Almerindo Marques
Qual é o segredo de reestruturar uma empresa, qual é o ponto de partida? “É ver o que é que a empresa tem que fazer para prestar um serviço útil. Há empresas que se degradam com o tempo e o serviço que prestam é mau. A primeira coisa é revocacionar a empresa. A partir daí é organizar o trabalho de forma a mobilizar os recursos para aquela prestação. As pessoas que não gostam nem querem trabalhar, sobram. Organizam-se as melhores pessoas para fazer da melhor maneira o trabalho. E depois, a tecnologia, os procedimentos administrativos, de engenharia de processos... É isto sempre”.
Reestruturou o Fonsecas e Burnay, a RTP. Criou a SIBS. Foi secretário de Estado de Sottomayor Cardia. Foi mecânico, quando começou. Foi um menino pobre, que teve confiança nele próprio. “Quem não tem confiança em si próprio não tem condições de êxito. Mas há um exercício de humildade que faço para não ser um auto-suficiente metódico”.
Almerindo Marques preside às Estradas de Portugal. Uma só vez se fala das SCUT nesta entrevista. Fala-se do caminho, longo, que vem percorrendo. Já passou a curva dos 70. É raro ouvir alguém falar assim.
De onde lhe vem esse lado desabrido e temperamental que toda a gente diz que tem?
As pessoas dizem mais do que é... Mas tenho de facto alguma atitude dessa natureza. Somos fruto do meio. O meu era humilde, pobre, difícil. Para as pessoas deste meio, ou fazemos uma vida simulada ou fazemos uma vida linear, transparente. Segui a segunda via, e isso leva-me a que não invente palavras, a que diga aquelas que entendo expressarem melhor o meu estado de alma.
Sem subterfúgios, sem a dissimulação que não se compraz com a lei da sobrevivência.
Exactamente.
O seu pai era polícia, não era?
Era. Como é que soube? A minha mãe era doméstica, tinha três irmãos. Nasci em 1939, no pós-Guerra. Vivi nos arredores de Leiria, num bairro de proletariado. Fui sempre racional porque a vida mo exigia – não tem grande mérito. A racionalidade é um instrumento que utilizamos para sobreviver. Permitiu-me alguma ascendência perante as dificuldades. Encontrava soluções, nem sempre acertadas, mas que eu pensava que eram racionais. Isto não quer dizer, convém referir, que não tenha tido uma vida de criança, nas dificuldades mas muito livre, muito feliz.
De onde provinha essa felicidade?
A minha família dava-me essa felicidade. Pobre, mas alegre, estável. E sempre me relacionei bem com as pessoas, daí achar que há um exagero nessa fama que tenho. [riso] Muitas vezes essa fama tem a ver com interesses. Fazem referência à minha personalidade como forma de se defenderem de posicionamentos que já tomei relativamente a essas pessoas. Não fica muito claro, mas talvez não valha a pena esclarecer…
Do que é que se lembra da primeira infância? O que é que chegou a um bairro dos arredores de Leiria do que era a Segunda Guerra?
Tinha um irmão mais velho, uns nove anos mais velho, que me falava da guerra. Naquela época fazia-se muita propaganda aos beligerantes. Aprendi a ler com os desenhos animados da embaixada Inglesa. Eram uns quadradinhos que faziam das batalhas. O meu irmão abastecia-me com essas literaturas.
Que pessoa era o seu irmão para ter acesso a essas bandas desenhadas, esses “panfletos”, que vinham da embaixada?
Como era jovem, mas já trabalhava, tinha uma relação com o mundo. O meu pai interessava-se pelas questões da guerra. Suponho que daí é que vem a documentação que ele tinha sobre as guerras, as batalhas, a vida. Depois, sofríamos na pele as dificuldades. Nunca vi açúcar senão já muito rapazinho. A minha mãe punha um bocadinho de sal para ser mais fácil, para combater o amargo, e dois ou três rebuçados. Era assim que eu e os meus irmãos bebíamos o café com leite de manhã. Quando havia leite, nem sempre havia. O leite era de cabra, ovelha, mais do que de vaca.
O bairro nos arredores de Leiria era verdadeiramente um bairro ou uma aldeia?
Era um bairro à saída de Leiria, na Estrada do Bravo, que era a estrada Lisboa/Porto, mais ainda na cidade. Andava uns três quilómetros até à escola primária, que era mesmo no centro da cidade.
Como disse, somos marcados pelo meio. Deixe-me perceber melhor que meio era o seu. Como era o temperamento do seu pai?
O meu pai era mais tolerante do que a minha mãe. Muito bom homem. A minha mãe também era muito boa senhora, mas o meu pai era mais culto, sabia ler e escrever, tinha a quarta classe. A minha mãe tinha aprendido a escrever com duas freiras da aldeia, porque a minha avó se preocupou em dar-lhe as primeiras letras, como ela dizia. Não tinha a quarta classe, mas lia e assinava. Quando eu me dedicava a ler livros que não fossem de escola, para ela já era uma perda de tempo. Está a ver a noção que a senhora, coitadinha, tinha. “Ó filho, porque é que lês isso?”. Tolerava mas não valorava. O meu pai tinha muita tolerância connosco. Fosse qual fosse a conversa. Tinha uma grande preocupação de evitar que entrássemos, mais o meu irmão, na política.
