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Anabela Mota Ribeiro

Filipe La Féria

24.06.14

«O que nos torna artistas é a observação do nosso semelhante. Observar o comportamento humano é o que mais me fascina: descrevemos, fazemos teatro, pintamos sempre na descoberta deste bicho que é o ser humano».

Criou os maiores êxitos do teatro português. Os seus espectáculos têm invariavelmente salas lotadas. Sobre o palco o ambiente é feérico. Devolve o espectador ao sonho. Respira-se uma alegria de viver que contrasta com o negrume dos dias que correm. Que contrasta com a acidez que usa para se referir ao país, às condições que lhe são dadas para trabalhar.

A história destas peças é a história da persistência de um homem, que começou menino a observar, a pôr em cena.

Filipe La Féria tem 58 anos, é encenador. O encontro aconteceu na baixa lisboeta, no seu Teatro Politeama. O ar estava tomado por um calor espesso. 

 

Um dia de calor como este devolve-o à infância, às tardes infindas do Alentejo?

Sim. Era um calor de 40 e muitos graus. Lembro-me perfeitamente das tardes em que se dormia a sesta, das mantas no chão para dormir a sesta. Era um tempo que aproveitava para ler. Eu devorava livros, sobretudo impróprios para a minha idade! O Eça de Queirós, o Balzac. Na biblioteca da minha avó constava a «Comédia Humana».

 

E os livros com figuras de teatro, que faziam igualmente parte do seu imaginário?

Eu é que os fazia. Esperava a camioneta que chegava às seis da tarde e comprava o Diário de Notícias; a terceira página era só de anúncios e caricaturas. Recortava aquilo, colava e dava-lhes consistência num pouco de cartão; e então, com uma caixa de sapatos ou de chapéus, fazia uns teatros. Fazia exactamente o que faço hoje.

 

Punha em cena aquelas figuras de cartão, num palco improvisado numa caixa de sapatos.

Escrevia e fazia encenações. Passava dias e dias a fazer isso.

 

Era um rapaz solitário?

Não. No outro dia, na Aldeia Nova de S. Bento fizeram-me uma homenagem muito bonita, uma coisa que guardarei sempre no meu coração. Toda a gente dizia que era muito reguila, e muito mau! [risos] É engraçado porque nessas ocasiões fazem-se sempre uns grandes exageros sobre o bom feitio das pessoas, que eram uns amores... E não, era uníssono que eu era muito mau.

 

A sua personalidade tinha traço arisco?

Fui o irmão mais novo numa família com seis irmãos. Eram muitos pais e muitas mães ao mesmo tempo, e queria impor a minha personalidade. Isso é que me dava uma personalidade impetuosa.

 

Os interlocutores à sua volta, esses vários pais e mães, irrompiam pelos seus teatros, competiam com as suas personagens de romance?

A ficção tinha um peso forte. O Jean Valjean d’ «Os Miseráveis», ou os personagens da «Madame Bovary» eram quase tão reais como as pessoas que eram reais. Faz parte de mim próprio: ainda hoje vivo entre a ficção e a realidade. É por isso que me aventuro a estes grandes navios que navegam sobre mares tão difíceis, como é fazer teatro em Portugal...

 

Espere. Ainda antes de passar a essa fase mais amarga, queria conhecê-lo na fase de encantamento pela vida.

Ah, sou encantado pela vida! Sou optimista e com certa força. Mas ser artista em Portugal? Existimos porque insistimos. Cavaleiro Oliveira escrevia que nos portugueses como nos romanos as pessoas de teatro eram proscritas. (Nem sequer lhes era permitido serem enterradas nas igrejas). Consegui ser encenador e dramaturgo por insistência. Se vivêssemos noutro país, onde não fosse tão difícil fazer as coisas...

 

É aí que lhe denoto um travo amargo, no modo como insistentemente se refere ao país.

Sim, sou um pouco amargo sobre isso. Porque sinto que podia fazer muito mais.

 

O quê? Onde é que lhe cortaram as pernas?

