

 

Isto serve de intróito para pedir que fale da sua família.

Tive uma infância atípica. Venho de uma família tradicional que não vivia nos bairros onde vivem as famílias tradicionais. Foi uma infância feliz, vivida na rua, em Benfica. Tinha umas mordomias de família abastada, empregadas em casa. Mas não havia dinheiro vivo. Tínhamos uma quinta no Douro, resquícios de outro tempo. O meu pai morreu quando eu tinha 12 anos. Muito novo, tinha 39 anos. Na família Homem de Melo morreu o meu tio, o meu pai e o meu avô no espaço de dois anos.

 

Consequências emocionais do embate da revolução? O fim de uma vida como eles a tinham vivido? O corpo a dar de si?

Não sei. Aconteceu nos anos 1976, 1978. Dos que ficaram vivos, ninguém lamentou a revolução. Tive uns primos que foram para o Brasil. Houve umas empresas que se perderam. Mas não acho que tenha sido isso que matou aquelas pessoas. O meu pai, com um ataque de coração. O meu tio, com uma leucemia. Os meus avós, outras doenças.

 

De certeza que se interrogou sobre o detonador daquelas mortes. Um acontecimento trágico, perder o pai tão cedo.

Vivi com um prazo. Achei que aos 39 anos ia morrer. Não tomei muitas decisões em conformidade. Fui tendo filhos, casei. Quando os meus filhos fizeram doze anos lembrei-me: “Era assim que eu era quando o meu pai morreu”. Coincidência: o meu pai morreu no meu dia de anos. Passei esse dia com ele.

Somos uma família muito grande. Os empregados faziam parte da família. O Mendes vinha do norte, de uma família de recursos baixos; talvez por ser fisicamente o mais fraco ficou o intelectual. A certa altura vendia echarpes italianas no Chiado. Eu acompanhava-o.

 

Echarpes?

Echarpes italianas. Tínhamos uma relação muito engraçada, o meu irmão, eu e ele. Fazíamos teatro, circo, missas. O Mendes tinha 60 anos. Brincava connosco. De fato e gravata, no chão.

 

Era um tempo de transição, incorporando códigos da sua família e do que o país começava a ser. Como Benfica.

Hoje as vidas são mais todas iguais. Sou fruto de uma amálgama um bocado esquisita. Os meus amigos eram filhos das porteiras e eram filhos das melhores famílias. (Melhores famílias no sentido do apelido. As famílias são todas boas.

 

São? E isso aprendeu quando? A sua mãe é Bonneville. O pai é Homem de Melo.

A maior parte dos meus amigos não têm nomes sonantes.

 

Defina boa educação.

Boa educação é estar atento. É ser delicado com as outras pessoas. Não ser egoísta e centrado em si próprio.) A coisa que mais gostei de ter herdado do meu pai foi uma biblioteca. O meu pai era economista, tinha estudado na Suíça, era cliente assíduo da Buchholz. Isso, sim, são heranças.

 

A sua família procurava arrumá-lo numa gaveta, numa condição social, num percurso profissional?

Eu não correspondia a nenhum estereótipo. Não tinha uma vocação clara. Era um nabo nos computadores. Estava despreparado.

 

Achava que não era grande espingarda? A isso chama-se falta de auto-estima.

A auto-estima tem picos. A certa altura achei até que podia ser presidente do mundo. Tive uma depressão que durou um dia. “Tenho a mania que sou o maior. Com 23 anos já há uma data de malta a fazer coisas extraordinárias.” Tinha amigos óptimos. Já namorava com aquela que é a minha mulher, que me fez o homem mais feliz do mundo. Achava que isso me ia bastar.

 

Estudou Direito.

Nunca chumbei a nenhuma cadeira. Sabia que no dia em que chumbasse, desistia do curso. 

 

Não era nada por causa disso. Não queria era decepcionar a sua mãe.