O perigo era o de que enveredassem por um caminho que o poderia encontrar a ele do outro lado?
Tinha uma frase que me irritava solenemente desde miúdo: “A nossa política é o trabalho”. Achava aquilo uma restrição excessiva.
Ironicamente, a sua vida não é senão a aplicação dessa frase. É uma vida dedicada ao trabalho. E afirma-se pelo trabalho.
Pois. Mas também fiz política. Durante muitos anos tive o bicho da política, até antes de ser livre. Fui livre muito cedo. Sempre tive liberdade de pensamento e de expressão. Não tive maçadas com a polícia política da época, mas tive incomodidades. Era considerado um suspeito oposicionista.
Porque é que nunca teve medo?
Não faz parte da minha natureza, não sei explicar.
Seria normal que tivesse. Numa conjuntura desfavorável podia acanhar-se, e nunca se acanhou.
Mas era prudente. Lá voltamos à minha racionalidade. Em miúdo ainda, com 11, 12 anos, recebia o Avante – nunca soube quem mo mandava. Lia aquilo à noite com uma pilha eléctrica debaixo da roupa.
Essas coisas, fazia-as com o seu irmão?
Sim, havia uma cumplicidade. Devo muito a esse meu irmão. Foi ele que me orientou para ir estudar à noite, em grandes opções. Funcionamos como verdadeiros irmãos.
Quem é que vos empurra, a si e ao seu irmão, para serem alguém na vida, para transcenderem a vossa condição social?
Respondo por mim. Tem a ver com o sentido da curiosidade. Comecei a ler muito cedo, comecei a fazer juízos sociais e políticos muito cedo. Lembro-me de estar a guardar água numa represa…, sabe o que é?
Como é que se guarda a água numa represa?
É estar presente e evitar que alguém vá lá utilizar indevidamente a água. Lembro-me de achar estranho ser preciso estar ali, às vezes com o frio da noite. Mas percebia que se não estivesse as pessoas iam à represa, abriam-na e regavam com a água que nos calhava em sorteio a nós. Aquilo despertava-me pensamentos… Era bom aquelas pessoas acreditarem em Deus, porque se não acreditassem, se não tivessem o receio do pecado, da sanção divina, a selvajaria seria maior.
Nunca acreditou em Deus?
Nunca acreditei com estabilidade. Houve momentos em que tive a ideia de que faria parte do equilíbrio da perfeição da natureza, do homem. Mas era uma via racional, nunca foi uma via emocional.
Não se chega a Deus pela razão.
É. Mas fui a Deus pela racionalidade, não pela fé. A minha mãe exigia que fossemos à missa. Nem sempre lhe obedecia. O meu pai era mais tolerante, “se o rapaz não quer ir à missa, não vai”. Mas ele ia.
Tem fama, não só de temperamental e desabrido, mas também de ser de uma integridade a toda a prova, de ser impoluto. Sabendo que é filho de um polícia, é fácil imaginar que é uma marca do seu pai.
Também é uma marca do meu pai. Quer eu, quer os meus irmãos e irmãs (tive uma irmã mais velha que morreu com diabetes), fomos educados com princípios, respeito pelos outros, valores de trabalho, que o nosso pai nos transmitia. A minha mãe não no-los transmitia tanto, por o seu nível cultural não ser tão elevado; mas transmitia pelo exemplo, pelo esforço com que trabalhava as courelas, as pequenas propriedades. Se tem que se trabalhar, pode-se trabalhar em qualquer local, o trabalho é que dignifica.
Voltemos ao momento em que começa a fascinar-se com a política, a ler o Avante com uma pilha. Imaginava para si um futuro de revolucionário? Imaginava que podia ser um desses heróis?
Não. Para mim era claro que não tinha as características do revolucionário.
Quais?
A aventura – contra a razão. A violência – imaginava que tinham de fazer uma vida com alguma violência. Isso nunca fez parte da minha idiossincrasia. A minha única violência é a ideia, são as palavras, os pensamentos. Violentar com os pensamentos, forçar as pessoas a pensar, acho que faço. (Era bem bom que os portugueses pensassem muito mais do que pensam!). Ainda hoje aprecio a vida de alguns revolucionários. Do meu primeiro casamento não tive filhos, só filhas; sempre pensei que se tivesse um filho seria Ernesto, em homenagem ao Guevara.
O que é que admirava tanto no Guevara?
Era o meu herói. Com a informação que recebia, e hoje sabemos que éramos manipulados, achava que o Guevara era o verdadeiro revolucionário romântico. O Fidel era o revolucionário político.
Explique-me a diferença entre um e outro.
O revolucionário político é menos puro, tem sempre que fazer equilíbrios, transacções de princípios. O romântico, não, tem a sua concepção de vida. Foi assim que o Guevara se posicionou sempre. Eu não assumia ser capaz de ser o revolucionário que admirava.
Então a via, para si, passou a ser a de fazer uma transacção que não o violentasse, mas que lhe permitisse, apesar de tudo, ser alguém?
