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Anabela Mota Ribeiro

Manuel Luís Goucha

30.06.14

A primeira vez que o vi, num dia abafado de fim de Verão, estava sentada numa secretária de um quarto andar a tentar disfarçar o melhor que podia o nervosismo e o calor. Estavam outras pessoas na sala, uma sala de produção que frequentaríamos insistentemente nos dois anos seguintes. Julgo ter notado que era mais alto e mais corpulento que o imaginava, e que estava moreno e de boa disposição. Lembro-me, sobretudo, da circunstância de ele cravar os olhos em mim, segundos depois de ter virado a porta, e ter perguntado ao mesmo tempo que avançava «Quem é esta menina?». Ele, que perguntava isto imaginando que eu era eu, a tal e tal e tal que ia fazer-lhe companhia nas manhãs da RTP. Era o Manuel Luís Goucha.

Passaram quase seis anos. Seis anos é sempre muito tempo na vida de uma pessoa, muito mais quando ela está a virar os quarenta. A vida passa a ser outra, é o que me dizem e eu acredito.

Ele desnuda-se nas páginas seguintes, mantendo um véu sobre a sua sexualidade, desvelando todos os outros poros. Nasceu em Lisboa há 45 anos, mudou-se para Coimbra ainda menino. Foi actor, foi cozinheiro. Desde há seis anos, é líder das manhãs da televisão portuguesa. Como julgo que concordam, é o melhor no seu segmento.

 

 

Que sensação estranha, ser entrevistado por uma ex-colega... Há pouco, quando vinha no avião, pensava que não podia fugir muito, porque me conheces bem.

 

Eu pensava nas coisas que sei e que não são contáveis.

Claro que vou fugir a algumas questões que são inabordáveis!

 

O que distingue o espaço público do privado?

O espaço privado só tem a ver com a minha sexualidade, com as pessoas com quem vivo, com as pessoas que amo. O lado público tem a ver com a profissão e com tudo o que a rodeia.

 

Quando nos conhecemos, demorei algum tempo a apreender a tua verdadeira essência; não só porque é, normalmente, um trabalho demorado, mas também pelas barreiras que colocas à tua volta. Perguntei-me se isso não aconteceria pelo facto de trabalharmos juntos.

Cada vez sou mais selectivo. Podem ser amigos ou pessoas com quem trabalho. Questiono-me se não me estou a tornar demasiado bicho-do-mato. Cada vez dou mais importância ao meu silêncio.

 

Na equipa que trabalha contigo, tens amigos íntimos a quem fazes confidências?

Há pelo menos duas pessoas no Porto que partilharam sempre das minhas alegrias e fracassos. Mas curiosamente, cada vez partilho menos. Talvez por estar mais equilibrado: mais calmo, mais tranquilo, mais seguro. Penso que se nota na apresentação do programa que estou mais sereno, que as coisas são mais saboreadas, e estou numa boa fase afectiva.

 

Uma das primeiras impressões que tive, foi que a tua exuberância era uma forma dissimulada de apresentar a tua carência afectiva.

A minha amiga Beca Amaral, que é dada às astrologias, diz que somos em público o ascendente e em privado o signo. O ascendente é o Leão, que gosta de uma corte, gosta de se exibir e reinar, mantendo uma certa distância. No seu íntimo é Capricórnio, o ser solitário, contemplativo. Esta leitura coincide com a minha maneira de ser. Se não quisesse aprofundar mais as coisas, isto já me bastava.

 

Interessa-te aprofundar?

Interessa-me saber porque sou assim. A sensação que tinha quando trabalhava contigo, e reconheço que era um pouco primária, é que havia do meu lado uma espécie de duelo.

 

Parece que fazemos as pazes nas páginas de um jornal!

Nunca acredito muito em parelhas, no que quer que seja. Dois galos no poleiro, não dá. E sempre achei que eras igual a mim, que havia que duelar (não sei se existe a palavra, mas pronto!). Hoje não faz sentido: estou no «Santa Casa» com a Sónia (Araújo) numa situação de igualdade e, apesar da tendência para centralizar e me evidenciar, tenho as coisas mais resolvidas. Se trabalhasse contigo agora, seria muito diferente. Estou mais equilibrado e sereno; já não tenho de provar nada a ninguém, mesmo que tenha outros desafios pela frente.

 

Não consigo imaginar-te há uns anos a assumir e confessar uma coisa destas.

Penso que foi a partir do 500, do programa 500, quando toda a crítica se rende e começa a dizer muito bem de mim, quando percebo que há um trabalho que consigo fazer bem. (pausa) Eu sou uma pessoa ciumenta. Sou muito impetuoso, coração ao pé da boca, e quando me sento a pensar e a racionalizar, compreendo que não há razão para o ciúme.

 

Estruturalmente és possessivo, e tremendamente dominador.

Tenho de dominar tudo, ser dono e senhor da situação. Sou um mau elemento de uma equipa; sei trabalhar em equipa, desde que a apresentação seja minha. Quer dizer, discuto os assuntos em produção, nunca imponho a minha vontade se não houver um consenso quanto aos convidados, não sei quê não sei quantos. Agora, na maneira de fazer o programa, tenho dificuldade em delegar. Tem a ver com uma capacidade centralizadora que vem desde criança. Sempre fui muito metido comigo. Fui uma criança velha.

 

Uma criança velha?

Não brincava com os outros meninos. Fechava-me em casa a fingir que era apresentador de televisão. Com oito anos, sentava-me no sofá e inventava entrevistados ao meu lado. Falava com eles em português e francês. A outra brincadeira era recortar os bonecos dos livros de histórias que me davam, montar pequenos palcos com caixas de camisa e fingir que estava a fazer teatro. O que é muito curioso é que vim a ser actor e apresentador de televisão. Ah, e era uma criança filho de pais separados, neto de avós separados, quer maternos quer paternos, sobrinho de todos os tios separados.

 

É uma situação invulgar numa cidade de província há 40 anos atrás. Foi estigmatizante?

Não, sempre lidei muito bem com isso. Na escola ou no liceu, havia os meninos com pai e mãe e família constituída, e eu achava que era diferente: tinha mãe e padrasto, que era uma coisa divertida, mesmo que não me desse muito bem com ele. Não podia estar traumatizado por uma coisa que nunca tive.

 

Nunca tiveste o pai e a mãe juntos?

Não há nenhuma memória, por mais longínqua que seja, que associe o meu pai à minha mãe. Separaram-se tinha três anos. Não posso ter saudades de uma família que nunca tive, nem sei o que é. A família nunca foi um valor importante na minha vida. Sempre me cumpri sozinho. Aos 17 anos estava em Lisboa em casa de um tio, a trabalhar num escritório, o gabinete português de medalhística.

 

Tens um irmão.

O meu irmão teve uma infância normal, brincadeiras de bola com os rapazes, casou e teve filhos: uma vida normal. Dou-me bem com ele. Os Natais, éramos quatro gatos pingados: a minha mãe, o meu irmão, a minha avó e eu. Os melhores Natais da minha vida foram quando comecei a sair para fora do país, sozinho.

 

Há a coincidência do teu aniversário ser no dia de Natal. Ou seja, nunca comemoraste as duas festas anuais que as pessoas vivem mais efusivamente.

Passei a ter festa de Natal e jantar de aniversário muito adulto. As noites de Natal mais divertidas foram na EuroDisney à meia-noite, molhado que nem um pinto, no labirinto da Alice no País das Maravilhas. Outra foi há três anos na Abadia de Westminster na Missa do Galo. Outra foi há dois anos em Amesterdão num concerto de músicas de Natal, todos a cantarem em holandês e eu a fazer playback, só abria e fechava a boca.

 

Sozinho.

Sozinho e felicíssimo!

 

Todas essas coisas só são compráveis com dinheiro. Aprendeste a estar sozinho com a força dos anos ou iludes a solidão com estes presentes?

Gosto de estar sozinho, gosto de viajar sozinho. Há tantos anos que vivo sozinho... A solidão não me pesa, mesmo quando tenho relações afectivas.

 

Não há nostalgia alguma do conceito de vida normal?

Não. Nunca me passou pela cabeça constituir família, sequer. Já tive relações estáveis de onze anos, mas sempre com muita vontade de ter o meu espaço e tempo para mim. Vontade de ter filhos, nunca tive. Nem sou bom tio.

 

Quando levaste um sobrinho à Disney, foi para lhe proporcionares o passeio aquele mundo ou foi uma parte de ti que se realizou e projectou naquela criança?

Foi um companheiro de brincadeiras. Naquela altura, sou tão puto como ele. É um sobrinho que tem afinidades comigo, uma criança velha, muito metida consigo mesma. Mas a raiz é a minha mãe. Às vezes pergunto-me, no dia em que essa raiz faltar, como é que vai ser. A partir dela, que é o porto, sinto-me muito bem só no mundo. Só no mundo..., não é bem só!, tenho os meus amigos.

 

O que significa que ela é a raiz?, que lhe telefonas todos os dias?

Significa que tenho muito orgulho naquela matriz. Herdei da minha mãe a rebeldia, o inconformismo, o arrojo nas atitudes. A minha mãe era há 45 anos uma mulher só, com dois filhos, no ambiente tacanho de Coimbra. Como na altura não havia o divórcio, nem sequer se podia casar e amantizou-se com o meu padrasto. Amantizada e sempre de cabeça erguida. Tem 76 anos e fala abertamente de tudo comigo, inclusive da sua sexualidade! Aos 74 anos a minha mãe admitiu que havia traído o meu pai, (o meu pai já a havia traído 500 vezes). Traiu o meu pai pelo homem que mais amou na vida, que era um violinista! (risos) Isto foi num almoço no Porto e o meu irmão, que tem menos dois anos que eu, estava horrorizado, horrorizado pelo facto da minha mãe estar a desvendar a sua sexualidade! A minha mãe perguntou se me tinha chocado e respondi que estava contentíssimo por me revelar aquilo. Até perguntei, «Vai lá fazer as contas para casa para ver se não sou filho desse violinista»!

 

Quer dizer que não querias ser filho do teu pai.

Os pais não se questionam. O meu pai não soube ser meu pai, mas foi pai do filho da segunda mulher dele. É meu pai apenas porque me deu o nome e foi uma das duas pessoas que me fizeram. Não soube ser meu pai porque naquela altura os divórcios não eram coisa amigável. Penso que a minha mãe ainda hoje o odeia.

 

Que tipo de relação manténs com ele?

Nenhuma. Terei visto o meu pai 50 vezes ao longo da minha vida. Duas ou três vezes terão sido férias e depois terão sido encontros muito esporádicos. É um senhor agradável. Quando penso na minha família, a figura do pai nunca lá está.

 

Foi diferente quando passaste a gozar de notoriedade pública?

Não. A única coisa inevitável era as pessoas perguntarem-lhe o que me era, porque se chama Luís Goucha. Sei que tem algum orgulho em mim. Liga todos os Natais a dar-me os parabéns.

 

Do que é que se fala com um pai uma vez por ano?

São conversas de aniversário, «Gosto muito de te ver, parabéns», «Obrigado, pai, até um dia destes». Não tenho nada para dizer! O amor não nasce assim, em meia dúzia de encontros fortuitos. Do meu pai herdei a capacidade de trabalho, se bem que a minha mãe era uma fantástica trabalhadora. Aí aos 30, 35 anos, quando cortei o cordão umbilical, resolvi tudo isso. Uma coisa é sair de casa, outra é cortar o cordão umbilical.

 

Saíste de casa aos 17 anos, em ruptura.

A minha mãe não me apoiou muito, tinha uma relação de grande poder sobre mim. Quem sabe se não havia ali uma relação edipiana? Eu vivia apaixonado pela minha mãe. A ruptura dos 17 foi normal: ela queria proteger-me, debaixo das suas saias, e eu queria ser actor, queria ser conhecido. Já em criança, quando me perguntavam o que queria ser quando fosse grande, nunca dizia que queria ser bombeiro, polícia, padre. Dizia que queria ser conhecido. E isto era uma necessidade de afirmação qualquer, estranha. Talvez não o tivesse consciencializado, mas era, porque a minha mãe não me dava muita atenção. Era cabeleireira e trabalhava das nove da manhã às onze da noite para nos garantir o que achava que era o melhor. O melhor passava pelo jardim-escola, pelas roupas iguais às dos meninos mais ricos.

 

Vocês davam-se com meninos ricos?

O Jardim-Escola João de Deus há 45 anos era um privilégio. Em Coimbra, no bairro onde vivia, fui o primeiro a ter televisão. Mas não tenho nenhum amigo da escola, não ficou cá nada. A minha vida só começou a ser muito interessante a partir dos 28.

 

Regressemos à vinda para Lisboa. O que é que aconteceu?

Venho trabalhar para o escritório de um tio, irmão da minha mãe, e fiquei em casa da minha tia, (eles eram separados, tudo é separado na minha família!). Também aí entrei em ruptura, e fui para empregado de livraria.

 

Acreditando, tal como nas histórias hollywoodianas em que os actores começam por servir à mesa, que aquele era só um caminho para a fama?

Exactamente! Isto foi em 71, 72, 73. Em 74 dá-se o 25 de Abril, aparecem os grupos de teatro e fui-me oferecer a uma companhia desmontável ao cimo do Parque Eduardo Sétimo, o Teatro do Povo. Passo para o Teatro do Nosso Tempo e logo a seguir para o Ad Hoc para fazer revista. Durante dez anos fui actor de teatro.

 

Como sobreviveste nesses anos?

Quando saí do escritório e da casa da minha tia, fiz a via sacra dos quartos alugados, com muito pouco dinheiro para comer. Ia para casa da Io Appoloni e fazíamos esparguetadas apenas com tomate. Tínhamos uma receita, eu e a Ana Bola, de batatas, mais batatas, mais batatas, com molho branco, molho branco, molho branco, e aquilo sabia a tudo o que tu quisesses! Sabia a lagosta, desde que imaginasses. 

 

A contingência do dinheiro marca a vida toda.

Sobretudo naquela fase, em que ser actor era muito periclitante.

 

Nunca a ponto de pensares desistir e optar por uma vida normal?

Não. Era incapaz de estar num escritório nove horas seguidas. E que tipo de conversas têm os trabalhadores de escritório! Queria era conversar sobre as coisas bonitas da vida, não propriamente sobre um prato de caracóis.

 

Estás rico?

Não, de todo.

 

É verdade que ganhas milhares de contos por mês?

É verdade que trabalho todos os dias e que sou bem pago pelo meu trabalho. Isto tem de ser visto transversalmente: entre os apresentadores de televisão não sou, de maneira nenhuma, o mais bem pago. Estarei dentro dos medianamente pagos. As despesas são a dobrar, as despesas do Porto são minhas: aluguei uma casa, tenho um motorista a quem pago ordenado. E sou muito consumista, confesso. Gasto muito dinheiro a viajar, a ver espectáculos lá fora, a jantar em restaurantes com amigos. O meu conforto passa por aí, não passa por um grande carro ou por uma casa com piscina.

 

Quando querias ser conhecido era precisamente esta vida que imaginavas?

Já fui insuportável!, muito vaidoso de ser conhecido e de aparecer nas capas das revistas. A fama inebria um bocadinho. Agora acho uma treta. O que me dá gozo é o meu trabalho, e até queria passar despercebido.

 

Ora, essa é uma ideia chique que está em voga.

Gosto muito de ser figura pública porque faço um trabalho que me dá muito prazer. É inevitável ser figura pública, mas o que gosto é de conversar com aquelas pessoas e saber que vou para um estúdio bem preparado. Tenho orgulho em mim pelo facto de ser bom profissional. Não imaginas os estados de felicidade que tenho quando estou numa mesa cheia de papelada, a cozinhar o programa todo, e a pensar «Que grande programa vamos ter amanhã!». Tornei-me mais humano neste programa [«Praça da Alegria»].

 

Que pessoas gostas de entrevistar?

Gosto muito de entrevistar mulheres, muito, muito, muito! As mulheres são muito mais autênticas em qualquer área. É talvez uma sensibilidade feminina que eu tenho, capaz de casar com as convidadas de todas as idades. As mulheres expõem-se mais, não têm medo do ridículo. Um médico, um advogado, um arquitecto, têm medo do ridículo; um pescador não tem. Na minha opinião não são só as mulheres das camadas populares que não têm esse medo.

 

Tens medo do ridículo?

Muito. Policio-me constantemente, porque estou tão sinceramente à vontade... Sou muito feliz naquelas horas. Espero nunca sofrer da síndrome de aparecer ou não aparecer na televisão. O que vale é que sou igualmente feliz noutras pequenas coisas. O medo do ridículo pode ser fazer figuras tristes, mesmo em público. Perguntam-me se há o personagem Manuel Luís. Há. O drama é perceber onde é o personagem e onde é o Manuel Luís verdadeiro.

 

Porque é que achas que fazes tanto sucesso, que o programa faz tanto sucesso? Será, sobretudo, pela identificação com o público-alvo?