Pensei tirar Filosofia. A minha mãe insistiu entre Economia e Direito. No dia em que acabei disse-lhe: “Mãe, já tem o curso tirado. Exerça! O curso é seu.” [riso] Ainda fiz um leve estágio com um tio meu. Mas não entreguei os papéis. Para não ter um plano B. No meio disto um primo meu apresentou-me ao Pedro Bidarra, que, depois de falar duas horas comigo, comentou que eu não era completamente destituído. Ofereceu-me um estágio na EPG, uma agência pequena. Deixou-me andar por lá e tinha uma cadeira.

 

“Mostra lá o que vales?”

Sim.

 

Foi a primeira vez em que teve, francamente, de mostrar o que valia?

Eu tinha tido uma carreira – abandonada – desportiva. Já fumava imenso. E não era bom o suficiente. Mas não tinha tido necessidade de mostrar alguma coisa. Acho que sou melhor quando os olhos sobre mim são bons. O Pedro, que considero o meu mestre e que mudou a minha vida, deu-me essa oportunidade.

 

Começou a fazer anúncios.

Para mim aquilo eram umas frases. Uma coisa que faço bem. Que me sai. Descobri que tinha um talento para fazer qualquer coisa. Achei que não tinha.

 

Como é que não sabia?

Sempre escrevi. Em retrospectiva percebo que na infância e juventude tinha já algumas das características que depois revelei a trabalhar. Capacidade de liderança, de juntar as pessoas, de entusiasmar. Criatividade. Mas para mim isso tinha zero a ver com trabalho.

 

Faltava-lhe um propósito? Uma coisa frequente quando se nasce bem. Como se a rede estivesse sempre lá. É preciso sentir a ponta do arame?

Sim, sim. Por um lado, é mais fácil quando se sente a necessidade de fugir à fome ou a qualquer coisa dura. Mas tinha de me fazer à vida. A minha família não tinha dinheiro para me sustentar muitos anos sem trabalhar.

 

O Bidarra é de Psicologia. Se calhar é por ter uma formação e um percurso atípicos que é tão original e por muitos considerado o maior publicitário português dos últimos anos.

Por mim também.

 

A originalidade do ângulo é determinante? O que é que ele achou, no seu caso, que era uma mais valia e que traduziu na frase: “Não és completamente destituído”.

Quando fui falar com ele não sabia sequer que havia agências de publicidade e que havia anúncios e que havia quem os fazia. O Bidarra achou graça ao facto de eu ter um curso de Direito e querer ter outra profissão. Foi-me elogiando imenso. “Há ali um Albano que tem imenso jeito”. Fez-me ganhar a auto-estima de que precisava.

A outra coisa que aprendi é que havia um trabalho que era puxar pela cabeça. Ter ideias que doessem. O Pedro era exigente e eu também. Primeiro é um jogo. Depois as coisas não saem fácil. Saem depois de escrever muito, de descrer muito. Uma coisa em que pensava: “Que grande aldrabão que sou. Pagam-me um balúrdio e não consigo ter uma ideia para um anúncio.” Depois lá vinha a ideia, e era mais um alívio do que uma satisfação.

 

Estamos a falar de uma coisa que tem dez, quinze anos. Parece que falamos de uma outra vida, longínqua.

Olho para essa como uma outra vida. Houve um momento em que olhei para o meu currículo. Nunca tinha feito um currículo. Nunca tinha sido preciso. Tinha ganho uns 300 prémios! Não tinha noção. Fiquei a olhar-me como quem olha para outra pessoa.

 

Está a fazer género. O mercado deu-lhe sinais de reconhecimento, sob a forma de prémios, dinheiro, contratações.

Para ganhar esses prémios e esse dinheiro (acho que durante anos fui o publicitário mais bem pago do mercado) nunca me puseram tarefas fáceis. Devia estar a aprender a ser copywriter e já era director criativo. Isto na Young&Rubicam.

 

De que foi presidente, muito novo, e cedo.

Passado um mês os aviões chocaram com as Torres [Gémeas]. Um mercado que era maravilhoso passou a ser péssimo. Eu não percebia nada de ser presidente. De repente tinha de despedir 40 pessoas, ganhar doze contas num ano.

 

Três campanhas de que goste. Três ideias de que se orgulhe.

