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Anabela Mota Ribeiro

Ricardo Araújo Pereira (2004)

17.06.14

Começamos por onde para encontrar o lado mais cómico disto? (parafraseando o Dinis Machado)? Como encontrar o teu lado mais cómico?

Isso é um capítulo do «Reduto Quase Final». [O Dinis] conta que uma vez caiu, partiu os dentes e pensou «Qual é o lado mais cómico disto?». Sempre que acontece alguma coisa má, mesmo que seja a ele... Sublinho: mesmo que seja a ele. Porque há uma frase, acho que do Mel Brooks, que diz: «Comédia é o telhado cair em cima de uma pessoa, tragédia é eu partir uma unha». Temos tendência para não achar muita graça às coisas que nos acontecem.

 

Como é que encontras, ou procuras (e a questão é também: procuras ou encontras), o lado cómico das situações?

É possível que esteja treinado, desperto para ver esse lado. Não sei exactamente porquê, nem quando, isso começou. Sinto que tenho um olhar infantil sobre as coisas, e isso ajuda bastante. Muitas vezes estou com outras pessoas, a ver a mesma cena e no final digo: «Repararam que o tipo não dizia os ‘eles’?», e mais ninguém tinha reparado. As pessoas, à medida que vão envelhecendo, aprendem a...

 

Normalizar?

Sim, normalizar, deixar de reparar em certas coisas. Mas as crianças apontam, dizem sempre «Isto é esquisito», «Por que é que estamos aqui?». O Einstein dizia... (Já pareço o [José] Sócrates, já fiz duas citações e ainda não passaram cinco minutos)!

 

O Mel Brooks e o Dinis Machado.

São três vezes, então. Não tinha dado por isso. Tu tiveste culpa no Dinis Machado! Eh pá, não me apetecia nada ser o Zé Sócrates da comédia.

 

Devo sublinhar que tudo o que for gravado é susceptível de ser reproduzido. A não ser que faças um pedido expresso. Mas tem graça!

Achas que sim?

 

Sim. E que tens a perder? Está bom de ver que isto vai ser uma grande embrulhada. Mas é verdade que a ordem não tem graça nenhuma. O humor, aliás, implica subversão.

- O caos é mais divertido do que a ordem. Todas as coisas têm um lado divertido. Eh pá, já ia fazer outra citação!, isto é muito mau! Conheces o livro do Jorge Amado «Dona Flor e seus dois maridos»? Há um que é mais espampanante e gosta de farra e outro que é ordenadíssimo, meticuloso. Mas a ordem desse tem muita graça, o facto de ter as camisas expostas por cores...

 

Para te ajudar nas citações, o lado arrumado e aprumado do Jacques Tati tem muita graça.

Agrada-me muito ver o lado humorístico de coisas que em princípio não têm piada nenhuma. O Seinfeld faz isso muitas vezes, esse humor de observação. (Posso citar o Seinfeld!)

 

E o Einstein.

O Einstein dizia que é preciso olhar para as coisas com o olhar que uma criança teria para as pôr em causa. Se calhar, é isso que ajuda: a minha imaturidade.

 

Do Einstein para o Sócrates, o José Sócrates, insisto em perguntar o que é que tens a perder por fazeres graça com o Sócrates, ou qualquer outra pessoa. Essa não é uma das condições do humor: tudo poder ser gozável?

Precisamente.

 

Excepto o Benfica, não é?

Tenho muita dificuldade em brincar com o Benfica. As pessoas não têm muito sentido de humor em relação às coisas de que são fanáticas. 

 

Mas não aguentas mesmo graças sobre o Benfica?

Aguento, mas é das coisas que mais me custam. Choro lágrimas de sangue quando tenho que escrever textos humorísticos a fazer pouco do Benfica. Nunca penso no que tenho a perder. Se faço uma piada sobre o Sócrates, é evidente que tenho muitas coisas a perder. O Herman sentiu na pele o que é que se tem a perder por brincar com a religião, com os políticos, foi censurado várias vezes. Eu podia perfeitamente não dizer que sou de esquerda ou do Benfica. No momento em que digo, perco leitores, os mais fanáticos, pelo menos. Não é por acaso que os humoristas não exprimem... Tu não sabes quais são as posições políticas do Jay Leno.

 

Então vamos ao facto de seres de esquerda. Quando nos conhecemos, contaram-me que punhas a tocar nas Produções Fictícias música do Fanhais, que cantavas os hinos do Partido Comunista. E que davas uma parte do vencimento ao PC, à Festa do Avante...

Pagava a minha quota. Não se pode dizer que fosse uma parte do meu vencimento porque não era assim uma soma tão avultada.

 

O lado cómico disto é seres um rapaz de boas famílias, entusiasticamente de esquerda, que tem o Mário de Carvalho como referência literária, que faz humor desta maneira. Parece contraditório, improvável.

Não sei se há contradição... É evidente que não sou propriamente um operário! Não posso dizer que venha de uma família pobre, também não venho de uma família rica.

 

Consegues apresentar os teus pais, sem fazer humor sobre isso?

Agora, aqui? Não é nada de especial: são tripulantes da TAP. O meu pai é piloto e a minha mãe é assistente de bordo.

 

Faz-se graça com a mãe? Eu diria logo que é aeromoça...

Habituei-me a ouvir isso. [A profissão deles] permitiu-me viajar bastante quando era pequeno.

 

És filho único e levavam-te nas viagens.

Exactamente. Há muitas coisas da minha vida que uso, que ponho nos meus textos. Tinha uma coisa de stand up que era: «Sempre soube que não era o filho preferido dos meus pais!» – o que é muito mais chato do que é costume, sendo filho único. Não sei se escrevi alguma coisa sobre eles, mas é possível que o tenha feito.