O sucesso do programa tem a ver com a verdade. Entrevisto de igual maneira um ministro e um pescador. Mais, um pescador fascina-me, um ministro nem tanto, porque está ali a vender um produto, sei perfeitamente o que vai dizer, e o pescador surpreende-me. É também um programa que faz companhia, que procura combater de uma forma positiva a solidão. Há pessoas que encontro na rua e me dizem «Você é a única família que tenho».

 

Não deixa de ser irónico que tu, que não fazes o culto da família, desempenhes esse papel junto do teu público. Tinhas também, enquanto espectador, os personagens televisivos que eram a tua família?

Não. Quando via televisão, queria era ver os aplausos que vinham depois das peças de teatro. O que queria era estar num palco, fechar-se o pano e receber os aplausos. Fui um mau actor, porque nos dez anos de teatro o que mais gostei foram os aplausos! 

 

Quem gostarias que te aplaudisse?

Nunca se têm os aplausos todos, mas agora já não é assim. Sinto que já fui muito aplaudido, até pela crítica. Renderam-se ao profissionalismo, ninguém pode dizer «O Manuel Luís não está preparado». Quando se leva muita porrada, como levei nos «Momentos de Glória», passa-se a relativizar as coisas. Hoje uma crítica negativa não me deita muito abaixo. Sou capaz de corrigir algumas coisas consoante as críticas, desde que concorde com elas e sejam pessoas que percebam de televisão. Um elogio também não me envaidece. Estou em estado de graça há cinco anos mas ninguém me garante que no dia que faça um outro projecto, não me espalhe. E beneficio da idade. Aos 45 anos já não sou mais o puto cozinheiro que foi brincar de apresentador.

 

Quando é que te livraste do rótulo do cozinheiro?

Aos 500, aos 500. Foram precisos 500 programas para dizerem bem de mim. Hoje, curiosamente, já ninguém fala da culinária.

 

Que relação tens com a cozinha?

Sempre afectuosa. Cozinho para dar prazer a mim próprio ou aos amigos. Profissionalmente, tenho muitas ideias para fazer livros de culinária, mas não tenho tempo. Entrei para a televisão pela porta da cozinha, entrei a comunicar através da cozinha. Se quisermos encontrar um ponto comum, é a comunicação. No «Sebastião Come Tudo» e no «Gostosuras e Travessuras». Depois, no Porto, o pontapé de saída foi-me dado pelo Manuel Rocha e pela Luísa Calado num programa que se chamava «Ponto de encontro».

 

Como é que, ao cabo de dez anos de teatro, te mudaste para a televisão?

Através de um jornal, que era o «Sete», e de uma mulher que se chama Maria João Duarte. É por isso que digo que ela é também minha mãe. Tenho uma relação filial com algumas mulheres que marcaram a minha vida, abriram-me as portas certas nos momentos certos. A Alice Vieira, no meu tempo de teatro, é importantíssima, foi a primeira a entrevistar-me como actor. [pausa] Esse é outro segredo do meu sucesso: a relação filial com as mulheres. Quem é o público do programa da manhã?

 

Tu és o filho.

Ainda por cima sabem que não sou casado. O meu público é essencialmente feminino e tem entre 45 e mais de 65 anos. A faixa das tias e das avós. Com os homens é mais complicado. Em relação à Maria João Duarte; eu ia ao «Sete» levar as notícias da minha companhia de teatro que eram redigidas por mim. Numa das nossas conversas confidenciei que gostava de cozinhar e ela perguntou-me «Porque é que não começas a escrever aqui no «Sete» sobre culinária?» O Luís de Sttau Monteiro, que fazia a coluna de gastronomia sob pseudónimo, havia saído e aquele lugar ficou vago. A partir daí tudo começa.

 

Foi aí que começaste a ganhar dinheiro?

Só começo a ganhar algum dinheirinho para viver melhor quando vou para a televisão.

 

Começar a ganhar dinheiro marca decisivamente a tua vida?

Não. Nunca fiz depender do dinheiro nenhuma decisão.

 

Porque aquilo que mais gostas na vida que tens agora, dos espectáculos no estrangeiro à casa com vista para o mar, só é possível quando se ganha muito dinheiro.

Ter dinheiro era, por exemplo, dar-me ao luxo de parar. Não posso, quando não trabalho não ganho. No dia em que parar seis meses deixo de ter dinheiro, só vou gastando. A casa na Foz com vista para o mar não é um luxo; foi a última casa que vi naquele dia e pela qual me apaixonei. É uma casa no prédio do Miguel Veiga.

 

É uma afirmação social, ter uma casa no prédio do Miguel Veiga?

Não ligo nenhuma a isso. Gosto muito do senhor, tenho conversas muito agradáveis com ele, mas não tenho uma postura de arrogância social.

 

Eu admiro as pessoas que conquistam sucesso profissional e financeiro exclusivamente à custa do seu trabalho, e, nesse sentido, presumi que fosse significativo teres uma casa no prédio do Miguel Veiga.

Talvez já tivesse sido assim, há muito tempo que não é. Gosto de me afirmar pelo meu trabalho, e à custa do meu esforço, mas não gosto de me afirmar por razões monetárias. Até acho que falar de dinheiro em público é uma questão de muito mau gosto. Sou incapaz de dizer «Ai que bela gravata!, custou tanto».

 

Trata-se de um pudor muito próprio de quem tem dinheiro.

Mas eu não tenho dinheiro!, tenho dinheiro para as coisas do dia a dia!

 

Agora que tens 45 anos, começas a precaver a velhice?

Ainda não. Sou muito de viver o dia a dia. Gosto é de ter dinheiro para as minhas viagens, onde se gasta muito.

 

Evitas pensar na velhice?

Se era uma criança velha e agora sou um quarentão rejuvenescido, acho que vou ser um velho gaiteiro fantástico! [riso] Só quero ter saúde, com saúde consegue-se tudo. Não sei se digo isto por ter 45 anos ou por sentir mesmo, mas no meu dia a dia de trabalho sinto «Ainda bem que tenho 45 anos». Por muito que me documente sobre tudo, há referências que vêm de trás, há um capital acumulado de experiências. Só agora é que percebo porque é que os grandes apresentadores americanos têm 50 e muitos.

 

Tens medo de uma velhice solitária?

Não, se tiver saúde e, aí sim, se tiver algum conforto monetário.

 

Estava a pensar em pessoas.

Pois. Espero ter alguém do meu lado a cuidar de mim. Neste momento sou capaz de ter. Amo uma pessoa de quem sou fã.

 

Normalmente a outra pessoa é que te admira, tu és o elemento dominante na relação.

Esta pessoa admira-me e eu admiro-a. Estamos juntos ao fim de semana. A relação dura há dez meses.

 

Que importância atribuis à vida afectiva para o teu bem-estar?

Dou mais importância à vida profissional. A emocional só funciona se a profissional funcionar. É o motor de toda a minha vida.

 

E se estiveres desequilibrado emocionalmente?

Já chorei baba e ranho antes de ir para o ar e aquela luz acende-se e passa tudo! Sou de chorar baba e ranho, de fazer cenas de ciúme! Sou um exagerado, e muito teatral até nisso, um espectador de mim mesmo. Sou capaz de chorar, pôr um disco da Amália, o «Lágrima», para chorar ainda mais, e depois vou a correr a um espelho para ver que grande plano de televisão se poderia fazer comigo a chorar! Tu achas isto normal? Não é! Aos 38 a minha psicanalista disse que tudo o que me magoa, esqueço rapidamente. Tenho muita dificuldade em falar das coisas passadas porque não as lembro; portanto, nada me magoa. Tudo o que me magoa, limpei da memória.

 

As coisas que magoam nunca aparecem à superfície?

Nunca. Estão muito, muito fundo. Quando falo da minha vida afectiva, não me lembro que vivi onze anos com uma pessoa, não ficou nada. É passado e sou um homem de futuro. Ainda no outro dia arquivava recortes sobre mim e dizia «Para quê?, se nunca pego nisto! Para que é que tiro fotografias nas viagens se nunca abro os álbuns?» Talvez um dia, aos 70 anos, quando viver só. Quero ir para a frente e sempre a melhorar. Não olho para trás.

 

Não é o passado que ajuda a compreender o presente?

Pois. No Porto, como não tenho vida social, estou mais entregue a mim, aos meus pensamentos, e pergunto-me «Porque é que sou assim?» Há muito pouco tempo é que comecei a perceber porque não tenho um conceito de família. No dia a dia não evoco o passado. Só o evoco quando me sento, predisposto a evocá-lo por qualquer razão, para me ajudar a compreender alguma coisa do presente. Saudades?, não tenho. O que está feito, está feito. O dia de amanhã é o que mais me interessa. É também por isso que já não levo muito a sério esta coisa da fama. Quero é divertir-me.

 

Quais são os teus prazeres?

Viajar, comprar discos, comprar livros, passar horas na Fnac, (adorava que as Fnac’s fossem só para mim, sem ninguém a olhar para mim), ver cinema. O meu prazer quando viajo passa por ver teatros e concertos e património. Os meus prazeres passam pelo aconchego da casa, sobretudos, cachecóis, lareira, frio.

 

É uma visão muito romantizada do conforto. Porque é que gostas tanto de roupa?

Gosto de cores, tecidos, texturas. Gosto de roupa de Inverno, principalmente. É uma visão romântica, é. Por isso gosto mais do Porto. O Porto tem neblina, nevoeiro, lareira, mantas. O prazer pode passar pelo chocolate quente, champanhe, vinho tinto, doces de ovos, e passa por conversar com pessoas que me digam alguma coisa.

 

Preocupas-te muito com a imagem? Porque é que cortaste o bigode?

Num fim de semana em que fui a Genebra, reparei que as pessoas que pior falavam na rua, com o pior palavrão que possas imaginar, eram portugueses de bigode! Gosto de me ver sem bigode e de cabelo curto, mas a imagem não é uma obsessão. Em termos profissionais, sou um produto com prazo de validade; se um dia não gostar de me ver, não recuso fazer alguns acertos que me valorizem, sem perder expressão.

 

Como te olhas nas fotografias em que aparecias de blazer vermelho?

Acho-me pavoroso! Naquela altura, usava-se o vermelho, o amarelo, o azul-bebé. Os gostos vão mudando. Gosto de roupa, gosto de gravatas e de fatos. Gosto de me sentir bem de manhã.

 

O que fazes à roupa quando deixas de a usar?

Dou tudo, dou ao meu irmão, dou a instituições.

 

Continuas a tratar da tua roupa?

É uma mania desde miúdo. Posso ter a roupa muito passadinha pela empregada, mas de manhã tenho de a passar toda! Sou eu que passo as minhas camisas e as minhas calças, porque tenho de sair de casa sem uma ruga que seja. A partir do momento em que saio sem uma ruga, sento-me normalmente e amarroto-me ao longo do dia. Sou muito organizado: trato da minha roupa, faço as minhas compras.

 

São os vícios da auto-suficiência, dos anos em que não podias ter uma pessoa que se ocupasse disso?

São os bons vícios. Comecei cedo a ser auto-suficiente. Isto prende-se com a nossa conversa inicial, com o duelo de apresentadores: não gosto de partilhar tarefas quando posso fazê-las sozinho e bem. É esta vontade de centralizar tudo, de liderar. Acho que tenho capacidade de liderança.

 

Houve uma altura em que disseste não desdenhar a hipótese...

De ser político. Aí não tinha a ver com a liderança, mas com a vontade de fazer coisas para os outros.

 

Dada a tua popularidade, imagino que já tenhas sido assediado para projectos políticos.

Não recuso dar a cara por pessoas que emotivamente me digam alguma coisa. Vou sempre pela emoção. Sempre assumi que gostava da família Cavaco; curiosamente gosto deles pelo conceito de família que têm, unida, indestrutível. Já dei a cara pela campanha do Fernando Nogueira, que me inspirava carinho, e com uma mulher, (sempre a mulher), redonda, que me dava vontade de lhe dar beijinhos.

 

Esta entrevista acabou por ser o que imaginavas?

Não tinha imaginado nada, só tinha pensado na coisa estranha de ser entrevistado por ti.

 

 

Publicada originalmente no DNa do Diário de Notícias em 1999

 

 

Marta Crawford

26.06.14

Nas sessões com casais que a procuram, faz perguntas do tipo: “O seu marido costuma tocar-lhe no clítoris durante a relação sexual”. Nos livros que assina, responde a questões como: “Gostava de ter um vibrador, mas tenho muita vergonha de o comprar”. Na entrevista, revela coisas como: “Mesmo que o discurso seja contrário, que saibam da importância dos preliminares, a verdade é que na situação o que importa é o pénis-vagina”.

Marta Crawford fala sem tabus. Licenciou-se em Psicologia e especializou-se em sexologia. Tornou-se conhecida do grande público no programa da TVI “AB Sexo”. Colaboradora regular da comunicação social, publicou dois livros em que fala sobre o inesgotável enigma que é o sexo… Numa linguagem simples e clara.

Conversámos numa esplanada, a dois passos do consultório. Tomou um café. Revelou a segurança e determinação que lhe conhecia da televisão. E naturalidade. É uma mulher bonita que diz “movimento masturbatório” com a mesma facilidade com que se diz “hoje está um lindo dia”. E porque não haveria de dizer?

 

 

Num dos seus livros, transcreve um pedaço de uma sessão com um casal; aí se lê que a maneira de os homens dizerem que gostam das mulheres é através da procura sexual, e a maneira das mulheres é a das palavras.

A maior parte de pedidos que tenho no consultório é de casais que têm um problema de desejo. Mulheres que dizem ter falta de desejo e homens que dizem ter o desejo intacto, “como sempre tiveram”.

 

Isso coincide com o estereótipo de que eles gostam de sexo, e elas, verdadeiramente, gostam é de ser amadas. 

Na maior parte das conversas persiste essa ideia de que eles só querem sexo – é uma frase dita de várias formas. Se houver sexo, está tudo bem, se não houver, está tudo mal. Elas entendem o contrário: dizem que o sexo é bom quando estão bem na relação. “Bem” quer dizer: há um entendimento e um equilíbrio a vários níveis, desde a divisão das tarefas domésticas à rotina das crianças, da partilha à comunicação com qualidade.  

 

O sexo pode ser um modo de o castigar? Ou premiar.

Pode não ser consciente, mas o entendimento é: “Se não me dás aquilo que quero, vou dar-te aquilo que sei que queres?”... Uma pequena vingança. Algumas mulheres dizem que nunca tinham pensado nestes moldes, mas a verdade é que acaba por ser uma reacção. Isto para dizer que a leitura dos homens e das mulheres da relação é muito distinta. E as histórias são tão semelhantes… O tipo de sentimentos, de comportamentos, pensamentos…

 

A mecânica das relações é previsível e assenta muito mais em estereótipos do que se pensaria. Ou desejaria – porque todas as pessoas querem crer que o seu caso é diferente do de todos os outros.

Por mais que nos distanciemos da forma como os nossos pais, ou avós, ou amigos – que são as referências mais próximas –, viveram enquanto casal, o que é certo é que herdamos sempre uma carga. Nas situações de ruptura, há muitas vezes [no nosso comportamento] qualquer coisa da nossa experiência enquanto filhos, por exemplo. Não é uma coisa directa, mas há muito esta menção, ou o peso da opinião dos pais.

 

Amamos e desejamos como os nossos pais?

Nós amamos e desejamos independentemente do que os nossos pais fizeram. Aliás, durante muito tempo, nós achamos que eles nunca “fizeram” nada.

 

Não pensamos na sexualidade dos nossos pais. É normal olharmos para os pais como assexuados…

E se pensarmos nos nossos avós, então… É como se não existisse sexo entre eles.

 

Disse “amamos e desejamos” propositadamente: parecem zonas separadas se pensamos nos nossos pais. É um território sagrado para onde não cai o nosso pensamento…

Há uma fase da nossa vida em que deixamos de nos preocupar com a nossa família de origem. Acredito que na adolescência haja uma especial curiosidade: será que eles fazem aquilo que nós temos tanta vontade de fazer? É certo que quando a porta do quarto está fechada à chave alguma coisa se deve estar a passar… Mas será possível? Depois, quando a pessoa começa a conquistar a sua sexualidade, deixa de fazer comparações com a dos pais. A não ser que a nossa seja difícil.

 

Mas a equação “amor e desejo”, deve ser separada? Ou são indissociáveis?

É possível amar e não desejar o outro. A maior parte dos casais que aparecem no consultório, uma das primeiras coisas que dizem é que se amam. Salvo os que estão em pré-ruptura, a maior parte diz: “Nós damo-nos muito bem, mas o sexo não está a funcionar”. E quanto mais fazem esta menção – que a relação é óptima – mais eu sei que à terceira sessão estamos a fazer terapia de casal pura e dura.

 

É possível desejar e não gostar, e vice-versa?

É. E é mais comum do que se pensa. As pessoas dizem: “Quero continuar com aquela pessoa, aquela pessoa faz sentido para mim. À minha maneira, gosto dela…”. O “à minha maneira” também é muito comum. “Amo-a”, não se diz tanto. Amar é uma palavra difícil de utilizar.

 

Por pudor?