Uma campanha de Natal para a Telecel em que pus o Pai Natal a desaparecer do filme. Era: “Mais para a esquerda, mais para a esquerda...”. Gostei de fazer a campanha do Limiano. O queijo que era feio, difícil de cortar. Um produto sem muita personalidade.

 

Um queijo, um produto sem personalidade?

Um queijo da serra é um queijo importante. Um queijo-bola encarnado é um queijo que as mães dão aos filhos para comerem leite. Uma campanha de Timor, em que participou o Gonçalo Morais Leitão, na altura da invasão indonésia. Fomos buscar imagens de massacres e fizemos postais nos quais estava escrito: “Very typical”. Era um pedido para as pessoas não irem de férias para esse sítio. Ganhou um Leão em Cannes.

 

Destaca campanhas low budget porque nessas o que aparece é a força da ideia?

É. É criar impacto com menos recursos.)  

 

Quando é que apareceu o vendedor de echarpes italianas nesse processo? Ou seja, quando é que apareceu o menino no publicitário?

Apareceu muitas vezes. O que vejo é que passei a infância a brincar. Brincar ajuda. Com 20 anos ainda jogava às escondidas na rua. O Bidarra dizia que mesmo de gravata eu andava com a camisa de fora. Sou distraído. Sou capaz de aparecer com uma meia de cada cor. Não sei onde ponho o carro.

 

Faz uma certa composição do personagem distraído.

Não. Sou! Perco-me a vir do Algarve para Lisboa.

 

Onde está a sua cabeça quando se perde?

Muitas vezes está a ter ideias. De trabalho. Muitas vezes está nas pessoas de quem gosto. Está muitas vezes com a minha mulher. Digo-lhe várias vezes que ela me salvou de ser infeliz.

 

Já o disse nesta entrevista.

Já? Salvou-me. Não é que fosse um triste, vestido de preto pelos cantos, a amargurar. De fora era um tipo normal que jogava à bola e que tinha amigos.

 

Era um melancólico.

Se calhar era. E ela veio dar-me não sei quantas coisas que eu não sabia que existiam. Tornei-me uma pessoa muito melhor por olhar para ela, que é um ser iluminado.

 

Está a dizer isso para ela ler e sorrir.

Não. Sou um discursivo. Quando gosto muito das pessoas digo muito que gosto delas. Hoje em dia mais. Penso que as pessoas gostavam de trabalhar comigo porque eu olhava mais para elas do que para mim. Engraçado. Fui tendo sempre um reconhecimento sem o reclamar. Estou a dar esta entrevista hoje – estranha. Estou a dar esta entrevista porque a minha mãe me pediu.

 

Eu falei à sua mãe, que conheci num jantar, apenas para pedir o seu telefone. As outras pessoas a quem o pedi não o tinham. E já não estava ninguém no escritório. Pura casualidade.

Por causa do h3 dou mais entrevistas do que dava enquanto publicitário. Estava mais entretido a fazer as coisas do que ocupado a construir um personagem. Não gosto de criar um personagem que não domino. Gosto de inventar histórias, no anonimato.

 

Nunca se domina o personagem público. Mas quando se tem alguma notoriedade é inevitável que ele exista. E já agora que é criativo que ele tenha uma grande narrativa. Não?

No h3 fizemos uma identidade a três, os sócios, os grandes amigos. Tenho tantas coisas para fazer, tantos livros para escrever, tantos negócios para fazer... Criar um Richard Branson – que deve ter copywriters a escrever-lhe uma biografia aventureira... Não estou interessado.

 

Mas quer ser o autor da sua própria biografia. Aventureira à sua maneira.

Sim. Vou mudar de vida várias vezes ao longo da vida. Disso tenho a certeza. Acho que vou acabar a escrever.  

 

Comecei por perguntar porque é que se chama Albano. A outra possibilidade que trazia para começar era: do que é que precisa absolutamente para começar uma outra vida?

Preciso de pôr um fim mental a esta que tenho. Não ponho essa hipótese agora. Isto está a começar, fizemos cinco anos. Está muito por fazer.