 

Mas isso é uma graça, ou não? Sentiste-te amado, desejado, a criança na qual depositavam todas as expectativas?

Suponho que seja verdade. É difícil lidar com essas expectativas, sobretudo quando mudamos de ideias. Era suposto ser advogado. Eu queria ser advogado porque o que queria era escrever, e boa parte dos escritores são advogados. Depois, comecei a desconfiar que não era bem aquilo... Normalmente, a gente tem uma impressão bastante romântica do que é ser advogado.

 

É o que acontece quando se vê demasiadas vezes o «Testemunha de acusação», do Billy Wilder, com a Marlene Dietrich.

É isso. E aquilo, a maior parte do tempo, deve ser escrever relatórios sobre este senhor que se quer divorciar, e tal.

 

Agora, até os padres têm que aprender a preencher as fichas do IRS. Não leste o D. Policarpo? Ninguém está imune às folhas.

Apercebi-me, na altura do liceu, que provavelmente não seria aquilo, e estive a fazer o ano zero de Direito na Católica ao mesmo tempo que continuava com o 12º cá fora – o que, acho, é ilegal. Não fiz Direito e disse-lhes que queria fazer literatura. Foi uma coisa bastante chocante!, acharam que não conseguiria fazer nada com aquele curso e então convenceram-me a ir para Comunicação Social, porque, vê bem, na cabeça deles, um jornalista sim, ganha bem!

 

É preciso explicar-lhes umas coisas.

E pronto, lá fui para Comunicação Social.

 

Qual é a formação do Mário de Carvalho?

É advogado, justamente. O próprio Eça, era licenciado em Direito. O Lobo Antunes por acaso é médico, o Saramago é metalúrgico. Onde é que íamos?

 

No teu percurso.

Ainda hei-de inscrever-me em Letras. Sempre que me inscrevo, acontece-me alguma coisa. Ou tenho uma filha, ou começa um programa de televisão em que entro e que requer a minha atenção.

 

É isso que vais ser daqui a 20 anos?, alguém das letras?

Não sei. Se há três me perguntasses o que é que a minha vida ia ser, não fazia ideia que ia estar a fazer um programa na Sic Radical e a lançar um DVD. Não vou certamente ser um tipo que faz stand up comedy. As minhas referências principais no stand up são o Woody Allen e o Seinfeld. Eu tinha muito apreço por aquele ambiente, são coisas bem mais sofisticadas do que a gente acha.

 

Cheias de referências e de citações.

Justamente.

 

Também gostas dos filmes do Bergman?

Não sou grande cinéfilo. E não sou tão apaixonado pelos filmes do Bergman como o Woody Allen.

 

E da música do Cole Porter e dos irmãos Gershwin (para referenciar, ainda, o Woody Allen)?

Também não sou grande melómano. Os meus interesses vão mais para os livros. Cresci no meio dos livros da minha mãe, no meio do interesse da minha mãe pela leitura. O curso da minha mãe chamava-se Filologia Românica, (hoje Línguas e Literaturas Modernas).

 

O teu rigor em relação à língua tem que ver com a tua mãe? Eles ensinaram-te a falar bem, a escrever bem, a ser exigente com o modo de expressão?

Sem dúvida. Mesmo nas escolas onde andei, havia uma especial exigência com a língua. A palavra escrita interessou-me desde sempre. É quase milagroso as pessoas entenderem-se. «Mesa» são apenas quatro letras e as letras são os desenhos que se convencionaram que fossem aqueles, e se disser «mesa», eu imagino uma, tu imaginas outra, provavelmente nenhum dos dois imagina esta à qual estamos. E ainda assim, entendemo-nos. No outro dia estive a ler uns livros meus da primária e havia lá uma linha para «o que é queres ser quando fores grande»; escrevi «escritor e futebolista do Benfica». Se repares bem são duas profissões que vão muito a par, os futebolistas têm um talento para se exprimirem verbalmente muito interessante!

 

O nosso Dinis Machado diz, aliás, que os jogadores de futebol dantes jogavam à bola e agora dão entrevistas.

Isso é absolutamente verdade. Trocava tudo para saber jogar à bola. Dava tudo para ser o número dez do Benfica.

 

Escolhe: escrever «Fantasia para dois coronéis e uma piscina» (Mário de Carvalho) e marcar um grande golo...

Nesses termos, é muito complicado. O que proponho não é ser jogador de futebol, o que proponho é ser jogador de futebol do Benfica. Não me interessa nada se o jogo for mau, se o Benfica ganhar, fico contente.

 

Mas o que é isso? Fazer parte de uma família?

Uma pessoa é de um clube por uma razão inexplicável. O meu primo António, que me deu a catequese do Benfica, levava-me ao estádio quando era puto, e tudo aquilo me fascinava. Olhar para aquelas pessoas todas, que estavam ali ao lado e que sentia que eram como eu... Tínhamos as mesmas bandeiras e os mesmos cachecóis, era uma coisa de peregrinos. Mesmo a história do Benfica... O Benfica nasce nas traseiras de uma farmácia, com um grupo de amigos. É muito diferente da história do Sporting, que foi formado por um conde. A história do Benfica comove-me.

 

Bate certo com a história do comunismo. Como se estivesses de repente no meio dos pobres e ofendidos...

As cores são o vermelho e o branco porque são cores garridas que transmitem vivacidade e alegria. A águia simboliza a elevação de princípios. O lema é «E pluribus uno» que significa «Entre muitos, um», aquele que se distingue – que é o Benfica, claro.