Não há uma intelectualização a posteriori: era assim que eu raciocinava. Por exemplo, nunca fui membro de um partido como o Partido Comunista porque sempre achei que a liberdade de pensamento é fundamental. Outro herói que tive foi o Papa João XXIII. Foi um grande revolucionário. Tive um filho do segundo casamento, que se chama Francisco, o nome do avô, mas se tem nascido nessa época seria Ernesto João.
Lia autores russos?
Li alguns, Tolstoi, Dostoievski, Pasternak. Mas cedo, quando fui para o serviço militar, através de processos auto-didactas, já não era um apreciador da sociedade russa. Embora tivesse tido uma fase de apreciação do Estaline, já não era estalinista quando fui para o serviço militar.
O que é que o fez desencantar?
Certamente a falta de liberdade. Não concebo uma sociedade de progresso sem liberdade. Não sou capaz de explicar bem o que é que foram os primeiros sintomas críticos à sociedade soviética. Mas lembro-me de uma coisa que para mim já não foi surpreendente: o 1956 na Hungria.
Faz a escola primária e começa a trabalhar com 13 anos. O que foi o seu primeiro trabalho?
Aprendiz de mecânico. Depois fiquei desempregado e virei ajudante de tractorista. O tractorista lavrava o pinhal e eu andava atrás a ajudar.
A ajeitar a charrua.
E depois é que voltei a trabalhar como mecânico, numa outra empresa. Passei de mecânico para administrativo porque houve um miúdo no escritório que adoeceu; o serviço da empresa foi buscar aos aprendizes de mecânico um que soubesse ler, escrever e contar. Seleccionaram-me a mim. Foi assim que transitei…
Do trabalho braçal para o intelectual.
Não era bem intelectual, mas era administrativo. Teria 14 anos.
Ainda que seja por acaso que dá o salto, dentro de si sabia que não ia fazer trabalho braçal a vida toda.
Sim, estava previsto. Para a minha família não, só para mim e para o meu irmão. Deslocávamo-nos de bicicleta, 12 quilómetros, e falávamos muito. À noite, sozinhos, às vezes a altas horas. O meu projecto sempre foi, na génese, a escassez, as dificuldades, a Economia. Nunca me licenciaria por me licenciar. Ou aprendia Economia, ou me preocupava com Economia, ou não me licenciava em mais nada.
O que determina a escolha é o desejo de perceber a Economia, corrigir uma situação de desigualdade da qual tinha partido?
É.
Aos 14 anos vai para a escola comercial, estuda à noite. A via em que prossegue é a do estudo da Economia e não a da política activa.
Não distinguia. Achava que a Economia era política. Já naquela altura tinha uma discussão com uma professora, que queria que eu só falasse de Economia. Mas eu achava que eram indissociáveis.
Onde conhece as pessoas que o fazem estreitar a relação com a política e os partidos? Imediatamente a seguir à revolução adere ao Partido Socialista.
Nessa altura já tinha percebido que a intervenção política era melhor feita dentro dos partidos, tinha-se mais espaço. Não aderi ao Partido Comunista, não aderi às forças de extrema-esquerda – eram uma coisa não-racional para mim. Só podia aderir a um partido de esquerda, até pela minha cultura e tradição de vida. Aderi ao Partido Socialista por estas razões.
O que é que Mário Soares representava para si antes da revolução?
Achava que o Dr. Mário Soares tinha a visão mais real possível da vida política em Portugal. É preciso ver que fiz uma leitura política das eleições que fui presenciando, (desde a primeira, do Humberto Delgado), e não havia muito realismo político nas pessoas da oposição.
Quando é que o conheceu?
Em 1974, a seguir à revolução, quando entro para o PS.
Quem é que propicia o encontro entre os dois?
Não me recordo bem, provavelmente os chamados socialistas históricos de Leiria. Aderi ao partido e comecei logo a trabalhar no gabinete de estudos por intermédio do Medina Carreira. Quem acabou por preencher a minha inscrição e assiná-la foi o Herlânder Estrela.
Conhecia o Medina de onde?
Da acção política. Desgarrada.
Licenciou-se em 1969, com 30 anos. Arranjou logo emprego no Banco da Agricultura?
Não, tive vários empregos. Trabalhei numa companhia de seguros, onde só estive dois dias. Ninguém trabalhava, era uma ociosidade plena e irritei-me com o chefe. Tinham-me recrutado porque havia muito trabalho atrasado. No primeiro dia não me deram trabalho nenhum. Não era capaz de estar num emprego sem trabalhar. Se trabalho é para receber o salário com dignidade. Não era o caso, abandonei a empresa.
Não tendo recuo, abandona a empresa dessa maneira, sem medo do que lhe vá acontecer a seguir?
Fazia parte da minha maneira de ser. Mais uma vez, prudentemente, tinha dinheiro para estar uns tempos à procura de emprego. No serviço militar, onde tinha sido furriel miliciano, fiz o meu pé-de-meia. Foi por concurso que fui para o Banco da Agricultura. Comecei por descontar letras.
Dava-lhe prazer esse trabalho?