Por haver diferentes entendimentos do que é o amor. O que é o amor, afinal? É estar apaixonado? É adaptar a vida ao outro, orientar todos os momentos da sua vida em função do outro, pensar constantemente no outro? Ou o amor é um gostar mais calmo? O companheirismo, às vezes, é insuficiente. Alguém me dizia ontem no consultório: ela quer sentir borboletas na barriga outra vez…

 

As pessoas acham que são assim e assado, têm preconceitos muito firmes em relação ao seu modo de ser. E têm dificuldade em descolar de estereótipos.

Porque a maior parte das pessoas não gosta de se sentir confusa em relação aos seus sentimentos, desarrumada. Mesmo que diga que não, e por mais que seja moderna, gosta de entrar numa caixinha. Há sempre uma caixa à espera, nem que seja a dos alternativos. E é difícil conviver com muitas dúvidas – gostar ou não gostar, por exemplo, ou o que é gostar.

 

Mas se gostam, porque não desejam?

Dizem muito: “Aquela pessoa tem tudo, é ideal para mim; então porque é que não gosto dela?” Está na gaveta do amor, mas falta estar na gaveta do desejo. Como é que se faz? Vai-se embora? Que recursos encontra cada um para ficar naquela relação? É possível redescobrir a paixão naquela relação, com aquela mesma pessoa? Eu acho que sim.

 

Como conseguir isso?

Penso que passa pela criação de espaços no casal. Tem de haver um espaço de manobra. Se o outro está sempre lá, disponível, como desejá-lo? A pessoa não tem o sentimento ou a ameaça da perda – que são do estado da paixão.

 

Ter o outro como adquirido…

É mau para a relação. Assim como estarem sempre juntos. Às vezes, há a noção de que o Eu e o Tu deixa de existir e passamos a ser um Nós. E o Nós é um bocadinho fusional demais. Vamos sempre às compras juntos, sair com os mesmos amigos juntos, estar com a família todos juntos.

 

Estamos reféns da ideia de que o amor perfeito é o fusional.

Mas não é.

 

A maternidade, mais do que a paternidade, altera radicalmente a sexualidade do casal? Provoca um distúrbio irremediável?

Não tenho tanto essa ideia. É verdade que muitos dos casais que me pedem ajuda têm como ponto de referência para o momento em que os problemas começam o nascimento do primeiro filho – agrava-se sempre com o segundo. Depende de como correu a gravidez, do pós-parto, das noites bem ou mal dormidas. Para já, o ritmo biológico, hormonal da mulher é alterado. O desejo flutua muito nessa fase – ao contrário do que acontece com o homem, que tem uma estabilidade na sua libido. Há alterações hormonais e também motivadas pelas fantasias deles e delas em relação ao “estado de graça” da mulher – que fica imaculada e não se pode tocar… Uma espécie de Virgem Maria. Mas mais do que a gravidez, o momento de crise é o que vem a seguir. Muda porque o papel é outro: passa a ser o da parentalidade.

 

E é preciso juntar a este processo, o período de amamentação…

Diminui a libido, claramente. O carinho que se troca com um filho, muitas vezes alimenta uma mulher. Aquilo é tão intenso, que não precisa de mais. E o homem fica excluído deste duo. Mas normalmente isso acontece em situações em que já havia um afastamento. [A gravidez] apela à descoberta de uma sexualidade mais lata, sensorial, que não tem que ser coital, pénis-vagina. E para muitos casais, se não funciona assim, então não funciona de maneira nenhuma. Este é que tem que ser o ponto de mudança. 

 

É quando o quadro é alternativo?

Há situações em que a mulher se liberta com a maternidade. Em relação ao seu corpo, em relação à sua sexualidade. Parece que agora já tem autorização para sentir uma data de coisas… “Agora já és mãe, já és “digna” de usufruir do teu corpo”… Há esta coisa dúbia – sou mãe, não devia ser amante – mas o que é certo é que algumas mulheres ficam menos envergonhadas, libertas de fantasmas e da educação que tiveram.

 

Nunca se falou tanto de sexo, as imagens no cinema e na publicidade nunca foram tão explícitas. Contudo, a desinformação persiste. As pessoas continuam presas a medos e ideias atávicas. E a ideia dominante é ainda a do pénis-vagina, como se tudo se resumisse a isto.

É assim. E é uma coisa que não se percebe. Tenho uma filha com 16 anos; quando ela tinha 14, lembro-me de constatar que as conversas das amigas dela eram similares às da minha avó – os mitos, os medos, eram os mesmos! Mas como é que é possível? Como é que têm discursos tão retrógrados? Mesmo que o discurso seja contrário, que saibam da importância dos preliminares, a verdade é que na situação o que importa é o pénis-vagina.

 

É como se na receita entrassem os preliminares, a fantasia, a privacidade. Mas na prática, se esse quadro falha, parece que nada faz sentido.

E a cereja em cima do bolo é o orgasmo. Orgasmo da mulher. Se ela não tem, põe em causa aquele pénis… [Num tom irónico e provocador:] Um pénis, por si só, não é grande coisa. Um vibrador é mais funcional: põe-se pilhas e está disponível quando se quer, faz-se ao ritmo que se quer. Se calhar para a mulher, aquele pénis não é o mais importante. Mas os homens não entendem isto. 

 

Os homens precisam de se sentir viris, de ter provas de que aquele pénis funciona. Homens e mulheres estão preocupados com a vagina, mas o ponto nevrálgico do prazer é outro…

É um desencontro… O prazer da mulher está mais situado fora da vagina, resulta da estimulação fora da vagina, mas as mulheres aparecem-me no consultório a dizer: não tenho bem orgasmo, sinto-me incompleta e inferiorizada porque não consigo ter um orgasmo através de uma relação coital. O meu namorado/marido diz que não devo funcionar muito bem…, porque as outras tinham. Este é um grande mito.

 

E qual é a resposta? As outras fingiam o orgasmo?

Há mulheres que têm prazer assim, mas não são a maior parte. 90% das mulheres precisa da estimulação clitoriana durante o coito para terem prazer. E muitos homens continuam a achar que isso não é necessário, porque já tiveram os preliminares. Eu digo: antes, durante, e com boa vontade depois do coito! O sexo não tem de terminar com uma ejaculação.

 

Este quadro está enraizado onde?

Passa pela função inicial do sexo, que era a reprodução. E para a reprodução não era preciso que a mulher tivesse prazer. No caso do homem, entendia-se que ele tinha de ter orgasmo e ejaculação.

 

Há imagens, cenas de filmes, que fazem parte do imaginário colectivo. E todas apelam à perfeição, ao delírio, ao êxtase. É verdade que as pessoas ficam frustradas porque querem reproduzir as posições do “9 ½” e depois não encontram nisso o mesmo prazer?

Tentar imitar algumas posições, do cinema ou do Kamasutra, provoca maior desprazer que prazer… O filme mais sensorial que vi nos últimos tempos é “Lady Chaterley”. Não tem que ver com posições ou prestações, mas com um levantar do véu. Apela à vontade de estar intimamente com alguém. Muitas imagens funcionam como trampolim para as fantasias colectivas: no elevador, no cavalo, no avião…

 

O rol de fantasias colectivas não tem fim. Mas relacionadas com a infidelidade há umas “clássicas”. Como trair com a cunhada ou o melhor amigo… Neste caso, estamos a falar de posse e de sentimento, mais do que de sexo, não é?

Há vários círculos à volta do casal que têm impacto na relação. E nestes círculos há príncipes e princesas encantados. Todas as pessoas que estão à volta, dependendo do estado do casal, surgem como mais compreensivas, mais interessantes, e funcionam como pretexto para a pessoa olhar para o lado… Eles e elas olham à volta. E, sobretudo quando as relações não estão tão harmoniosas quanto isso, é fácil encontrar noutras pessoas fora da relação o melhor do mundo. Os outros não partilham os lados podres da nossa relação. Os outros correspondem à visão mais perfeita.

 

Uma parte significativa do desejo passa mais pela imaginação, pela construção social do que pela biologia?

Costumo dizer que o principal órgão sexual é a cabeça. E nas mulheres, ainda mais do que os homens. São mais emocionais, pensam mais. A cabeça feminina é mais contextual do que a masculina. Mas as mulheres não são só isso. As mulheres continuam a ter desejos de uma noite por uma pessoa, por uma questão meramente química, e a não querer ter compromissos. Cada vez mais as pessoas são independentes e individualistas na sua forma de se relacionarem com outras.

 

A masturbação é considerada uma prática adolescente, exploratória; como se fosse um estado incipiente de viver a sexualidade. Sou levada a dizer que não concorda com isto, atendendo ao espaço que lhe garante nos livros…

Mais uma vez, aos homens é permitido muito mais do que à mulher. O pediatra, ao pai e à mãe do menino, diz: não se esqueça de puxar a pilinha para cima, o prepúcio para trás e para a frente – um movimento similar ao masturbatório. É logo uma creditação por parte médica de que é suposto fazer-se isto! A seguir, a criança descobre que, mais do que qualquer action man, o melhor brinquedo que tem é o seu pirilau. No caso das mulheres, a reacção é: «Isso é muito feio, tira a mão, isso não se deve fazer». Como se aquela parte não fosse para tocar.

 

Esse é outro mito: de que a masturbação é, sobretudo, uma coisa de homens.

Há imensas mulheres, de diferentes idades, que nunca se masturbaram. Tive uma pessoa no consultório que foi lá agradecer-me! Tinha 48 anos, já tinha tido uma experiência sexual, mas no seu entendimento puritano a minha conversa sobre masturbação era quase uma agressão. Contudo, experimentou e teve um prazer e um orgasmo como nunca tinha tido. Fez uma descrição sensorial da sua primeira experiência masturbatória de uma enorme beleza poética. Fiquei muito emocionada a ouvi-la. Em relação à masturbação: tenho uma amiga com algum pudor que me dizia: “É preciso explicar como fazer? Cada um sabe de si. Exageras na descrição. Mexe aqui, pancadinha acolá”. De facto, cada um sabe de si. Mas uso a visibilidade que tenho para dar permissão.

 

Como assim?

O primeiro passo é a permissão. E por muito estranho que isto pareça, porque ninguém dá permissão a ninguém, opera-se um clique. A descrição exaustiva tem também que ver com o seguinte: se ela escreve isto tudo, é porque não é porco.

 

A sua amiga dizia que toda a gente sabe como se faz…

Sabe? Não sabe. Senão, não receberia as pessoas que recebo no consultório, e são as mais intelectualizadas. Digo sempre: faça se quiser, se não quiser, não faça. É uma forma de dizer que a masturbação é possível, sem culpabilidade. É uma porta que se abre.

 

 

Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em 2008

 

Katia Guerreiro

25.06.14

Primeiro, ela mostra-me a casa nova. Que é um modo de me mostrar a sua vida. São pedaços de uma vida em bolandas, de descobertas progressivas. Os tapetes comprados na Turquia, as bonecas oferecidas no Japão, o espanta espíritos que veio do Oriente. O chá Gorreana, que faz parte da paisagem açoriana e que sempre esteve nas cozinhas da vida dela. As fotografias do marido (Rui Ochôa), que contam outras viagens pelo mundo e pela vida portuguesa das últimas décadas. E há representações em cerâmica que a fixam na sua imagem mais icónica: com os braços cruzados atrás das costas, o corpo atirado sobre o sentimento, a cara a ilustrar cada uma das palavras que canta. Uma saia, uma camisa, os pendentes generosos. A alma posta nisso tudo. O DVD que vai ser lançado neste Outono confirma este retrato.

Katia Guerreiro mostra-me a casa nova. Que é um modo de começar a entrevista. Estes objectos, e outros, fazem parte da sua cartografia. A viagem passou pelos Açores, por uma África de que tem uma memória vívida, como se lá tivesse crescido, de Lisboa onde estudou para ser médica, e onde agora se sente em casa. Passou pelos países onde leva o fado e a imagem de um Portugal moderno. E foi uma viagem ao mundo dos afectos, das inseguranças, das escolhas, da determinação com que se faz o caminho. Esta é a história de uma menina que sempre acreditou que o seu destino estava nas suas mãos. E não o deixou cair.

A gravação ocupou uma hora e meia de fita. Nesse dia, ela tinha tempo. Nesse dia, ela não era a oftalmologista do Hospital da Luz. Nesse dia, ela não era a fadista refém de uma agenda carregada. Saímos para almoçar. Já me parecia, então, que a casa de Katia Guerreiro só podia ser aquela. Depois de lerem as próximas páginas, poderão adivinhá-la melhor…

 

Começamos pelos projectos que sustentam a sua vida?  

Aos dez anos, eu não imaginava nada. Sempre fui uma água do rio que sabe que vai dar ao mar. E sempre soube que é vasto esse mar. A decisão de ser médica foi tomada aos 17 anos. Era uma boa forma de ajudar os outros. Vejo a minha vida como uma oferta aos outros…

 

A certeza de que um dia o rio chega a mar faz-me pensar na confiança em si própria. Foi uma criança reforçada, mimada?

Nunca tive grande confiança em mim própria. Acho que até hoje não a tenho... Mas sempre fui uma pessoa de fé, e achei que praticando o bem teria a recompensa disso. Aproximo-me da religião por ser assim, e não para procurar esse caminho. Fui tendo encontros e desencontros com a igreja. Fui baptizada, fiz a primeira comunhão, fui educada num colégio católico de freiras, nos Açores.

 

Segundo arranque: vamos à geografia da sua vida.

A minha família é toda de Angola. Os meus pais atravessaram o processo de fuga do país. Passaram por um campo de refugiados e foram para África do Sul, onde nasci por acaso. Mas a minha mãe não se adaptou àquela realidade e mudámo-nos para os Açores. Fui com 11 meses. Foi lá que comecei a andar, a falar. A crescer.

 

Foi por razões políticas que o seu pai teve de sair de Angola?

Foi por razões militares e políticas. O meu pai era militar. Tinha ódios tanto da parte do MPLA como da UNITA. E fazia parte da lista negra de uma e outra facção – fazia mesmo. Foi avisado, e por isso saiu.

 

A família passou de uma espaço ilimitado, como África sempre é descrita, para o espaço circunscrito de uma ilha.

Esses relatos faziam parte dos meus dias. Que Angola é que era o espaço para se crescer. De fazer longas distâncias depois do jantar para ir tomar café a Benguela. Essa liberdade de movimentos fazia parte do meu imaginário. Os meus pais deixaram este espaço ilimitado e enfiaram-se num cubículo, como é o espaço de uma ilha.

 

Nas descrições de um tempo de felicidade, o espaço era infindável, e mitificado. No exterior, vivia uma infância tranquila, consentânea com a paisagem açoriana.

Foi em S. Miguel, mercê dessa tranquilidade, que percebi a minha aptidão para os outros. A cidade oferecia uma boa qualidade de vida. Mas tinha por resolver uma grande sede de cultura. Os espectáculos eram escassos. E havia uma estratificação social que me vedava o acesso a serões onde se falava de livros, a sessões onde se ouvia música.

 

É um sistema de castas, pouco permeável socialmente…

É, sim. As famílias tradicionais dos Açores dão-se entre si, casam entre si, pouco se relacionam com o resto dos açorianos. É uma sociedade fechada. E eu não fazia parte dela. É engraçado quando hoje volto aos Açores… Como gozo de algum reconhecimento público, essas famílias procuram-me, fazem-me entrar num meio que era para mim um mistério.

 

Que sensação tem agora?

É interessante ver como o comportamento das pessoas se modifica porque passamos a ter poder. Deixam de olhar para nós como "mais um" e passam a querer que façamos parte deles. Aconteceu agora; fiz um espectáculo nos Açores, encontrei um elemento de uma dessas famílias, que me convidou para sua casa. É uma casa grande, da qual eu conhecia os jardins, de uma visita de estudo, em pequena. Em circunstâncias normais, nunca passaria dali, nunca entraria na casa.

 

Queria crescer depressa? Queria pertencer a esse mundo de adultos? A um mundo de verdade e não ao mundo de faz de conta das crianças.

Isso. Tinha um sentido de responsabilidade muito grande. Sobre a minha vida.

 

Foi-lhe incutido por quem?

Por ninguém. Faz parte de mim. Queria crescer e ser profissional. Não sabia em que área, mas sabia que me ia dedicar imenso. Que ia ser responsável, aplicada, disponível. Queria saber como é que os outros faziam. Como é que os professores lá tinham chegado, como é que os amigos dos meus pais exerciam determinadas carreiras.

 

Os seus resultados escolares eram muito bons, presumo. Fazia-o para si? Eram um instrumento da sua afirmação?

Fazia-o só para mim. Nunca na minha vida os meus pais me mandaram estudar. Nunca me exigiram resultados. Eu chegava a casa e mostrava um 100% a inglês, um 95% a matemática, um 98% a biologia…

 

O que é que abalava a sua confiança em si?

Tenho um problema enorme: preocupo-me imenso com aquilo que os outros pensam de mim. E penso que não confiam em mim. Nos Açores, por acaso, não padecia disto. As pessoas conheciam-me, sabiam quem eu era, do que era capaz. Não me preocupava em ser boa; fazia simplesmente as coisas, e elas saíam bem. Quando cheguei a Lisboa tive uma necessidade imensa de me afirmar. Ninguém me conhecia, eu era ninguém. E minimizava-me. Só ganhei uma certa independência intelectual quando acabei o curso.

