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Anabela Mota Ribeiro

Manuel Luís Goucha

30.06.14

A primeira vez que o vi, num dia abafado de fim de Verão, estava sentada numa secretária de um quarto andar a tentar disfarçar o melhor que podia o nervosismo e o calor. Estavam outras pessoas na sala, uma sala de produção que frequentaríamos insistentemente nos dois anos seguintes. Julgo ter notado que era mais alto e mais corpulento que o imaginava, e que estava moreno e de boa disposição. Lembro-me, sobretudo, da circunstância de ele cravar os olhos em mim, segundos depois de ter virado a porta, e ter perguntado ao mesmo tempo que avançava «Quem é esta menina?». Ele, que perguntava isto imaginando que eu era eu, a tal e tal e tal que ia fazer-lhe companhia nas manhãs da RTP. Era o Manuel Luís Goucha.

Passaram quase seis anos. Seis anos é sempre muito tempo na vida de uma pessoa, muito mais quando ela está a virar os quarenta. A vida passa a ser outra, é o que me dizem e eu acredito.

Ele desnuda-se nas páginas seguintes, mantendo um véu sobre a sua sexualidade, desvelando todos os outros poros. Nasceu em Lisboa há 45 anos, mudou-se para Coimbra ainda menino. Foi actor, foi cozinheiro. Desde há seis anos, é líder das manhãs da televisão portuguesa. Como julgo que concordam, é o melhor no seu segmento.

 

 

Que sensação estranha, ser entrevistado por uma ex-colega... Há pouco, quando vinha no avião, pensava que não podia fugir muito, porque me conheces bem.

 

Eu pensava nas coisas que sei e que não são contáveis.

Claro que vou fugir a algumas questões que são inabordáveis!

 

O que distingue o espaço público do privado?

O espaço privado só tem a ver com a minha sexualidade, com as pessoas com quem vivo, com as pessoas que amo. O lado público tem a ver com a profissão e com tudo o que a rodeia.

 

Quando nos conhecemos, demorei algum tempo a apreender a tua verdadeira essência; não só porque é, normalmente, um trabalho demorado, mas também pelas barreiras que colocas à tua volta. Perguntei-me se isso não aconteceria pelo facto de trabalharmos juntos.

Cada vez sou mais selectivo. Podem ser amigos ou pessoas com quem trabalho. Questiono-me se não me estou a tornar demasiado bicho-do-mato. Cada vez dou mais importância ao meu silêncio.

 

Na equipa que trabalha contigo, tens amigos íntimos a quem fazes confidências?

Há pelo menos duas pessoas no Porto que partilharam sempre das minhas alegrias e fracassos. Mas curiosamente, cada vez partilho menos. Talvez por estar mais equilibrado: mais calmo, mais tranquilo, mais seguro. Penso que se nota na apresentação do programa que estou mais sereno, que as coisas são mais saboreadas, e estou numa boa fase afectiva.

 

Uma das primeiras impressões que tive, foi que a tua exuberância era uma forma dissimulada de apresentar a tua carência afectiva.

A minha amiga Beca Amaral, que é dada às astrologias, diz que somos em público o ascendente e em privado o signo. O ascendente é o Leão, que gosta de uma corte, gosta de se exibir e reinar, mantendo uma certa distância. No seu íntimo é Capricórnio, o ser solitário, contemplativo. Esta leitura coincide com a minha maneira de ser. Se não quisesse aprofundar mais as coisas, isto já me bastava.

 

Interessa-te aprofundar?

Interessa-me saber porque sou assim. A sensação que tinha quando trabalhava contigo, e reconheço que era um pouco primária, é que havia do meu lado uma espécie de duelo.

 

Parece que fazemos as pazes nas páginas de um jornal!

Nunca acredito muito em parelhas, no que quer que seja. Dois galos no poleiro, não dá. E sempre achei que eras igual a mim, que havia que duelar (não sei se existe a palavra, mas pronto!). Hoje não faz sentido: estou no «Santa Casa» com a Sónia (Araújo) numa situação de igualdade e, apesar da tendência para centralizar e me evidenciar, tenho as coisas mais resolvidas. Se trabalhasse contigo agora, seria muito diferente. Estou mais equilibrado e sereno; já não tenho de provar nada a ninguém, mesmo que tenha outros desafios pela frente.

