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Anabela Mota Ribeiro

Almerindo Marques

19.06.14

Qual é o segredo de reestruturar uma empresa, qual é o ponto de partida? “É ver o que é que a empresa tem que fazer para prestar um serviço útil. Há empresas que se degradam com o tempo e o serviço que prestam é mau. A primeira coisa é revocacionar a empresa. A partir daí é organizar o trabalho de forma a mobilizar os recursos para aquela prestação. As pessoas que não gostam nem querem trabalhar, sobram. Organizam-se as melhores pessoas para fazer da melhor maneira o trabalho. E depois, a tecnologia, os procedimentos administrativos, de engenharia de processos... É isto sempre”.

Reestruturou o Fonsecas e Burnay, a RTP. Criou a SIBS. Foi secretário de Estado de Sottomayor Cardia. Foi mecânico, quando começou. Foi um menino pobre, que teve confiança nele próprio. “Quem não tem confiança em si próprio não tem condições de êxito. Mas há um exercício de humildade que faço para não ser um auto-suficiente metódico”.

Almerindo Marques preside às Estradas de Portugal. Uma só vez se fala das SCUT nesta entrevista. Fala-se do caminho, longo, que vem percorrendo. Já passou a curva dos 70. É raro ouvir alguém falar assim.

 

 

De onde lhe vem esse lado desabrido e temperamental que toda a gente diz que tem?

As pessoas dizem mais do que é... Mas tenho de facto alguma atitude dessa natureza. Somos fruto do meio. O meu era humilde, pobre, difícil. Para as pessoas deste meio, ou fazemos uma vida simulada ou fazemos uma vida linear, transparente. Segui a segunda via, e isso leva-me a que não invente palavras, a que diga aquelas que entendo expressarem melhor o meu estado de alma.

 

Sem subterfúgios, sem a dissimulação que não se compraz com a lei da sobrevivência.

Exactamente.  

 

O seu pai era polícia, não era?

Era. Como é que soube? A minha mãe era doméstica, tinha três irmãos. Nasci em 1939, no pós-Guerra. Vivi nos arredores de Leiria, num bairro de proletariado. Fui sempre racional porque a vida mo exigia – não tem grande mérito. A racionalidade é um instrumento que utilizamos para sobreviver. Permitiu-me alguma ascendência perante as dificuldades. Encontrava soluções, nem sempre acertadas, mas que eu pensava que eram racionais. Isto não quer dizer, convém referir, que não tenha tido uma vida de criança, nas dificuldades mas muito livre, muito feliz.

 

De onde provinha essa felicidade?

A minha família dava-me essa felicidade. Pobre, mas alegre, estável. E sempre me relacionei bem com as pessoas, daí achar que há um exagero nessa fama que tenho. [riso] Muitas vezes essa fama tem a ver com interesses. Fazem referência à minha personalidade como forma de se defenderem de posicionamentos que já tomei relativamente a essas pessoas. Não fica muito claro, mas talvez não valha a pena esclarecer…

 

Do que é que se lembra da primeira infância? O que é que chegou a um bairro dos arredores de Leiria do que era a Segunda Guerra?

Tinha um irmão mais velho, uns nove anos mais velho, que me falava da guerra. Naquela época fazia-se muita propaganda aos beligerantes. Aprendi a ler com os desenhos animados da embaixada Inglesa. Eram uns quadradinhos que faziam das batalhas. O meu irmão abastecia-me com essas literaturas.

 

Que pessoa era o seu irmão para ter acesso a essas bandas desenhadas, esses “panfletos”, que vinham da embaixada?

Como era jovem, mas já trabalhava, tinha uma relação com o mundo. O meu pai interessava-se pelas questões da guerra. Suponho que daí é que vem a documentação que ele tinha sobre as guerras, as batalhas, a vida. Depois, sofríamos na pele as dificuldades. Nunca vi açúcar senão já muito rapazinho. A minha mãe punha um bocadinho de sal para ser mais fácil, para combater o amargo, e dois ou três rebuçados. Era assim que eu e os meus irmãos bebíamos o café com leite de manhã. Quando havia leite, nem sempre havia. O leite era de cabra, ovelha, mais do que de vaca.

 

O bairro nos arredores de Leiria era verdadeiramente um bairro ou uma aldeia?

Era um bairro à saída de Leiria, na Estrada do Bravo, que era a estrada Lisboa/Porto, mais ainda na cidade. Andava uns três quilómetros até à escola primária, que era mesmo no centro da cidade.

 

Como disse, somos marcados pelo meio. Deixe-me perceber melhor que meio era o seu. Como era o temperamento do seu pai?

O meu pai era mais tolerante do que a minha mãe. Muito bom homem. A minha mãe também era muito boa senhora, mas o meu pai era mais culto, sabia ler e escrever, tinha a quarta classe. A minha mãe tinha aprendido a escrever com duas freiras da aldeia, porque a minha avó se preocupou em dar-lhe as primeiras letras, como ela dizia. Não tinha a quarta classe, mas lia e assinava. Quando eu me dedicava a ler livros que não fossem de escola, para ela já era uma perda de tempo. Está a ver a noção que a senhora, coitadinha, tinha. “Ó filho, porque é que lês isso?”. Tolerava mas não valorava. O meu pai tinha muita tolerância connosco. Fosse qual fosse a conversa. Tinha uma grande preocupação de evitar que entrássemos, mais o meu irmão, na política.

 

O perigo era o de que enveredassem por um caminho que o poderia encontrar a ele do outro lado?

Tinha uma frase que me irritava solenemente desde miúdo: “A nossa política é o trabalho”. Achava aquilo uma restrição excessiva.

 

Ironicamente, a sua vida não é senão a aplicação dessa frase. É uma vida dedicada ao trabalho. E afirma-se pelo trabalho.

Pois. Mas também fiz política. Durante muitos anos tive o bicho da política, até antes de ser livre. Fui livre muito cedo. Sempre tive liberdade de pensamento e de expressão. Não tive maçadas com a polícia política da época, mas tive incomodidades. Era considerado um suspeito oposicionista.

 

Porque é que nunca teve medo?

Não faz parte da minha natureza, não sei explicar.

 

Seria normal que tivesse. Numa conjuntura desfavorável podia acanhar-se, e nunca se acanhou.

Mas era prudente. Lá voltamos à minha racionalidade. Em miúdo ainda, com 11, 12 anos, recebia o Avante – nunca soube quem mo mandava. Lia aquilo à noite com uma pilha eléctrica debaixo da roupa.

 

Essas coisas, fazia-as com o seu irmão?

Sim, havia uma cumplicidade. Devo muito a esse meu irmão. Foi ele que me orientou para ir estudar à noite, em grandes opções. Funcionamos como verdadeiros irmãos.

 

Quem é que vos empurra, a si e ao seu irmão, para serem alguém na vida, para transcenderem a vossa condição social?