 

O que é que a fez resolver essa insegurança?

Houve um momento em que disse: "Oh, já consegui fazer isto tudo…, vou ser mesmo capaz". Estudei com outro ânimo e tive óptimas notas. Estava por minha conta, só dependente das minhas capacidades. Quando fui fazer o internato geral em Évora comecei a perder o medo. Os meus colegas pediam-me para fazer parte das suas equipas, e ganhei outra maneira de estar. Levantei a cabeça, em vez de olhar sempre para o chão, com vergonha de não sei bem o quê. A seguir, vieram os outros sonhos: conquistar a minha autonomia, ter a minha casa, ter o meu primeiro carro. Precisava de ser dona da minha vida.

 

Talvez seja um acaso, mas foi nessa etapa derradeira que a música assumiu importância na sua vida. Desde a infância, havia uma relação intermitente e pouco séria. Na faculdade, esteve na fundação da Tuna Médica e participou em vários projectos artísticos.  

Mas sem qualquer ambição.

 

Era uma maneira de socializar?

Era uma maneira de trabalhar a minha falta de confiança. Foi uma maneira de socializar, sim. De me expressar e de conquistar a confiança e a simpatia dos outros. Eu era "a miúda que vem dos Açores", uma espécie de bicho à parte.

 

Tudo continuaria a ser apenas uma brincadeira, não fora uma ida a uma casa de fados, no último ano da faculdade. A sua vida mudou um pouco naquela noite, na Taberna do Embuçado...  

Eu cantava quatro ou cinco fados, não sabia mais… E cantei. Um dos músicos, que ainda toca comigo, achou que a minha voz era a grande revelação do fado! Para mim, era um disparate! Eu queria era ser médica. Em todo o caso, fui cantar a um jantar privado – ganhava uns trocos, distraía-me, e duas horas mais tarde voltava aos livros.

 

Parecem duas vidas incomunicáveis. Quando pensamos nos médicos, pensamos numa dedicação exclusiva ao estudo, primeiro, e à profissão, depois. Quando pensamos nos artistas, pensamos num certo desregramento, em qualquer coisa que vive mais do talento do que do esforço e do trabalho.

São dois mundos diferentes, que para mim se cruzam. Desde a primeira entrevista perguntam-me pelo dia em que tiver que decidir entre a medicina e o fado… Mas eu não quero fazer isso! Quero organizar a minha vida de modo a encontrar um equilíbrio entre as duas coisas. No último ano e meio deixei de exercer medicina. Por várias razões, políticas, inclusive. E senti-me desequilibrada.

 

Explique melhor o equilíbrio que resulta da vivência nos dois mundos.

Tenho na medicina o meu suporte intelectual – preparei-me para isso, esforcei-me e sei que sou capaz. Mas nasci com um lado artístico fortíssimo que me faz entregar-me aos outros de uma outra maneira. Nesse lado vou buscar o que tem que ver com os sentimentos das pessoas, com a exteriorização de tudo o que sentimos. No fado, reencontro-me com essa parte. E o meu primeiro instinto é partilhá-lo. Como quem dá um abraço. Não sei viver sem este meu lado emocional.

 

Precisa, no palco e no consultório, dessa relação. Do reconhecimento. A cantora precisa dos aplausos, a médica precisa de sentir na cara do doente que ele está confortado porque alguém resolve os seus sintomas.

A Amália dizia: «Aplausos, eu quero aplausos».

 

Que é uma forma de dizer: «Mimos, eu quero mimos.

É, é. Há ali uma comunhão, que é única. No palco há, primeiro, uma insegurança. Depois de conquistar o público, de ganhar terreno, entrego-me completamente. Dou, e dou, e dou. E recebo o afecto das pessoas. Na consulta, não espero nem quero ser reconhecida como artista. Sinto-me retraída se isso acontece. A maior parte das vezes, as pessoas só denunciam isso no final. Primeiro avaliam-me enquanto médica, e percebem também que aquilo é um espaço diferente. Fico muito diferente de bata vestida…

 

Disse-me uma vez que é melhor cantora pelo facto de ser médica. Como é que as duas facetas se contaminam?

Sou melhor cantora pelo facto de ser médica porque percebo o que são as pessoas no dia a dia, porque tenho um contacto com a sua realidade. No palco, não ouço as suas queixas, não sei que não têm dinheiro para comprar medicamentos, não sei dos problemas familiares que afectam o bem-estar físico. Ali só se vive o sonho.

 

Em cima do palco, a sua expressão é muitas vezes sofrida.

Porque faço uma espécie de exorcismo. Porque tenho também os meus problemas. Em cima do palco eu conheço-me. Sei cada palavra que digo, sei do que estou a falar. Não debito poemas ou melodias: sinto cada nota e cada palavra que transmito aos outros.

 

No que canta está, também, quem é. A sua vida, as suas opções. Nomeadamente, ter sido mandatária para a juventude do Presidente da República e ter participado na campanha pelo Não no referendo ao aborto.

Percebi que não sou ouvida da mesma maneira. Durante as campanhas li coisas como: «Gostava tanto da Katia Guerreiro e ela agora borrou a pintura!». Eu não deixo de ter admiração por artistas que se envolvem em causas nas quais acreditam, mesmo que discorde delas. Tenho um carinho adicional pelas pessoas que vão ouvir-me, que não se deixaram influenciar. Os que deixaram de ir, custa-me imenso, mas que posso fazer contra isso? Só me bati por aquilo em que acredito.

 

Sente que é uma amostra de um Portugal contemporâneo? Há pouco confessava-me que às vezes se cansa de tentar ser a super-mulher… É uma mulher de 31 anos, médica, cantora, é uma activista que se compromete com causas políticas e cívicas nas quais acredita.

Mas isso é muito valorizado no estrangeiro. Sou muito respeitada pelo facto de ser tudo isto. Admiram, interessam-se, respeitam, perguntam sobre isso. Não estão apenas concentrados na música. Lá fora, sabem. Em França, então, sabem imenso.    

 

Porque é que Cavaco Silva a escolheu? Quando a convidou, imagino que lhe tenha dito porque razão a estimava especialmente…

Disse que tinha admiração por mim porque eu me batia pelas minhas convicções. Por ser uma boa representação da juventude portuguesa. Uma juventude culta, instruída, com interesses variados, que procura fazer coisas bem feitas.

 

O facto de ser tão trabalhadora…

Como ele. [riso]

 

Imagino que se tenha revisto um pouco em si. Nesse desejo férreo, nessa determinação com que conquista a sua vida...

Foi um pouco o percurso dele: uma pessoa que veio do anonimato, que se empenhou, que sempre trabalhou muito.

 

Alguma vez falou com ele sobre a sua insegurança?

Não, nunca. Ele também tem as suas inseguranças, sobretudo ao nível das relações. Ele é essencialmente um trabalhador, que se preocupa com o país. A austeridade e a rigidez que lhe atribuem têm mais a ver com a sua timidez. Ele entra na minha casa, e diz piadas!, ri-se, faz conversa com toda a gente.

 

A sua carreira é cada vez mais significativa, mas não tem uma dimensão que poderia ter porque a sua dedicação não é exclusiva…

Eu sei, e penalizo-me por isso. Mas depois pergunto-me: é essa vida que quero ter? Se abandonasse a medicina e me dedicasse apenas à música, sei que seria capaz. Organizava uma máquina e seria capaz. Tenho tido esse reconhecimento e sei que conseguiria chegar mais longe. Mas onde é que eu ia buscar a minha inspiração, se eu preciso das pessoas? Não posso viver em hotéis. Não posso viver com as malas às costas. Preciso do meu ninho, da minha família, das minhas pessoas. Se calhar, um dia, vou chegar à fase em que a escolha se impõe. Mas por agora, não é isso que quero.

 

 

Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em 2008

 

Filipe La Féria

24.06.14

«O que nos torna artistas é a observação do nosso semelhante. Observar o comportamento humano é o que mais me fascina: descrevemos, fazemos teatro, pintamos sempre na descoberta deste bicho que é o ser humano».

Criou os maiores êxitos do teatro português. Os seus espectáculos têm invariavelmente salas lotadas. Sobre o palco o ambiente é feérico. Devolve o espectador ao sonho. Respira-se uma alegria de viver que contrasta com o negrume dos dias que correm. Que contrasta com a acidez que usa para se referir ao país, às condições que lhe são dadas para trabalhar.

A história destas peças é a história da persistência de um homem, que começou menino a observar, a pôr em cena.

Filipe La Féria tem 58 anos, é encenador. O encontro aconteceu na baixa lisboeta, no seu Teatro Politeama. O ar estava tomado por um calor espesso. 

 

Um dia de calor como este devolve-o à infância, às tardes infindas do Alentejo?

Sim. Era um calor de 40 e muitos graus. Lembro-me perfeitamente das tardes em que se dormia a sesta, das mantas no chão para dormir a sesta. Era um tempo que aproveitava para ler. Eu devorava livros, sobretudo impróprios para a minha idade! O Eça de Queirós, o Balzac. Na biblioteca da minha avó constava a «Comédia Humana».

 

E os livros com figuras de teatro, que faziam igualmente parte do seu imaginário?

Eu é que os fazia. Esperava a camioneta que chegava às seis da tarde e comprava o Diário de Notícias; a terceira página era só de anúncios e caricaturas. Recortava aquilo, colava e dava-lhes consistência num pouco de cartão; e então, com uma caixa de sapatos ou de chapéus, fazia uns teatros. Fazia exactamente o que faço hoje.

 

Punha em cena aquelas figuras de cartão, num palco improvisado numa caixa de sapatos.

Escrevia e fazia encenações. Passava dias e dias a fazer isso.

 

Era um rapaz solitário?

Não. No outro dia, na Aldeia Nova de S. Bento fizeram-me uma homenagem muito bonita, uma coisa que guardarei sempre no meu coração. Toda a gente dizia que era muito reguila, e muito mau! [risos] É engraçado porque nessas ocasiões fazem-se sempre uns grandes exageros sobre o bom feitio das pessoas, que eram uns amores... E não, era uníssono que eu era muito mau.

 

A sua personalidade tinha traço arisco?

Fui o irmão mais novo numa família com seis irmãos. Eram muitos pais e muitas mães ao mesmo tempo, e queria impor a minha personalidade. Isso é que me dava uma personalidade impetuosa.

 

Os interlocutores à sua volta, esses vários pais e mães, irrompiam pelos seus teatros, competiam com as suas personagens de romance?

A ficção tinha um peso forte. O Jean Valjean d’ «Os Miseráveis», ou os personagens da «Madame Bovary» eram quase tão reais como as pessoas que eram reais. Faz parte de mim próprio: ainda hoje vivo entre a ficção e a realidade. É por isso que me aventuro a estes grandes navios que navegam sobre mares tão difíceis, como é fazer teatro em Portugal...

 

Espere. Ainda antes de passar a essa fase mais amarga, queria conhecê-lo na fase de encantamento pela vida.

Ah, sou encantado pela vida! Sou optimista e com certa força. Mas ser artista em Portugal? Existimos porque insistimos. Cavaleiro Oliveira escrevia que nos portugueses como nos romanos as pessoas de teatro eram proscritas. (Nem sequer lhes era permitido serem enterradas nas igrejas). Consegui ser encenador e dramaturgo por insistência. Se vivêssemos noutro país, onde não fosse tão difícil fazer as coisas...

 

É aí que lhe denoto um travo amargo, no modo como insistentemente se refere ao país.

Sim, sou um pouco amargo sobre isso. Porque sinto que podia fazer muito mais.

 

O quê? Onde é que lhe cortaram as pernas?

Por exemplo, se tivesse mais teatros teria feito mais peças. Temos uma política cultural tão errada que metade da vida estamos nesta insistência, neste querer, a puxar uma carroça de ferro numa grande encosta. A frustração de ser português e de ter nascido aqui é considerar que somos um país terrivelmente difícil. Vivi praticamente três anos em Londres; nos países do primeiro mundo as coisas são mais fáceis.

 

Já vamos a Londres. Recuemos ainda ao Alentejo. Fale-me da sua família.

Só vivi dois anos no Alentejo. Ia lá de férias. A minha família era extraordinária. Tinha uma parte maçónica e uma parte religiosa. A religião seduziu-me quando era pequenino porque era muito teatral.

 

Ainda hoje se assume como católico. É um homem de fé.

É uma tradição posta com uma tal veemência na nossa alma e no nosso universo que ficamos sempre presos à educação que tivemos. A família economicamente gozava de grande privilégio. Mas tinha preocupações sociais. Não correspondia ao arquétipo do latifundiário fascista e odiado. Nada, nada. Eram pessoas amadas pelo povo. Faliram muito antes do 25 de Abril; não vivemos as ocupações, essas coisas todas. Na homenagem foi bonito saber que o meu pai tinha ajudado a população durante a guerra civil espanhola. Sou de uma família de ascendência espanhola. Somos de um Alentejo da raia.

 

Foi marcante na família passarem de uma fase em que tinham muito dinheiro a outra em que não tinham dinheiro nenhum?

Sim, sim. Marcou-me, mas foi uma grande riqueza. Tive a sorte de ver o espectáculo da vida de todos os lugares. Da plateia, da geral, do balcão, do camarote. E isso dá uma dimensão de quanto tudo é efémero.

 

Ajuda a dar valor às coisas?

Sim. E sobretudo a ver a mesquinhez da alma humana. E a grande fragilidade das coisas materiais. Aconteceu quando tinha 14 anos. Começo a trabalhar muito cedo, na companhia da Amélia Rey Colaço, aos 16.

 

Como é que foi trabalhar para aquela companhia, que à altura era considerada a melhor?

Fui para o conservatório e escolheram-me logo, comecei logo a trabalhar.

 

Era uma espécie de príncipe. A São José Lapa descreve-o como alto, elegante, com porte distinto.

É verdade que fazia muitos papéis de príncipe, de galã. Como tinha esse porte físico num país mediterrânico, tinha facilmente grandes papéis. Tenho 12 anos de actor. Pertenci a grandes companhias. Ao Teatro Estúdio de Lisboa, ao Teatro da Cornucópia, ao Teatro de Cascais, e sobretudo à Casa da Comédia.

 

Anos mais tarde, foi director da Casa da Comédia, por 16 anos.

Um dia tive o ensejo, hipotecando coisas minhas, de comprar a Casa da Comédia. Ela estava para ser vendida e transformada em templo de Jeová!

 

Hipotecou bens para segurar um sonho. Tudo o que tem é fruto do seu trabalho?

Tudo, tudo. Ao lado artístico sempre associei um lado prático. Talvez seja do meu signo: sou Touro. Consegui alicerçar, conquistar, transformar. Após 58 anos de vivência, talvez seja essa a coisa positiva que consegui fazer na vida: transformar. Nasci com tudo, fiquei sem nada, e gradualmente, com o meu trabalho, fui transformando as coisas. Transformei o Teatro Politeama, que era um cinema de pornografia. Isto era lama! Não estou a exagerar. Eram tabiques e lamas e ratos e baratas, e agora é um espaço tão agradável, com tanto público. Vou lutar para transformar o Olímpia, um cinema decadentíssimo.

 

Essa capacidade transformadora radica onde? Tinha uma grande confiança em si para avançar, destemido? Por exemplo, para ir para Londres sem dinheiro.

A aventura de Londres. Não tive dificuldades na minha carreira de actor. Até ganhei prémios. Mas gostava mais de escrever e encenar, queria sempre mais... Daí a ansiedade de ir para Londres. Pedi uma bolsa e trabalhei ao mesmo tempo. As bolsas eram ridículas, uns tostões ao fim do mês. Fui trabalhar para os restaurantes, servi à mesa num óptimo restaurante na Kings Road. Foi uma época muito interessante: absorvi os anos 70 em plena Kings Road. Até nomes agora antológicos eu conheci! Se tive medo de ir sem dinheiro? Nunca tive medo. Nunca tive medo da vida. Tenho medo da doença. Tive medo uma vez...

 

O que o perturba é isso, o espectro da doença?

Sim. Tenho uns olhos um bocado fracos... Tive problemas, várias operações...

 

Os seus fantasmas têm que ver com isso, com uma redução da capacidade?

A redução de capacidade, sim, faz-me medo. Ter de depender muito dos outros faz-me medo. Enquanto tiver saúde não tenho medo.

 

A saúde é mesmo o bem mais precioso?

Ah, sim.

 

Os seus pais incentivaram o seu gosto por ser artista?

Não. Hoje qualquer mãe ou qualquer pai empurra o menino para a televisão, para se exibir. Antigamente não, até pela classe social. Havia muitos estigmas... Foi um enorme desgosto.

 

Os estigmas estavam associados à sexualidade? Os artistas eram tidos por devassos.

Não. Era o medo de o teatro dar pouco dinheiro e de ter uma vida difícil. Qualquer jovem que vá para o teatro sabe que vai haver momentos muito difíceis. Com a São José Lapa, o Fernando Gomes, a Teresa Roby, fazíamos arroz para comer. Arroz com arroz. Arroz com feijão.

