Rui Veloso
Espero na sala com vista para o jardim. Uma empregada brasileira instala-me enquanto ele vai buscar as crianças. As crianças são os filhos, os primos e amigos destes, que entram depois com grande estrépito e perguntam entre si «Que é que vamos fazer? O que é que te apetece fazer?». É meio-dia e meia. Ocorre-me que a substancial diferença entre as crianças e os adultos é que aquelas formulam as perguntas com uma precisão que estes, por força da dispersão e da vida, deixam de saber fazer. Às vezes, pode ser tão simples quanto saber o que se quer fazer.
Rui Veloso sempre soube que gostava da música. Da música que era um sinónimo de perdição num Portugal recém instalado da democracia, titubeante nas perspectivas que oferecia a uma juventude ansiosa. Ele queria ser músico. De rock. Atrever-se a cantar «merda na algibeira», e de isso ser o haxixe que se fumava com gozo e atordoamento na roda de amigos. Chico Fininho, oohooh.
Foi então que lhe chamaram «O pai do rock português», a ele, tripeiro, de figura franzina, óculos escuros, atitude cool. Nessa altura ele ouvia Ry Cooder, respirava uma ambiência de cordas que transportava para as canções que fazia. Depois integrou Stevie Wonder, Tom Waits, alguns nomes improváveis. Fez canções que não eram canções de rock num sentido estrito. Metamorfoseou-se de Mingos, um rapaz igual aos trolhas da Areosa, que empenha o anel de rubi para levar a amada ao Rivoli, que desconfia que o mundo inteiro se uniu para o tramar...
Foi o filho da vizinha do lado, a cantar a vida e as ralações de todos os dias. Vendeu centenas de milhar de discos, uma coisa nunca vista.
Foi com o dinheiro dessa aventura, a de Mingos e do seu grupo, «Os samurais», que começou a comprar estar casa, escondida numa aldeia a 30 ou 40 km de Lisboa. Uma casa imensa que recuperou palmo a palmo. Mais o jardim, a piscina, o estúdio de gravação que fez de raiz.
Na sala há os discos arrumados por ordem alfabética, e há fotografias desordenadas, consoante são os afectos. Há o pai e mãe, em cima do piano. O pai, que está sempre a dar-lhe cabo da cabeça para que toque coisas do «Auto da Pimenta» (uma ode aos Descobrimentos), que é o disco do filho de que mais gosta. A mãe, que iniciou todo o processo quando se plantou na editora com gravações caseiras debaixo do braço.
Eu conhecia o Rui Veloso faz anos. Sabia do seu imenso amor pela música – ele pode meter-se no avião e ir a Londres ou a Frankfurt, de propósito, ver um grupo como os Steely Dan; e não é pelo investimento profissional, “aquilo não é uma feira discográfica...”; é porque grama aquela música.
O que não conhecia no Rui Veloso era o recorte da sua insegurança. Foi tocante que o revelasse. Confirmou-o como um rapaz da nossa rua, com a vulnerabilidade e a imperfeição que assiste aos humanos. Quê? O Rui Veloso que se mantém no topo disco após disco, desde há anos, o artista português que mais vendeu no ano passado, com medo que lhe fujam as canções? Ele ainda é esse. E é um pai babado que apresenta o filho que reconhece a guitarra de Carlos Santana, e que ele, pai, gosta de levar ao barbeiro.
Rui Veloso tem 47 anos. Escreve canções que as pessoas gostam de cantar.
O disco acústico, que faz uma revisitação da sua carreira, foi o álbum português mais vendido em 2003. Quando ouvi o disco a primeira vez dei-me conta de que conheço quase todas as canções e que, além disso, sei cantá-las. Quer dizer, compõe melodias que perduram. Sejam as do «Ar de Rock», que têm 25 anos, sejam as da odisseia «Mingos e os Samurais».
O John Coltrane dizia (vindo do John Coltrane é curioso): “if the people on the street can’t sing it, you don’t have a song”. A canção popular é como a anedota. O processo de composição até a pessoa na rua cantar a canção é uma coisa extraordinária.
Como é que sabe que tem «a» canção? Antes mesmo de a canção eclodir, percebe que aquela é que vai ser?
Não, isso nunca sei. A composição é um processo de busca muito solitário. Anda-se ali à volta, à procura de uma coisa que seja harmónica. Sei quando uma canção está feita. Sinto quando faz sentido e quando não. Chame-lhe, sei lá, um hábito, um feeling. Fiz uma agora, “A Espuma das Canções”, com uma letra muito gira do [Carlos] Tê. Tinha tentado uma ou outra vez compô-la e não dava. Pus de lado, estive dois anos sem olhar para ela. Há pouco, aí uns quinze dias, fiz a canção. Ainda não está completa. Ou está. Está gravada – de outro modo perdia-a completamente, era dramático! Vou ouvi-la outra vez, ver se falta alguma coisa. Senão, fecho e acabou.