Respondo por mim. Tem a ver com o sentido da curiosidade. Comecei a ler muito cedo, comecei a fazer juízos sociais e políticos muito cedo. Lembro-me de estar a guardar água numa represa…, sabe o que é?

 

Como é que se guarda a água numa represa?

É estar presente e evitar que alguém vá lá utilizar indevidamente a água. Lembro-me de achar estranho ser preciso estar ali, às vezes com o frio da noite. Mas percebia que se não estivesse as pessoas iam à represa, abriam-na e regavam com a água que nos calhava em sorteio a nós. Aquilo despertava-me pensamentos… Era bom aquelas pessoas acreditarem em Deus, porque se não acreditassem, se não tivessem o receio do pecado, da sanção divina, a selvajaria seria maior.

 

Nunca acreditou em Deus?

Nunca acreditei com estabilidade. Houve momentos em que tive a ideia de que faria parte do equilíbrio da perfeição da natureza, do homem. Mas era uma via racional, nunca foi uma via emocional.

 

Não se chega a Deus pela razão.

É. Mas fui a Deus pela racionalidade, não pela fé. A minha mãe exigia que fossemos à missa. Nem sempre lhe obedecia. O meu pai era mais tolerante, “se o rapaz não quer ir à missa, não vai”. Mas ele ia.

 

Tem fama, não só de temperamental e desabrido, mas também de ser de uma integridade a toda a prova, de ser impoluto. Sabendo que é filho de um polícia, é fácil imaginar que é uma marca do seu pai.

Também é uma marca do meu pai. Quer eu, quer os meus irmãos e irmãs (tive uma irmã mais velha que morreu com diabetes), fomos educados com princípios, respeito pelos outros, valores de trabalho, que o nosso pai nos transmitia. A minha mãe não no-los transmitia tanto, por o seu nível cultural não ser tão elevado; mas transmitia pelo exemplo, pelo esforço com que trabalhava as courelas, as pequenas propriedades. Se tem que se trabalhar, pode-se trabalhar em qualquer local, o trabalho é que dignifica.

 

Voltemos ao momento em que começa a fascinar-se com a política, a ler o Avante com uma pilha. Imaginava para si um futuro de revolucionário? Imaginava que podia ser um desses heróis?

Não. Para mim era claro que não tinha as características do revolucionário.

 

Quais?

A aventura – contra a razão. A violência – imaginava que tinham de fazer uma vida com alguma violência. Isso nunca fez parte da minha idiossincrasia. A minha única violência é a ideia, são as palavras, os pensamentos. Violentar com os pensamentos, forçar as pessoas a pensar, acho que faço. (Era bem bom que os portugueses pensassem muito mais do que pensam!). Ainda hoje aprecio a vida de alguns revolucionários. Do meu primeiro casamento não tive filhos, só filhas; sempre pensei que se tivesse um filho seria Ernesto, em homenagem ao Guevara.

 

O que é que admirava tanto no Guevara?

Era o meu herói. Com a informação que recebia, e hoje sabemos que éramos manipulados, achava que o Guevara era o verdadeiro revolucionário romântico. O Fidel era o revolucionário político.

 

Explique-me a diferença entre um e outro.

O revolucionário político é menos puro, tem sempre que fazer equilíbrios, transacções de princípios. O romântico, não, tem a sua concepção de vida. Foi assim que o Guevara se posicionou sempre. Eu não assumia ser capaz de ser o revolucionário que admirava.

 

Então a via, para si, passou a ser a de fazer uma transacção que não o violentasse, mas que lhe permitisse, apesar de tudo, ser alguém?

Não há uma intelectualização a posteriori: era assim que eu raciocinava. Por exemplo, nunca fui membro de um partido como o Partido Comunista porque sempre achei que a liberdade de pensamento é fundamental. Outro herói que tive foi o Papa João XXIII. Foi um grande revolucionário. Tive um filho do segundo casamento, que se chama Francisco, o nome do avô, mas se tem nascido nessa época seria Ernesto João.

 

Lia autores russos?

Li alguns, Tolstoi, Dostoievski, Pasternak. Mas cedo, quando fui para o serviço militar, através de processos auto-didactas, já não era um apreciador da sociedade russa. Embora tivesse tido uma fase de apreciação do Estaline, já não era estalinista quando fui para o serviço militar.

 

O que é que o fez desencantar?

Certamente a falta de liberdade. Não concebo uma sociedade de progresso sem liberdade. Não sou capaz de explicar bem o que é que foram os primeiros sintomas críticos à sociedade soviética. Mas lembro-me de uma coisa que para mim já não foi surpreendente: o 1956 na Hungria.

 

Faz a escola primária e começa a trabalhar com 13 anos. O que foi o seu primeiro trabalho?

Aprendiz de mecânico. Depois fiquei desempregado e virei ajudante de tractorista. O tractorista lavrava o pinhal e eu andava atrás a ajudar.

 

A ajeitar a charrua.

E depois é que voltei a trabalhar como mecânico, numa outra empresa. Passei de mecânico para administrativo porque houve um miúdo no escritório que adoeceu; o serviço da empresa foi buscar aos aprendizes de mecânico um que soubesse ler, escrever e contar. Seleccionaram-me a mim. Foi assim que transitei…

 

Do trabalho braçal para o intelectual.

Não era bem intelectual, mas era administrativo. Teria 14 anos.

 

Ainda que seja por acaso que dá o salto, dentro de si sabia que não ia fazer trabalho braçal a vida toda.

Sim, estava previsto. Para a minha família não, só para mim e para o meu irmão. Deslocávamo-nos de bicicleta, 12 quilómetros, e falávamos muito. À noite, sozinhos, às vezes a altas horas. O meu projecto sempre foi, na génese, a escassez, as dificuldades, a Economia. Nunca me licenciaria por me licenciar. Ou aprendia Economia, ou me preocupava com Economia, ou não me licenciava em mais nada.

 

O que determina a escolha é o desejo de perceber a Economia, corrigir uma situação de desigualdade da qual tinha partido?

É.

 

Aos 14 anos vai para a escola comercial, estuda à noite. A via em que prossegue é a do estudo da Economia e não a da política activa.

Não distinguia. Achava que a Economia era política. Já naquela altura tinha uma discussão com uma professora, que queria que eu só falasse de Economia. Mas eu achava que eram indissociáveis.

 

Onde conhece as pessoas que o fazem estreitar a relação com a política e os partidos? Imediatamente a seguir à revolução adere ao Partido Socialista.

Nessa altura já tinha percebido que a intervenção política era melhor feita dentro dos partidos, tinha-se mais espaço. Não aderi ao Partido Comunista, não aderi às forças de extrema-esquerda – eram uma coisa não-racional para mim. Só podia aderir a um partido de esquerda, até pela minha cultura e tradição de vida. Aderi ao Partido Socialista por estas razões.