 

Que persistência é essa? O que faz uma pessoa expor-se ao risco do arroz com arroz pelo teatro?

É um sonho. Era o sonho. Era o ver e o querer fazer. E a partir dos anos 70 não era só a arte pela arte. Encarámos a profissão de actor, também , com um espírito político. Queríamos transformar a sociedade.

 

O grosso da classe artística está conotada com a esquerda. Teve a sua fase de esquerda, mas curou-se!, para usar uma expressão sua. Todavia, nunca escondeu um fascínio pela figura de Salazar.

Porque é uma figura teatral!, shakespeariana. Gostei de estudar a figura de Salazar, gostava de fazer uma peça sobre ele.

 

O que é ele?, é um pai tirano?

É todo o português antigo. É uma figura que dominou e domina o subconsciente português. Os italianos já fizeram milhares de filmes e peças sobre o Mussolini; nós nunca abordámos essa figura tão terrível e ao mesmo tempo tão fascinante. O salazarismo não tem nada a ver com o fascismo e muito menos com o nazismo. O salazarismo é tão pequenino como nós, é uma política quase de sacristia.

 

Sente por Salazar o mesmo fascínio que sente pela igreja, pelo lado do ritual e da caricatura?

Sim. Mas a igreja tem uma outra profundidade. A fé é uma âncora onde vamos nos momentos difíceis. Quando estive doente... Quando o homem se reduz à dimensão da sua caveira... Vivemos numa dimensão muito reduzida do universo. Somos humanos, conhecemos as nossas limitações. A fé dá-nos a possibilidade de encontrar a nossa consciência interior, o que há de divino em nós.

 

O que é o divino? Para si, a dimensão de divino coincide com o fazer?

É o exceder. O fazer será o primeiro movimento. Mas é o excedermo-nos a nós próprios. É encontrar algo mais do que nós, mais do que este quarto, mais do que o estarmos aqui a falar. Quando lia o Victor Hugo também queria ir além da realidade do Alentejo.

 

Sonhava muito com o que lia nos livros?

Sim, sou viciado. É onde gasto muito dinheiro, é nos livros.

 

Na fase da Casa da Comédia era muito arrojado. Ali se experimentava um teatro de vanguarda. Encenou por exemplo uma peça do Pasolini onde apareciam muitas pessoas nuas.

Era muito subversivo. O Pasolini não era só por aparecer gente nua; era a primeira peça que interrogava uma sociedade pós-fascista, como toda a vida Pasolini interrogou. Era uma época de afirmação e revolta. Mas não considero que seja muito distante desta.

 

Como assim?

Ao querer fazer o Olímpia, sinto necessidade de fazer um outro teatro.

 

Se tivesse um outro espaço seria para apostar numa corrente diferente desta que ensaia no Politeama?

Esta corrente que eu ensaio é total!, é tranversal à sociedade portuguesa. Quando foi o «Amália» pensei que era por ser a Amália, um grande mito de Portugal. Mas a «My Fair Lady» tem mais público! É um fenómeno: não é só o público de Lisboa. Todos os dias recebemos excursões, excursões, excursões. Os meus espectáculos tiveram sempre essa característica: de serem muito apelativos ao público.

 

Porquê? Acha que tem o dom de fazer espectáculo?

Sim. Em qualquer espectáculo, mesmo num texto da Marguerite Duras ou Yourcenar, havia sempre o inesperado. O teatro é isso, é o inesperado. É o dom de surpreender as pessoas.

 

Explique-me o desejo de voltar a fazer um teatro diferente deste que o tornou tão famoso.

Eu acho que tenho capacidade de trabalho para ter quatro teatros ao mesmo tempo!

 

Há quem diga que se revê mais no teatro que fazia na Casa da Comédia.

Estes espectáculos [do Politeama], acho maravilhosos e não abjuro nada. Acho até mais difícil ter conseguido fazê-los; são artisticamente mais sofisticados do que aqueles que fazia na Casa da Comédia. Mas mantive sempre uma relação muito difícil com o poder. Não concebo a política cultural que existe em Portugal! Eu era incapaz de concorrer a subsídios!, de ir para os corredores da Secretaria de Estado a pedir!

 

Quer dizer que optou por outro tipo de espectáculo para não pedir subsídios? Mas queixa-se imenso que não lhe é atribuído apoio pelo facto de fazer um teatro comercial.

Dizem que tenho muito público, que não preciso.

 

E nessa altura fica furibundo.

Não, não. Bom, talvez sim...

 

É sempre muito vigilante? Reparei que a meio do «My Fair Lady» foi espreitar o espectáculo.

Vejo tudo. Gosto que as coisas tenham a maior qualidade. Afino pormenores. E há outra função: se o ar condicionado está ligado, se o público está confortável. Bem vê, o dinheiro que ganhamos entra por uma portinha muito pequenina, a bilheteira. Portanto, temos de dar às pessoas o sonho. O teatro tem de estar muito bonito, tem de transportar as pessoas que vêm nas camionetas e que andam 300 km para um lugar de excepção.

 

É isso que faz?, transportar as pessoas para um lugar de excepção?

Sim, tratá-los bem. Não supus que o «My Fair Lady» fosse um sucesso tão grande.

 

É a primeira peça que não tem um cariz marcadamente português. As outras, «Passa por mim no Rossio», «Maldita Cocaína», «Amália» diziam respeito ao imaginário português.

Exacto. Penso que o sucesso tem a ver com a crise que passamos. É uma história de Cinderela. As pessoas entram para um plano de sonho. É o segredo de Polichinelo: escolher muito bem as peças. Às vezes estou meses a escolher uma peça. Começo uma, traduzo, não, não. Outra. É preciso perceber muito bem o ambiente exterior ao teatro. Pense no público americano: os grandes musicais apareceram com as grandes guerras. Funciona como um tubo de escape para o público.

 

Ou seja, as pessoas vão ao teatro para sonhar?

Sim.

 

A sua filha, que tem vocação para as artes, trabalha consigo?

Não, está a estudar. Vai para Londres.  

 

Como é que era a sua voz quando era actor?

Era menos rouca do que é agora porque gritava menos, ralhava menos!

 

Ralha assim tanto?

Sim! [risos] 

 

 

Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em 2003

 

Ler um País em Crise

24.06.14
No último Ler no Chiado antes das férias, vamos ler um país em crise

Com o politólogo André Freire ("Austeridade, Democracia e Autoritarismo"), o economista Félix Ribeiro ("A Economia de uma Nação Rebelde") e o filósofo Viriato Soromenho Marques ("Portugal na Queda da Europa"). 

Dia 3 de Julho, às 18.30, na Bertrand do Chiado.

Eu modero.



Mário Lino

23.06.14

“Pode parecer pretensioso, mas não me lembro de nenhuma vez em que tenha estado à beira do suicídio, da depressão, ficar em casa e não querer ver ninguém. E mais: quando tenho dificuldades, mesmo de natureza pessoal, gosto de partilhar e ter a experiência dos outros. Há uns anos, ter uma pessoa com cancro na família era um tabu. Ou um problema de droga. Ou um filho gay – não é o caso, não calhou. Não tenho a sensação que é preciso esconder, dar uma aparência. Não gosto de dar espectáculo, mas a gente não deve ter vergonha”. E nisto já está muito de Mário Lino. A criatura solar. O gregário. O tipo porreiro, pá.

Mas também é ele quando usa palavras como cercear ou coarctar. Nessa altura estávamos a falar do seu passado comunista. Ele descrevia “uma tendência muito dirigista e controleira da direcção do Partido, cada vez mais em des-sintonia com o que se passava na realidade”. Começámos por aí, como podíamos ter começado por outro lado qualquer.

A vida de Mário Lino é normal, normalíssima. Tudo é normal, normalíssimo. Nasceu em 1940. Teve um pai “muito amigo da família, que andava sempre com a minha mãe e connosco”. Viveu na Madragoa, em Angola, em Moçambique, no Técnico, nos Estados Unidos, em Moçambique – mas desta vez a construir o socialismo e a cozinhar tubarão para os amigos. Viveu no Partido e para o Partido. Escolheu ser expulso porque luta até ao fim; e preferiu a derrota a meter uma cartinha a dizer adeus para nunca mais.

Nunca se angustiou com o que vinha a seguir. Como ele diz, uma pessoa pensa assim: há tanta coisa para fazer, que alguma coisa ele há-de fazer. Nem se angustia se há turbulência no avião. Ele pensa assim: a probabilidade de o avião cair é tão pequena, porque é que há-de ser este?

Pelo meio há o Für Elise, os concertos às quintas na Gulbenkian. O Sandokan, onde está tudo o que um rapaz deve saber – como contou enquanto posava para as fotografias. E o perfil à la inspector Maigret, (de cachimbo), que leu, como leu a Miss Marple e todos os policiais.

Mas esperem, este é o Lino que todos conhecemos? O Lino que todos conhecemos, o Ministro, esteve também na entrevista. Mas esteve mais aquele que ele foi no passado, e que veio dar a este que agora é. Lamento se decepciono, mas aqui não se fala de obras públicas…

 

 

Em que momento deixou de se sentir comunista?

Não há um momento. É um processo. Há muitas questões do ideário comunista que mantenho. Estive ligado ao Partido Comunista 25 ou 26 anos.

 

Como foi a sua saída?

Foi em 1990. Um processo de expulsão, em que eu e outros camaradas estivemos envolvidos, designadamente o José Barros Moura e o Raimundo Narciso. O acto concreto que levou a isso foi uma reunião que promovemos no Hotel Roma – ficou até conhecida como A Reunião do Hotel Roma. Analisámos uma posição da direcção do partido, que nos pareceu escandalosa, de apoiar uma tentativa de golpe de Estado contra Gorbatchev. Estava envolvido um quarto elemento, o José Luís Judas, que antes de terminar o processo se desvinculou do Partido. Os outros três entendemos que devíamos levar o processo até ao fim e defender o nosso ponto de vista.

 

A palavra expulsão é estigmatizante.

É uma das medidas disciplinares, está prevista nos estatutos (julgo que) de todos os partidos. E que foi aplicada. Claro que não foi uma situação isolada. Foi um processo de conflito ideológico e político, que se foi desenvolvendo ao longo de anos, e que teve nesse acto o que para a direcção do PCP constituiu a gota de água.

 

A questão não é tanto o momento em que deixa de ser comunista, e formalmente se dá a expulsão, mas o sentimento de aquele já não ser o seu mundo. Quais foram as questões essenciais do desmoronamento?

A democracia interna do partido; numa situação normalizada do ponto de vista democrático, não me parecia que o partido devesse manter o tipo de funcionamento espartilhado [que tinha]. Outra questão tinha que ver com o pensamento dominante da direcção do Partido face aos acontecimentos na ex-URSS e noutros países do socialista real, como a República Democrática Alemã, com a queda do Muro de Berlim. Toda essa arquitectura, essa concepção leninista – como se estivéssemos a fazer uma cópia do que se tinha passado em 1917 na União Soviética – era muito difícil de alterar; ainda hoje se mantém. A terceira divergência tinha que ver com a visão do Partido face à União Europeia. Sempre teve uma posição muito negativa face à integração e à visão da Europa.

 

A expulsão foi um misto de alívio e de dor?

Não. Se quisesse sair do partido, tinha apresentado uma carta de demissão. Era mais simples, dava-me menos trabalho, era uma situação menos tensa. O Partido Comunista tinha um património valioso, que era de todos os militantes e do país; não era um património exclusivo da direcção do Partido. Esse património estava a ser desbaratado. Era necessário fazer evoluir o Partido por dentro. Veio a verificar-se impossível. Mas não sou de abandonar lutas. Só derrotado. Não faço as coisas por acaso. Guio-me por objectivos, por princípios. A direcção tomou a decisão que achou que devia tomar. Tão simples quanto isto.

 

Tão simples quanto isto – mas é o fim de um mundo e de um período significativo da sua vida.

Estava ainda a estudar no [Instituto Superior] Técnico quando aderi ao Partido Comunista, em 1964. Depois do 25 de Abril estive ligado a comissões de trabalhadores, sindicatos, actividade económica. Há muitos princípios que mantenho. A democracia, a liberdade, a igualdade social. As grandes consignas, adaptadas ao mundo actual, que se iniciaram com a Revolução Francesa, continuam a marcar a minha maneira de pensar e a guiar a minha acção. Muitos aspectos da vida interna do Partido têm muito valor: o companheirismo, a seriedade e rigor com que se executam tarefas, a responsabilidade, a submissão da vontade particular às decisões do colectivo. O que é preciso é que o apuramento das decisões seja feito de forma democrática – e não de forma distorcida.

 

Quem é que primeiro lhe falou da Revolução Francesa? Como chegaram a si esses valores?

Chegaram por todas as vias. Os meus pais estavam em Moçambique quando acabei o antigo sétimo ano. Vim sozinho, aluguei um quarto na rua Augusto Machado. Embrenhei-me na actividade associativa. Logo no primeiro ano passei a colaborar na Associação de Estudantes.

 

Apanhou a crise académica de 1961?

Apanhei. Em 59, foi quando fui para o Técnico. O curso requeria muita atenção e estudo, mas, ao mesmo tempo [levava] uma vida intensa do ponto de vista cultural, político, associativo. E lia muito. Sempre li muito. Trabalhava em secções, frequentava os ciclos do cineclube, o clube universitário de jazz. Havia grandes discussões entre os adeptos das correntes do Neo-Realismo [italiano] e dos Cahiers du Cinéma. Essas discussões tinham sempre um substrato ideológico. Eu gostava de Fellini ou Visconti e gostava de Ingmar Bergman ou Hitchcock. A guerra colonial foi outro momento importante. Vivi muitos anos em África.

 

Conte-me a história da sua vida em África, que tem várias fases.

O meu pai era militar. Fez uma comissão [de serviço] em Angola, entre os meus oito anos e os 14. Regressámos a Portugal, mas passado um ano e tal estava numa nova comissão em Moçambique, onde vivi dos 15 aos 17, quase 18 (quando acabei o liceu e vim para o Técnico). Tinha um contacto com os problemas, as carências, o regime colonial no seu pior – principalmente em Moçambique, onde havia uma segregação racial forte. No liceu, praticamente não havia alunos negros, nem mulatos. Embora todos fossem portugueses, as liberdades de uns eram completamente diferentes das liberdades de outros. Tudo isso desperta a nossa consciência. As lutas estudantis tiveram um peso muito grande.

 

Qual foi o seu percurso no Técnico?

Fui delegado de curso, candidatei-me a presidente da direcção do Técnico e fui eleito. Embora goste muito de ler e discutir, não sou capaz de ficar apenas nessa componente. Gosto de realizar coisas, gosto da transformação da realidade. Gosto de operar. [Esse empenhamento] levou a processos disciplinares de natureza académica – por ter promovido manifestações e greves, acções desse tipo.

 

Em 65. Coincidiu com a finalização do curso?

Esse ano foi terrível. Casei em Dezembro de 64, estive preso em 65, era presidente da Associação de Estudantes do Técnico, trabalhava. Tinha-me sido retirada a bolsa. Consegui [sobreviver] através de explicações e a trabalhar como aluno no então Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC). E tinha que acabar o curso o mais depressa possível. Fiz o último exame em Julho de 65 e no dia 8 de Agosto saiu a decisão de me expulsar de todas as universidades do país. Não teve o efeito de me interromper o estudo, que tinha acabado; mas teve um efeito: o Ministério da Educação, durante dois anos, recusou-se a passar qualquer comprovativo de que tinha acabado o curso.

 

Não pôde trabalhar durante dois anos na sua área?

O presidente do LNEC era o engenheiro Manuel Rocha; era uma pessoa de invulgar craveira científica, muito prestigiada. Nomeado pelo Governo. Meteu-me como engenheiro apesar de não ter o certificado; admitiu-me com base no seu conhecimento pessoal, (fez um despacho a dizer isso). Foi de uma grande dignidade. Correu riscos. O Manuel Rocha veio a ser Ministro das Obras Públicas no primeiro Governo Provisório.

 

Imagino que tenha pensado nele quando tomou posse…

Penso muitas vezes nele.

 

Que jovem é este que chega de África e tem a energia, o carisma para, desde logo, se embrenhar – foi a expressão que usou – nas lutas académicas? Ou digo de outra maneira: conte-me a história da sua vida.

Tive uma vida normal, normalíssima. O meu pai era sargento do exército, relativamente humilde. A minha mãe era doméstica e fazia trabalhos de costura para lojas que vendiam camisas e coisas assim. Às vezes, ajudava-a. Vem-me daí um certo à vontade com que hoje passo a ferro, lavo qualquer peça de roupa, coso botões. Sou o filho mais velho; éramos dois, e depois nasceram mais dois, dos mesmos pais. Competia-me ajudar e fazia isso com gosto. Lia policiais, livros de aventuras, de cowboys, de amor, e livros bons, os Padres Amaros e essas coisas que eram postas numas prateleiras por detrás.

 

Onde estavam os livros?