 

Os teus amigos de escola eram meninos finos. Também privaste com os metalúrgicos e com os benfiquistas?

As duas coisas. Não nego que os meninos que andavam no colégio comigo...

 

Foste educado onde?

Foi sempre em colégios privados.

 

Falas nisso com os olhos baixos, como se tivesses vergonha.

Não, não tenho vergonha. Estive numa escola de freiras vicentinas até à quarta classe, em Carnide. Fui daí para o Externato da Luz, que é um colégio de frades franciscanos, que acabava no 9º ano. No 9º ano fui para um colégio no Lumiar que se chama São João de Brito, e é de jesuítas. A seguir, fui para a [Universidade] Católica que é, como sabes, de malta da Opus Dei.

 

Essa fixação religiosa era porquê?

Os meus pais não são particularmente religiosos, eu não sou baptizado. Suponho que a questão era a qualidade de ensino.

 

De qualquer modo, não há melhor pasto para fazer humor do que o religioso.

Pois. Há um preconceito universal contra o humor. O riso é tido como uma falta de respeito, a alegria é depreciada. Confunde ser sério, no sentido de ser honesto, competente, rigoroso, com ser sisudo. Em relação à Igreja, o Umberto Eco, n’«O Nome da Rosa», fala naquela ideia de os padres terem queimado o equivalente para a comédia do Aristóteles. Quem ri, põe em causa as coisas...

 

Fazer humor significa subverter uma ordem instaurada?

O humor tem muitas vertentes. Essa vertente da subversão e da crítica ao poder está presente desde sempre, desde o Gil Vicente e por aí fora. Por outro lado, o humor retira peso às coisas. Não é por acaso que sempre que há uma tragédia, no dia seguinte já há piadas sobre a tragédia. Rir alivia o problema, torna-o mais manejável, e por isso mais humano. Agrada-me muitíssimo na comédia o facto de des-sacralizar as coisas e os problemas, (e é provavelmente por isso que a Igreja não gosta). O facto de a comédia dizer: «Atenção, este senhor engravatado e Primeiro Ministro também faz cocó como nós», é uma coisa que o põe ao nosso nível, desmembra-o, desmancha a sua construção social.

 

É nesse sentido que nada nem ningiém são imunes?

Sim, parece-me que ninguém nem nada devem ser imunes ao olhar humorístico.

 

Aos dez anos, com os teus amiguinhos, já fazias graças?

Fazia. Eu tinha dez anos quando o «Tal Canal» estava no ar e lembro-me de ir para a escola repetir com marionetas os sketchs que tinha visto no dia anterior. Passei boa parte da minha infância com a minha avó, justamente por os meus pais serem da TAP e passarem largos períodos de tempo fora do país. O que é engraçado é que a casa dela, um rés-do-chão ali na Pontinha, ficava a nove portas de distância de um centro de trabalho do PCP, com bandeiras e tal, e ela passava por lá e dizia: «Estes comunistas»! Comunistas era um palavrão. As ideologias de esquerda não pegam muito no Minho porque no Minho toda a gente é dona de um pedaço de terreno. No Alentejo, como ninguém tinha nada e havia gajos que tinham muitíssimo, era mais fácil. Aquela malta do Norte é uma coisa bastante pesada, isso vê-se no... vou cair em desgraça com esta entrevista!, nos contos do Miguel Torga.

 

Tu leste o Torga?

Mas achas que o Sócrates não leu?

 

Acho que não.

Nos contos do Torga vêem-se aquelas festas de Trás-os-Montes, e no Minho era igual. Aquelas festas de aldeia que acabam com uma cena de pancadaria e às vezes morte, sabes?

 

Sei. Navalhadas.

Navalhadas e «grossa avaria na caixa do peito», como escreve o Torga. O meu bisavó morreu com uma sacholada na cabeça, na sequência de uma discussão sobre por onde é que o riacho deve decorrer.

 

A tua avó odiava os comunistas.

Sim. Faltava a luz durante a hora da telenovela e ela ficava danada: «Isto são os comunistas, de certeza, não querem que a gente veja»!

 

Que desgosto foste dar à tua avó em tornares-te comunista. Pensei que a tua avó fosse a pessoa que mais estimavas na vida.

E era. Mas a minha avó não me levou isso a mal. Quando a minha mãe lhe contou que me tinha feito militante do PCP, ficou um tempo a pensar naquilo, «É um bom rapaz, não faz mal nenhum».

 

Significa que te amava incondicionalmente.

Ela já morreu, tive um desgosto fatal nesse ano. Foi a primeira vez que me custou ter de fazer o meu trabalho, no dia a seguir à minha avó ter morrido. A minha avó foi uma influência grande. Não é uma influência como o Seinfeld. Era uma pessoa triste e até zangada com a vida, que não lhe foi nada simpática. Estavam no Brasil, as coisas iam começar a resultar, quando o meu avô morre, aos 30 e poucos anos. Fazer rir a minha avó era um desafio. Fazer rir as pessoas em geral é uma coisa que sempre admirei. A convulsão do rosto que a gargalhada provoca encanta-me. 

 

Fazer rir a tua avó era uma retribuição ao amor que ela te dava?

Se calhar sim.

 

A morte da tua avó foi a dor mais aguda? O teu percurso parece sempre muito poupado.

Sem dúvida nenhuma. A minha vida é uma sucessão de acasos de sorte. Tenho mesmo muita sorte. De facto, a morte da minha avó foi uma coisa que me deixou devastado naquela altura. Não era nada que não se esperasse, ela tinha oitenta e dois anos, estava doente há algum tempo.

 

Há quanto tempo foi isso?