 

Não consigo imaginar-te há uns anos a assumir e confessar uma coisa destas.

Penso que foi a partir do 500, do programa 500, quando toda a crítica se rende e começa a dizer muito bem de mim, quando percebo que há um trabalho que consigo fazer bem. (pausa) Eu sou uma pessoa ciumenta. Sou muito impetuoso, coração ao pé da boca, e quando me sento a pensar e a racionalizar, compreendo que não há razão para o ciúme.

 

Estruturalmente és possessivo, e tremendamente dominador.

Tenho de dominar tudo, ser dono e senhor da situação. Sou um mau elemento de uma equipa; sei trabalhar em equipa, desde que a apresentação seja minha. Quer dizer, discuto os assuntos em produção, nunca imponho a minha vontade se não houver um consenso quanto aos convidados, não sei quê não sei quantos. Agora, na maneira de fazer o programa, tenho dificuldade em delegar. Tem a ver com uma capacidade centralizadora que vem desde criança. Sempre fui muito metido comigo. Fui uma criança velha.

 

Uma criança velha?

Não brincava com os outros meninos. Fechava-me em casa a fingir que era apresentador de televisão. Com oito anos, sentava-me no sofá e inventava entrevistados ao meu lado. Falava com eles em português e francês. A outra brincadeira era recortar os bonecos dos livros de histórias que me davam, montar pequenos palcos com caixas de camisa e fingir que estava a fazer teatro. O que é muito curioso é que vim a ser actor e apresentador de televisão. Ah, e era uma criança filho de pais separados, neto de avós separados, quer maternos quer paternos, sobrinho de todos os tios separados.

 

É uma situação invulgar numa cidade de província há 40 anos atrás. Foi estigmatizante?

Não, sempre lidei muito bem com isso. Na escola ou no liceu, havia os meninos com pai e mãe e família constituída, e eu achava que era diferente: tinha mãe e padrasto, que era uma coisa divertida, mesmo que não me desse muito bem com ele. Não podia estar traumatizado por uma coisa que nunca tive.

 

Nunca tiveste o pai e a mãe juntos?

Não há nenhuma memória, por mais longínqua que seja, que associe o meu pai à minha mãe. Separaram-se tinha três anos. Não posso ter saudades de uma família que nunca tive, nem sei o que é. A família nunca foi um valor importante na minha vida. Sempre me cumpri sozinho. Aos 17 anos estava em Lisboa em casa de um tio, a trabalhar num escritório, o gabinete português de medalhística.

 

Tens um irmão.

O meu irmão teve uma infância normal, brincadeiras de bola com os rapazes, casou e teve filhos: uma vida normal. Dou-me bem com ele. Os Natais, éramos quatro gatos pingados: a minha mãe, o meu irmão, a minha avó e eu. Os melhores Natais da minha vida foram quando comecei a sair para fora do país, sozinho.

 

Há a coincidência do teu aniversário ser no dia de Natal. Ou seja, nunca comemoraste as duas festas anuais que as pessoas vivem mais efusivamente.

Passei a ter festa de Natal e jantar de aniversário muito adulto. As noites de Natal mais divertidas foram na EuroDisney à meia-noite, molhado que nem um pinto, no labirinto da Alice no País das Maravilhas. Outra foi há três anos na Abadia de Westminster na Missa do Galo. Outra foi há dois anos em Amesterdão num concerto de músicas de Natal, todos a cantarem em holandês e eu a fazer playback, só abria e fechava a boca.

 

Sozinho.

Sozinho e felicíssimo!

 

Todas essas coisas só são compráveis com dinheiro. Aprendeste a estar sozinho com a força dos anos ou iludes a solidão com estes presentes?

Gosto de estar sozinho, gosto de viajar sozinho. Há tantos anos que vivo sozinho... A solidão não me pesa, mesmo quando tenho relações afectivas.

 

Não há nostalgia alguma do conceito de vida normal?

Não. Nunca me passou pela cabeça constituir família, sequer. Já tive relações estáveis de onze anos, mas sempre com muita vontade de ter o meu espaço e tempo para mim. Vontade de ter filhos, nunca tive. Nem sou bom tio.

 

Quando levaste um sobrinho à Disney, foi para lhe proporcionares o passeio aquele mundo ou foi uma parte de ti que se realizou e projectou naquela criança?