 

O que é que Mário Soares representava para si antes da revolução?

Achava que o Dr. Mário Soares tinha a visão mais real possível da vida política em Portugal. É preciso ver que fiz uma leitura política das eleições que fui presenciando, (desde a primeira, do Humberto Delgado), e não havia muito realismo político nas pessoas da oposição.

 

Quando é que o conheceu?

Em 1974, a seguir à revolução, quando entro para o PS.

 

Quem é que propicia o encontro entre os dois?

Não me recordo bem, provavelmente os chamados socialistas históricos de Leiria. Aderi ao partido e comecei logo a trabalhar no gabinete de estudos por intermédio do Medina Carreira. Quem acabou por preencher a minha inscrição e assiná-la foi o Herlânder Estrela.

 

Conhecia o Medina de onde?

Da acção política. Desgarrada.

 

Licenciou-se em 1969, com 30 anos. Arranjou logo emprego no Banco da Agricultura?

Não, tive vários empregos. Trabalhei numa companhia de seguros, onde só estive dois dias. Ninguém trabalhava, era uma ociosidade plena e irritei-me com o chefe. Tinham-me recrutado porque havia muito trabalho atrasado. No primeiro dia não me deram trabalho nenhum. Não era capaz de estar num emprego sem trabalhar. Se trabalho é para receber o salário com dignidade. Não era o caso, abandonei a empresa.

 

Não tendo recuo, abandona a empresa dessa maneira, sem medo do que lhe vá acontecer a seguir?

Fazia parte da minha maneira de ser. Mais uma vez, prudentemente, tinha dinheiro para estar uns tempos à procura de emprego. No serviço militar, onde tinha sido furriel miliciano, fiz o meu pé-de-meia. Foi por concurso que fui para o Banco da Agricultura. Comecei por descontar letras.

 

Dava-lhe prazer esse trabalho?

Vou-lhe dizer uma coisa que parece contraditória, mas não é: nunca tive grande prazer no trabalho administrativo. Era um meio e não um fim. Tinha que trabalhar para ter salário, para viver independente. Era trabalhar por dever, não por prazer. Mas trabalhava, e bastante.

 

Tem ideia de quando é que foi a primeira vez que sentiu prazer no trabalho?

Tenho, foi no próprio Banco da Agricultura, quando comecei a fazer trabalhos de organização interna do banco. Esteve lá uma empresa francesa que estudou as possibilidades de organizar o banco; seleccionaram-me para ser um elemento dessa estruturação interna e participar como técnico de organização. Está aí o começo da minha história profissional, sempre a reorganizar empresas, a lançar empresas.

 

Aprendeu a fazer isso aí?

Sim. Depois, a administração entendeu que devia fazer um estágio num banco espanhol para ter mais prática. Quando voltei, fui organizar o banco. Comecei a ver que dava muito mais à sociedade pelo meu trabalho do que um simples burocrata a descontar letras.

 

O que é que sentiu quando foi saneado a seguir ao 25 de Abril?

Fiz juízos políticos, não fiz outros. Eu estorvava determinados objectivos e tinha que ser saneado. Não era a força política A, B ou C, não interessa citar, que me saneava. Era preciso criar condições para que as massas incultas e desinformadas quisessem o meu saneamento. Quanto mais inculta é a sociedade, mais facilmente se manipula. Foi fácil manipular. Tinha adversários óbvios dentro da empresa. Adversários sem escrúpulos, sem qualidade. Uns ignorantes, outros perversos. Outros queriam os interesses que eu estava a ocupar. Há uma infinidade de motivações.

 

Não foi uma grande surpresa que o tenham posto fora em 75?

Para mim, não. Se perguntar aos 40 e tal colegas que foram saneados no Banco da Agricultura, eles dir-lhe-ão que achavam que era uma injustiça. Nunca vi isso em termos de justiça ou injustiça, vi aquilo como um processo político. A mim arranjaram-me um álibi, aproveitaram as minhas características pessoais – não digo defeitos.

 

Que características?

O meu nível de exigência. Numa sociedade de bandalheira a exigência é incómoda. Se queria pôr a empresa a funcionar, a dar lucros, tinha que fazer incomodidades. Se faço incomodidades não sou bem visto no local. Outra, foi por onde começámos: não escolher as palavras senão para que traduzam bem o meu pensamento, o meu sentimento, e não para agradar nem para desagradar. Não fiquei nada afectado com isso, nada. Mas foram processos perversos. Telefonemas anónimos a altas horas da noite, escreverem nos prédios com sabão seco “Almerindo, o diabético”.

 

É diabético desde quando?

Desde os 28 anos.

 

Alguma vez teve importância na sua vida ser diabético? Escrito assim na parede parece que é um anátema.

Não, é um anátema para quem o escreveu. Nunca interpretei isso como um fenómeno moral. Na política não há moral, há interesses e há poder. Mas também houve dramas morais. Havia um sujeito que tinha uma vida desequilibrada. A mulher, empregada da Loja das Meias, tinha com ele um comportamento de chantagem. O homem estava numa situação sensível. Eu era director de recursos humanos, passei-lhe um cheque de 800 escudos e perguntei: “Se estivesse numa sapataria, também tirava os sapatos? Está numa empresa que movimenta dinheiro, está a dar cabo da sua carreira. Se é assim tão complicada a sua vida, poupe”. Vi-lhe os dedos amarelos, disse-lhe para deixar de fumar. Nas sessões de saneamento, este senhor disse que um dia o chamei para o impedir de fumar! Ele transformou o meu conselho “poupe, deixe de fumar”, nesta afirmação! E o pulha do partido que lá estava a conduzir a operação (agora é um gajo importante, sindical), disse, “Estão a ver? Repressor dos trabalhadores!”. Era eu. Vilania pura.

Esses revolucionários da época, essa cambada de imbecis, era tão revolucionária que impedia um cidadão de exercer o seu mais fundamental direito: o direito ao trabalho. Era a revolução dos rapazes que andam por aí. Alguns já vão na extrema-direita. Andam a uma velocidade tão grande…, a ver se aproveitam a oportunidade.

 

Estou à espera do momento em que começa a pôr nomes nisto tudo.

Não ponho. A minha ex-mulher tem um texto para um livro que quer publicar a meu respeito; chateia-se comigo porque nunca dou o nome das pessoas. Diz que perde todo o interesse. Disse-lhe: “Não falo de pessoas negativamente, que estejam vivas”.

 

Acha que elas merecem essa consideração, apesar de, pelo que se percebe, não ter nenhuma consideração por elas?

Se utilizo os meios dos biltres, sou tão biltre como eles. Não faço. E se fosse verdade, já não era mau, porque dizem tanta coisa que não é verdade…

Estou aqui a fazer um esforço enorme para ver se a empresa funciona [Estradas de Portugal]. A empresa, para cumprir as suas obrigações, tem vindo a endividar-se. Há pessoas que dizem que o endividamento resulta da minha incompetência a gerir a empresa. Diz isso à saciedade nos jornais!