Por exemplo, se tivesse mais teatros teria feito mais peças. Temos uma política cultural tão errada que metade da vida estamos nesta insistência, neste querer, a puxar uma carroça de ferro numa grande encosta. A frustração de ser português e de ter nascido aqui é considerar que somos um país terrivelmente difícil. Vivi praticamente três anos em Londres; nos países do primeiro mundo as coisas são mais fáceis.

 

Já vamos a Londres. Recuemos ainda ao Alentejo. Fale-me da sua família.

Só vivi dois anos no Alentejo. Ia lá de férias. A minha família era extraordinária. Tinha uma parte maçónica e uma parte religiosa. A religião seduziu-me quando era pequenino porque era muito teatral.

 

Ainda hoje se assume como católico. É um homem de fé.

É uma tradição posta com uma tal veemência na nossa alma e no nosso universo que ficamos sempre presos à educação que tivemos. A família economicamente gozava de grande privilégio. Mas tinha preocupações sociais. Não correspondia ao arquétipo do latifundiário fascista e odiado. Nada, nada. Eram pessoas amadas pelo povo. Faliram muito antes do 25 de Abril; não vivemos as ocupações, essas coisas todas. Na homenagem foi bonito saber que o meu pai tinha ajudado a população durante a guerra civil espanhola. Sou de uma família de ascendência espanhola. Somos de um Alentejo da raia.

 

Foi marcante na família passarem de uma fase em que tinham muito dinheiro a outra em que não tinham dinheiro nenhum?

Sim, sim. Marcou-me, mas foi uma grande riqueza. Tive a sorte de ver o espectáculo da vida de todos os lugares. Da plateia, da geral, do balcão, do camarote. E isso dá uma dimensão de quanto tudo é efémero.

 

Ajuda a dar valor às coisas?

Sim. E sobretudo a ver a mesquinhez da alma humana. E a grande fragilidade das coisas materiais. Aconteceu quando tinha 14 anos. Começo a trabalhar muito cedo, na companhia da Amélia Rey Colaço, aos 16.

 

Como é que foi trabalhar para aquela companhia, que à altura era considerada a melhor?

Fui para o conservatório e escolheram-me logo, comecei logo a trabalhar.

 

Era uma espécie de príncipe. A São José Lapa descreve-o como alto, elegante, com porte distinto.

É verdade que fazia muitos papéis de príncipe, de galã. Como tinha esse porte físico num país mediterrânico, tinha facilmente grandes papéis. Tenho 12 anos de actor. Pertenci a grandes companhias. Ao Teatro Estúdio de Lisboa, ao Teatro da Cornucópia, ao Teatro de Cascais, e sobretudo à Casa da Comédia.

 

Anos mais tarde, foi director da Casa da Comédia, por 16 anos.

Um dia tive o ensejo, hipotecando coisas minhas, de comprar a Casa da Comédia. Ela estava para ser vendida e transformada em templo de Jeová!

 

Hipotecou bens para segurar um sonho. Tudo o que tem é fruto do seu trabalho?

Tudo, tudo. Ao lado artístico sempre associei um lado prático. Talvez seja do meu signo: sou Touro. Consegui alicerçar, conquistar, transformar. Após 58 anos de vivência, talvez seja essa a coisa positiva que consegui fazer na vida: transformar. Nasci com tudo, fiquei sem nada, e gradualmente, com o meu trabalho, fui transformando as coisas. Transformei o Teatro Politeama, que era um cinema de pornografia. Isto era lama! Não estou a exagerar. Eram tabiques e lamas e ratos e baratas, e agora é um espaço tão agradável, com tanto público. Vou lutar para transformar o Olímpia, um cinema decadentíssimo.

 

Essa capacidade transformadora radica onde? Tinha uma grande confiança em si para avançar, destemido? Por exemplo, para ir para Londres sem dinheiro.

A aventura de Londres. Não tive dificuldades na minha carreira de actor. Até ganhei prémios. Mas gostava mais de escrever e encenar, queria sempre mais... Daí a ansiedade de ir para Londres. Pedi uma bolsa e trabalhei ao mesmo tempo. As bolsas eram ridículas, uns tostões ao fim do mês. Fui trabalhar para os restaurantes, servi à mesa num óptimo restaurante na Kings Road. Foi uma época muito interessante: absorvi os anos 70 em plena Kings Road. Até nomes agora antológicos eu conheci! Se tive medo de ir sem dinheiro? Nunca tive medo. Nunca tive medo da vida. Tenho medo da doença. Tive medo uma vez...