Foi um companheiro de brincadeiras. Naquela altura, sou tão puto como ele. É um sobrinho que tem afinidades comigo, uma criança velha, muito metida consigo mesma. Mas a raiz é a minha mãe. Às vezes pergunto-me, no dia em que essa raiz faltar, como é que vai ser. A partir dela, que é o porto, sinto-me muito bem só no mundo. Só no mundo..., não é bem só!, tenho os meus amigos.

 

O que significa que ela é a raiz?, que lhe telefonas todos os dias?

Significa que tenho muito orgulho naquela matriz. Herdei da minha mãe a rebeldia, o inconformismo, o arrojo nas atitudes. A minha mãe era há 45 anos uma mulher só, com dois filhos, no ambiente tacanho de Coimbra. Como na altura não havia o divórcio, nem sequer se podia casar e amantizou-se com o meu padrasto. Amantizada e sempre de cabeça erguida. Tem 76 anos e fala abertamente de tudo comigo, inclusive da sua sexualidade! Aos 74 anos a minha mãe admitiu que havia traído o meu pai, (o meu pai já a havia traído 500 vezes). Traiu o meu pai pelo homem que mais amou na vida, que era um violinista! (risos) Isto foi num almoço no Porto e o meu irmão, que tem menos dois anos que eu, estava horrorizado, horrorizado pelo facto da minha mãe estar a desvendar a sua sexualidade! A minha mãe perguntou se me tinha chocado e respondi que estava contentíssimo por me revelar aquilo. Até perguntei, «Vai lá fazer as contas para casa para ver se não sou filho desse violinista»!

 

Quer dizer que não querias ser filho do teu pai.

Os pais não se questionam. O meu pai não soube ser meu pai, mas foi pai do filho da segunda mulher dele. É meu pai apenas porque me deu o nome e foi uma das duas pessoas que me fizeram. Não soube ser meu pai porque naquela altura os divórcios não eram coisa amigável. Penso que a minha mãe ainda hoje o odeia.

 

Que tipo de relação manténs com ele?

Nenhuma. Terei visto o meu pai 50 vezes ao longo da minha vida. Duas ou três vezes terão sido férias e depois terão sido encontros muito esporádicos. É um senhor agradável. Quando penso na minha família, a figura do pai nunca lá está.

 

Foi diferente quando passaste a gozar de notoriedade pública?

Não. A única coisa inevitável era as pessoas perguntarem-lhe o que me era, porque se chama Luís Goucha. Sei que tem algum orgulho em mim. Liga todos os Natais a dar-me os parabéns.

 

Do que é que se fala com um pai uma vez por ano?

São conversas de aniversário, «Gosto muito de te ver, parabéns», «Obrigado, pai, até um dia destes». Não tenho nada para dizer! O amor não nasce assim, em meia dúzia de encontros fortuitos. Do meu pai herdei a capacidade de trabalho, se bem que a minha mãe era uma fantástica trabalhadora. Aí aos 30, 35 anos, quando cortei o cordão umbilical, resolvi tudo isso. Uma coisa é sair de casa, outra é cortar o cordão umbilical.

 

Saíste de casa aos 17 anos, em ruptura.

A minha mãe não me apoiou muito, tinha uma relação de grande poder sobre mim. Quem sabe se não havia ali uma relação edipiana? Eu vivia apaixonado pela minha mãe. A ruptura dos 17 foi normal: ela queria proteger-me, debaixo das suas saias, e eu queria ser actor, queria ser conhecido. Já em criança, quando me perguntavam o que queria ser quando fosse grande, nunca dizia que queria ser bombeiro, polícia, padre. Dizia que queria ser conhecido. E isto era uma necessidade de afirmação qualquer, estranha. Talvez não o tivesse consciencializado, mas era, porque a minha mãe não me dava muita atenção. Era cabeleireira e trabalhava das nove da manhã às onze da noite para nos garantir o que achava que era o melhor. O melhor passava pelo jardim-escola, pelas roupas iguais às dos meninos mais ricos.

 

Vocês davam-se com meninos ricos?

O Jardim-Escola João de Deus há 45 anos era um privilégio. Em Coimbra, no bairro onde vivia, fui o primeiro a ter televisão. Mas não tenho nenhum amigo da escola, não ficou cá nada. A minha vida só começou a ser muito interessante a partir dos 28.