 

Nos últimos meses, o seu nome tem aparecido frequentemente nos jornais…

Julga que me vou chatear? É lamentável que o país seja manipulado por gente desta. Porque é que o poder político ainda não pôs portagens? Há dez anos que anda a falar disso. Nesta empresa concebe-se um modelo [financeiro] recebendo-se portagens para pagar as SCUT; como nunca se recebeu portagens, alguém tem de pagar as SCUT… É o endividamento bancário. Conclusão, fulano tal que até tinha fama de bom gestor, afinal é uma abécula. Isto vinha num jornal que se diz de esquerda, essa merda que anda para aí disfarçada de jornal de esquerda, que é a revista Visão. Vou fazer alguma coisa? Não. Disse à minha mulher: “A Visão aqui em casa não entra enquanto eu for vivo”. Não é pelo que diz de mim, é porque manipula. Se a revista fosse ignorante, está bem, perdoai-lhes meu Pai, que não sabem o que dizem; mas não é verdade, é manipulador. Quais são os interesses que tem aquela revista em manipular a população? Tem de explicar. É óbvio que está ao serviço de algum interesse.

 

Voltando aos anos 70. Em 1976 foi secretário de Estado do Sottomayor Cardia, que também era considerado um desabrido e um temperamental.

Também. Era um homem muito corajoso.

 

O encontro dos dois, no pós-revolução, deve ter sido uma coisa animada. Foi ele que o convidou ou foi Soares que o pôs lá como secretário de Estado?

Foi um amigo. Arranjou-me um dos maiores sarilhos que tive de enfrentar na vida: governar o Ministério da Educação. Na prática tinha a pasta da administração escolar, era por ali que passavam os dinheiros. E num momento em que a demagogia soprava por todo o lado, pôr um pouco de ordem no ministério não foi coisa fácil. Funcionei muito bem com o Cardia.

 

Está a dizer sarilho com uma certa ironia, não?

Não, foi muito complicado.

 

Por outro lado, era uma enorme promoção profissional e social, ser secretário de Estado, pensando que no ano anterior tinha sido saneado do Banco da Agricultura.

Isso foi para a opinião pública, para mim não. São factos que acontecem por acaso. Noventa por cento das coisas que acontecem na vida à pessoa são fruto do acaso, não têm mérito nem demérito.

 

Isso não bate certo com alguém que diz que o trabalho é aquilo que dignifica a pessoa. Onde está o mérito no meio disso, se o que prevalece é o acaso?

E não acha que há milhares de indivíduos que têm mais mérito do que eu? E acabam aí nas sarjetas porque nunca tiveram a oportunidade do acaso. Há pessoas que têm excelentes méritos e o acaso da felicidade não passou. Devemos ter a humildade de fazer o que nos compete como nos é pedido. Devemos ter a humildade de perceber que fomos bafejados pela sorte. O acaso tem muita importância na vida. Para outros pode ser Deus.

 

Quando decide que vai estudar, quando decide que não vai ficar em Leiria, quando estrategicamente pensa na sua vida, isso não é contar com o acaso.

É outra coisa: faço jus ao acaso. Isso é corresponder. Sem ponta de sorte, sem ponta do acaso, há pessoas que são verdadeiramente infelizes, imerecidamente. A pessoa que nasce no Chade, que é altamente dotada, não teve a sorte de nascer noutro país onde lhe tivessem dado outras oportunidades, está arrumada.

 

Foi por acaso que foi parar ao ministério como secretário de Estado?

Foi. O Cardia era uma excelente pessoa, um excepcional cidadão que a canalha vai esquecer. Dos poucos políticos que conheci intelectualmente sério, assumia as conclusões das premissas que validava, e era sério na conclusão. Nunca vi isso em mais nenhum político.

 

Herói romântico, não político.

Era romântico, acabou romântico. Um dia, o Cardia disse para um amigo nosso: “Lá no gabinete de estudos não tens um indivíduo que faça isto e aquilo?”. Não o conhecia de lado nenhum. O meu amigo disse: “Tens o melhor gajo para te fazer isso”. Falei com ele ao telefone, no dia seguinte assumi a função de secretário de Estado. Está a ver o acaso? Depois fiz jus, trabalhei bastante, arranjei inimigos de toda a espécie, toda. Ainda hoje me recordo de coisas que fiz, que só a minha ideia romântica… Era demasiado evidente que ia ter sarilhos com aquilo.

 

Conte uma história.

Tinha os sindicatos – um bando de irresponsáveis – e tinha como objectivo levar à glória o sistema de ensino – como levei. Vai demorar anos a emendar o que se está a passar no Ministério da Educação. Vai passar muita gente por lá que tenta e não consegue, porque durante anos deram a supremacia total aos sindicatos, que não têm noção nenhuma do que é a educação de um povo.

 

A Maria de Lurdes Rodrigues foi a única pessoa que verdadeiramente atentou contra isso?

Tentou, mas suponho que a dada altura lhe tenham dito para não tentar mais, porque não era politicamente útil. E acabou sem glória. A demagogia era muito pior que hoje, o primeiro-ministro da época achava que eu não tinha jeito para lidar com os sindicatos.

 

O primeiro-ministro era o Mário Soares?

Era. Um dia telefonou-me: “Não percebo como é que você gere essas coisas, os sindicatos”, e eu disse: “Quer que isto funcione ou não? Se quer que isto funcione tem que assumir que não posso levar a sério esta gente dos sindicatos”. Na época era uma calamidade dizer isto dos sindicatos. Digo isso ainda hoje. Um dia, numa daquelas discussões, ele disse-me: “Você até com os nossos (sindicalistas socialistas) se pega!”, “Mas esses, são os nossos, de quem? Você não conhece esses elementos, se os conhecesse não me dizia isso”. Passado não muito tempo fui a uma reunião nacional do partido; ia sempre contrariado porque aquilo era uma grande demagogia, idiota. Havia uma lista de indivíduos que o Mário Soares queria expulsar do partido. Verifico que eram os dirigentes sindicais que ele dizia que eram socialistas! “Ó Mário, desculpe lá, eram os indivíduos de quem você dizia que nem com eles eu me entendia”. Estou a dar-lhe este exemplo, da brutal discrepância e disfunção que existe entre a aparência e a essência. Na aparência eles eram socialistas e estavam a defender o interesse dos socialistas na educação; eu era um perigoso direitista. Depois ele acabou por ter que os expulsar do partido.

 

Como é que percebe antes? Como é que percebe a essência e não se deixa iludir pela aparência?