O conforto é uma coisa de que gosto, pelo qual luto. Mas a certa altura faz-me mal. Fiz os inter-rails. Não sabia onde ia dormir no dia a seguir. Depois fui para casa de um amigo holandês, milionário; pocket money, um carro óptimo, uma casa como nunca tinha visto. Só no dia em que o carro avariou em Amesterdão e não sabíamos como voltar para casa, em Haia, é que a viagem para mim começou. Na publicidade, estava na BBDO, a melhor agência. Abdiquei de estatuto e ordenado. Precisava de sentir o medo de não saber o que ia fazer a seguir. Não é masoquismo.  

 

O que é que procura nesse desconforto? O desafio de o resolver? Uma superação de si?

É. Mas não é para me pôr à prova. Detesto pôr-me à prova. Nem comemoro no fim. É o desconforto pelo desconforto. Preciso de fazer coisas difíceis. Espero não ficar auto-satisfeito.

 

Voltando à questão: do que é que precisa para começar amanhã? Da urgência?

Vai ser fatal [que a história se repita]. Mas tem de ser radical o suficiente para não saber se vou conseguir.

 

Põe a hipótese de não ser um sucesso?

Ponho. Tenho que pôr. Precisava que este negócio fosse um sucesso para ganhar dinheiro. Não tinha dinheiro suficiente para viver o resto da vida. Então, que é que vou fazer a seguir? Escrever livros. Não anúncios, mas livros. E se calhar ser um medíocre escritor.

 

Fale-me dos livros que o marcaram.

Escrevo ficção. Mas o que eu leio não é ficção. Leio poesia, ensaios. Fernando Pessoa. Gosto da realidade e de ser eu o artista que olha para a realidade. Ninguém inventa histórias tão boas como as histórias que estão na realidade.

 

Um destes dias, se a sua mulher o deixa, você está tramado.

Estou. Preciso dizer isto: vivo a vida feliz, com três filhos maravilhosos.

 

Tem fama de bem comportado. Nem se lhe conhecem drogarias e os excessos que se associam ao mundo da publicidade.

Não me vestia à publicitário. Não sou um certinho, mas não preciso de andar a violar regras para mostrar alguma coisa. Realmente preciso dela para viver os dias todos.

 

Estava a fazer-lhe uma enorme provocação para ver como reagia. Se lhe via o mínimo de desconforto ou desagrado. Apenas sorriu.

Tenho a certeza de que é para sempre. Perguntávamos aos meus avós porque é que eles eram tão felizes; respondiam: “Combinámos ser felizes”. A Sofia e eu também temos essa combinação. Acho que nenhum dos dois vai falhar.

 

Quando saiu da publicidade disse que precisava sentir o risco. Criou uma empresa num tempo incerto, no crescendo para a crise de 2008.

Nascemos no 7 do 7 de 2007. Não sou o típico bom empresário. O António [Cunha Araújo], o Miguel [van Uden] e eu: os três resultamos num bom empresário. O Miguel é organizadíssimo e um gestor de pessoas óptimo. O Tó é uma pessoa habituada ao risco e um empreendedor, um tipo que vai para a frente. E eu sou um criativo. Arriscámos o dinheiro que tínhamos e o que não tínhamos (pedimos algum emprestado). Tínhamos uma fezada que a coisa ia correr bem. Felizmente correu. A minha necessidade do risco é pessoal. Há uma história epopeica: largou tudo para fazer um novo negócio. Fazer um bom anúncio era de uma transcendente importância. Mas eu ia começar a tornar-me um mau publicitário. Havia um fracasso que eu antecipava.

 

Estava também a caminho dos 39... Idade perturbadora na sua história. Tinha um cutelo em cima de si.

Tinha um cutelo, tinha. À minha volta apareceu um coro grego. Tive uma dor no peito, nos anos do meu filho. A minha mãe obrigou-me a ir a 20 médicos. A minha mulher obrigou-me a ir a 20 médicos. Andava com um problema de coração. Durante dois meses, desenganadíssimo. Achava que ia morrer aos 39, que batia tudo certo. Até que um médico me perguntou: “Levou uma bolada?”. “Levei.”. Era só uma coisa muscular. [riso] A primeira vida estava feita – a tal em que morria aos 39. Depois ia viver a segunda. Muito parecida com a primeira na parte mais estruturante. Não mudei de família.