 

O que o perturba é isso, o espectro da doença?

Sim. Tenho uns olhos um bocado fracos... Tive problemas, várias operações...

 

Os seus fantasmas têm que ver com isso, com uma redução da capacidade?

A redução de capacidade, sim, faz-me medo. Ter de depender muito dos outros faz-me medo. Enquanto tiver saúde não tenho medo.

 

A saúde é mesmo o bem mais precioso?

Ah, sim.

 

Os seus pais incentivaram o seu gosto por ser artista?

Não. Hoje qualquer mãe ou qualquer pai empurra o menino para a televisão, para se exibir. Antigamente não, até pela classe social. Havia muitos estigmas... Foi um enorme desgosto.

 

Os estigmas estavam associados à sexualidade? Os artistas eram tidos por devassos.

Não. Era o medo de o teatro dar pouco dinheiro e de ter uma vida difícil. Qualquer jovem que vá para o teatro sabe que vai haver momentos muito difíceis. Com a São José Lapa, o Fernando Gomes, a Teresa Roby, fazíamos arroz para comer. Arroz com arroz. Arroz com feijão.

 

Que persistência é essa? O que faz uma pessoa expor-se ao risco do arroz com arroz pelo teatro?

É um sonho. Era o sonho. Era o ver e o querer fazer. E a partir dos anos 70 não era só a arte pela arte. Encarámos a profissão de actor, também , com um espírito político. Queríamos transformar a sociedade.

 

O grosso da classe artística está conotada com a esquerda. Teve a sua fase de esquerda, mas curou-se!, para usar uma expressão sua. Todavia, nunca escondeu um fascínio pela figura de Salazar.

Porque é uma figura teatral!, shakespeariana. Gostei de estudar a figura de Salazar, gostava de fazer uma peça sobre ele.

 

O que é ele?, é um pai tirano?

É todo o português antigo. É uma figura que dominou e domina o subconsciente português. Os italianos já fizeram milhares de filmes e peças sobre o Mussolini; nós nunca abordámos essa figura tão terrível e ao mesmo tempo tão fascinante. O salazarismo não tem nada a ver com o fascismo e muito menos com o nazismo. O salazarismo é tão pequenino como nós, é uma política quase de sacristia.

 

Sente por Salazar o mesmo fascínio que sente pela igreja, pelo lado do ritual e da caricatura?

Sim. Mas a igreja tem uma outra profundidade. A fé é uma âncora onde vamos nos momentos difíceis. Quando estive doente... Quando o homem se reduz à dimensão da sua caveira... Vivemos numa dimensão muito reduzida do universo. Somos humanos, conhecemos as nossas limitações. A fé dá-nos a possibilidade de encontrar a nossa consciência interior, o que há de divino em nós.

 

O que é o divino? Para si, a dimensão de divino coincide com o fazer?

É o exceder. O fazer será o primeiro movimento. Mas é o excedermo-nos a nós próprios. É encontrar algo mais do que nós, mais do que este quarto, mais do que o estarmos aqui a falar. Quando lia o Victor Hugo também queria ir além da realidade do Alentejo.

 

Sonhava muito com o que lia nos livros?

Sim, sou viciado. É onde gasto muito dinheiro, é nos livros.

 

Na fase da Casa da Comédia era muito arrojado. Ali se experimentava um teatro de vanguarda. Encenou por exemplo uma peça do Pasolini onde apareciam muitas pessoas nuas.

Era muito subversivo. O Pasolini não era só por aparecer gente nua; era a primeira peça que interrogava uma sociedade pós-fascista, como toda a vida Pasolini interrogou. Era uma época de afirmação e revolta. Mas não considero que seja muito distante desta.

 

Como assim?

Ao querer fazer o Olímpia, sinto necessidade de fazer um outro teatro.