Pelos actos vê-se facilmente se estão a defender interesses altruístas ou egoístas – isto chega para distinguir. Um político faz um discurso horroroso, o chamado interesse público nem por lá passa; percebe que ele é um troca-tintas, ou não? Era o que eu percebia deles. Queria lançar o ano escolar e esse bando de parvos ia lá para discutir coisas que depois eu percebia que era um interesse específico de um membro da direcção do sindicato.

 

Muitas vezes isto acaba por ficar preso à petite histoire, ao interesse individual, à circunstânciazinha.

Acaba. Mas volto a dizer, o mérito não é só meu, é a minha vida, sou o resultado do meu meio. Tenho valores altruístas, preocupo-me com valores altruístas. Vejo aí esses pantomineiros a dizer que estão a defender os interesses do povo, e estão a defender interesses específicos ou de amigalhaços, interesses económicos…

 

Como é que ficou a sua relação com o Mário Soares depois desses dois anos no ministério?

Quando me demiti do Governo ficou tensa. “Você quer mesmo ir embora? Então tem que fazer uma carta a dizer isso mesmo”. “Uma carta? Com quantas páginas?”. “Você é maluco, faça aí uma coisa com três linhas”. Muito tensa. Hoje damo-nos bem. Até acho que ele, como não é tonto, sabe que muitas vezes eu é que tinha razão. Relacionei-me muito com ele e ele percebeu que sou um homem absolutamente leal. Mas leal é dizer não quando é não, e sim quando é sim, mais nada. Não sou homem de côrte, não ando a lisonjear ninguém, não tenho o culto do poder, não tenho a subserviência perante o poder, essas coisas que eles gostam de ter (gostam de ter, não tenho dúvida). Um dirigente político que se preze faz à sua volta o deserto, faz a “ermação” [de ermo]. É por isso que não há nenhum dirigente político, nem aquém nem além fronteiras, que alguma vez deixe um delfim com conta, peso e medida. Querem o deserto. Ou eu ou a desgraça, ou eu ou o caos – todos.

 

Por que é que nunca lhe soube bem a côrte, a lisonja?

Porque isso é mentira, é dissimulação.

 

Mas isso também revela uma auto-suficiência. Não precisa de ser gostado e de ter uma entourage que o mime.

Não preciso. Todas as pessoas que vêm trabalhar comigo sabem que prefiro a incomodidade da divergência à comodidade da subserviência. Se a pessoa não está de acordo comigo deve dizer objectivamente.

 

Nunca precisou de ser gostado, apreciado, confirmado?

Não. Se tenho muito mais gosto em acertar do que em errar, é verdade que sim. Se tenho muito mais gosto em ser apreciado do que em não ser, obviamente que sim. Agora, não vou pelas vias ínvias para atingir esse estado. Respeito muito quem é divergente de mim. Pode ter a certeza de que isso é uma vantagem enorme para a minha vida.

 

Porquê?
Porque corro menos riscos.

 

Risco de ser traído, apunhalado?

Sim, ou até de um erro. Se peço a todos que sejam livres e críticos acerca dos meus pensamentos, dos meus actos, é óbvio que corro menos riscos de errar. Tenho muita confiança em mim, mas tenho o sentido da humildade, sei que devo ser complementado pelos outros, e tenho a certeza de que algumas coisas que me correram bem, podiam ter corrido mal se não ouvisse os outros.

 

Já se enganou em relação a pessoas?

Já, muitas vezes. A brincar, até digo aos meus colegas que não podemos ser fiéis a Rousseau. O homem não é bom por natureza.

 

Não é a sociedade que o perverte, é a sua natureza que por vezes não é boa?

É. A guerra é o nonsense entre os homens, mas é a história do homem. São estas brutais contradições que têm que ser geridas.

 

Quando sai do ministério, sai porquê? O que procuro saber é que o faz sair de um sítio.

Saio quando entendo que transvio até ao limite dos meus princípios. Não sou um fanático dos meus princípios, mas tenho limites à minha transigência. Quando bato com a porta na Caixa Geral de Depósitos, quando me demito do Ministério da Educação, quando termino o ciclo é porque já não vou mais. Tive um casamento de 20 e poucos anos, hoje sou muito amigo da minha ex-mulher, mas não podia ser marido dela. Quem diz na vida pessoal, diz na vida profissional, a partir de um determinado momento só nos prostituímos se continuarmos. Já não somos nós que estamos lá, somos nós a ceder, a diminuir.

 

Posso perguntar que idade tinha quando casou pela segunda vez?

Cinquenta e poucos anos.

 

Vi uma fotografia sua numa revista com a sua mulher, que parece mais nova.

Tive de quebrar uma série de tabus, ao casar com uma mulher mais nova do que eu 25 anos.

 

Tabus seus ou da sociedade?

Da sociedade. Tenho filhas que são pouco mais novas do que a minha mulher, meses. Hoje funciono muito bem com as minhas filhas, com a minha mulher actual. Tenho três filhas do primeiro casamento e um rapaz de 19 anos deste casamento. Arranjo dificuldades com os meus princípios, mas também resolvo as minhas dificuldades com os meus princípios.

 

Vai para o BES no início dos anos 80. O que é que faz entre a saída do ministério e a banca, onde faz toda a sua carreira?

Quando fui para o ministério já estava nomeado para ser gestor do Banco Espírito Santo. Uma coisa muito pouco sadia na aparência, na essência rigorosamente correcta. Fui convidado para ir para o Banco Espírito Santo…

 

Por quem?

Pelo Artur Santos Silva, que era secretário de Estado do Tesouro. Veio o convite do Cardia, e achei que devia deixar a comodidade da vida bancária e ir fazer a minha vida política, em correspondência ao meu empenhamento no Partido Socialista. Estive no Governo o tempo que achei que podia transigir. Depois fui para o Banco Espírito Santo honrar o mandato que tinha suspendido no dia em que fui para o Governo.

 

Tinha chegado a iniciar funções no Banco Espírito Santo?

Durante dois dias. Claro que as pessoas pensaram que primeiro quis ir arranjar o chamado tacho e que depois é que fui para a política. Fui porque dei preferência à política. Tanto assim que, já no Banco Espírito Santo, já decepcionado com a vida política, continuei a fazer um esforço e fui para o parlamento, para deputado. Mas já não saí do banco.

 

Quando estava no ministério, chegou a pensar que a política era uma via para si, ou sempre olhou para aquilo como uma espécie de comissão de serviço?

Cedo percebi que não ia fazer a minha vida na política, porque cedo comecei a ter os meus desgostos. Não é politicamente correcto dizer isto, mas foi assim que aconteceu.

 

Percebeu, portanto, que lhe interessava apenas uma face da moeda, a da Economia.

Que era o trabalho, a profissão. Sempre com esta lógica: utilizar na minha vida profissional a acção política. É por isso que todo o meu trabalho de recuperação e reorganização de empresas obedece a critérios de justiça social.

 

Significa que o menino pobre, lá atrás, nunca desapareceu.