 

Regressemos à vinda para Lisboa. O que é que aconteceu?

Venho trabalhar para o escritório de um tio, irmão da minha mãe, e fiquei em casa da minha tia, (eles eram separados, tudo é separado na minha família!). Também aí entrei em ruptura, e fui para empregado de livraria.

 

Acreditando, tal como nas histórias hollywoodianas em que os actores começam por servir à mesa, que aquele era só um caminho para a fama?

Exactamente! Isto foi em 71, 72, 73. Em 74 dá-se o 25 de Abril, aparecem os grupos de teatro e fui-me oferecer a uma companhia desmontável ao cimo do Parque Eduardo Sétimo, o Teatro do Povo. Passo para o Teatro do Nosso Tempo e logo a seguir para o Ad Hoc para fazer revista. Durante dez anos fui actor de teatro.

 

Como sobreviveste nesses anos?

Quando saí do escritório e da casa da minha tia, fiz a via sacra dos quartos alugados, com muito pouco dinheiro para comer. Ia para casa da Io Appoloni e fazíamos esparguetadas apenas com tomate. Tínhamos uma receita, eu e a Ana Bola, de batatas, mais batatas, mais batatas, com molho branco, molho branco, molho branco, e aquilo sabia a tudo o que tu quisesses! Sabia a lagosta, desde que imaginasses. 

 

A contingência do dinheiro marca a vida toda.

Sobretudo naquela fase, em que ser actor era muito periclitante.

 

Nunca a ponto de pensares desistir e optar por uma vida normal?

Não. Era incapaz de estar num escritório nove horas seguidas. E que tipo de conversas têm os trabalhadores de escritório! Queria era conversar sobre as coisas bonitas da vida, não propriamente sobre um prato de caracóis.

 

Estás rico?

Não, de todo.

 

É verdade que ganhas milhares de contos por mês?

É verdade que trabalho todos os dias e que sou bem pago pelo meu trabalho. Isto tem de ser visto transversalmente: entre os apresentadores de televisão não sou, de maneira nenhuma, o mais bem pago. Estarei dentro dos medianamente pagos. As despesas são a dobrar, as despesas do Porto são minhas: aluguei uma casa, tenho um motorista a quem pago ordenado. E sou muito consumista, confesso. Gasto muito dinheiro a viajar, a ver espectáculos lá fora, a jantar em restaurantes com amigos. O meu conforto passa por aí, não passa por um grande carro ou por uma casa com piscina.

 

Quando querias ser conhecido era precisamente esta vida que imaginavas?

Já fui insuportável!, muito vaidoso de ser conhecido e de aparecer nas capas das revistas. A fama inebria um bocadinho. Agora acho uma treta. O que me dá gozo é o meu trabalho, e até queria passar despercebido.

 

Ora, essa é uma ideia chique que está em voga.

Gosto muito de ser figura pública porque faço um trabalho que me dá muito prazer. É inevitável ser figura pública, mas o que gosto é de conversar com aquelas pessoas e saber que vou para um estúdio bem preparado. Tenho orgulho em mim pelo facto de ser bom profissional. Não imaginas os estados de felicidade que tenho quando estou numa mesa cheia de papelada, a cozinhar o programa todo, e a pensar «Que grande programa vamos ter amanhã!». Tornei-me mais humano neste programa [«Praça da Alegria»].

 

Que pessoas gostas de entrevistar?

Gosto muito de entrevistar mulheres, muito, muito, muito! As mulheres são muito mais autênticas em qualquer área. É talvez uma sensibilidade feminina que eu tenho, capaz de casar com as convidadas de todas as idades. As mulheres expõem-se mais, não têm medo do ridículo. Um médico, um advogado, um arquitecto, têm medo do ridículo; um pescador não tem. Na minha opinião não são só as mulheres das camadas populares que não têm esse medo.

 

Tens medo do ridículo?

Muito. Policio-me constantemente, porque estou tão sinceramente à vontade... Sou muito feliz naquelas horas. Espero nunca sofrer da síndrome de aparecer ou não aparecer na televisão. O que vale é que sou igualmente feliz noutras pequenas coisas. O medo do ridículo pode ser fazer figuras tristes, mesmo em público. Perguntam-me se há o personagem Manuel Luís. Há. O drama é perceber onde é o personagem e onde é o Manuel Luís verdadeiro.