Em casa de amigos dos meus pais. Pedia emprestado. O meu pai tinha algumas coisas, mais sobre a guerra. Era anti-salazarista. Lembro-me bem que na Segunda Guerra era a favor dos Aliados. Ouvia-se a rádio muito baixinho porque constava que vinham uns carros que detectavam onde é que havia pessoas a ouvir a BBC. O meu primeiro envolvimento numa acção de cariz político ou social foi no liceu. Era aluno do quinto ou sexto ano e resolvi fazer um jornal de parede. Eu e outros colegas, mas eu era o director. Nessa altura falava-se, em Moçambique, de uma professora primária que batia nos alunos de forma mais violenta. Escrevi um artigo [riso] a revoltar-me contra a professora, que aquilo não eram maneiras de ensinar e não sei o quê! Foi proibido o jornal, foi o primeiro e último número. Levei dois ou três dias de expulsão.

 

Foi a sua primeira expulsão… Viriam a da universidade e a do PC.

Adapto-me muito bem ao trabalho em conjunto – não sou um individualista; mas não daquela forma arregimentada. Em que todos temos que andar vestidos da mesma maneira, dizer as mesmas coisas. A Mocidade Portuguesa não ia com os meus princípios. Andar a marchar, com uma farda, aos sábados, que coisa estúpida!, eu queria era jogar. De maneira que inscrevi-me no aeromodelismo, na esgrima, fiz teatro. Nunca me senti atraído por aquele carácter militar que se imprimia na Mocidade Portuguesa. Também em Moçambique criei um clube de Matemática – já não sei se se chamava Pitágoras ou Arquimedes. Jogava xadrez, o meu pai ensinou-me a jogar xadrez. Participei em torneios. 

 

Em todas essas coisas, do jornal de parede à Associação de Estudantes, teve um papel de protagonismo. Ainda que se integre bem num colectivo, não se submete…

Sim. Há pessoas que dizem que gostavam de ser Ministro, Presidente da República, o Melhor Jogador do Mundo de Xadrez, o Maior Pianista… Eu nunca tive essa percepção, [nunca me quis] impor dessa forma. Se no colectivo em que estou envolvido acham que eu é que tenho as condições para, exerço. Não me furto a exercer. Mas o meu propósito não é chegar ao primeiro [lugar]. Tenho o propósito de fazer bem. Por exemplo, não disse: “Vou lutar para ser presidente da Associação do Técnico”. Não é esse o encaminhamento das coisas.

 

Porque é que liderou tantas vezes?

Essas lideranças não resultam de um objectivo individual – de ser o director, o chefe… Não me fui oferecer para ser Ministro das Obras Públicas. O Primeiro-Ministro convidou-me e eu aceitei, depois de ter pensado e até de ter levantado algumas dúvidas: se seria a pessoa mais indicada. Ele achou que sim. Aceitei de bom grado e procuro fazer o meu melhor. Não me lembro de coisas importantes [para que me] tenha posto em bicos de pés.

 

Não houve nada por que tivesse lutado, que tenha querido absolutamente?

Não por lugares, só por causas e princípios.

 

Voltando à minha pergunta: quando chega ao Técnico, tinha já esse élan? Tinha confiança em si mesmo?

Sim. Sempre fui uma pessoa confiante. 

 

Gostava de perceber porquê.

E nem sempre tive êxito nas coisas que fiz. Posso contar-lhe uma história interessante, daquelas que marcam. Como lhe disse, o meu pai era sargento do exército, tinha uma remuneração baixa, vivíamos com dificuldades. Não tínhamos água canalizada, íamos buscar água ao chafariz. Foi o meu pai que introduziu a primeira e única torneira que havia em casa. (Era sargento de engenharia e esteve sempre ligado a obras). Também não tínhamos electricidade; foi ele que montou os fios eléctricos; não havia tomadas, havia petromaxes. Nessa altura havia abono de família até…, não sei bem, mas vamos pôr: até ao segundo ano do liceu. A partir daí, tinha-se abono de família se se andasse a estudar com aproveitamento. Eu já estava no quarto ano (o actual oitavo), no Pedro Nunes (foi aquele período entre Angola e Moçambique). Chumbei.

 

Que era feito do rapaz aplicado, que gosta de ler?

Chumbei em três disciplinas, Matemática, Física e Inglês. Cinco, cinco, cinco, notas de um a vinte. Aquelas matérias não me diziam nada. A sensação que tinha, e que ainda hoje recordo, era: “Está além das minhas possibilidades”. O meu pai, que não me batia, deu-me um responso, dizendo que eu era as coisas piores do mundo. Ele andava a trabalhar e eu não fazia nada. E tinha que devolver o abono de família recebido na presunção de que eu ia passar! Sou um bocado mula e teimoso e não disse nada. No dia seguinte, disse à minha mãe: “Vou-me empregar estes três meses”.

 

Nas férias grandes.

Nós não fazíamos férias em lado nenhum. Íamos ao domingo à Costa da Caparica ou a Carcavelos. Fui ao Diário de Notícias, sozinho, ver o que havia, pá-pá-pá, respondi a vários anúncios, e arranjei um emprego como marçano numa casa chamada Mundial Filmes. O que é que fazia? Carregava caixas de alumínio com bobines e ia pô-las em Santa Apolónia. Ganhava 300 escudos por mês ou 300 escudos pelos três meses (são coisas que se esfumam). Era dinheiro.

 

Quanto é que ganhava o seu pai?

Não faço a mínima ideia. A minha mãe quis contrariar-me, mas eu fui. Comprou umas marmitas daquelas que se enfiavam [umas nas outras], e lá punha a sopa, as batatas, o bacalhau, uns croquetes, arroz. Morava na Madragoa, e ia de eléctrico às oito horas. O meu pai soube, não disse nada, e eu também não. Juntei o dinheirinho, peguei no correspondente ao abono de família que o meu pai tinha perdido, “toma lá”. O meu pai encaixou aquilo. O que sobejou, dei à minha mãe para comprar uma saia! [risos] Não comprei nada para mim.

 

Como foi o ano seguinte?

Fui repetir e deu-se uma mudança brutal. No ano anterior, eu nem entendia o que o professor estava a dizer, nem sabia como me ia safar do liceu. Mudei de professor, tive um excelente professor de matemática, e a sensação era a contrária: não percebia como é que havia alguém que não entendia! Parecia-me tão fácil, tão simples. Tive 19’s e 20’s.

 

O que é que lhe aconteceu no ano anterior?

Não sei. Irritou-me muito o discurso do meu pai. Que eu era culpado. Era verdade que ele trabalhava muito, que a minha mãe trabalhava muito, tudo para pôr o menino a estudar, e o menino tinha andado sem fazer nada!

 

Ainda antes do responso: como é que foi possível que estivesse um ano a mandriar?

Foi da idade. Catorze, 15 anos…

 

As miúdas, as miúdas…

Também é o despertar da sexualidade. Não fazia nenhum. Ia jogar matraquilhos, ia ao cinema, raspava-me das aulas, jogava à bola.

 

Como era a sua relação com o seu pai?

Era uma pessoa muito severa. Não era brincalhão. Não tinha grande cultura. Não percebia nada de música clássica, nem gostava, mas adormecia a ouvir a Rádio-Difusão 2. Nós gramávamos a música porque ele adormecia! Uma vez, no liceu, houve uma aula de substituição; o professor apareceu com uma grafonola, manual, com uma campânula. Levou o disco do “Aprendiz de Feiticeiro” e explicou cada instrumento, o que estava a dizer. “Agora, lá vem o feiticeiro…”, e [faz o som de um instrumento musical]. Fiquei extasiado.

 

No fundo, estava a contar uma história com música.

Foi uma aula só. Fiquei a gostar muito de música. Mas estava a dizer: o meu pai era alentejano, não era de muitas falas, e tinha uns códigos; nunca nos íamos deitar sem pedir o beijinho e a bênção. “Pai, posso ir deitar-me?”, “Podes, meu filho”. Era assim todos os dias.

 

Mudou radicalmente no ano seguinte. O detonador dessa mudança foi a humilhação e a responsabilização?

Sim. Detesto sentir-me numa posição fraca. Não gosto de estar metido num beco sem saída. “E se não corre [de determinada maneira], o que é que faço?”. Não gosto de estar numa situação em que não consiga lutar. No ano seguinte passei com notas altíssimas mas tornei a empregar-me. Na Bacelar e Alves; vendia móveis. Esse dinheirinho foi todo para mim. Habituei-me a trabalhar. Quando vim para o Técnico e me tiraram a bolsa, não me ocorreu [perguntar]: “O que é que vou fazer agora?”. Meti-me a dar explicações e no quarto ano comecei a trabalhar no LNEC. Vivia das explicações, sem luxos, mas bem.

 

Porquê Engenharia Civil?

Sabe-se lá! Gostava de Direito, dizia que queria ser advogado. Mudei. Escolhi a alínea das engenharias por causa da Matemática. Talvez [o facto de] o meu pai estar ligado a obras e me ter falado tanta vez em obras me tenha influenciado.

 

Era um modo de progredir socialmente, fazendo um pouco do que o seu pai fazia em casa…

Pois, pois. Os meus netos perguntam: “Qual o filme de que gostaste mais?”, “E se fosses para uma ilha deserta, que livros levavas?”. Nunca tive uma fixação por querer só uma coisa. Sempre me interessei por várias. A certa altura, em Moçambique, quis aprender música. O meu pai tinha uma péssima ideia dos músicos: dizia que eram bêbedos ou tuberculosos! Nunca me deixou estudar música! Nem guitarra! No dia em que cheguei a Lisboa, fui à Valentim de Carvalho e aluguei um piano! Que pus em minha casa. Aliás, o quarto foi arranjado em função disso. A senhoria disse que desde que eu não tocasse à noite, não importava. (Era uma senhora viúva. Não, era casada. Dava-se mal com o marido. Enfim, era muito desligada do marido embora o marido vivesse lá em casa...

 

Lembra-se de todos esses detalhes…

A senhora é que mandava na casa). Aluguei um piano que me comia uma parte significativa dos mil e quinhentos escudos da bolsa. Arranjei uma professora nas Avenidas Novas. Eu tinha muito jeito para aquilo. E ia progredindo. Tocava muitas horas por dia. A coisa mais complexa que toquei foi o “Für Elise”, do Beethoven. Mas cheguei a Maio e percebi: ou passo a Matemática ou passo a piano. Deixei cair o piano. Com muita pena.

 

Só deixa cair quando tem absolutamente de fazer escolhas. E vai recuperar um projecto que está lá atrás…

Se não tivesse sido o que sou, uma carreira que não me importava de seguir era a da música. Ou pianista, ou maestro. Há coisas que não faria: não tenho jeito para pintar.

 

Lá atrás, teve algum confronto declarado com o seu pai? Dá ideia de ser um homem que não foge ao confronto. O exemplo da expulsão do PC é elucidativo.

Não fujo. E com o meu pai também. Mas nunca tivemos conflitos. Levava-me às vezes para o quartel, eu gostava de ir. Não era dado a manifestações de carinho, de afecto. Quando era miúdo sentava-me no colo dele, e no Natal comprava-nos prendas. Ter boas notas era um trunfo. Eu dizia: “Vou sair”. Não pedia para sair. Isto com 16, 17 anos.

 

Podia lá ele imaginar que ia ser Ministro…

Isso, ninguém imagina. Mandava-me comprar o “República”, ouvia a rádio contra o Salazar, nunca se manifestava. Quando foi o 25 de Abril virou muito reaccionário. Essa coisa de eu estar no PC, nunca suportou. E quando fui preso, nunca me escreveu. (Os meus pais estavam em Moçambique). Nunca falou do assunto – eu também não. Nem nunca procurou demover-me, ou perguntar-me [alguma coisa]. Nada, silêncio.

 

A si, doeu-lhe que não o tivesse contactado.

Encaixo bem essas coisas. Quer dizer, preferia que tivesse ido. De outras pessoas, esperaria o contrário e foram visitar-me. A minha mãe falava às escondidas e tal. Sempre naquela relação: o meu pai não queria, a minha mãe não afrontava. Talvez à noite no quarto lhe dissesse alguma coisa…

 

Bateram-lhe na cadeia? Foi torturado?

Não. Tive interrogatórios demorados, mas não do tipo de ficar dias sem dormir. Fui preso por razões que a polícia tinha mas que não eram consistentes. Ao fim de dois meses, (primeiro isolado no Aljube, depois numa cela a dois, e depois em Caxias), mandaram-me embora.

 

Viveu na clandestinidade?

Não. Mas tive ligações ao Partido durante a clandestinidade. O Partido Comunista tinha decidido criar um corpo [paralelo à] estrutura do partido, a ARA, para fazer acções armadas. Fez alguns atentados contra navios que iam para a guerra, postes da EDP, aviões… Bom, colocavam umas bombas. O meu trabalho com a ARA era de apoio a elementos que estavam na clandestinidade e que, quando montavam essas operações, ficavam na minha casa e eu conduzia-os a determinado sítio. Mas escapei. Nunca estive envolvido. Os elementos da ARA, o meu amigo Raimundo Narciso e o Francisco Miguel, foram identificados, mas nunca foram apanhados.

 

Porque é que não quis ir para a clandestinidade e viver a causa política de um modo pleno?

Fui convidado para ir, mas nunca me senti em condições de dar esse passo. Já era casado, a minha filha tinha nascido, e gostava muito da minha actividade profissional. Não me estava a ver…

 

A ter um senhor. O PC seria o senhor.

Não sei se foi esse o raciocínio. Não exercia uma suficiente atracção sobre mim. Actividade política, tive sempre. Continuei a ter. E cívica. Foi um dos meus melhores amigos quem me convidou. “Então vai lá para os Estados Unidos fazer a pós-graduação e depois voltamos a falar”. E lá fui e voltámos a falar. Mas estava a acabar o doutoramento… Pareceu-me um sacrifício muito grande e tive dúvidas que me fosse correr bem. Era um passo difícil: cortava-se com os amigos, com a família, com tudo.

 

Acabou o doutoramento? No seu CV lê-se que é mestre e que trabalhou no doutoramento. Mas não especifica em que momento ele foi abandonado.

Estive um ano e meio nos Estados Unidos, fui em 1972. Obtive todos os créditos, fiz o exame final (onde passei); tinha de fazer a tese. Regressei a Portugal para trabalhar na tese. Passado pouco tempo, um grande amigo, que era ministro da Indústria e Comércio e viria a ser Primeiro-ministro, o Mário da Graça Machungo, escreveu-me a pedir para ir para Moçambique, para ajudar a construir o socialismo. Essa atraiu-me! Eu via-me em cima de um escadote, de fato-macaco, com um martelo numa mão e uma picareta na outra a construir o socialismo! E lá fui para Moçambique de alma e coração!  

 

Este lá entre 77 e 79.

Larguei tudo! Eu estava a fazer uma tese que, do ponto de vista científico, era muito interessante. Mas era para gozo individual. Estávamos no pós-25 de Abril. Para o país, em que é que aquilo interessava? Como é que aquilo transformava o mundo? Como é que eu contribuía? Eu tinha uma actividade sindical muito forte.

 

Além de trabalhar na tese, esteve na criação do Movimento Sindical da Função Pública.

No pós-25 de Abril comecei oficialmente a trabalhar no Partido Comunista. Primeiro nesse sector, depois transitei para o sector económico. Mais tarde, fui presidente do conselho de administração da Editorial Caminho, Editorial Avante e da CDL.

 

Ideologia, no fundo.

Exactamente. Mas isso já foi depois de vir de Moçambique. A Frelimo tinha escrito ao Partido a pedir, não era que uma pessoa fosse, era que eu fosse. Fui exercer um lugar importante, uma espécie de vice-Ministro: director do gabinete de planificação. Era o responsável do planeamento de um super-Ministério, o da Indústria e Comércio. Foi um período heróico!

 

Porquê?

Era um país que tinha acabado de atingir a independência. Tinha possibilidades imensas. Uma gente nova que chega ao poder, que toma conta de um país abandonado. Trabalhava-se muito, 24 horas por dia, num frenesim grande. Toda a gente estava imbuída do mesmo espírito, tudo convergia na mesma direcção. Havia discussões ideológicas grandes, como era natural. Havia, como na União Soviética, os fins-de-semana vermelhos – lá, julgo que se chamavam fins-de-semana de trabalho. Trabalho voluntário. Em África tudo floresce com rapidez e íamos ao fim de semana semear batatas, apanhar ervas nas ruas, ao longo do caminho-de-ferro.

 

Sentiu que a sua vida e a vida do colectivo estava nas suas mãos, nas mãos de todos?

Sim. Havia um sentimento colectivo muito forte: de quem estava num sítio, com tudo entregue a si próprio, e que tinha de fazer o seu melhor. Os períodos com dificuldades são os mais excitantes. O cônsul de Portugal vivia em Maputo num 12º andar. A maior parte das vezes não havia elevador. Cada vez que ia falar com ele subia e descia 12 andares a pé. A comida, havia racionamento: um quilo de açúcar por semana, uma barra de sabão. Convidava portugueses a almoçar lá em casa. Como gosto de cozinhar, fazia tubarão (que se salga como o bacalhau) como se fosse bacalhau à Gomes de Sá, pastéis de bacalhau, bacalhau à Brás. Fazíamos manteiga em casa, a partir das natas do leite. Só havia um bolo na pastelaria, o bolo inglês. Eu trabalhava à noite fumando cachimbo, bebendo whisky e comendo bolo inglês! Era uma coisa, pá, fantástica! E a gente a sentir de mês para mês as coisas a mudarem…

 

É como se tivesse vivido um 25 de Abril lá. Essa descrição que faz, essa exaltação colectiva, faz parte dos relatos da Revolução.