Provavelmente não. Um dia uma jornalista perguntou-me como é que conciliava a minha concepção de vida à esquerda com a reestruturação das empresas…

 

Em que é preciso fazer despedimentos.

Nunca despedi ninguém, faço redução de quadros, é diferente. Só despedi pessoas, e não tenho nenhum complexo em relação a isso, por via disciplinar. Tenho pena de não ter condições disciplinares mais amplas para eliminar quem não quer trabalhar e anda a enganar a sociedade. Agora está muito em discussão a temática do despedimento; percebo muito bem a prudência que tem de haver na gestão da política laboral e legislação nos despedimentos; mas é uma evidência que os maus trabalhadores prejudicam a classe dos trabalhadores.

 

O que é que respondeu a essa jornalista?

Concilio sempre as duas coisas. Adopto soluções de natureza social preocupando-me sempre com a redução da penosidade social. E tenho a minha obrigação cumprida.

 

O ponto mais alto da sua carreira foi a criação da SIBS ou a presidência do Banco Fonsecas e Burnay? Ou nenhum destes dois?

Há sempre dois elementos a julgar esses factos: o próprio e a sociedade. A sociedade pode imaginar que o meu melhor trabalho foi, por hipótese, a recuperação do Banco Fonsecas e Burnay, e eu achar que não. O serviço que prestei mais relevante no meu país foi pôr a funcionar a RTP.

 

Porque é que intimamente considera esse o seu melhor trabalho?

Pelo seu significado político e social. A RTP era uma grande dificuldade para a sociedade e para o poder político, e ajudei a resolver isso.

 

O poder político que lhe estendeu a mão nessa altura não foi o da sua cor.

Eu distingo, não há contradição nenhuma.

 

Tinha batido com a porta, com estrondo, na Caixa Geral de Depósitos, com um Governo socialista, e a seguir quem lhe estende a mão é o PSD.

Não foi estender a mão, não entendo isso assim. Fui prestar um trabalho útil ao poder político e ao meu país, motivo-me por estas duas boas razões. Quando me perguntavam porque é que eu, com 70 anos, ainda aceitava fazer este trabalho, é porque tenho valores altruístas, porque acho que posso ser útil à sociedade. E tenho os meus valores individuais, realizo-me profissionalmente.

 

Não sentiu que lhe estavam a dar a mão, sentiu que o reconheceram como profissional, e que conseguiram ver além de um preconceito político.

Sim. Eu próprio achava, e disse-o ao ministro da época, ao Dr. Morais Sarmento, que não reunia as melhores condições para dirigir a RTP.

 

Porquê?

Porque não era apoiado por nenhum partido, tive incomodidades com o facto de não ser membro de nenhum partido, e achava que isso era um factor de desvantagem. E foi. Custou-me mais a fazer algumas coisas por não ser protegido nem pelo partido A nem pelo partido B. Sou um homem de esquerda, assumo isso objectivamente, não tenho nenhum preconceito. A humanidade só se resolve com valores de esquerda.

 

Procurando a justiça social – é essa a trave mestra que o faz ser de esquerda?

Exactamente. É o menino que passou fome que se realiza aí. Tenho hoje uma concepção muito crítica para com o modelo económico que está em vigor. O capitalismo actual está cheio de vícios, falta de princípios. Mas é também a sociedade que precisa de se reformar, retomar princípios.

 

Acredita que é possível?

É fundamental, sem o que a sociedade viverá bastantes vicissitudes. Isto dá em guerras.

 

Porque é que saiu da Caixa batendo com a porta com tanto estrondo? Porque é que não quis sair de mansinho? Estava em desacordo, como é evidente, mas aquilo foi uma coisa que se ouviu muito cá fora. 

Porque tinha de chamar a atenção para o que se estava a passar na Caixa. Princípios, mais uma vez. Achei que se saísse sem dizer alguma coisa não fazia bem a minha obrigação. Nunca fiz comentários públicos sobre o que se passou na Caixa, só disse que não concordava com o que se estava a passar.

 

Para a opinião pública a ideia que passou foi a de estar em conflito aberto com António de Sousa, que era então presidente.

É verdade, foi isso. Exactamente porque discordava dos princípios. Os conflitos emergiram e cedo percebi que quem tinha que sair era eu, não eram os outros membros da administração. Fui eu que fiz declarações de voto para as actas, fui eu que disse publicamente que discordava do que se andava a passar, fui eu que incumpri as regras da chamada solidariedade do órgão. Fiz a quebra daquilo que prezo, e que aparenta ser solidariedade; não tenho solidariedade para com maus critérios, tenho solidariedade para com os meus critérios. São os meus, não são perfeitos, mas não são tolerantes em excesso. Há um limite a partir do qual não passo.

 

O conflito foi com o Pina Moura?

Não, não tive nenhum conflito com o ministro, nem com esse nem com o seguinte. Os conflitos foram com parte dos meus colegas do conselho de administração. Até dei caminho ao ministro, disse-lhe que me queria ir embora: “Ou me reformo, ou me manda terminar mandato noutras actividades, ou me demite”. Acabei por colaborar reformando-me. Mas não foi um caminho fácil – hoje já posso dizer isso. As coisas não correram bem, estive tempo demais a aguardar, pediram-me para continuar “apesar de”, e quando veio a público, veio já nas piores condições, já com declarações falsas dos membros da administração, já com alguma degradação.

 

Nesses processos também não hesita, não foge ao conflito.

Não fujo ao rompimento. É um processo doloroso, qualquer rompimento, seja profissional, familiar.

 

Fale-me da relação que tem com os seus filhos. Ouvi dizer que vai ver aves com o seu filho.

Já não vou, porque tenho muitas dificuldades em ver.

 

Por causa da diabetes?

Sim. Mas tinha muito gosto em ir. Na infância era um fã dos pássaros.  

 

Já foram a Capri? Axel Munthe, que era o médico da família real sueca, e que escreveu O Livro de San Michele, tinha paixão por pássaros. Fixou-se na baía napolitana e na sua casa museu estuda-se ornitologia.

Não conhecia essa curiosidade, mas devo dizer que já fui a muitos sítios exclusivamente para possibilitar que o meu filho visse aves.

 

O que é que costuma fazer com as suas filhas?

Agora pouco, porque estão todas casadas e fazem a sua vida. A mais velha foi para Direito, a do meio para Gestão de Empresas, a terceira para Economia. Sou avô ausente, mas gosto muito dos meus netos.

 

Ajudou as suas filhas profissionalmente? O senhor não foi muito ajudado, ajudou-se a si próprio.

Sempre que me pedem opinião, dou. Criei a empresa onde uma das minhas filhas começou, e para onde depois a outra passou. No fundo ajudei alguma coisa, sim.

 

Para elas, e estando nesta área, foi pesado serem filhas do Almerindo Marques? Emanciparem-se em relação à imagem do pai.