Foi há dois anos.

 

Quando a tua avó morreu, há dois anos, já tinhas algum sucesso. Nada comparado com o que tens hoje... Ela achava graça a que escrevesses para o Herman?

Sim.

 

Ou achava mais graça a que admirasses o Mário de Carvalho?

Ela não fazia ideia de quem era o Mário de Carvalho. Mal sabia ler, sabia assinar o nome com dificuldade.

 

Há aquela história deliciosa de estares na RDP com o Herman, a acompanhá-lo na gravação dos textos, e ficares estarrecido ao saber que o Mário de Carvalho se encontrava lá...

O Mário de Carvalho estava a ser entrevistado, cheguei com o Herman e apercebi-me que estávamos a desalojar o Mário de Carvalho e a entrevistadora dele! O Mário de Carvalho saiu e eu disse: «Posso cumprimentá-lo?», e ele disse: «Sim, com certeza», (é uma pessoa muito cordata e simpática), eu disse: «Gosto muito dos seus livros», e ele disse: «Muito obrigado».

 

O que é que mais admiras no Mário de Carvalho?

É multifacetado. O «Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto» ou o «Deus passeando pela brisa da tarde» não têm nada a ver com os contos. Tem um domínio da língua camiliano ou aquiliniano, e tem um sentido de humor espantoso. A «Fantasia para dois coronéis e uma piscina» é muito engraçado. Aquilo que eu dizia há bocado de haver um preconceito contra o humor... Há alguns quadrantes emocionais que têm mais prestígio do ponto de vista literário do que outros. A angústia tem muito prestígio...

 

Um lado dostoievskiano?

Sim. Vejo até humoristas a fazer a rábula do humorista angustiado para a granjearem algum respeito. A alegria não tem grande prestígio, o riso não tem grande prestígio. Sobretudo, é junto de uma falsa intelectualidade que é assim. Mas as grandes obras da literatura mundial têm humor! O D. Quixote é muito engraçado, o elmo de mambrim que na verdade é uma bacia de barbeiro é engraçadíssimo. «A vida e as opiniões de Tristram Shandy», do Lawrence Stern (meu deus, isto vai ser uma coisa...). Mesmo entre nós, o Camilo, o Camilo Castelo Branco, evidentemente que não é o Camilo de Oliveira, tem páginas de rir à gargalhada. Mesmo o Eça, noutro registo. 

 

O Eça é sarcástico. «As Farpas» são uma risota pegada. E há uma maldade...

Com certeza, um dos gatilhos do humor pode ser a crueldade.

 

Também tenho uma citaçãozinha...

Salva-me disto, que é para não ser o único!

 

O Pascal dizia: «Beau mot, mauvais caractere». Nem sempre nos furtamos a uma exibição dessa palavra certeira, dessa crueldade, poupando o outro. O que é que tu poupas?

Há uma contradição entre o facto de ter necessidade de agradar às pessoas e o facto de, às vezes, não ter pejo em dizer uma coisa que seja mazinha. Já perdi muitos amigos e namoradas por causa de uma piada. E tenho consciência, na altura de a dizer, que é possível que aquilo não dê bom resultado... Não consigo controlar-me. Prefiro dizer a piada do que manter o amigo, a namorada, seja o que for. É evidente que com os amigos a sério isso nunca acontece. Não porque não diga piadas, mas porque as toleram bem. Mas isso da crueldade é uma das modalidades do humor, dizer uma coisa cruel sobre outra pessoa dá muita vontade de rir.

 

A impiedade.

Sim, a impiedade.

 

O que é que tu poupas? O que é que delimita um território sagrado para ti?

Não posso dizer que tenha poupado nada nem ninguém. Mesmo no meu grupo de amigos, dizemos tudo como os malucos. Sempre que nos fazem perguntas sobre o Gato Fedorento, nunca vem à baila a pergunta «Como é que vocês aguentam trabalhar os quatro juntos, durante meses e meses a fio?». São quatro personalidades diferentes, quatro egos a chocar. Um dos segredos daquilo é dizermos tudo uns aos outros. Não há nenhum defeito que tenhamos escondido aos outros.

 

Há uma certa amoralidade na vossa relação?

Não considero que isto seja amoral,. O Luiz Pacheco faz isso. Tu lês o Luiz Pacheco e pensas: «Gostava de ter este gajo como amigo». Muito embora ele diga: «Você não percebe nada do que está a fazer», «O que escreveste é uma merda». Isso não é ser amoral, isto obedece a um princípio moral muitíssimo válido, que é: «Digo aquilo que penso». Às vezes, lês o Lobo Antunes e percebes que está a dizer uma coisa mazinha, não porque pensa aquilo, mas porque quer obter algum efeito com aquilo. Quando lês o Luiz Pacheco, não há nenhum interesse obscuro no que está a fazer, ele pensa aquilo, de facto.

 

Conta lá do teu encontro com o Pacheco.

Foi espantoso. Foi na altura em que trabalhava no JL. [RAP fez uma entrevista a LP]

 

Recapitulando, acabas o curso de Comunicação Social na Católica e segues directamente para o Jornal de Letras.

Havia um estágio de licenciatura e pensei que o único sítio onde me via a trabalhar como jornalista era aquele. Mais nenhum escolheu o JL, evidentemente! 

 

O Rodrigues da Silva tomou-te como delfim, e o José Carlos Vasconcelos.

Foi mais o Zé Carlos Vasconcelos. Até era embaraçoso porque o tipo era excessivamente simpático. Ainda hoje vou lá ver os meus amigos e sou recebido como uma efusividade que não mereço. Diverti-me como nunca, com a Maria Leonor Nunes, jornalista, o Miguel Eduardo Serrano, responsável pela parte gráfica do jornal, genial, irascível, nos dias de fecho começava a ficar enervado e a dizer obscenidades...