Vou-lhe dizer uma coisa que parece contraditória, mas não é: nunca tive grande prazer no trabalho administrativo. Era um meio e não um fim. Tinha que trabalhar para ter salário, para viver independente. Era trabalhar por dever, não por prazer. Mas trabalhava, e bastante.
Tem ideia de quando é que foi a primeira vez que sentiu prazer no trabalho?
Tenho, foi no próprio Banco da Agricultura, quando comecei a fazer trabalhos de organização interna do banco. Esteve lá uma empresa francesa que estudou as possibilidades de organizar o banco; seleccionaram-me para ser um elemento dessa estruturação interna e participar como técnico de organização. Está aí o começo da minha história profissional, sempre a reorganizar empresas, a lançar empresas.
Aprendeu a fazer isso aí?
Sim. Depois, a administração entendeu que devia fazer um estágio num banco espanhol para ter mais prática. Quando voltei, fui organizar o banco. Comecei a ver que dava muito mais à sociedade pelo meu trabalho do que um simples burocrata a descontar letras.
O que é que sentiu quando foi saneado a seguir ao 25 de Abril?
Fiz juízos políticos, não fiz outros. Eu estorvava determinados objectivos e tinha que ser saneado. Não era a força política A, B ou C, não interessa citar, que me saneava. Era preciso criar condições para que as massas incultas e desinformadas quisessem o meu saneamento. Quanto mais inculta é a sociedade, mais facilmente se manipula. Foi fácil manipular. Tinha adversários óbvios dentro da empresa. Adversários sem escrúpulos, sem qualidade. Uns ignorantes, outros perversos. Outros queriam os interesses que eu estava a ocupar. Há uma infinidade de motivações.
Não foi uma grande surpresa que o tenham posto fora em 75?
Para mim, não. Se perguntar aos 40 e tal colegas que foram saneados no Banco da Agricultura, eles dir-lhe-ão que achavam que era uma injustiça. Nunca vi isso em termos de justiça ou injustiça, vi aquilo como um processo político. A mim arranjaram-me um álibi, aproveitaram as minhas características pessoais – não digo defeitos.
Que características?
O meu nível de exigência. Numa sociedade de bandalheira a exigência é incómoda. Se queria pôr a empresa a funcionar, a dar lucros, tinha que fazer incomodidades. Se faço incomodidades não sou bem visto no local. Outra, foi por onde começámos: não escolher as palavras senão para que traduzam bem o meu pensamento, o meu sentimento, e não para agradar nem para desagradar. Não fiquei nada afectado com isso, nada. Mas foram processos perversos. Telefonemas anónimos a altas horas da noite, escreverem nos prédios com sabão seco “Almerindo, o diabético”.
É diabético desde quando?
Desde os 28 anos.
Alguma vez teve importância na sua vida ser diabético? Escrito assim na parede parece que é um anátema.
Não, é um anátema para quem o escreveu. Nunca interpretei isso como um fenómeno moral. Na política não há moral, há interesses e há poder. Mas também houve dramas morais. Havia um sujeito que tinha uma vida desequilibrada. A mulher, empregada da Loja das Meias, tinha com ele um comportamento de chantagem. O homem estava numa situação sensível. Eu era director de recursos humanos, passei-lhe um cheque de 800 escudos e perguntei: “Se estivesse numa sapataria, também tirava os sapatos? Está numa empresa que movimenta dinheiro, está a dar cabo da sua carreira. Se é assim tão complicada a sua vida, poupe”. Vi-lhe os dedos amarelos, disse-lhe para deixar de fumar. Nas sessões de saneamento, este senhor disse que um dia o chamei para o impedir de fumar! Ele transformou o meu conselho “poupe, deixe de fumar”, nesta afirmação! E o pulha do partido que lá estava a conduzir a operação (agora é um gajo importante, sindical), disse, “Estão a ver? Repressor dos trabalhadores!”. Era eu. Vilania pura.
Esses revolucionários da época, essa cambada de imbecis, era tão revolucionária que impedia um cidadão de exercer o seu mais fundamental direito: o direito ao trabalho. Era a revolução dos rapazes que andam por aí. Alguns já vão na extrema-direita. Andam a uma velocidade tão grande…, a ver se aproveitam a oportunidade.
Estou à espera do momento em que começa a pôr nomes nisto tudo.
Não ponho. A minha ex-mulher tem um texto para um livro que quer publicar a meu respeito; chateia-se comigo porque nunca dou o nome das pessoas. Diz que perde todo o interesse. Disse-lhe: “Não falo de pessoas negativamente, que estejam vivas”.
Acha que elas merecem essa consideração, apesar de, pelo que se percebe, não ter nenhuma consideração por elas?
Se utilizo os meios dos biltres, sou tão biltre como eles. Não faço. E se fosse verdade, já não era mau, porque dizem tanta coisa que não é verdade…
Estou aqui a fazer um esforço enorme para ver se a empresa funciona [Estradas de Portugal]. A empresa, para cumprir as suas obrigações, tem vindo a endividar-se. Há pessoas que dizem que o endividamento resulta da minha incompetência a gerir a empresa. Diz isso à saciedade nos jornais!