Sim, também vivi o 25 de Abril cá. Mas isto [Portugal] era uma sociedade mais avançada, mais acabada. Lá não havia nada. Havia tanta coisa para fazer que qualquer contribuição tinha um grande efeito. Fiz quase três anos e depois vim embora. Mas não faz parte da minha maneira de ser: “Estou a gostar tanto, fico por lá”. Fui por um ano, renovei por mais um, e mais um.

 

Que veio fazer para Lisboa?

Vim para o LNEC e era consultor de uma empresa de projectos. Pensei retomar a tese. Passado nem um mês, o Partido fez-me o desafio de ir tomar conta dessas empresas. Desisti da tese, saí de vez do Laboratório. Quando saí expulso do Partido, não tinha nenhum emprego, nenhum ponto de recuo. É o problema da confiança de que falava… Eu sei fazer várias coisas, alguma coisa hei-de conseguir fazer. Optei por formar uma empresa com mais duas pessoas. Ganhava-se mais dinheiro. Fiquei a trabalhar nela até 96.

 

Quando é que voltou a ter actividade política?

Envolvi-me nos Estados Gerais – aí é que conheci o José Sócrates. Tivemos algumas reuniões (como ele estava na área do ambiente); lá defendi o que é que pensava naquelas matérias. Foi uma surpresa quando em 1996 ele e a Elisa Ferreira me convidaram para presidir ao Grupo Águas de Portugal. Aceitei.

 

Porque é que foi uma surpresa?

Porque não estava à espera. Pela tal coisa: não faz parte dos meus planos trabalhar para ver se sou presidente das Águas de Portugal. [risos] Não estou a dizer que fazer de outra maneira não é legítimo ou correcto. Não é a minha [maneira]. Não é: “Agora o PS está no poder, tenho de arranjar maneira de ir para isto ou para aquilo”. Sou tentado a pensar assim: “As pessoas que me conhecem, com quem trabalho, a quem dou toda a colaboração – nunca pus condições – se acharem que há alguma coisa que posso fazer e me perguntarem e eu achar que sim, farei”.

 

A relação de trabalho com Sócrates começa, então, aí, nas Águas de Portugal.

Sim. Até que chegou ao fim. O Ministro Isaltino de Morais disse-me logo que eu não ia continuar. Explicou-me que não tinha que ver com competência, que até tinha uma excelente opinião do que eu estava a fazer, mas que a vida era assim e que eu certamente compreendia… Disse logo que compreendia perfeitamente! Que estes cargos devem ser exercidos por quem se tem confiança, também política. Nem eu próprio sabia se ia estar de acordo com a política que o Governo PSD queria para as Águas de Portugal. Naturalíssimo. Dediquei-me a trabalho de consultoria e ganhava assim a minha vida. 

 

Nunca nada o angustia?

Não sou dado a angústias. Penso muitas vezes: se estiver numa sala de cinema, às escuras, a sala cheia, e alguém grita “fogo”, e começa toda a gente a correr, o que é que eu faço? Tenho a certeza que não corro, não grito e não faço nada que não seja pensado. É muito difícil entrar em pânico.

 

Nunca perdeu o controlo?

Uma vez estive quase a afogar-me e [risos] perdi o controlo. Foi uma das vezes em que fiquei com a sensação: agora é que não tenho nada para fazer. Sei nadar mal e atrapalho-me. Posso nadar onde há pé sem pôr os pés no chão, mas se sei que não há pé fico apreensivo. Fico apreensivo mas não entro em pânico. Não me dá para gritar, ou chorar, ou agarrar-me a qualquer coisa. Sou muito racional.

 

O que é curioso é que a sua área é a hidráulica. E essa situação em que perdeu o controlo foi a nadar…

[gargalhada] Agora, há coisas que não me meto a fazer: “Não quer aproveitar para fazer jumping jump?” Nem pensar nisso!

 

A imagem que as pessoas têm de si é que é um pândego. De ser mais visceral do que racional.  

Também é verdade. Assim como não tenho o melhor livro ou a melhor paisagem ou a melhor cidade que visitei, também não há acontecimento que mais me marcou. Sou engenheiro e podia ter sido pianista; não tenho dúvida que não seria pior.

 

Significa que vai aos concertos da Gulbenkian e não sente tristeza por não ter tido aquela vida?

Não. Penso que gosto muito de música. Que com aquilo me sentiria bem.

 

Decidiu-se pela Matemática.

Não me angustia ter que decidir. Se é preciso cortar com uma coisa, corto. Não tenho arrependimentos, [ou uma sensação] de perda. Chateia-me mais pensar que não decidi bem. Não sou dado a estados de alma. Esta actividade, aqui, é muito intensa; eu durmo muito bem, como bem, não tenho pesadelos. Quer dizer, [gargalhada] estou satisfeito comigo próprio!

 

É determinado. Não teme nunca as consequências?

Não temo as consequências mas preparo-me para as afrontar, e conto com elas. Uma pessoa aceita vir para o Governo e sabe que isto vai ter consequências. Para a família, para uma quantidade de coisas. “Afrontas as consequências ou não? Afronto”. A partir daí, ninguém me ouve dizer: “Ai, estou muito cansado, ai, se eu soubesse…”. Eu já sabia. Em pormenor, no concreto, não sabia se era assim ou assado. Agora, que ia ser difícil?, isso já sabia, não vale a pena lastimar depois.

 

Falemos, por fim, do cachimbo. Quando é que o cachimbo apareceu na sua vida?

Aos 18 anos. O meu pai fumava cigarros. Não era suposto fumar-se em casa, à frente dos pais. Já no Técnico fumei uns cigarros, dois ou três meses. Eh, pá, aquilo não me satisfazia. Um dia, fumei cachimbo e gostei do sabor, do cheiro.

 

Tem um lado ritualístico.

Tem. Ocorre frequentemente: estou a pensar, a trabalhar, “como é que vou resolver este problema?”. Pego no cachimbo, começo a carregar…, este ritual ajuda-me a reflectir.

 

Que relação tem com o objecto? Neste caso, com os vários objectos.

Fumo cachimbos da marca Peterson. Gosto da madeira que utilizam, do design, da forma como se penduram na boca.

 

Gosta de o tocar? Há nisto um lado fetichista.

Talvez, talvez. Nunca fumo em jejum nem no quarto. Fumo desde que tomo o pequeno-almoço até ir deitar-me. Permanentemente. Ando sempre com 10, 12 cachimbos na pasta. As peças essenciais são duas: o escovilhão e o calcador.

[vai à secretária e mostra]

 

O escovilhão limpa e desentope. O calcador tem uma parte que mais parece um objecto de perfuração.

Nos aeroportos, “mostre lá”, pensam que é um canivete. Tenho os cachimbos da pasta, um em casa, outro no carro, outro na casa da Ericeira. Se um dia me esqueço da pasta e fico sem cachimbos, fico inquieto.

 

Toca-o como se fosse uma extensão do seu corpo.

Talvez. Nunca pensei nisso.

 

Quase o acaricia. Não pega nele de modo desligado. Fá-lo com segurança, hábito e uma certa volúpia. 

É. Há uma afectividade pelo cachimbo. E gosto de escolher. É uma peça bonita, pá, não é?

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2009

 

Luís Sáragga Leal

22.06.14

Terça-feira de manhã, talvez demasiado cedo. Se o encontrasse à noite, por alturas de um magnífico sauterne, provavelmente a conversa seria outra. Mesmo assim, ele pediu um divã, a dada altura, e esperneou face às minhas investidas. Esperneou o suficiente, de modo a parecer decente e humilde, e não parecer nunca deselegante.

Faço uma óbvia associação (livre) com uma palavra cuja fonética se aproxima: galante. Luís Sáragga Leal é um homem galante. Pratica o estilo dos príncipes florentinos, de voz macia e olhos azuis, sempre arredados do sangue e da têmpera napolitana.

Numa manhã, a seco, depois de noites de sono curto, ele não estava disposto a embriagar-se num registo confessional. E eu percebi que mesmo com uma boa mesa e as estrelas por companhia, o cavalheiro nunca passaria determinadas marcas. Um gentleman.

Nós já nos conhecíamos e sabíamos ter em comum a paixão pelas artes plásticas. Quando falámos ao telefone, semanas antes, e já depois de eu ter pedido a entrevista, ele quis estar seguro de isto não ser um inquérito de Verão. Escusou-se delicadamente, sempre maximamente delicadamente, a abordagens mais intrusivas ao seu percurso. Apontámos uma data, uma manhã, madrugadora... Falámos do pai que foi juiz e depois advogado, dos livros do Perry Mason e do Dostoievski que marcaram as tardes da adolescência, do Sartre e do Camus que influenciaram a sua geração, do amigo António Maria Pereira com quem fundou o maior escritório de advogados do país, nos anos 60. Falámos das senhoras que ele procura quando chega a uma sala. E nem por uma vez falou da sua mãe. Falámos dos passos no tabuleiro que o fizeram ser quem é.

É o único advogado que eu conheço que tem no escritório peças de Joana Vasconcelos, Pedro Proença ou Daniel Blaufuks. Como já se disse, tem olhos azuis. Comecei por tentar saber de onde vinham...

 

Podemos começar pelo seu apelido? Vem de onde? Traz com ele uma história? Condicionou a sua história?

A história que me foi contada, vagamente romanceada, é que havia uma tribo do senhor Sáragga, do Norte de África, que se dedicava à pastorícia e que tinha gado, o que era sinal de fortuna nessa altura. Tudo se passa no princípio do século XVIII. Portugal tinha um défice alimentar e o senhor Sáragga forneceu carne ao reino, por altura das lutas liberais. Mas, como já era habitual, Portugal não só dependia alimentarmente do estrangeiro como também tinha carências financeiras; e o filho desse primeiro Sáragga terá ido a Londres negociar os financiamentos para o fornecimento de carne à coroa portuguesa. E aí terá encontrado a filha de um banqueiro... Desta conjugação comercial e financeira terá nascido a primeira família Sáragga em Portugal.

 

Em todos os enredos, atravessando as grandes decisões, encontramos sempre “la petite histoire”...

Não me preocupo muito com a genealogia. Tenho mais a ver, talvez, com o aspecto nómada do Norte de África - estou mesmo a vê-lo, o Sáragga, se calhar poligâmico... - , do que tenho a ver com o outro ramo da família, instalado em Londres, mais financeiro, cheio de rigores. Esse lado é muito dominante noutras pessoas da família, mas em mim não.


Ainda que a sua área preferencial, enquanto advogado, seja a financeira.

Sim, é o direito dos negócios. Gosto mais de dizer em inglês. Em Portugal “negócios” é uma palavra que está um bocadinho desvalorizada. Quase que se associa a negociatas. Mas é a minha área de actividade, o “business law”, e isso comporta o direito financeiro, os grandes projectos.

 

E a história prossegue, a partir desse cruzamento em Londres?

O jovem casal instala-se em Portugal e a família remonta a essa altura. Depois, há um elemento da família que é associado ao grupo dos Vencidos da Vida, das Conferências do Casino: o Salomão Sáragga, que foi colega do Eça e dessa geração. Não há muito mais, que eu saiba, laços artísticos na família.

 

Este intróito levanta duas questões: o que faz com que as pessoas se distingam e fiquem? Porque apontando com anos de distância, destaca apenas esses nomes e não outros. E depois, perceber que expectativa há em relação às gerações vindouras. Voltando à minha pergunta inicial, como é que isso condicionou a sua vida?

A minha vida foi determinada por factores muito mais recentes, e não tanto pelos meus antepassados, se é que essa história se confirma. A minha opção pelo Direito surgiu com alguma naturalidade porque o meu pai era juiz, e mais tarde foi advogado, já eu era também advogado. Portanto, sou advogado há mais tempo que o meu pai!

 

O que é que o fez abandonar a magistratura? Não é um percurso muito comum...

Não, não é, mas não foi um salto directo da magistratura para a advocacia, entre uma e outra teve funções políticas. Foi uma influência não só do meu pai, mas também da biblioteca jurídica que existia lá em casa. Sempre gostei muito de ler. Lia o que estava à mão e nessa altura li mais boletins do Ministério da Justiça do que, depois, na minha vida profissional. Tenho-me perguntado muitas vezes o que é que teria sido se não tivesse sido advogado. E certamente teria sido qualquer coisa no sector das artes. Talvez arquitecto. Tenho jeito e tenho alguma experiência a fazer e a desfazer casas. Mas nas artes plásticas sou bastante mais apreciativo do que activo. E nas grandes paixões da vida as pessoas não podem ser só contemplativas, têm que ser activas.


Se daqui a 50 anos eu falar com um Sáragga, ele pode referir-se a si, sobretudo, como alguém que investiu em arte? Alguém que tinha com a arte uma relação contemplativa e de fruição.

Hoje tudo é muito efémero. Vivemos numa sociedade de imensa informação e a triagem do tempo vai deixar tudo em cinzas. Não estou convencido que daqui a 50 anos eu seja recordado pelo que fiz. Se tivesse que resumir a minha vida hoje diria que tive um percurso profissional intenso. Contribuí para o nascimento de um dos primeiros escritórios organizados em Portugal e que continua a ser um escritório líder. Embora tenha começado só com o António Maria Pereira, agora somos mais de 200. A minha matriz profissional é muito mais a de um advogado em prática isolada do que a de um sócio de uma grande sociedade. Mas enfim, a evolução foi essa.

 

Perguntei pelo que fica de uma pessoa, de como a evocam. Do que me fala é do que o distingue profissionalmente, da capacidade de construir de raiz uma coisa que perdura e que, passados 40 anos, é líder. É uma coisa de que se sente especialmente orgulhoso?

Sinto. Neste momento as sociedades de advogados estão envoltas numa grande polémica. É um período de transição em que cada vez mais é notória uma distinção - espero que não venha a ser uma fractura -, entre uma forma mais tradicional de exercer a advocacia, e foi assim que eu comecei, e a forma organizativa como essa profissão é hoje exercida, que é a forma societária. Mas a raiz tem que ser a mesma: a advocacia. Mas o que me motiva mais é a minha relação com as artes, que sempre existiu, mas que esteve adormecida ou desvalorizada. A minha vida profissional condicionou toda a outra minha vida: a vida familiar, a vida afectiva, inclusivamente a relação com os amigos. Hoje condiciona-me menos...

 

Que idade tem?

Se esta entrevista tivesse sido feita antes do dia 23 de Junho eu tinha 50 e tal anos... Fiz 60 agora.

 

Ter 60 anos, um número redondo, fá-lo fazer contas com a vida?

A vida é um privilégio, é um dom que recebemos e devíamos desfrutá-la da maneira mais intensa possível. E estou sempre a fazer um balanço da minha vida.

 

É isso que o faz recomeçar abundantes vezes? Há bocadinho estava a dizer que tinha uma grande experiência em fazer e desfazer casas. Estava a referir-se a experiências afectivas ou a uma interrogação sistemática e implacável à nossa vida?

Eu gosto bastante mais de ir para qualquer lado do que estar em qualquer lado. Quando realizo um projecto, esse projecto, normalmente, deixa de ter interesse. Gosto muito mais de ter desafios e de sentir que estou em evolução, em direcção a qualquer coisa, do que a noção de que já lá cheguei e que estou instalado confortavelmente nessa situação. Isto é verdade quer em termos profissionais, quer em termos afectivos. Sou muito mais uma pessoa que busca a felicidade do que vive em felicidade.

 

Não ouvi bem: vive a infelicidade?

Vivo em felicidade. A infelicidade, não sou capaz.

 

E sabe porquê? A maior parte das pessoas, paradoxalmente, vive numa relativa infelicidade sem ser capaz de romper com isso.

As pessoas procuram situações cómodas, definidas, estáveis. Gostam de estar. Eu gosto de me questionar, gosto de me desafiar, gosto de ir à procura, nem sempre tendo a certeza se encontro ou não. Esta atitude é talvez da minha maneira de ser. Amigas minhas dizem que sou um ansioso, um inquieto, estou sempre em busca de qualquer coisa.

 

É um “buscador”.

Um “buscador”, não sei se a palavra existe [nota: existe sim, segundo o dicionário Aurélio]. Sou certamente uma pessoa inquieta e por isso estou sempre a fazer uma avaliação do que foi o meu percurso em todos os sectores. Se fiz uma boa gestão do meu tempo, como é que posso melhorar essa gestão amanhã. Sempre me angustiaram as horas perdidas, as horas em que não se faz nada. Porque essas horas que se vivem pouco intensamente já não são transferíveis para um dia futuro. É um pouco como os lugares dos aviões: ou se vendem ou não podem ficar em stock para ser revendidos noutra altura. Eu tenho que saber o que vou fazer para merecer estar vivo.