 

Vocês, os Gatos, dizem imensas! As pessoas chamam-vos Gatos?

Isso é um bocado maricas.

 

Os Fedorentos?

Exacto. É muito mais masculino.

 

Se um dos Fedorentos fosse gay, e uma vez que estão sempre a gozar com os “rotos” (para usar a vossa designação), seria tolerável?

Claro. É evidente que todos os dias a gente havia de fazer referência a isso, assim como todos os dias a gente faz referência ao facto de o Zé Diogo ser obeso. Não creio que o nosso humor seja homofóbico.

 

Como é que tu lidas com o assédio gay?

Não estava nada à espera dessa pergunta.

 

Não direi que és um ícone gay, mas há assim uns mancebos de quem os gays gostam especialmente. Como é que lidas com isso?

Exacerbas o lado homofóbico? Não, não. Até porque não tenho nenhum lado homofóbico. Tento não ter. Somos educados num meio que nos leva a rejeitar os comportamentos desviantes da norma. Não quero dizer da normalidade, quero dizer da norma, daquilo que é usual e não daquilo que é normal. Normais somos todos. Tento reagir da mesma maneira que reajo ao assédio feminino.

 

Give me a break.

Palavra de honra. Desde muito cedo que me habituei. Tenho familiares que são homossexuais, toda a gente tem, acho que agora com a União Europeia é obrigatório. Os meus pais tinham imensos amigos que eram homossexuais com os quais me dava maravilhosamente.

 

Agora toda a gente descobriu que tem um familiar gay. Há dez anos não era assim.

Toda a gente sempre teve familares gay, só que não sabia. Agora chegámos a um ponto em que as pessoas podem assumir. Ainda bem. Como é que reajo? Pensei que a maneira correcta era reagir de igual modo, tratando as pessoas de igual modo. Era a coisa de esquerda a fazer.

 

A tua mulher foi a única namorada séria. Tens uma vida muito certinha.

Muitíssimo. Isso ajudou-me. Como te disse tenho muita sorte, sempre muita sorte. As coisas vêm ter comigo sem que eu perceba como.

 

Perdeste o lado romanesco do Herman, que chegou a fazer espectáculos nas feiras, a receber cem contos em notas pequenas, soltas em sacos de plástico.

Com certeza. Eu trabalho, e trabalho muito. Tento todos os dias fazer melhor, aprender. O que está ao meu alcance é ler e estudar a maneira como as coisas estão escritas, fazer o mesmo com os textos humorísticos. Há um ensaio do Mark Twain chamado «How to tell a story»; a gente lê aquilo e percebe que é «How to tell a humor story». Faz a distinção entre o que é uma coisa parecida com o stand up e uma coisa parecida com a anedota. Uma história humorística não é uma anedota, no sentido em que uma anedota tem um enunciado normalmente longo e uma punchline no final_ só achas piada ao final. Uma história humorística tem graça à medida que a vais contado.

 

As tuas referências humorísticas são os  Monty Pyton, Woody Allen ou Seinfeld, mais do que os Irmãos Marx, Buster Keaton ou Chaplin. Estabeleci a diferença a partir do recurso à palavra.

De facto, não me interessa fazer humor físico, não sei fazer, não o desenvolvi. Interessa-me sempre mais o texto. A nós, aos quatro tipos que fazemos o Gato Fedorento, interessa sempre o texto. A gente diverte-se muito quando está a escrever, essa é a parte a que dedicamos mais tempo.

 

Escrevem rápido? No essencial, como é que funcionam?

Escrevemos 150 sketchs naqueles seis meses. Foi uma coisa dolorosa porque optámos por não repetir personagens, são 150 conceitos diferentes. Normalmente temos uma reunião de brainstorming, que é fundamental; depois, o que teve a ideia original ou a maior parte das ideias para aquele sketch, vai para casa, escreve e remete para os outros por e-mail, que ainda dão uns retoques.

 

Agrada-te mais o lado do escritor do que o do actor?

Nem sequer é uma questão de agradar. Eu não sou actor, não tenho nenhuma formação nessa área. Isto de eu estar a interpretar os meus próprios textos é uma coisa passageira, um acidente. Não me vejo a interpretar textos de outras pessoas. Se tivesse 40 anos provavelmente não estaria a fazer isto. Nesta fase é engraçado, estou com os meus amigos, é uma espécie de hobby divertido.

 

Uma entidade bancária convidou-te para fazer um dos sketchs mais famosos do Gato Fedorento. Isto revela, entre outras coisas, que tu és o elemento preponderante...

Dos quatro, eu tinha sido o que tinha ido mais vezes ao Levanta-te e Ri, e isso deu-me alguma visibilidade. E do ponto de vista da representação, tenho um pouco mais de facilidade do que eles, sou mais palhaço.

 

Embaraça-te estar ao lado de um Fernando Rocha, no «Levanta-te e Ri»? Aquele não é o tipo de humor que te interessa?

Não me embaraça, não é por isso que deixo de ir ao «Levanta-te e Ri». O Rocha descobriu intuitivamente que contar uma anedota em que o enunciado dura dois minutos e depois rematá-lo com uma punchline, não funciona. É por isso que o Rocha, através dos palavrões, a linguajar, vai metendo punchlines...

 

Há sobretudo um tom mais alarve no qual não te revês, não praticas e que não goza de boa fama. Interessa-te uma certa caução cultural, e por isso participas em projectos como o «É a cultura, estúpido!» [sessões mensais no teatro S. Luiz à volta dos livros].