Cedo fizeram a sua vida própria. Fizeram a vida universitária por si próprias, nunca utilizaram vantagens do pai, nunca. Mas têm tido alguns dissabores por terceiros não pensarem isso.

 

Por acharem que foram ajudadas mais do que deviam?

Sim. Mas não é assim. Tenho muito gosto e orgulho em saber que as minhas filhas foram elas próprias. E estou a fazer tudo para que o meu filho seja ele próprio. É dele exclusivamente a opção de estudar engenharia. A única coisa que lhe recomendo é que seja sempre autónomo, e que o seja o mais cedo possível.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2010

 

Vicente Todolí

18.06.14

O que faz que uma obra seja considerada uma obra de arte? A determinação do autor. Arte, então, é aquela que o autor concebe, produz, homologa como sendo arte.

A definição é de Vicente Todolí, e não é nova. Quando me encontrei com ele na Tate Modern já a conhecia. Por isso, era menos interessante à partida, para mim, esgrimir a muito estafada questão da legitimidade da Arte Moderna, ainda que não seja despicienda a questão da autoria na Arte Moderna. Fui ao encontro do percurso deste homem, filho de um plantador de laranjas, que guarda uma impressão muito viva da terra, encravada a meia dúzia de kms de Valência. A arte é o que ele faz, não é o que ele é, como explica adiante.

Deslumbrou-se com o Maneirismo, mercê do encontro com uma professora, louca e capaz de instigar paixões. A Arte Moderna, que descobriu em Veneza, teve a fulgurância de uma anunciação: percebeu que aquele seria o seu caminho. Saiu de Valência porque não quis ficar com um olho em terra de cegos. Instalou-se em Nova Iorque na década de 80 e respirou um tempo que já não existe. Regressou a Espanha para montar o Instituto Valenciano de Arte Moderna. Tinha 28 anos. O espaço tornou-se uma referência no mapa internacional. O mesmo é possível dizer do Museu de Arte Contemporânea de Serralves, que fundou, e que preferiu ao sumptuoso Guggenheim de Bilbao – ele diz que seguiu a sua intuição e que nunca se arrependeu de o ter feito... A sua passagem por Serralves culminou com a exposição dedicada a Francis Bacon que concebeu de raiz para aquele espaço e que se revelou um êxito de público: mais de 100 mil visitas.

Quando «Caged/Uncaged» foi inaugurada, já era público que essa seria a sua última exposição em Serralves. Nomeado director da Tate Modern, assumiu funções na Primavera deste ano.

O nosso encontro aconteceu numa tarde de sol, com vista para o Tamisa, na esplanada da sua nova casa. Bebeu café e água e fumou alguns cigarros. Falou uma estranha mistura de espanhol e português e inglês. É um homem amável, que fervilha.    

 

 

Viveu em Nova Iorque na década de 80. Foi uma fase crucial da sua vida, de formação intensa. Se pensar nesse tempo, pensa imediatamente em quê?

Na rua. Que é de onde vem a energia. A vida na rua tinha uma energia vital que seduzia de um modo estranho; era impossível não ficar envolvido. Parecia que estava a assistir a uma filmagem da qual era o realizador. Havia uma intensificação do olhar, e os olhos convertiam-se em câmara. Esta era uma parte. A outra era o mundo da noite. A energia da noite tinha mais que ver com aquilo que me interessava. A música, o cinema, a arte. Eram os tempos da cultura dos clubs, onde se encontrava o Andy Warhol, [Jean-Michel] o Basquiat, gente que não era tão conhecida, gente que ficou pelo caminho. Sentia-me um espectador da excepção.

 

Um espectador intrusivo?

Um espectador que escolhe a distância. Por timidez, mas não só. Se estamos dentro das situações, as situações queimam. A distância é essencial para ter uma maior perspectiva. É como uma câmara. Uma câmara é uma pantalha: por um lado protege-nos e por outro acentua a condição de espectador, de voyeur. Quando descrevo o meu trabalho, digo que é semelhante ao de um realizador/montador. Mais de documentários do que de ficção. A ficção é para o artista. Curiosamente as minhas primeiras paixões foram o cinema e a literatura.

 

O seu pensamento constitui-se a partir de imagens ou palavras?

Imagens. Sempre imagens. A palavra vem sempre depois. É consequência de um processo que não engloba outra pessoa. É um tu a tu.  

 

Uma interpelação directa ao eu?

Se existe uma audiência, o bloqueio é imediato. O meu pensamento é absolutamente visual. Não posso dissociar a palavra da imagem. Quando leio, leio imagens.

 

Ou seja, se pensa verde pensa imediatamente numa paleta de verdes? Em função da frase, o verde será mais especificamente este e não aquele?

Absolutamente.

 

O que é que um espanhol de 22 anos foi fazer para Nova Iorque? Que planos de vida é que tinha? Foi à aventura, com pouco dinheiro.

Quando acabei os estudos, fui o único da minha classe que arranjou dois trabalhos, um de manhã e outro à tarde. Na arte. Como “curator” [comissário], e a catalogar os fundos do governo regional.Era uma situação muito cómoda, porque estava a ganhar dinheiro, e também porque toda a gente estava desempregada. Mas não quis ficar “torto en el reino de los ciegos”. Compreendi que ali não se aprendia nada. Estava a ficar com uma vida miserável. Uma vida de funcionário.

 

A sua formação é em História de Arte, que apela para um lado artístico, nos antípodas da vida de funcionário.

Os estudos fiz por minha conta. Arte Moderna?, nunca se estudou. Nunca tirei nenhum curso de Arte Moderna. Não havia pessoas capacitadas. Comecei a subscrever revistas estrangeiras, a pedir livros em inglês. Tinha de sair. Tinha duas possibilidades: Itália e Nova Iorque. Itália era culturalmente muito próxima. Decidi dedicar-me à Arte Moderna quando visitei a Bienal de Veneza, em 1976.

 

Nunca tinha visto Arte Moderna?

Nunca tinha visto uma exposição! Em Valência não havia nada, nada. Tinha 18 anos. Vi aquilo e percebi que era o que queria fazer.

 

O que é que foi tão impactante?

A descoberta de mundos que só conhecia através de pequenas reproduções em livros, e de que gostava. Quando vi aquilo ao vivo, e portanto vivo, porque as reproduções estão mortas, percebi que uma reprodução numa revista é uma pequena janela num mundo figurado. Quando se assiste directamente, passa-se a estar dentro desse mundo, a vivê-lo. São mundos que não se repetem, são individuais. Uns são mais confortáveis, outros menos, uns agradam mais, outros menos. Ali, estava dentro do mundo onde queria viver. Nesse dia, para mim, o mundo ficou maior. Ficou imenso.

 

Ainda antes do arrebatamento pela Arte Contemporânea, tinha fascínio pela Arte Renascentista e pelos Impressionistas, que são, digamos, mais fáceis? O acesso à Arte Contemporânea não é evidente ou linear.