 

Deixe-me ir ainda mais fundo e interrogar essa urgência.

Um divã, já! Eu que nunca fui a um psicanalista estou quase a ser psicanalisado...

 

Não foi? Com tanta ansiedade...

Todos nós fazemos psicanálise, ao conversarmos...

 

A psicanálise é mais impiedosa e feita com alguém que é neutro.

Por isso é que lhe estou a dizer: está a começar a fazer-me aqui psicanálise.

 

Eu estava a tentar saber da urgência. O que descreve é uma urgência em viver, em estar intimamente com a vida.

Vamos agora dar explicações em relação a uma área que nos une: as artes plásticas. Tenho uma grande paixão, é talvez a mais constante ao longo da vida, pelas artes plásticas. Mesmo nesse sector, e agora que tenho mais disponibilidade e tempo, passo a vida a querer ir mais além. Dando-lhe um exemplo: o trabalho da Fundação [PLMJ]. Começámos com um projecto pouco ambicioso quando mudámos para este escritório, e que foi encontrar algum acontecimento que celebrasse 30 anos de vida da sociedade. Convenci os meus sócios que a melhor forma era fazer uma exposição. Como tenho boas relações com galerias e pintores, consegui reunir cerca 180 obras de 80 artistas diferentes, que deram um panorama da produção artística nacional dos anos 80 até à actualidade.

 

Porque é que se concentraram nesse período?

Porque para trás as obras são mais raras, difíceis de encontrar, e essa raridade e dificuldade transformam-se num outro óbice, o financeiro. Foi assim que lançámos a base da nossa colecção, há quase dez anos. Começou com cerca de 40 obras, e desde então tenho perseguido esse projecto que levou à constituição da Fundação. Hoje temos uma colecção de pintura que vai-se aproximando a 200 obras de pintura, 50 obras de escultura e, mais recentemente, a colecção de fotografia.

 

Da paixão pela pintura, passou para a fotografia. O vosso acervo fotográfico é especialmente notado.

Eu não estava desperto para a fotografia e fui provocado por dois amigos, críticos de arte, “você já sabe alguma coisa de pintura, devia agora dispor-se à fotografia”. Foi um desafio. Comprei os livros, assinei as revistas, comecei a ir a exposições.

 

Quando falámos há semanas para marcar esta entrevista, disse-me que ia a Barcelona e eu sugeri-lhe a exposição da Diane Arbus que aí se pode ver. Foi? É só para saber o que faz do que lhe dizem...

Fui. A fotografia foi uma paixão avassaladora. As paixões também se vivem desta maneira, o último pensamento antes de adormecermos e dos primeiros quando acordamos. Permitiu-me constituir o que é hoje, talvez, a colecção antológica mais representativa da fotografia portuguesa, dos anos 40/50 até à actualidade. Temos neste momento em acervo mais de 600 fotografias, representando mais de 150 artistas nacionais. Pode parecer fácil, mas para quem numa fase já adiantada da sua vida abre os olhos para a fotografia, é um esforço importante de aprendizagem, de selectividade. Comprar a eito não tem graça, é preciso comprar com critério.

 

De facto, era mais certo fixar-se no Caravaggio e nas referências clássicas. É menos previsível que uma pessoa com o seu estatuto social se interesse por jovens artistas que vivem em Berlim num contexto mais ou menos comunitário. Mas tergiversámos, onde nós estávamos era na sua interrogação e interpelação à vida...

Mas foi intencional!, ainda não acabei. Deixe-me falar-lhe da minha nova paixão, que é o vídeo. Se a fotografia foi a forma de expressão plástica por excelência do fim do século XX, o vídeo vai ser a forma de expressão plástica do princípio do século XXI. A fotografia deu um grande salto com as novas tecnologias. Pode-se gostar muito de Fernando Lemos, que está nesta sala, e de todos os que estiveram na exposição Em Foco (pioneiros que usavam o negativo a preto e branco, em suporte analógico, e máquinas com limitações do ponto de vista mecânico). Mas nesta mesma sala, no extremo oposto, temos uma fotografia da Rita Sobral Campos que não era possível, pelas suas dimensões e características, há 20 anos. Se há seis, oito anos, assisti à erupção da fotografia nas principais mostras, diria que mais de 50% das peças apresentadas na última Bienal de Veneza, a mais vanguardista das mostras, era vídeo.

 

Como é que se sente nesses ambientes? Como é que um senhor advogado, e dito desta maneira não estou a envelhecê-lo, estou só a sublinhar o seu porte, se sente em Veneza ou em Basel?

Tenho uma personalidade multifacetada, está-me a ver aqui às dez da manhã, de fato azul escuro, gravatinha, na minha faceta de advogado. Se me encontrasse em Veneza ou em Basel encontrar-me-ia de jeans, t-shirt, com outro semblante. Quando se vai a estes sítios vai-se para tentar perceber, para fazer uma reciclagem visual do que está a ser feito.

 

Vamos imaginar que a sua vida é posta em exposição. Há diferentes maneiras de organizar esta exposição: cronologicamente, tematicamente, geograficamente, ou até conjugalmente. Como seria a sua?

A minha vida não seria tanto em fases... A minha vida, se hoje a quisesse caracterizar, é mais pela ideia de esforço. Tenho uma forte componente profissional, como já lhe disse. Outra constante têm sido as amizades e os afectos. Sou extremamente afectivo, sentimental, cultivo imenso as amizades, sobretudo as femininas.

 

No fundo, no fundo, tem um certo prazer nisso...

Tenho. Não posso agora negar o meu percurso de vida... A terceira [ideia dominante] é a dos desafios e riscos. Gosto de me desafiar permanentemente, em todos os sectores, mesmo profissionalmente. Não quero estar a fazer hoje o que aprendi há cinco anos - isso está feito e dominado. Era talvez mais cómodo, e até mais rentável, mas não era estimulante.

 

Percebo que o seu caminho é mais um contínuo do que uma divisão em diferentes compartimentos, diferentes salas de exposição. Mas ainda não percebi o que é que o faz correr.

Eu também não lhe disse que corria. Disse-lhe que estava num percurso. Às vezes num passo mais acelerado, quando tenho objectivos mais determinados para atingir. Não procuro a notoriedade, sou uma pessoa discreta. Profissionalmente posso orgulhar-me do passado que tive, embora espere ter ainda futuro. E nas outras eleições, também não me desgosta o que vejo e estou convicto que vou ter outros desafios.

 

Não se sente, apesar dos 60 anos, acabado. Estaria sempre pronto para começar de novo, amanhã?

Tem sido uma pergunta que me tenho posto. Se ainda tenho tempo para ter um grande desafio pela frente. E não sei. Não sei responder porque esse desafio ainda não apareceu. Mas se esse desafio aparecer, vou com certeza encontrar a vida para o viver.

 

Gostava que aparecesse?

Gostava. Não me vejo nada com vida de reformado, com pequenos hobbies, a fazer colecções. Gosto imenso de viajar, de agarrar o ritmo, o estilo do sítio para onde vou; e não ir com a pele de europeu, a máquina fotográfica... Procuro muito mais sensações do que imagens fotográficas. Não tenho álbuns de fotografia.

 

Parece procurar a espessura de uma personagem de romance, de um protagonista. Cada um de nós identifica-se sempre com o herói, e tanto melhor e mais fácil a identificação se ele tiver fraquezas, vulnerabilidades.

A maior parte das pessoas gostava de personificar um ideal, e muitas vezes vive em função desse arquétipo, que construiu e que quer deixar a alguém. Não vivo em função disso. Não tenho nenhum ideal que gostaria de ter sido ou de ser. Como também não tenho heróis. Se me perguntasse quem é a pessoa que mais admiro, teria alguma dificuldade em apontar.

 

Mas é uma boa questão, essa.

Não consigo dizer. Teria que ir buscar bocadinhos de 100 pessoas e era difícil explicar qual era o bocadinho que ia buscar a cada uma delas. Vou vivendo em funções dos estímulos, das paixões.


Estava a lembrar-me de Ulisses. As pessoas têm a ideia de que regressa para Penélope, que esperou por ele 20 anos, fazendo e desfazendo a teia. Mas a verdade é que depois do reencontro com a mulher, Ulisses vai ao encontro da casa da sua infância, a casa do seu pai. É uma coisa comoventíssima. Posta em linguagem de Verão, faz perguntar a que casa queremos voltar?, a que pessoa queremos agradar?

Não tenho os heróis com quem me procuro identificar, não tenho esses referenciais passados, não tenho uma imagem que queria construir para impressionar a, b ou c. E sobretudo para impressionar terceiros indeterminados.

 

Não estou a falar de impressionar a opinião pública, mas um ser concreto.

Neste momento estou estimuladíssimo a tentar impressioná-la a si.

 

Porquê? Por que é que a minha opinião lhe interessa?

Porque estamos a conversar. Não tenho essa vontade de ser reconhecido e consagrado.

 

Isso já é.

Não disse em pequenino: “Quero ser advogado, muito famoso e fazer um escritório”. Foi-me acontecendo na vida.

 

Para além da leitura dos boletins do seu pai, leu nas intermináveis tardes de Verão o Doistoievski?

Li.

 

Isso sim, marca um indivíduo.
Marca, marca de uma maneira mais intelectual. Pensei que me ia falar do Perry Mason. Eu lia indiscriminadamente. A minha geração foi influenciada pelo Sartre, pela Simone de Beauvoir, Camus, “O Mito de Sísifo”...

 

“O Mito de Sísifo”? Faz sentido...

Estou sempre a começar. Estou a empurrar a pedra pela montanha acima e quando lá chego, acho que não já não há mais montanha. Provavelmente, não consigo aguentar a pedra quando não há um objectivo para a fazer rolar, e deixo-a cair. Identifico-me bastante com essa imagem do mito de Sísifo. É uma maneira de dizer que na minha opção como advogado, no extremo oposto dos existencialistas e dos nihilistas, (o Nietzsche também me marcou nos primeiros anos), marcaram-me os livros do Perry Mason, que é uma coisa bastante prosaica. Esta imagem do advogado, que à última da hora resolve todos os problemas, fascinou-me.

 

O que é que o fascinava, exactamente? Resolver todos os problemas? Desvendar a intriga? É que são duas coisas, embora estejam muitas vezes ligadas.

O que é aliciante na advocacia, além de descobrir a verdade, mas isso é mais para quem faz processo penal, é que é um jogo de inteligência e de estratégia. São duas características do xadrez. A advocacia, para mim, é a aplicação deste princípio fundamental do xadrez: a definição de uma estratégia para atingir um objectivo. O objectivo é ganhar o rei. Gosto mais do objectivo de conquistar a dama, mas enfim, no xadrez é o rei...

 

E isso serve para quê? O que é que se ganha quando se conquista a dama ou rei?

Já sei que estava a pensar que é o dinheiro. Não é.

 

Nem por sombras. Tenho a convicção de que o dinheiro interessa pouco, ultrapassado um determinado patamar.

Não me acrescenta. Acrescenta-me realmente o gozo profissional de ser bem sucedido. Embora não seja daqueles fundamentalistas que tentam impor-se de uma forma impositiva aos colegas e à parte contrária. Prefiro ganhar com elegância, com subtileza, do que com estrondo e sangue. Sobretudo numa negociação, quando se começa a fazer sangue, dificilmente se é bem-sucedido.

 

Essa questão da elegância é importante, não é?

É, muito importante. Na advocacia e em tudo na vida.

 

Sentiria embaraço, ou mesmo vergonha, se a situação resvalasse para o sangue e se tornasse deselegante?

Prefiro não o fazer.

 

Tem sentimentos de culpa?

Tenho, em relação a todas as pessoas que me rodeiam, que de uma maneira ou de outra dependem de mim ou com quem me cruzo na vida.

 

Esta pergunta pode parecer extemporânea, mas estava a pensar que toda esta conversa é demasiado olhos azuis... Tem de haver aqui um bocadinho de sangue. E o sangue, ou essa parte mais vulnerável, talvez passe pela culpa.

Todos nós nos cruzamos na vida, profissional, afectiva e outras, e a quem numas agradamos a outras desagradamos. Sou capaz de ser determinado na busca da felicidade. Mas a busca da felicidade quando é desnecessária e abusivamente feita à custa da felicidade de outra pessoa, é diminuída. Tenho alguma preocupação com o desgosto, com o desconforto que provoco nas outras pessoas e, na vida profissional, com o sentimento de derrota ou insucesso que inflijo às outras pessoas.

 

Quis ser magnânimo?

Quer-me apanhar... “Faz aos outros aquilo que gostas ou gostaste que te tivessem feito a ti”. A prática neste escritório, e posso orgulhar-me de ter sido eu a inspirá-la, é que, se eu ambicionei e consegui ser sócio deste escritório, todas as pessoas que aqui entram, desde os mais jovens, até os estagiários, podem também ambicionar a ser sócios.

 

O que é que isso na prática quer dizer?

Somos o escritório que tem o maior número de sócios e de chamados associados seniores ou de júnior partners, em que há uma maior democracia. Temos a preocupação constante que um advogado, por muito jovem que seja, não se proletarize, não passe a ser um prestador de serviços jurídicos. Que seja um advogado com as mesmas características, com a mesma matriz que seria se estivesse sozinho.

 

Quer falar-me desse encontro, que imagino determinante, com o António Maria Pereira?

Foi determinante, muito determinante. E já deu para perceber, como sou um afectivo, que reconheço o valor dos outros e os contributos que tiveram para a minha vida. O António Maria teve um grande contributo. Comecei a trabalhar com ele mesmo antes de me formar, tinha acabado o meu terceiro ano. À tarde. Aproveitei essa oportunidade que ele me deu intensamente.

 

Que expectativas tinha? Que tipo de advogado queria ser?

Não tinha qualquer expectativa. Em Portugal não havia sociedades de advogados nessa altura. O António Maria trabalhava sozinho e criou-se uma empatia e uma amizade extraordinária entre nós, apesar de ele ser mais velho do que eu. Foi estruturante na minha maneira de ser, no meu estilo profissional, também. Acho que foi da conjugação, entre aquilo que ele me deixou fazer, o meu empenhamento em fazer, e, se calhar, a capacidade para ir fazendo, que resultou o sucesso deste escritório.

 

Quando foi trabalhar com o António Maria Pereira, ainda estudante, era porque queria aprender?, porque se queria independentizar?, porque queria ganhar dinheiro?

Era tudo isso, resumiu bem. Tinha uma curiosidade imensa. Estava a investir cinco anos da minha vida a tirar um curso e queria saber para que é que ele servia, o que é que iria fazer depois desses cinco anos. A maior parte das pessoas hoje, os jovens, não têm essa curiosidade – o que é que vão fazer da sua vida.

 

Mas sabia o que ia fazer à sua vida?

Estava perfeitamente determinado a ser advogado. O direito é um gosto, foi uma escolha, da qual não estou arrependido. Sabia que queria ser advogado, mas não sabia o que era ser advogado. A minha influência ainda era um bocadinho o Dostoievski, por um lado, e o Perry Manson, por outro. Quando comecei a ver os primeiros julgamentos, com o António Maria e outros colegas, é que comecei a ver como é que era a vida de advogado. A influência do António Maria foi muito grande, não só por aquilo que me ensinou mas também por aquilo que me permitiu aprender.

 

Está a sublinhar a diferença entre aprender e ser ensinado porquê?

Na vida é muito mais importante o que aprendemos do que o que nos ensinam. Aquilo que nos ensinam acaba por passar muito mais depressa do que aquilo que aprendemos com as nossas próprias dificuldades.

 

Vamos imaginar que isto é uma sala de refeições e não uma sala de reuniões. Se não conhecesse os outros comensais, de que é que falaria com eles? As obras de arte são sempre um bom tópico, especialmente para começar a conversa... Nesta sala há algumas peças maravilhosas. Botelho, ao fundo, ou Fernando Lemos e Rita Sobral Campos a que já fez referência.

Primeiro, faria uma selecção com quem é que iria falar. Muito provavelmente, se estivessem senhoras, faria essa primeira selecção. Tenho muito mais empatia com as mulheres do que com os homens. Depois, procuraria a linguagem do olhar. As pessoas que não conseguem suportar um olhar, que não dialogam com os olhos, interessam-me menos. Feitas estas duas limitações, ou exclusões, o tema poderia passar pela arte. Mas poderia passar por perguntar qual a razão de estar nesta sala, qual a razão que nos fez estar juntos hoje. Quando se põem problemas abstractos suscitam-se respostas mais imaginativas e criativas. Quando se fala sobre coisas evidentes e concretas, como o quadro e a fotografias, as pessoas ficam limitadas à partida sobre a resposta que vão dar.

 

As perguntas mais abstractas suscitam respostas criativas, de acordo. Mas também é certo que as perguntas simples, como “é feliz ou infeliz?”, provocam no outro um desconcerto incrível.

Esta conversa já foi elucidativa. Disse coisas que normalmente não diria...


Sente-se desconfortável de as ter dito?

Não, prefiro uma conversa deste tipo aos inquéritos de verão, “qual é o seu restaurante favorito?, qual é a sua cidade e o livro que está a ler?”.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2006

 

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