Nunca fui fazer ao «Levanta-te e Ri» nada de que me envergonhasse. Fui fazer os meus textos, que acho que são bons textos sem facilitar. Cheguei a fazer piadas sobre «Os Maias» no «Levanta-te e Ri». Que ainda por cima resultaram. Recuso que, por osmose, seja contaminado por uma coisa mais aviltante. Nunca me passou pela cabeça que, o facto de ir ao «Levanta-te e Ri» e fazer a publicidade, ia causar anticorpos nesse lado mais cultural de que falas. Lá fora, a publicidade é vista como outro trabalho qualquer. O Woody Allen faz publicidade a uma companhia de telefones italiana, fala ao telefone com o seu psiquiatra em Manhatan, e não é por isso que as pessoas dizem «O Woody Allen...»

 

É um vendido.

Estou a vender-me desde o dia em que comecei a trabalhar. Vendo a minha imaginação e a minha capacidade de trabalho todos os dias. Há um caso específico: a pessoa que me acusou de me ter vendido à instituição de crédito que referiste, trouxe à baila as minhas convicções de esquerda. Por que é que quando comecei o meu programa na Sic Radical, as pessoas não disseram: «Este gajo vendeu-se ao Francisco Pinto Balsemão», que é o militante número um e fundador do PSD? A pessoa que diz isso, não está a dizer «Puta», está a dizer «Puta cara», é isso que faz confusão. Toda a gente sabe que a Sic Radical me paga muito abaixo daquilo que é aceitável, até para uma televisão por cabo.

 

Ganhas mais a escrever textos para o Herman.

Muitíssimo mais, do que a escrever a interpretar um programa na Sic Radical. Não tenho que sentir nenhum embaraço por finalmente ter ganho algum dinheiro com o Gato Fedorento.

 

Comenta-se que este mesmo colectivo era responsável pelo blog O Meu Pipi. Dá-se a coincidência de o Pipi ter saído de circulação quando apareceu o Gato Fedorento.

Veio uma informação parecida com essa, até publicada num suplemento que certamente conheces...[Dna] [risos] Os jornalistas guardam para o fim esta pergunta, «Queria fazer uma última pergunta», e eu digo sempre: «Não sou eu, não sou eu, vá para casa descansado». O boato surge aqui mesmo nas Produções Fictícias – por causa de ser muito asneirento. Não posso dizer mais nada para além disso, não consigo provar que não sou eu. Não se consegue provar que não se tem, como é o caso das armas de destruição maciça. É mais fácil provar-se que se tem ou que se é.

 

Os temas preferenciais para o humor são o sexo, a religião, o poder?

Na minha opinião, os temas para o humor são todos. Historicamente, são mais esses, a autoridade, a religião, o sagrado, a morte.

 

Trata-se de revelar o centro da terra, de modo impúdico?

Acho que sim. Boa parte resulta do facto de se tirar a máscara, de mostrar o que está por trás, desconstruir uma construção que é social. As pessoas importantes são importantes porque se convencionou que são importantes.

 

Mas também fazem cocó.

Justamente. Esse estilhaçar das regras que puseram essas pessoas num pedestal, é muito característico do humor. Quando se faz uma crítica a alguém, a reacção é uma; quando, além de criticar, consegues fazer rir as pessoas, aquilo é mais duro, é mais feroz.

 

Tu és um animal feroz.

Não sou.

 

Ser ridicularizado dói. Consegues fazer esse exercício impiedoso sobre ti? Estilhaçar-te a ti?

É impossível ter sentido de humor se não se fizer esse trabalho primeiro e constantemente. Muitas vezes me perguntam por que é que não há mulheres a escrever textos humorísticos.

 

Se há, são normalmente gordas e feias. As mulheres têm uma noção de pudor, em grande parte físico, mais apurada do que os homens. É mais fácil quando são feias.

Muito bem. Não tinha visto as coisas nessa perspectiva.

 

Não têm nada a perder… Sabes aquela velha da Marylin, «Eles gostam de mim porque sou gira ou porque gostam de mim?» As feias e gordas estão no «Gostam de mim e acham-me graça, e não é pelos meus lindos olhos».

Acho que não há muitas mulheres na comédia e a escrever textos humorísticos porque as mulheres têm de se levar muito mais a sério do que os homens, no sentido em que têm de ser melhores para conseguir o mesmo. Uma pessoa que se leva muito sério, normalmente, não tem o sentido de humor assim tão apurado.

 

A tua mulher acha-te graça?

Conheço-a há doze anos e torna-se bastante difícil que ela me ache piada... É evidente que me acha graça, chegou a ir ver os espectáculos do Tivoli e riu-se em todos. Mas muitas vezes é doloroso estar a experimentar texto com ela, porque eu digo-lhe qualquer coisa e ela «Hmmm, hmmm, isso é giro, é giro»... Já tive que ir buscar um livro do Dave Berry, (que é um americano extraordinário, contemporâneo nosso, que ganhou um prémio Pulitzer em 88 por comentário humorístico), li-lhe alguns dos parágrafos mais engraçados para ver a reacção dela. E ela não achava graça na mesma. Portanto, o problema não é meu! Era embaraçoso, eu queria testar coisas que ia dizer...

 

Podes ser inseguro? Testar mesmo com a tua mulher e outras pessoas, pensando será que isto tem graça ou que não tem graça?