 

Porque é que achas que fazes tanto sucesso, que o programa faz tanto sucesso? Será, sobretudo, pela identificação com o público-alvo?

O sucesso do programa tem a ver com a verdade. Entrevisto de igual maneira um ministro e um pescador. Mais, um pescador fascina-me, um ministro nem tanto, porque está ali a vender um produto, sei perfeitamente o que vai dizer, e o pescador surpreende-me. É também um programa que faz companhia, que procura combater de uma forma positiva a solidão. Há pessoas que encontro na rua e me dizem «Você é a única família que tenho».

 

Não deixa de ser irónico que tu, que não fazes o culto da família, desempenhes esse papel junto do teu público. Tinhas também, enquanto espectador, os personagens televisivos que eram a tua família?

Não. Quando via televisão, queria era ver os aplausos que vinham depois das peças de teatro. O que queria era estar num palco, fechar-se o pano e receber os aplausos. Fui um mau actor, porque nos dez anos de teatro o que mais gostei foram os aplausos! 

 

Quem gostarias que te aplaudisse?

Nunca se têm os aplausos todos, mas agora já não é assim. Sinto que já fui muito aplaudido, até pela crítica. Renderam-se ao profissionalismo, ninguém pode dizer «O Manuel Luís não está preparado». Quando se leva muita porrada, como levei nos «Momentos de Glória», passa-se a relativizar as coisas. Hoje uma crítica negativa não me deita muito abaixo. Sou capaz de corrigir algumas coisas consoante as críticas, desde que concorde com elas e sejam pessoas que percebam de televisão. Um elogio também não me envaidece. Estou em estado de graça há cinco anos mas ninguém me garante que no dia que faça um outro projecto, não me espalhe. E beneficio da idade. Aos 45 anos já não sou mais o puto cozinheiro que foi brincar de apresentador.

 

Quando é que te livraste do rótulo do cozinheiro?

Aos 500, aos 500. Foram precisos 500 programas para dizerem bem de mim. Hoje, curiosamente, já ninguém fala da culinária.

 

Que relação tens com a cozinha?

Sempre afectuosa. Cozinho para dar prazer a mim próprio ou aos amigos. Profissionalmente, tenho muitas ideias para fazer livros de culinária, mas não tenho tempo. Entrei para a televisão pela porta da cozinha, entrei a comunicar através da cozinha. Se quisermos encontrar um ponto comum, é a comunicação. No «Sebastião Come Tudo» e no «Gostosuras e Travessuras». Depois, no Porto, o pontapé de saída foi-me dado pelo Manuel Rocha e pela Luísa Calado num programa que se chamava «Ponto de encontro».

 

Como é que, ao cabo de dez anos de teatro, te mudaste para a televisão?

Através de um jornal, que era o «Sete», e de uma mulher que se chama Maria João Duarte. É por isso que digo que ela é também minha mãe. Tenho uma relação filial com algumas mulheres que marcaram a minha vida, abriram-me as portas certas nos momentos certos. A Alice Vieira, no meu tempo de teatro, é importantíssima, foi a primeira a entrevistar-me como actor. [pausa] Esse é outro segredo do meu sucesso: a relação filial com as mulheres. Quem é o público do programa da manhã?

 

Tu és o filho.

Ainda por cima sabem que não sou casado. O meu público é essencialmente feminino e tem entre 45 e mais de 65 anos. A faixa das tias e das avós. Com os homens é mais complicado. Em relação à Maria João Duarte; eu ia ao «Sete» levar as notícias da minha companhia de teatro que eram redigidas por mim. Numa das nossas conversas confidenciei que gostava de cozinhar e ela perguntou-me «Porque é que não começas a escrever aqui no «Sete» sobre culinária?» O Luís de Sttau Monteiro, que fazia a coluna de gastronomia sob pseudónimo, havia saído e aquele lugar ficou vago. A partir daí tudo começa.

 

Foi aí que começaste a ganhar dinheiro?

Só começo a ganhar algum dinheirinho para viver melhor quando vou para a televisão.

 

Começar a ganhar dinheiro marca decisivamente a tua vida?