 

Não se admitiria o falhanço nesta nova vida...

Não. Não por mim. O meu medo sempre foi o de falhar com as outras pessoas. Com quem me deu emprego. Com o Bidarra que acreditou em mim. Com os meus sócios. Esse medo de falhar, de desiludir as pessoas, tenho-o. E não quero ser o elo mais fraco.

 

Quais são as características que fazem de si um dos melhores?

Tenho facilidade em resolver problemas com algum brilho. Acho que sou um bom gestor de pessoas; faço boas equipas e as pessoas entusiasmam-se. Sou bom a organizar processos. Não perco um segundo com coisas que não sei fazer.

 

O seu sucesso, que o Expresso sublinhou recentemente ao considerá-lo um dos 100 portugueses mais influentes...

Era eu que estava ali, mas somos os três.

 

O seu sucesso é o sucesso do homem normal. Competente, ambicioso, mas normal. Como se não fosse preciso ter um carisma transbordante para ter sucesso. Ou acha que é um special one?

Há bocado estávamos a falar da composição do personagem. Esse personagem, nunca o vendi assim. Não sou special one. Se perguntar às pessoas que trabalham comigo se acham que sou especial, se calhar vão dizer que sim. Acham mais eles do que eu. Eu acho que faço o que tenho de fazer. Tenho de entregar o que tenho de entregar. Sou talvez mais rápido a ter ideias do que as outras pessoas. Como era a jogar futebol. São as duas características que tenho.

 

E agora uma pergunta que devem estar sempre a fazer-lhe: qual é o segredo da vossa empresa? Um verdadeiro study case. Abriram dezenas de lojas em vários países em cinco anos, num contexto de crise severa. Há teses de mestrado sobre o vosso modo de funcionar.

O segredo: algum desassombro a olhar para o mercado. O mercado de hambúrgueres seria o último em que as pessoas iriam entrar. Existe a McDonalds e a Burger King. Segundo: a composição dos três sócios, com características complementares. Começámos a pensar logo nisto em grande. Juntámos pessoas com valências estranhas no negócio da restauração. Pessoas do marketing que têm cursos de Geologia. Temos agora um sócio para a parte internacional, o Henrique Lima Freire, que era engenheiro e consultor da KPMG. Todas a puxar para o mesmo lado. E sentem que se tiverem uma ideia cá dentro ela pode florescer. Tudo isto tem ganhos de eficiência e de moralização. Que as pessoas sejam felizes aqui dentro. Isso é produtivo. É um negócio feliz. É um negócio do bem.

 

O que é que diria para animar as hostes? O país está deprimido, num sufoco, sem horizonte. A vossa empresa mostra que a palavra empreendedorismo é possível mesmo neste contexto, mesmo num país como Portugal.

As pessoas interessam-se pelo h3 pela improbabilidade que é conseguir ganhar dinheiro num negócio que não existia. Rapidamente passou a ser óbvio. Há um sem número de coisas não-óbvias que estão lá. É preciso ser observador, teimoso.

 

E fazer perguntas diferentes? Interrogar de diferentes modos a realidade.

Sim. Se tivéssemos comprado os serviços de uma consultadoria eles iam dizer-nos para vender comida asiática ou saladas. Existe uma expressão nos negócios: benchmark. Basicamente é copiar o que alguém já fez. Copiar? Como sempre vivi de ideias originais faz-me muita confusão copiar o que quer que seja. É amoral. Em Portugal há um sem-número de coisas para fazer. Fazemos tantas coisas mal... Há a possibilidade de fazer bem.

Começámos com um fracasso. Com um restaurante na Avenida da Liberdade, de que toda a gente gostava. Boa comida, empregados simpáticos, um espaço bonito. Mas não era um bom negócio. Onde é que podíamos ganhar dinheiro? Fomos para os centros comerciais – onde as pessoas comiam.

 

Você comia em centros comerciais?