Sim. Eu acho que, se não fosse inseguro, não conseguia um nível de qualidade mínimo nos meus textos. Sou muitíssimo inseguro. Sem as pessoas perceberem eu tento testar aquilo em que estou a trabalhar. O sucesso do Gato Fedorento foi uma coisa que ultrapassou a todos. A repercussão pública daquilo, ser de tal modo que, como disseste, haja interesse da parte da publicidade em capitalizar aquele sucesso, significa que o programa extravasou em muito as fronteiras da Sic Radical, que é um canal de cabo que tem dez mil espectadores. De uma maneira ou de outra, provavelmente através da Internet e da troca de e-mails com os sketchs, a popularidade do programa cresceu exponencialmente. Nós tínhamos consciência absoluta do sucesso que os sketchs faziam junto das pessoas e escolhemos para o espectáculo ao vivo aqueles de que gostávamos mais, mas também (e muitas vezes coincide) aqueles de que as pessoas nos falam quando nos abordam na rua. O sucesso do espectáculo estava garantido. Nas semanas que antecederam o espectáculo, ensaiamos aquilo várias vezes e eu dizia «isto não tem graça nenhuma». Essa insegurança para nós foi fundamental porque nos levou a ensaiar mais ainda, a acrescentar coisas, a programar as coisas para que nada fosse deixado ao acaso. As entradas e saídas foram muito complicadas porque nós somos quatro, eram vinte e um sketchs, cada um entra para aí em quinze, e nada foi deixado ao acaso, justamente motivado pelo receio de falharmos redondamente. Esse receio de falhar parece-me uma coisa muito produtiva. Pelo menos para mim é.

 

Se tu estilhaçasses a tua vida, se tentasses pensar a tua vida, o quadro podia ser: o rapaz mais alto que a média, mais esperto que a média, filho único, boas famílias, com a contradição de perfilhar ideias comunistas de pôr as canções do Fanha...

Não é do Fanha, é do Padre Fanhais. «Vemos, ouvimos e lemos...».

 

E depois tens uma casa com piscina, guias um BMW.

Alto.

 

Casas com a namorada de sempre. És muito certinho, tens trinta anos, coisa assim, e vais a caminho do segundo filho. Há todo um quadro social muito instaladinho...

Sim.

 

É como se fosse uma «belle de jour», uma vida de dia e uma vida de noite. Mas tudo isto verdade?

Sim, sim.

 

O gozo da vantagem de te conhecer há algum tempo, se alguns destes elementos não forem conhecidos e não quiseres que sejam conhecidos...

Provavelmente a maior parte deles não é conhecida. Mas compreendo o interesse jornalístico da pergunta.

 

Como é que se espatifa isto?

Mas queres que eu espatife isso?

 

Sim, quero ver até onde é que consegues fazer humor sobre.

Eu não tenho problema com essas contradições, muitas das quais nem sequer creio que sejam contradições. Já lá irei. Aquilo que ponho em causa de mim próprio, são coisas que provavelmente entram nos textos mesmo e nos textos humorísticos que escrevo. Quando eu estou a desempenhar um papel de um palerma, aquele palerma que ali está também sou eu. E aquilo resulta tão melhor quanto mais palerma eu for na vida real. Provavelmente as minhas personagens matarruanas são do matarruano que eu sou, são do tipo do Minho, de Viana do Castelo e Paredes de Coura, que cresceu juntamente com aquelas pessoas e sabe o que é arroz de sarrabulho e arroz de cabidela.


E sabe o que é uma sachola.

E sabe o que é uma sachola. Eu sou um matarruano, sou um palerma, e não tenho vergonha de pôr isso cá para fora e de usar essas minhas facetas para as trabalhar. Isso tem vindo muito à baila por causa do anúncio e coisas afins: eu disse sempre que era comunista e mantenho, muito embora neste momento não seja já filiado no PCP; mas nunca disse que era um frade franciscano. Uma coisa que ninguém me pode apontar é ter gostos extravagantes ou dar-me a luxos bizarros, mas não nego que gosto de ter dinheiro, de ir à Fnac e comprar os livros que me apetece e de, de vez em quando, estar cansado e ir uma semana de férias para o sítio que me apetecer. Não tenho vergonha disso, desses comportamentos burgueses como tu os qualificaste. O que eu digo é: o dinheiro faz falta, não tenho nada contra o dinheiro, antes pelo contrário. É justamente por isso que eu gostava de o ver mais bem distribuído. Não corresponde bem à realidade apenas porque eu vivo uma vida desafogada, sem dúvida nenhuma, mas estou muito longe de ser rico.

 

Não estou a dizer que a questão do dinheiro é crucial para ti como parece ser para o Herman, insisto nesta questão: daqui a vinte anos, tanto quanto consegues perceber, é mais provável que sejas um Herman ou um Mário de Carvalho. As tuas ambições são mais literárias do que humorísticas, ou não?

Sim, sem dúvida nenhuma. Aliás, não tenho grandes ambições humorísticas, sempre que me vejo a projectar o futuro, aquilo que me vejo a ter feito no futuro tem sempre mais a ver com a escrita do que com outra coisa qualquer. É por isso que eu digo, isto do «Gato Fedorento», o que está a acontecer agora, dura mais seis meses, talvez a gente faça mais uma série de programas, talvez façamos mais uma outra coisa qualquer, não sei exactamente o quê, mas a minha profissão não vai ser ser artista do mundo do espectáculo. Não é isso que eu sou. Às vezes sou chamado para reuniões em que me fazem propostas como fazer umas rábula humorística num novo programa de uma televisão generalista. Chamam-me até de outros canais que não a SIC e perguntam-me se estou interessado em fazer uma rábula humorística num programa de horário nobre na televisão generalista. A sensação que eu tenho quando as pessoas estão a falar comigo é que não estão a falar comigo, mas com outra pessoa, a pessoa com quem acham que estão a falar e que, claramente, não sou eu.