Não. Nunca fiz depender do dinheiro nenhuma decisão.

 

Porque aquilo que mais gostas na vida que tens agora, dos espectáculos no estrangeiro à casa com vista para o mar, só é possível quando se ganha muito dinheiro.

Ter dinheiro era, por exemplo, dar-me ao luxo de parar. Não posso, quando não trabalho não ganho. No dia em que parar seis meses deixo de ter dinheiro, só vou gastando. A casa na Foz com vista para o mar não é um luxo; foi a última casa que vi naquele dia e pela qual me apaixonei. É uma casa no prédio do Miguel Veiga.

 

É uma afirmação social, ter uma casa no prédio do Miguel Veiga?

Não ligo nenhuma a isso. Gosto muito do senhor, tenho conversas muito agradáveis com ele, mas não tenho uma postura de arrogância social.

 

Eu admiro as pessoas que conquistam sucesso profissional e financeiro exclusivamente à custa do seu trabalho, e, nesse sentido, presumi que fosse significativo teres uma casa no prédio do Miguel Veiga.

Talvez já tivesse sido assim, há muito tempo que não é. Gosto de me afirmar pelo meu trabalho, e à custa do meu esforço, mas não gosto de me afirmar por razões monetárias. Até acho que falar de dinheiro em público é uma questão de muito mau gosto. Sou incapaz de dizer «Ai que bela gravata!, custou tanto».

 

Trata-se de um pudor muito próprio de quem tem dinheiro.

Mas eu não tenho dinheiro!, tenho dinheiro para as coisas do dia a dia!

 

Agora que tens 45 anos, começas a precaver a velhice?

Ainda não. Sou muito de viver o dia a dia. Gosto é de ter dinheiro para as minhas viagens, onde se gasta muito.

 

Evitas pensar na velhice?

Se era uma criança velha e agora sou um quarentão rejuvenescido, acho que vou ser um velho gaiteiro fantástico! [riso] Só quero ter saúde, com saúde consegue-se tudo. Não sei se digo isto por ter 45 anos ou por sentir mesmo, mas no meu dia a dia de trabalho sinto «Ainda bem que tenho 45 anos». Por muito que me documente sobre tudo, há referências que vêm de trás, há um capital acumulado de experiências. Só agora é que percebo porque é que os grandes apresentadores americanos têm 50 e muitos.

 

Tens medo de uma velhice solitária?

Não, se tiver saúde e, aí sim, se tiver algum conforto monetário.

 

Estava a pensar em pessoas.

Pois. Espero ter alguém do meu lado a cuidar de mim. Neste momento sou capaz de ter. Amo uma pessoa de quem sou fã.

 

Normalmente a outra pessoa é que te admira, tu és o elemento dominante na relação.

Esta pessoa admira-me e eu admiro-a. Estamos juntos ao fim de semana. A relação dura há dez meses.

 

Que importância atribuis à vida afectiva para o teu bem-estar?

Dou mais importância à vida profissional. A emocional só funciona se a profissional funcionar. É o motor de toda a minha vida.

 

E se estiveres desequilibrado emocionalmente?

Já chorei baba e ranho antes de ir para o ar e aquela luz acende-se e passa tudo! Sou de chorar baba e ranho, de fazer cenas de ciúme! Sou um exagerado, e muito teatral até nisso, um espectador de mim mesmo. Sou capaz de chorar, pôr um disco da Amália, o «Lágrima», para chorar ainda mais, e depois vou a correr a um espelho para ver que grande plano de televisão se poderia fazer comigo a chorar! Tu achas isto normal? Não é! Aos 38 a minha psicanalista disse que tudo o que me magoa, esqueço rapidamente. Tenho muita dificuldade em falar das coisas passadas porque não as lembro; portanto, nada me magoa. Tudo o que me magoa, limpei da memória.

 

As coisas que magoam nunca aparecem à superfície?

Nunca. Estão muito, muito fundo. Quando falo da minha vida afectiva, não me lembro que vivi onze anos com uma pessoa, não ficou nada. É passado e sou um homem de futuro. Ainda no outro dia arquivava recortes sobre mim e dizia «Para quê?, se nunca pego nisto! Para que é que tiro fotografias nas viagens se nunca abro os álbuns?» Talvez um dia, aos 70 anos, quando viver só. Quero ir para a frente e sempre a melhorar. Não olho para trás.