Nos últimos meses, o seu nome tem aparecido frequentemente nos jornais…
Julga que me vou chatear? É lamentável que o país seja manipulado por gente desta. Porque é que o poder político ainda não pôs portagens? Há dez anos que anda a falar disso. Nesta empresa concebe-se um modelo [financeiro] recebendo-se portagens para pagar as SCUT; como nunca se recebeu portagens, alguém tem de pagar as SCUT… É o endividamento bancário. Conclusão, fulano tal que até tinha fama de bom gestor, afinal é uma abécula. Isto vinha num jornal que se diz de esquerda, essa merda que anda para aí disfarçada de jornal de esquerda, que é a revista Visão. Vou fazer alguma coisa? Não. Disse à minha mulher: “A Visão aqui em casa não entra enquanto eu for vivo”. Não é pelo que diz de mim, é porque manipula. Se a revista fosse ignorante, está bem, perdoai-lhes meu Pai, que não sabem o que dizem; mas não é verdade, é manipulador. Quais são os interesses que tem aquela revista em manipular a população? Tem de explicar. É óbvio que está ao serviço de algum interesse.
Voltando aos anos 70. Em 1976 foi secretário de Estado do Sottomayor Cardia, que também era considerado um desabrido e um temperamental.
Também. Era um homem muito corajoso.
O encontro dos dois, no pós-revolução, deve ter sido uma coisa animada. Foi ele que o convidou ou foi Soares que o pôs lá como secretário de Estado?
Foi um amigo. Arranjou-me um dos maiores sarilhos que tive de enfrentar na vida: governar o Ministério da Educação. Na prática tinha a pasta da administração escolar, era por ali que passavam os dinheiros. E num momento em que a demagogia soprava por todo o lado, pôr um pouco de ordem no ministério não foi coisa fácil. Funcionei muito bem com o Cardia.
Está a dizer sarilho com uma certa ironia, não?
Não, foi muito complicado.
Por outro lado, era uma enorme promoção profissional e social, ser secretário de Estado, pensando que no ano anterior tinha sido saneado do Banco da Agricultura.
Isso foi para a opinião pública, para mim não. São factos que acontecem por acaso. Noventa por cento das coisas que acontecem na vida à pessoa são fruto do acaso, não têm mérito nem demérito.
Isso não bate certo com alguém que diz que o trabalho é aquilo que dignifica a pessoa. Onde está o mérito no meio disso, se o que prevalece é o acaso?
E não acha que há milhares de indivíduos que têm mais mérito do que eu? E acabam aí nas sarjetas porque nunca tiveram a oportunidade do acaso. Há pessoas que têm excelentes méritos e o acaso da felicidade não passou. Devemos ter a humildade de fazer o que nos compete como nos é pedido. Devemos ter a humildade de perceber que fomos bafejados pela sorte. O acaso tem muita importância na vida. Para outros pode ser Deus.
Quando decide que vai estudar, quando decide que não vai ficar em Leiria, quando estrategicamente pensa na sua vida, isso não é contar com o acaso.
É outra coisa: faço jus ao acaso. Isso é corresponder. Sem ponta de sorte, sem ponta do acaso, há pessoas que são verdadeiramente infelizes, imerecidamente. A pessoa que nasce no Chade, que é altamente dotada, não teve a sorte de nascer noutro país onde lhe tivessem dado outras oportunidades, está arrumada.
Foi por acaso que foi parar ao ministério como secretário de Estado?
Foi. O Cardia era uma excelente pessoa, um excepcional cidadão que a canalha vai esquecer. Dos poucos políticos que conheci intelectualmente sério, assumia as conclusões das premissas que validava, e era sério na conclusão. Nunca vi isso em mais nenhum político.
Herói romântico, não político.
Era romântico, acabou romântico. Um dia, o Cardia disse para um amigo nosso: “Lá no gabinete de estudos não tens um indivíduo que faça isto e aquilo?”. Não o conhecia de lado nenhum. O meu amigo disse: “Tens o melhor gajo para te fazer isso”. Falei com ele ao telefone, no dia seguinte assumi a função de secretário de Estado. Está a ver o acaso? Depois fiz jus, trabalhei bastante, arranjei inimigos de toda a espécie, toda. Ainda hoje me recordo de coisas que fiz, que só a minha ideia romântica… Era demasiado evidente que ia ter sarilhos com aquilo.
Conte uma história.
Tinha os sindicatos – um bando de irresponsáveis – e tinha como objectivo levar à glória o sistema de ensino – como levei. Vai demorar anos a emendar o que se está a passar no Ministério da Educação. Vai passar muita gente por lá que tenta e não consegue, porque durante anos deram a supremacia total aos sindicatos, que não têm noção nenhuma do que é a educação de um povo.
A Maria de Lurdes Rodrigues foi a única pessoa que verdadeiramente atentou contra isso?
Tentou, mas suponho que a dada altura lhe tenham dito para não tentar mais, porque não era politicamente útil. E acabou sem glória. A demagogia era muito pior que hoje, o primeiro-ministro da época achava que eu não tinha jeito para lidar com os sindicatos.
O primeiro-ministro era o Mário Soares?