Passou por altos e baixos nestes mais de vinte anos de carreira. Nos primeiros anos teve problemas vocais sérios; deprimiu a ponto de pensar que não conseguia superá-los, que não ia cantar mais. Depois de um interregno, reapareceu com um disco óptimo, que tinha o «Porto Côvo», por exemplo.
Oitenta por cento dos problemas de voz que tive foram psicológicos. Por causa da incerteza, da falta de confiança.
A incerteza é quanto ao seu talento ou quanto ao reconhecimento dele?
Em relação a tudo. Em relação ao talento, ao meu posicionamento na música, ao que os outros pensavam de mim; ao reconhecimento, portanto. Fui sempre muito tímido e desconfiado em relação a isso. Definhei nitidamente nos primeiros dez anos, aí até 1990. Foi melhorando gradualmente a partir do álbum do «Porto Côvo» e, sobretudo, do «Mingos e os Samurais». Só há poucos anos tenho um nível de auto-confiança que me permite ir para cima do palco, não morrer de nervos, não me enganar _ não consigo ir sem as letras escritas num papel... Tive uma vez um problema, uma branca, tive que parar a música. Nunca mais me refiz disso.
O que é que o fez ficar mais seguro? A apreciação de certas pessoas?
Não faço a mínima ideia.
Mas é importante saber de que é que o seu pai gosta, de que é que o seu filho gosta, de que é que o seu agente gosta? Se eles dizem que é bom, é porque é bom?
Não, não é por isso. Houve qualquer coisa cá dentro, uma espécie de clique. Com certeza que tem a ver com o crescimento, com o inevitável crescimento. Um dia, em cima do palco, descobri: “Olha, não estou com nervos”.
Foi há quanto tempo?
Há uns seis anos.
Não tinha ideia de uma insegurança desse tamanho. Apesar dos altos e baixos, tem uma carreira de enorme sucesso. Em que termos põe, de si para si, essa insegurança?
No fundo, tem a ver com a noção de que prefiro ser discípulo. Eu cultivo a admiração pelos mestres. Sou quem sou porque tive mestres. Esta busca vai sempre ao encontro daqueles que elegemos como modelos.
É muito importante admirar?
Sem dúvida. Admirar e respeitar. O respeito também é bonito.
O Chico Buarque dizia numa entrevista que quarenta por cento das vezes, senão mais, em que subia ao palco estava ligeiramente bebido. Era a única maneira de ter coragem para enfrentar a plateia.
Também eu! Antigamente era assim. Agora é muito raro. Às vezes acontece-me ir um bocadinho tocado, porque o espectáculo atrasa-se, estou ali a beber um tintinho com a malta e vou com um ligeiro grão na asa...
De outro modo ficava tomado pelo medo?
Sim, sim. Falhavam-me os dedos... Andei anos e anos a sofrer.
Por acaso parece-me que a sua atitude é agora, de um modo geral, bastante mais descontraída.
Também tem a ver com o facto de ter vindo viver para aqui [aldeia na serra de Sintra]. Aqui não stresso. Quando saio de casa, estou no meio de pessoas que me conhecem, sou constantemente observado. Na livraria, no supermercado, na rua. O meu filho está sempre a notar, mais do que eu, que, às vezes já nem noto. Ainda ontem fomos ao barbeiro às Amoreiras e ele dizia-me: “O pai da próxima vez tem que vir disfarçado. Entrámos ali e estavam todos: olha o Rui Veloso”. É um peso constante. Consegui ter privacidade dentro destes muros.
Gosta de levar o miúdo ao barbeiro? Gosta de ser um pai que acompanha de perto?
Ele também gosta muito que eu vá ao barbeiro! A maior parte das vezes cortamos o cabelo ao mesmo tempo.
Sobre o quê é que conversa com o seu filho?
Tanta coisa... Ontem, estava a dar uma música de fundo no parque das Amoreiras e o Manel disse: “Pai, Santana”. Realmente, em fundo, lá estava a guitarra do Carlos Santana. Isso tem piada. Já se topa o ouvido do rapaz! A perspectiva do mundo de um gajo com ouvido e de um gajo sem ouvido é completamente diferente. Não tem hipótese. O gajo sem ouvido, o gajo desafinado também tem um coração, como diz a canção. “No peito de um desafinado também bate um coração” [Tom Jobim e Vinícius de Moraes], com certeza. Mas...
Mas depois, como também canta, “Não se pode amar alguém que não ouve a mesma canção”.
Outra verdade! Para mim era impossível viver com uma pessoa que não fosse sensível à música. No outro dia conheci um indivíduo no Porto, no meu restaurante, por acaso simpático, um bocado formal, que disse que não gostava de música. Fiquei a olhar, nunca tinha ouvido tal em toda a minha vida... Aquilo, sim, era uma ave rara.
Numa entrevista de 87 dizia também uma coisa espantosa: que não seria mais infeliz se fosse trolha!