 

Não é o passado que ajuda a compreender o presente?

Pois. No Porto, como não tenho vida social, estou mais entregue a mim, aos meus pensamentos, e pergunto-me «Porque é que sou assim?» Há muito pouco tempo é que comecei a perceber porque não tenho um conceito de família. No dia a dia não evoco o passado. Só o evoco quando me sento, predisposto a evocá-lo por qualquer razão, para me ajudar a compreender alguma coisa do presente. Saudades?, não tenho. O que está feito, está feito. O dia de amanhã é o que mais me interessa. É também por isso que já não levo muito a sério esta coisa da fama. Quero é divertir-me.

 

Quais são os teus prazeres?

Viajar, comprar discos, comprar livros, passar horas na Fnac, (adorava que as Fnac’s fossem só para mim, sem ninguém a olhar para mim), ver cinema. O meu prazer quando viajo passa por ver teatros e concertos e património. Os meus prazeres passam pelo aconchego da casa, sobretudos, cachecóis, lareira, frio.

 

É uma visão muito romantizada do conforto. Porque é que gostas tanto de roupa?

Gosto de cores, tecidos, texturas. Gosto de roupa de Inverno, principalmente. É uma visão romântica, é. Por isso gosto mais do Porto. O Porto tem neblina, nevoeiro, lareira, mantas. O prazer pode passar pelo chocolate quente, champanhe, vinho tinto, doces de ovos, e passa por conversar com pessoas que me digam alguma coisa.

 

Preocupas-te muito com a imagem? Porque é que cortaste o bigode?

Num fim de semana em que fui a Genebra, reparei que as pessoas que pior falavam na rua, com o pior palavrão que possas imaginar, eram portugueses de bigode! Gosto de me ver sem bigode e de cabelo curto, mas a imagem não é uma obsessão. Em termos profissionais, sou um produto com prazo de validade; se um dia não gostar de me ver, não recuso fazer alguns acertos que me valorizem, sem perder expressão.

 

Como te olhas nas fotografias em que aparecias de blazer vermelho?

Acho-me pavoroso! Naquela altura, usava-se o vermelho, o amarelo, o azul-bebé. Os gostos vão mudando. Gosto de roupa, gosto de gravatas e de fatos. Gosto de me sentir bem de manhã.

 

O que fazes à roupa quando deixas de a usar?

Dou tudo, dou ao meu irmão, dou a instituições.

 

Continuas a tratar da tua roupa?

É uma mania desde miúdo. Posso ter a roupa muito passadinha pela empregada, mas de manhã tenho de a passar toda! Sou eu que passo as minhas camisas e as minhas calças, porque tenho de sair de casa sem uma ruga que seja. A partir do momento em que saio sem uma ruga, sento-me normalmente e amarroto-me ao longo do dia. Sou muito organizado: trato da minha roupa, faço as minhas compras.

 

São os vícios da auto-suficiência, dos anos em que não podias ter uma pessoa que se ocupasse disso?

São os bons vícios. Comecei cedo a ser auto-suficiente. Isto prende-se com a nossa conversa inicial, com o duelo de apresentadores: não gosto de partilhar tarefas quando posso fazê-las sozinho e bem. É esta vontade de centralizar tudo, de liderar. Acho que tenho capacidade de liderança.

 

Houve uma altura em que disseste não desdenhar a hipótese...

De ser político. Aí não tinha a ver com a liderança, mas com a vontade de fazer coisas para os outros.

 

Dada a tua popularidade, imagino que já tenhas sido assediado para projectos políticos.

Não recuso dar a cara por pessoas que emotivamente me digam alguma coisa. Vou sempre pela emoção. Sempre assumi que gostava da família Cavaco; curiosamente gosto deles pelo conceito de família que têm, unida, indestrutível. Já dei a cara pela campanha do Fernando Nogueira, que me inspirava carinho, e com uma mulher, (sempre a mulher), redonda, que me dava vontade de lhe dar beijinhos.

 

Esta entrevista acabou por ser o que imaginavas?

Não tinha imaginado nada, só tinha pensado na coisa estranha de ser entrevistado por ti.

 

 

Publicada originalmente no DNa do Diário de Notícias em 1999