Era. Um dia telefonou-me: “Não percebo como é que você gere essas coisas, os sindicatos”, e eu disse: “Quer que isto funcione ou não? Se quer que isto funcione tem que assumir que não posso levar a sério esta gente dos sindicatos”. Na época era uma calamidade dizer isto dos sindicatos. Digo isso ainda hoje. Um dia, numa daquelas discussões, ele disse-me: “Você até com os nossos (sindicalistas socialistas) se pega!”, “Mas esses, são os nossos, de quem? Você não conhece esses elementos, se os conhecesse não me dizia isso”. Passado não muito tempo fui a uma reunião nacional do partido; ia sempre contrariado porque aquilo era uma grande demagogia, idiota. Havia uma lista de indivíduos que o Mário Soares queria expulsar do partido. Verifico que eram os dirigentes sindicais que ele dizia que eram socialistas! “Ó Mário, desculpe lá, eram os indivíduos de quem você dizia que nem com eles eu me entendia”. Estou a dar-lhe este exemplo, da brutal discrepância e disfunção que existe entre a aparência e a essência. Na aparência eles eram socialistas e estavam a defender o interesse dos socialistas na educação; eu era um perigoso direitista. Depois ele acabou por ter que os expulsar do partido.
Como é que percebe antes? Como é que percebe a essência e não se deixa iludir pela aparência?
Pelos actos vê-se facilmente se estão a defender interesses altruístas ou egoístas – isto chega para distinguir. Um político faz um discurso horroroso, o chamado interesse público nem por lá passa; percebe que ele é um troca-tintas, ou não? Era o que eu percebia deles. Queria lançar o ano escolar e esse bando de parvos ia lá para discutir coisas que depois eu percebia que era um interesse específico de um membro da direcção do sindicato.
Muitas vezes isto acaba por ficar preso à petite histoire, ao interesse individual, à circunstânciazinha.
Acaba. Mas volto a dizer, o mérito não é só meu, é a minha vida, sou o resultado do meu meio. Tenho valores altruístas, preocupo-me com valores altruístas. Vejo aí esses pantomineiros a dizer que estão a defender os interesses do povo, e estão a defender interesses específicos ou de amigalhaços, interesses económicos…
Como é que ficou a sua relação com o Mário Soares depois desses dois anos no ministério?
Quando me demiti do Governo ficou tensa. “Você quer mesmo ir embora? Então tem que fazer uma carta a dizer isso mesmo”. “Uma carta? Com quantas páginas?”. “Você é maluco, faça aí uma coisa com três linhas”. Muito tensa. Hoje damo-nos bem. Até acho que ele, como não é tonto, sabe que muitas vezes eu é que tinha razão. Relacionei-me muito com ele e ele percebeu que sou um homem absolutamente leal. Mas leal é dizer não quando é não, e sim quando é sim, mais nada. Não sou homem de côrte, não ando a lisonjear ninguém, não tenho o culto do poder, não tenho a subserviência perante o poder, essas coisas que eles gostam de ter (gostam de ter, não tenho dúvida). Um dirigente político que se preze faz à sua volta o deserto, faz a “ermação” [de ermo]. É por isso que não há nenhum dirigente político, nem aquém nem além fronteiras, que alguma vez deixe um delfim com conta, peso e medida. Querem o deserto. Ou eu ou a desgraça, ou eu ou o caos – todos.
Por que é que nunca lhe soube bem a côrte, a lisonja?
Porque isso é mentira, é dissimulação.
Mas isso também revela uma auto-suficiência. Não precisa de ser gostado e de ter uma entourage que o mime.
Não preciso. Todas as pessoas que vêm trabalhar comigo sabem que prefiro a incomodidade da divergência à comodidade da subserviência. Se a pessoa não está de acordo comigo deve dizer objectivamente.
Nunca precisou de ser gostado, apreciado, confirmado?
Não. Se tenho muito mais gosto em acertar do que em errar, é verdade que sim. Se tenho muito mais gosto em ser apreciado do que em não ser, obviamente que sim. Agora, não vou pelas vias ínvias para atingir esse estado. Respeito muito quem é divergente de mim. Pode ter a certeza de que isso é uma vantagem enorme para a minha vida.
Porquê?
Porque corro menos riscos.
Risco de ser traído, apunhalado?
Sim, ou até de um erro. Se peço a todos que sejam livres e críticos acerca dos meus pensamentos, dos meus actos, é óbvio que corro menos riscos de errar. Tenho muita confiança em mim, mas tenho o sentido da humildade, sei que devo ser complementado pelos outros, e tenho a certeza de que algumas coisas que me correram bem, podiam ter corrido mal se não ouvisse os outros.
Já se enganou em relação a pessoas?
Já, muitas vezes. A brincar, até digo aos meus colegas que não podemos ser fiéis a Rousseau. O homem não é bom por natureza.
Não é a sociedade que o perverte, é a sua natureza que por vezes não é boa?
É. A guerra é o nonsense entre os homens, mas é a história do homem. São estas brutais contradições que têm que ser geridas.
Quando sai do ministério, sai porquê? O que procuro saber é que o faz sair de um sítio.