 

É a imagem pública?

Se calhar é isso. Não sei exactamente o que é, mas claramente não sou eu.

 

Mas tu tens núcleo e consegues preservar bem isso, o núcleo, a tua essência, ou já estás disseminado nesse personagem público nessas coisas todas que fazes.

Essa é uma pergunta interessante. Se calhar é uma mistura das duas. Todos os convites eu recuso. Tive imensos convites para fazer publicidade antes deste e ia recusando, aceitei este porque... do ponto vista artístico e criativo havia...

 

That means money?

Sim. Do ponto de vista artístico e criativo havia uma proposta que me agradou imenso como artista, que é o facto de me pagarem um balúrdio. Normalmente, as pessoas tendem sempre a dizer «não, eu fiz o anúncio porque artisticamente era engraçado».

 

«É porque é um detergente e eu fui passar uma semana lá fora e vi como aquilo lavava bem a roupa».

É isso. Não vou fazer essa rábula. Mas é evidente que não me apeteceria fazer um anúncio a dizer: «compre este champô, é mesmo bom». Enquanto este que implica que eu faça um sketch que é uma coisa que eu sei fazer, que eu domino, também pesou. Esse tipo de propostas eu recuso porque sei que não sou aquela pessoa. Por muito vantajoso que isso fosse do ponto de vista financeiro. Seria mais vantajoso para mim estar a fazer um rábula humorística num programa de grande audiência numa televisão generalista do que estar a fazer, por pura carolice, com os meus amigos, um programa sem meios nenhuns, em que os bigodes somos nós que compramos e a roupa somos nós que levamos às costas, na Sic Radical. O núcleo existe, eu sei recusar fazer isso. Até porque não saberia fazer isso, as pessoas que vêm falar comigo não fazem ideia, mas eu não sei fazer isso. Sei aquilo que sou, já não é mau. Pelo menos tenho uma ideia. Mas esse núcleo é um núcleo muito pouco ortodoxo porque não é vulgar um tipo que gosta de escrever ou que projecta escrever ao mesmo tempo ter um lado mais histriónico de interpretar os próprios textos, não é muito frequente.

 

Tu és muito esquivo. Não consigo perceber se te esquivas realmente ou se não encontrar esse lado que é o núcleo que tem que ver com dor e com vergonha e com aquilo que é íntimo e que não se quer expor.

Parece que sou o Álvaro Cunhal, que estou a responder às tuas perguntas tipo: «é interessante que me faça essa pergunta, mas antes note...». É evidente que não vou aqui despejar as minhas angústias e mágoas para a comunicação social, para toda a gente ir lá ler. Estou a ser o mais honesto que consigo. O que é que estavas à espera que eu te dissesse.

 

Estava só a perceber que há algumas zonas que são impenetráveis e não sei se são impenetráveis para a comunicação social ou para todos. E para todos é toda a gente mesmo.

Mas referes-te a que zonas? Achas que não respondi a alguma pergunta...

 

Não, respondeste muito bem, foste muito competente nas tuas respostas. Este «todos» quer dizer zonas impenetráveis para qualquer pessoa. Até para a tua mulher ou para os teus pais. Significa que tu tens partes tuas que são mesmo impenetráveis.

Suponho que sim. Supunha eu que as outras pessoas fossem iguais. Quando tu te habituas a estar sozinho, que é o caso de um filho único, eu fiquei muito em casa da minha avó, depois fiquei bastantes vezes sozinho em casa, enquanto as outras pessoas têm irmãos e isso provavelmente estimula alguma coisa... uma pessoa aprende a fechar-se sobre si próprio.

 

E a observar?

Sim, observar, com certeza. Eu sei estar sozinho, não me custa nada estar sozinho, sempre passei largos períodos sozinho. Provavelmente a leitura também vem daí. E mesmo a escrita, não são propriamente actividades colectivas, são coisas que se desenvolvem solitariamente. É natural que haja partes... toda a gente tem coisas que não quer... o Luiz Pacheco, eu acho aquilo admirável, tu viste esta última entrevista dele, ele diz «agora estou incontinente, no primeiro mês ou dois aquilo chateou-me a sério, agora olha, já estou habituado». Ele diz tudo. Mesmo outras coisas que ele não tem pudor de dizer, o facto de os filhos não chorarem quando ele morrer, coisas desse tipo, mesmo coisas que são ditas com um embrulho humorístico e leve. A questão dos filhos tocou-me bastante por causa da minha filha, eu sei o que é isso porque custar-me-ia muito ter uma relação distante com a minha filha. A relação do Pacheco com os filhos, pelo menos com alguns deles, com o Paulocas é mais próxima, mas com os outros é mais distante. É muito engraçado porque ele distingue os filhos pelos números, quando eu fui lá fazer a entrevista, ele apontou para as fotografias e disse «este é o um, este é o dois, este é o três», depois há um muito engraçado que é o sete e meio, ele disse «não tenho bem a certeza de ter sido eu».

 

Então isto é a punchline?

Eh pá, tu é que sabes.

 

Às vezes há assim um final épico...

É, não é? Eu acho que isso é aldrabice dos jornalistas, eles devem guardar a melhor resposta para o final.

 

Não, não é. Depende dos jornalistas...

Também depende do entrevistado. Se eu fosse um gajo como deve de ser, já tinha trazido de casa uma coisa para acabar, apercebia-me que era agora o fim e dizia «de maneiras que...»

 

Para a posteridade, o que tem que ficar é esta.

E tu punhas como título.

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2004