Não. Mas fui ver. O que é que comiam, o que é que deixavam nos pratos. O que é que nos apeteceria se estivéssemos a comer num centro comercial com pouco tempo? Havia algum decreto a impedir que se servisse boa comida nos centros comerciais? Não. Fizemos contas. Se houvesse uma comida de que as pessoas gostassem, com um custo de matéria prima barato, muito rápido, era possível. Trabalhámos um ano no papel. Apontámos para fazer disto, não o melhor hambúrguer de Portugal, mas o melhor hambúrguer do mundo. E com mais pinta.

 

Quando achava que era o melhor do mundo, achava que era quem?

Tinha uma professora que me dizia: “Tens a mania... Se calhar não vais ter sucesso nenhum na vida”. Que é uma coisa horrível de se dizer a um miúdo de 14 anos. Algum valor intrínseco, eu achava que tinha. Para mim, ser o melhor do mundo é tentar ser o mais feliz do mundo.

 

E o romance sai quando?

Não sei se é romance. Já escrevi estórias pequeninas, poesia. Funciono bem por encomenda. Qual é a encomenda que me vou pôr? Se me mandar escrever qualquer coisa, eu escrevo, e não sai mal. O exercício seguinte é fazer-me uma encomenda e sair bem.

 

Parece precisar sempre de alguém que toma conta e lhe pede contas. Às vezes parece um miúdo.

É. E como não quero falhar, faço. Tento ser um menino bonito. Saltei de uma infância para o estado adulto sem ser jovem. Não tenho a vivência da rebeldia, contestatária da família. Nunca me tinham dito que funciono como um menino bem comportado. Mas é assim.

 

A sua mãe, que esteve na origem desta entrevista, ainda que por caminhos ínvios, vai reconhecer este filho?

A minha mãe é a primeira publicitária da família porque faz muita propaganda dos filhos. (O meu irmão é um tipo cheio de qualidades. Gosto muito dele). Parece aquela mãe do Woody Allen que aparecia no céu a atazanar o filho [New York Stories]... Acho que vai reconhecer-me, sim. Falamos muito. Falávamos mais, antes. Desde que nasceram os meus filhos, a coisa ficou mais focada neles. Cada pessoa olha de um lado. Vou tendo surpresas sobre mim através dos olhares que as pessoas vão fazendo.

 

Os seus filhos vão reconhecê-lo?

Sim. Os meus escritos mais amalucados, dou-lhos a ler.

 

E agora enxertamos uma segunda parte da entrevista, feita dois dias depois da primeira. Uma entrevista é um diálogo entre duas pessoas. Vou propor-lhe o exercício de fazer um diálogo de si para si. Uma auto-entrevista.

Fez-me na conversa anterior muitas perguntas sobre o sucesso. Se eu era movido pelo sucesso. Vejo claramente duas fases na minha vida. A vida depois da publicidade, em que comecei a ter algum sucesso profissional, e a fase errática anterior em que vivi momentos estruturantes. Eu era para ser jogador de futebol.

 

As pessoas da sua classe social não são jogadores de futebol profissionais.

Tive esperança até aos 22, 23. Ao mesmo tempo, fui cumprindo o curso de Direito. Fui fazendo cadeiras. Não usei esta forma moderna de fazer cursos. Para compor o orçamento, fiz trabalhos inconsequentes. Um deles foi escrever resumos de telenovelas para o jornal A Capital. Fi-lo com pouquíssimo profissionalismo. Como achei que estava muito mal pago para ter de gramar com três novelas por dia, usei como expediente ligar a uma tia que via as três novelas. Até ser despedido. Um coro de velhas ligava para o jornal porque nada batia certo. Boicotava actrizes de que não gostava. A Lucélia Santos, a Escrava Isaura. Quando a apanhei era a Sinhá Moça.

 

Está a falar de uma certa manipulação da realidade, ficcionando sobre ela. Já tinha dito que a realidade é mais interessante que a ficção.    

É. Fiz também jornalismo desportivo no Diário Popular. Basicamente trabalhei em jornais que fecharam a seguir. Fiz um ano de artigos n’ O Independente, que fechou também. No jornalismo desportivo fiz grandes matérias: cobri o arrelvamento do Sacavenense, o quadragésimo aniversário da Federação Portuguesa de Ginástica e estreei-me com a chegada do rally paper dos farmacêuticos à Torre de Belém.