Sei muito bem o que é que queria dizer e não era bem isso. Referia-me à felicidade daqueles que não têm acesso ao conhecimento. É eventualmente mais telúrica, mais rústica, mais simples. Digamos que na altura eu ansiava por uma felicidade simples, que não tivesse aquela complicação toda da minha vida.
Complicação que se traduzia em quê?
Ser famoso e ser infeliz, não ter dinheiro, não ter confiança, pensar que aquilo que fazia não prestava grande coisa. Tudo isso era fruto de ter conhecimento, informação, formação. De estar completamente deformado por essa formação toda. Ansiava a felicidade dos simples. Mas agora não digo isso.
O que é que diz?
Digo que sou uma pessoa relativamente feliz, que me considero um privilegiado. Tenho uma boa vida, não tenho nervos antes de entrar em palco, tenho um grupo bestial, vivo com a família – estive separado seis anos –, tenho a casa porreira que sonhava ter, tenho um estúdio fantástico.
É um homem de família que gosta de levar o puto ao barbeiro... Que idade têm os seus filhos?
A Joana, de um primeiro casamento, tem vinte e dois. O Manel tem oito e a Maria dez. Perdi um período grande da vida deles, e nisso fui infeliz. Esta casa foi pensada para ter família, para receber amigos. Estamos num espaço reservadíssimo, ninguém vem tirar fotografias. É importante mantermo-nos dentro das nossas quatro paredes e levarmos a vida que quisermos.
Esta casa possibilita um tipo de vida que se aproxima da vida que levou no Porto, antes de ser famoso?
Andamos todos em busca de uma coisa que eventualmente já tivemos, quando nos sentimos bem e despreocupados. “É triste ser-se crescido”, como diz a canção. Descobrimos que já não temos a rédea solta.
O que é que gostava mais de preservar, ou recuperar, desse espaço primordial?
A curiosidade. A irresponsabilidade. Não dar satisfações, não ter que sair de casa para ganhar a vida. Buscamos essa sensação, nem que seja de modo fugaz, esse retorno à infância, ou, mais ainda, à adolescência.
Mas se não foi especialmente feliz nem na infância nem na adolescência...
Não fui infeliz. Fui o típico rapaz do “Não há estrelas no céu”. A letra liga comigo, liga com o Tê, liga com muita gente. Havia alturas em que o mundo se unia para me tramar... Mas era só o meu mundo interior que ditava assim! Os meus pais, à sua maneira, fizeram o melhor que puderam para que andasse feliz.
A sua mãe fez aquela coisa comoventíssima de levar a sua cassete à editora.
A minha mãe estava tão insegura acerca do meu futuro... Eventualmente até achava piada ao que eu fazia e queria ter a certeza. Queria que alguém lá das alturas lhe dissesse: “O rapaz presta” ou “O rapaz não presta”. Eu era o filho mais velho que só ligava à música, à música que não tinha futuro em Portugal. “O que é que vai ser de nós?, o rapaz não estuda, não vai para Direito, não vai para professor”. Aproveitou uma altura em que eu estava de férias para me sacar as bobines – ela sabia que me ia passar, que me saltava a tampa.
Era já o material do «Ar de Rock»?
Tinha talvez o Chico Fininho, mas o resto eram canções em inglês, com letras do Tê. O Tê é uma parte que me falta, ou pelo contrário, uma parte que me completa. Prefiro dizer que me falta.
Que relação têm hoje? Ele continua a viver no Porto?
Falamos imenso, muito e-mail, muito telefone.
Qual das suas canções canta mais frequentemente? Pense naquela que canta no banho, ou no carro, num refrão que o acompanha numa circunstância não profissional.
Não sei... Ontem, por exemplo, acordei com uma música do Marco Paulo! É uma que tem uma melodia popular e que diz: “Nossa senhora me dê a mão”. Prendi-me pelo “Me dê a mão”, que não é o português que se escreve cá.
Mas entre as suas canções...
Ultimamente vem-me mais à cabeça o “Primeiro beijo”. É uma canção muito bem conseguida, muito bem arrancada. Aquela letra teve pelo menos três músicas diferentes: uma feita por mim, outra feita pelo Tim [Xutos e Pontapés], outra feita pelo João Gil. Depois teve uma quarta, também feita por mim; foi esta que foi gravada. Foi inspirada numa música, «Alice», do último disco do Tom Waits que vinha a ouvir no carro. Mal cheguei a casa sentei-me ao piano e fiz os dois acordes que tinha na cabeça. Pus a letra do «Primeiro beijo» à frente e entrou. Saiu de rajada.
Uma canção pode ser composta assim tão de repente? Anda à procura, à procura, depois ouve dois acordes no carro, senta-se ao piano e a coisa sai?
Sem dúvida. Já me saíram várias assim de rajada, em cinco minutos ficam feitas. Normalmente são canções que as pessoas cantam, o que é curioso.
Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em 2004