 

Se tivesse um outro espaço seria para apostar numa corrente diferente desta que ensaia no Politeama?

Esta corrente que eu ensaio é total!, é tranversal à sociedade portuguesa. Quando foi o «Amália» pensei que era por ser a Amália, um grande mito de Portugal. Mas a «My Fair Lady» tem mais público! É um fenómeno: não é só o público de Lisboa. Todos os dias recebemos excursões, excursões, excursões. Os meus espectáculos tiveram sempre essa característica: de serem muito apelativos ao público.

 

Porquê? Acha que tem o dom de fazer espectáculo?

Sim. Em qualquer espectáculo, mesmo num texto da Marguerite Duras ou Yourcenar, havia sempre o inesperado. O teatro é isso, é o inesperado. É o dom de surpreender as pessoas.

 

Explique-me o desejo de voltar a fazer um teatro diferente deste que o tornou tão famoso.

Eu acho que tenho capacidade de trabalho para ter quatro teatros ao mesmo tempo!

 

Há quem diga que se revê mais no teatro que fazia na Casa da Comédia.

Estes espectáculos [do Politeama], acho maravilhosos e não abjuro nada. Acho até mais difícil ter conseguido fazê-los; são artisticamente mais sofisticados do que aqueles que fazia na Casa da Comédia. Mas mantive sempre uma relação muito difícil com o poder. Não concebo a política cultural que existe em Portugal! Eu era incapaz de concorrer a subsídios!, de ir para os corredores da Secretaria de Estado a pedir!

 

Quer dizer que optou por outro tipo de espectáculo para não pedir subsídios? Mas queixa-se imenso que não lhe é atribuído apoio pelo facto de fazer um teatro comercial.

Dizem que tenho muito público, que não preciso.

 

E nessa altura fica furibundo.

Não, não. Bom, talvez sim...

 

É sempre muito vigilante? Reparei que a meio do «My Fair Lady» foi espreitar o espectáculo.

Vejo tudo. Gosto que as coisas tenham a maior qualidade. Afino pormenores. E há outra função: se o ar condicionado está ligado, se o público está confortável. Bem vê, o dinheiro que ganhamos entra por uma portinha muito pequenina, a bilheteira. Portanto, temos de dar às pessoas o sonho. O teatro tem de estar muito bonito, tem de transportar as pessoas que vêm nas camionetas e que andam 300 km para um lugar de excepção.

 

É isso que faz?, transportar as pessoas para um lugar de excepção?

Sim, tratá-los bem. Não supus que o «My Fair Lady» fosse um sucesso tão grande.

 

É a primeira peça que não tem um cariz marcadamente português. As outras, «Passa por mim no Rossio», «Maldita Cocaína», «Amália» diziam respeito ao imaginário português.

Exacto. Penso que o sucesso tem a ver com a crise que passamos. É uma história de Cinderela. As pessoas entram para um plano de sonho. É o segredo de Polichinelo: escolher muito bem as peças. Às vezes estou meses a escolher uma peça. Começo uma, traduzo, não, não. Outra. É preciso perceber muito bem o ambiente exterior ao teatro. Pense no público americano: os grandes musicais apareceram com as grandes guerras. Funciona como um tubo de escape para o público.

 

Ou seja, as pessoas vão ao teatro para sonhar?

Sim.

 

A sua filha, que tem vocação para as artes, trabalha consigo?

Não, está a estudar. Vai para Londres.  

 

Como é que era a sua voz quando era actor?

Era menos rouca do que é agora porque gritava menos, ralhava menos!

 

Ralha assim tanto?

Sim! [risos] 

 

 

Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em 2003

 

Ler um País em Crise

24.06.14
No último Ler no Chiado antes das férias, vamos ler um país em crise

Com o politólogo André Freire ("Austeridade, Democracia e Autoritarismo"), o economista Félix Ribeiro ("A Economia de uma Nação Rebelde") e o filósofo Viriato Soromenho Marques ("Portugal na Queda da Europa"). 

Dia 3 de Julho, às 18.30, na Bertrand do Chiado.

Eu modero.