Saio quando entendo que transvio até ao limite dos meus princípios. Não sou um fanático dos meus princípios, mas tenho limites à minha transigência. Quando bato com a porta na Caixa Geral de Depósitos, quando me demito do Ministério da Educação, quando termino o ciclo é porque já não vou mais. Tive um casamento de 20 e poucos anos, hoje sou muito amigo da minha ex-mulher, mas não podia ser marido dela. Quem diz na vida pessoal, diz na vida profissional, a partir de um determinado momento só nos prostituímos se continuarmos. Já não somos nós que estamos lá, somos nós a ceder, a diminuir.
Posso perguntar que idade tinha quando casou pela segunda vez?
Cinquenta e poucos anos.
Vi uma fotografia sua numa revista com a sua mulher, que parece mais nova.
Tive de quebrar uma série de tabus, ao casar com uma mulher mais nova do que eu 25 anos.
Tabus seus ou da sociedade?
Da sociedade. Tenho filhas que são pouco mais novas do que a minha mulher, meses. Hoje funciono muito bem com as minhas filhas, com a minha mulher actual. Tenho três filhas do primeiro casamento e um rapaz de 19 anos deste casamento. Arranjo dificuldades com os meus princípios, mas também resolvo as minhas dificuldades com os meus princípios.
Vai para o BES no início dos anos 80. O que é que faz entre a saída do ministério e a banca, onde faz toda a sua carreira?
Quando fui para o ministério já estava nomeado para ser gestor do Banco Espírito Santo. Uma coisa muito pouco sadia na aparência, na essência rigorosamente correcta. Fui convidado para ir para o Banco Espírito Santo…
Por quem?
Pelo Artur Santos Silva, que era secretário de Estado do Tesouro. Veio o convite do Cardia, e achei que devia deixar a comodidade da vida bancária e ir fazer a minha vida política, em correspondência ao meu empenhamento no Partido Socialista. Estive no Governo o tempo que achei que podia transigir. Depois fui para o Banco Espírito Santo honrar o mandato que tinha suspendido no dia em que fui para o Governo.
Tinha chegado a iniciar funções no Banco Espírito Santo?
Durante dois dias. Claro que as pessoas pensaram que primeiro quis ir arranjar o chamado tacho e que depois é que fui para a política. Fui porque dei preferência à política. Tanto assim que, já no Banco Espírito Santo, já decepcionado com a vida política, continuei a fazer um esforço e fui para o parlamento, para deputado. Mas já não saí do banco.
Quando estava no ministério, chegou a pensar que a política era uma via para si, ou sempre olhou para aquilo como uma espécie de comissão de serviço?
Cedo percebi que não ia fazer a minha vida na política, porque cedo comecei a ter os meus desgostos. Não é politicamente correcto dizer isto, mas foi assim que aconteceu.
Percebeu, portanto, que lhe interessava apenas uma face da moeda, a da Economia.
Que era o trabalho, a profissão. Sempre com esta lógica: utilizar na minha vida profissional a acção política. É por isso que todo o meu trabalho de recuperação e reorganização de empresas obedece a critérios de justiça social.
Significa que o menino pobre, lá atrás, nunca desapareceu.
Provavelmente não. Um dia uma jornalista perguntou-me como é que conciliava a minha concepção de vida à esquerda com a reestruturação das empresas…
Em que é preciso fazer despedimentos.
Nunca despedi ninguém, faço redução de quadros, é diferente. Só despedi pessoas, e não tenho nenhum complexo em relação a isso, por via disciplinar. Tenho pena de não ter condições disciplinares mais amplas para eliminar quem não quer trabalhar e anda a enganar a sociedade. Agora está muito em discussão a temática do despedimento; percebo muito bem a prudência que tem de haver na gestão da política laboral e legislação nos despedimentos; mas é uma evidência que os maus trabalhadores prejudicam a classe dos trabalhadores.
O que é que respondeu a essa jornalista?
Concilio sempre as duas coisas. Adopto soluções de natureza social preocupando-me sempre com a redução da penosidade social. E tenho a minha obrigação cumprida.
O ponto mais alto da sua carreira foi a criação da SIBS ou a presidência do Banco Fonsecas e Burnay? Ou nenhum destes dois?
Há sempre dois elementos a julgar esses factos: o próprio e a sociedade. A sociedade pode imaginar que o meu melhor trabalho foi, por hipótese, a recuperação do Banco Fonsecas e Burnay, e eu achar que não. O serviço que prestei mais relevante no meu país foi pôr a funcionar a RTP.
Porque é que intimamente considera esse o seu melhor trabalho?
Pelo seu significado político e social. A RTP era uma grande dificuldade para a sociedade e para o poder político, e ajudei a resolver isso.
O poder político que lhe estendeu a mão nessa altura não foi o da sua cor.
Eu distingo, não há contradição nenhuma.
Tinha batido com a porta, com estrondo, na Caixa Geral de Depósitos, com um Governo socialista, e a seguir quem lhe estende a mão é o PSD.
Não foi estender a mão, não entendo isso assim. Fui prestar um trabalho útil ao poder político e ao meu país, motivo-me por estas duas boas razões. Quando me perguntavam porque é que eu, com 70 anos, ainda aceitava fazer este trabalho, é porque tenho valores altruístas, porque acho que posso ser útil à sociedade. E tenho os meus valores individuais, realizo-me profissionalmente.