 

Faz isso sabendo que é um caminho errático. O que é que aprende nestes trabalhos de ocasião?

Desse percurso ficou bastante. Fazia um exercício diletante. Andava na fase de ocupar o tempo. Perdido. Fui também trabalhar nas obras na Alemanha Democrática. Pouco tempo. Havia a associação de amizade Portugal-RDA que organizava uns intercâmbios. Para que os portugueses pudessem assistir à magnífica construção da sociedade da Alemanha Democrática.

 

A que propósito se vai meter com uma associação e um país comunistas? Na sua família houve pessoas que foram para o Brasil no pós-revolução...

Tinha uns amigos de esquerda. Um deles é agora nosso sócio, está no Brasil a abrir o h3. Conheci nas obras um cubano que era guionista de filmes pornográficos e assaltava hospitais a pedido.

 

Ficou com a ideia que eu tinha um especial interesse no seu sucesso e nos mecanismos do seu sucesso. É também por ser um homem de sucesso que o estou a entrevistar. Mas o que me interessou foi tudo o que esteve até ao sucesso. Os pequenos parafusos que fazem com que depois a máquina funcione. Voltando à auto-entrevista: que outras coisas quereria ler sobre si?

Vale a pena pensar fora da caixa. Irrita-me na política, nos debates, que as pessoas exercitem pouco a cabeça. Parecem um grupo de sábios a dissertar sobre um moribundo. Fazem um exercício descritivo. “Estou a ver um moribundo a espernear. O moribundo está a pedir ajuda. O moribundo portou-se muito mal. Não devia ter feito isto e assado.” Se alguma coisa a crise devia fazer era compelir as pessoas a ocupar o espaço público com ideias.

 

Somos pouco temerários?

A atitude das pessoas perante a crise é religiosa. Primeiro é um castigo que temos de sofrer, e depois há uma redenção que achamos que vai acontecer. É uma atitude passiva, outra vez. A oportunidade exige esforço, recomeçar. Exige não usar expressões como benchmark ou “lá fora faz-se”. Portugal tem vantagens. É um país minúsculo. Dez milhões de pessoas: até dava para combinar o que se deve fazer! Nem devia haver luta de classes...

 

O que é que os portugueses temem tanto quando temem o risco? Isto cola com a necessidade que manifestou de experimentar o desconforto.

Não gosto de fazer juízos morais. Eu tive sempre algum conforto e quis sempre bagunçar esse conforto. Não sei se as pessoas que têm menos têm de se agarrar ao menos que têm, se lhes fica mais complicado mudar. Isto serve de metáfora para um país que é pobre? É porque já experimentaram a pobreza que lhes faz confusão abdicar do pouco que têm? Portugal há 50, 60 anos era muito pobre. As pessoas queixam-se muito, mas têm dos melhores hospitais do mundo, escolas com ginásios e laboratórios. Valeria a pena repensar e recomeçar algumas coisas do zero. Não nas vidas individuais, mas na vida do país. Arriscar. O maior risco hoje é não arriscar. Se não arriscarmos, isto vai ter uma morte lenta, e vem alguém de fora tomar conta. A Troika. Os chineses e os angolanos a comprar tudo, é isso. Somos vulneráveis até a pessoas que não têm dinheiro. Os espanhóis compraram metade de Portugal com dinheiro que não tinham.

 

O que é que descobre em si na zona de desconforto?

No desconforto sinto a vida mais presente. Como se a vida estivesse ali e não se pudesse desviar o olhar. Se calhar os sentidos todos têm de estar mais alerta. Nos momentos de conforto a música é suave. Mas é uma necessidade pessoal. De vez em quando preciso de não ter nada ou menos ou de ter a perspectiva de perder tudo. Rascunhar numa página que já está cheia de gatafunhos, a certa altura, aborreço-me.

 

O que é que constituiu uma perda significativa?

Um amigo. Leucemia. Da minha geração. O meu pai. Perdi horas de sono quando tive de despedir pessoas na Young. Fiquei mais velho.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2012

 

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