Não sentiu que lhe estavam a dar a mão, sentiu que o reconheceram como profissional, e que conseguiram ver além de um preconceito político.
Sim. Eu próprio achava, e disse-o ao ministro da época, ao Dr. Morais Sarmento, que não reunia as melhores condições para dirigir a RTP.
Porquê?
Porque não era apoiado por nenhum partido, tive incomodidades com o facto de não ser membro de nenhum partido, e achava que isso era um factor de desvantagem. E foi. Custou-me mais a fazer algumas coisas por não ser protegido nem pelo partido A nem pelo partido B. Sou um homem de esquerda, assumo isso objectivamente, não tenho nenhum preconceito. A humanidade só se resolve com valores de esquerda.
Procurando a justiça social – é essa a trave mestra que o faz ser de esquerda?
Exactamente. É o menino que passou fome que se realiza aí. Tenho hoje uma concepção muito crítica para com o modelo económico que está em vigor. O capitalismo actual está cheio de vícios, falta de princípios. Mas é também a sociedade que precisa de se reformar, retomar princípios.
Acredita que é possível?
É fundamental, sem o que a sociedade viverá bastantes vicissitudes. Isto dá em guerras.
Porque é que saiu da Caixa batendo com a porta com tanto estrondo? Porque é que não quis sair de mansinho? Estava em desacordo, como é evidente, mas aquilo foi uma coisa que se ouviu muito cá fora.
Porque tinha de chamar a atenção para o que se estava a passar na Caixa. Princípios, mais uma vez. Achei que se saísse sem dizer alguma coisa não fazia bem a minha obrigação. Nunca fiz comentários públicos sobre o que se passou na Caixa, só disse que não concordava com o que se estava a passar.
Para a opinião pública a ideia que passou foi a de estar em conflito aberto com António de Sousa, que era então presidente.
É verdade, foi isso. Exactamente porque discordava dos princípios. Os conflitos emergiram e cedo percebi que quem tinha que sair era eu, não eram os outros membros da administração. Fui eu que fiz declarações de voto para as actas, fui eu que disse publicamente que discordava do que se andava a passar, fui eu que incumpri as regras da chamada solidariedade do órgão. Fiz a quebra daquilo que prezo, e que aparenta ser solidariedade; não tenho solidariedade para com maus critérios, tenho solidariedade para com os meus critérios. São os meus, não são perfeitos, mas não são tolerantes em excesso. Há um limite a partir do qual não passo.
O conflito foi com o Pina Moura?
Não, não tive nenhum conflito com o ministro, nem com esse nem com o seguinte. Os conflitos foram com parte dos meus colegas do conselho de administração. Até dei caminho ao ministro, disse-lhe que me queria ir embora: “Ou me reformo, ou me manda terminar mandato noutras actividades, ou me demite”. Acabei por colaborar reformando-me. Mas não foi um caminho fácil – hoje já posso dizer isso. As coisas não correram bem, estive tempo demais a aguardar, pediram-me para continuar “apesar de”, e quando veio a público, veio já nas piores condições, já com declarações falsas dos membros da administração, já com alguma degradação.
Nesses processos também não hesita, não foge ao conflito.
Não fujo ao rompimento. É um processo doloroso, qualquer rompimento, seja profissional, familiar.
Fale-me da relação que tem com os seus filhos. Ouvi dizer que vai ver aves com o seu filho.
Já não vou, porque tenho muitas dificuldades em ver.
Por causa da diabetes?
Sim. Mas tinha muito gosto em ir. Na infância era um fã dos pássaros.
Já foram a Capri? Axel Munthe, que era o médico da família real sueca, e que escreveu O Livro de San Michele, tinha paixão por pássaros. Fixou-se na baía napolitana e na sua casa museu estuda-se ornitologia.
Não conhecia essa curiosidade, mas devo dizer que já fui a muitos sítios exclusivamente para possibilitar que o meu filho visse aves.
O que é que costuma fazer com as suas filhas?
Agora pouco, porque estão todas casadas e fazem a sua vida. A mais velha foi para Direito, a do meio para Gestão de Empresas, a terceira para Economia. Sou avô ausente, mas gosto muito dos meus netos.
Ajudou as suas filhas profissionalmente? O senhor não foi muito ajudado, ajudou-se a si próprio.
Sempre que me pedem opinião, dou. Criei a empresa onde uma das minhas filhas começou, e para onde depois a outra passou. No fundo ajudei alguma coisa, sim.
Para elas, e estando nesta área, foi pesado serem filhas do Almerindo Marques? Emanciparem-se em relação à imagem do pai.
Cedo fizeram a sua vida própria. Fizeram a vida universitária por si próprias, nunca utilizaram vantagens do pai, nunca. Mas têm tido alguns dissabores por terceiros não pensarem isso.
Por acharem que foram ajudadas mais do que deviam?
Sim. Mas não é assim. Tenho muito gosto e orgulho em saber que as minhas filhas foram elas próprias. E estou a fazer tudo para que o meu filho seja ele próprio. É dele exclusivamente a opção de estudar engenharia. A única coisa que lhe recomendo é que seja sempre autónomo, e que o seja o mais cedo possível.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2010