Ainda estudante de liceu, o estilo que mais me atraiu foi o Maneirismo. Foi uma arte precursora, a primeira onde se assume a individualidade, que é uma característica moderna. Acho que foi o trampolim, daí passei directamente para a Arte Moderna. Mas sempre que voltava àquela bienal [Veneza], não via só a bienal; via Ticiano, Veronese, Tintoretto.

 

O processo de identificação com Ticiano ou Tintoretto era tão intenso como aquele que experimentava com a Arte Contemporânea? 

Era. Mas a distância permite individualizar. Escolhia este e aquele. Com a Arte Moderna, o mundo é muito maior e não há distância. O componente heróico do artista era maior na arte moderna devido à reivindicação da individualidade.

 

É uma arte menos subordinada a escolas?

O mundo ficou maior. Tudo mudou muito depressa. Tem a ver com a velocidade da informação. No Renascimento, as novas interpretações artísticas viajavam através de gravuras. Demoravam imenso tempo. Hoje, com os media, estas etapas são queimadas muito rapidamente. A variedade é muito maior, portanto, as possibilidades para o espectador também.

 

Deixe-me voltar à casa da partida. Quando vai para Nova Iorque era seguro que não queria ser um funcionário, e que não podia ficar em Espanha. Mas tinha planos delineados ou ia simplesmente à descoberta?

Não tinha planos nenhuns. O primeiro lugar para onde fui nem foi Nova Iorque, foi Yale, que era e é uma das universidades mais prestigiantes dos Estados Unidos. Muita gente daria tudo para ser aceite. Quando fui, só aceitavam 15 alunos por ano. Cheguei em Setembro e em Novembro decidimudar. Se quisesse ser professor, seria perfeito. Mas ser professor não me interessava. Vai de encontro ao meu carácter: não tenho paciência, não gosto da posição, (um bocado mais alta que a audiência). Yale era muito bom para estudar, mas não estava em contacto com a vida real. Fui a Nova Iorque dois os fins-de-semana e percebei que tinha de ir para lá.

 

Percebeu como, intuitivamente?

Eu só trabalho com a intuição. A minha intuição nunca falhou. Sempre que segui um pensamento lógico, arrependi-me. Se o caos é uma forma de ordem que não conhecemos, a intuição é uma forma de conhecimento do mundo que não podemos justificar racionalmente.

 

Gosta que as coisas fiquem numa espécie de limbo misterioso? Sabe que é assim intuitivamente e não lhe interessa saber mais?

Acho realmente que as grandes obras têm uma componente fundamental de mistério. Mistério é a capacidade de provocar leituras sem fim, insondáveis. Mistério é também a incapacidade de tradução para uma linguagem diferente daquela em que a obra está executada. Uma obra que não tem mistério esgota-se na primeira leitura. Se calhar não é uma obra, é uma manifestação de um pensamento. Isso não me interessa.

 

Um pouco como a massa dos sonhos, que é insondável e de acesso enviesado?

Sim. Os sonhos... Nunca tive a capacidade de recordar nenhum! Eu diria que os sonhos são filmes que não sabemos que estamos a fazer. São filmes dos quais não achamos que somos capazes de ser autores.

 

O que é que reteve da sua passagem por Yale, onde, apesar de tudo, permaneceu um ano?

Encontrei um professor que foi decisório para mim quanto à percepção das coisas

 

Como se chama este professor?

Vincent Scally

 

Têm o mesmo nome. Como é que lhe chamam em Londres, Vicente ou Vincent?

Aqui chamam-me muitas coisas! Ontem recebi uma carta onde me chamavam Vidente! [gargalhada]

 

Quando um artista é grande, ele sabe que é grande? Consegue romper com o medo e confrontar-se consigo e com a sua obra?

Medo temos todos. Sem medo não se arrisca. Mas o medo não pode ser paralisador, senão não se faz nada. Há artistas capazes de tomar grandes riscos; consideram os falhanços não como falhanços, mas como etapas necessárias. E têm também um lado negro, que é precisamente o que os faz tomar decisões que outro não tomaria, arriscar onde outro não chegaria a arriscar. De qualquer modo é muito difícil generalizar. Arriscou, Pollock? Seguramente sim. É um grande artista? Seguramente sim. A sua vida não foi a mais cómoda... Mas acho que um artista precisa sempre de um equilíbrio instável

 

É na instabilidade que se progride?

Exactamente. E também a achar que não se encontrou nunca a solução final. A permanecer na tensão.

 

Tensão é uma palavra fundamental na criação artística.

Fundamental, sim.

 

E suspensão?

É preciso suspender o juízo sobre o mundo para tentar encontrar outra área de penetração, e assim outro mundo. Ir com ideias pré-concebidas é paralisante, tanto para o artista como para o espectador. É preconceito.

 

Em Nova Iorque vivia com o dinheiro de uma bolsa, estudava e fazia algum trabalho como “curator”.

Fazia trabalhos para exposições em Espanha. As primeiras exposições que fiz, como freelancer, foram duas retrospectivas. De Walker Evans e Robert Frank. Comecei pela fotografia, não porque gostasse particularmente de fotografia; pensei simplesmente que eram artistas que cindiam os limites do meio. O importante ali era a visão. A fotografia era o veículo escolhido para transmitir essa visão. Sempre achei que a visão tem de ser maior que as limitações do meio, transcendê-las.

 

Gosta de fazer, fazer, fazer.

O meu motor é a curiosidade. Pelo mundo em geral. Pela arte, pela astronomia, pelas marés. Tenho muitos interesses. E pergunto «Porquê, porquê, porquê». É o fio condutor, o “porquê”.

 

Filtra a informação que consome com um interesse artístico?

Não, não, não. Pode acontecer, por deformação profissional... Esse professor de Yale disse-me: «O que podes dar ao mundo, e que interessa ao mundo, é a tua visão pessoal das coisas. Confia na tua intuição, persegue os teus instintos. «Your brain, your guts, together» [O teu cérebro e as tuas entranhas, juntos]. E deixa de lado qualquer concepção pré-existente. Sê tu mesmo». Digamos que nesse momento a minha vida mudou. De qualquer modo foi muito difícil: «Myself? E quem sou eu? Eu não tenho valor nenhum, sou um estudante...». Provoca dúvidas. Mas só é preciso ter coragem, e fazer.

 

São dois momentos. Se bem que seja consideravelmente mais fácil fazer depois de se arrancar a coragem.

Este foi o ponto de descolagem. Comecei a viajar sozinho, no sentido figurado. Adoptei um ponto de vista próprio. Tentei, o que não é fácil, não ser influenciado pelo entourage. É um processo contínuo. O auto-questionamento tem de ser um exercício permanente.

 

Com a progressão, primeiro com Serralves, agora com a Tate Modern, não vai ficando mais convencido dos seus pontos de vista?

Não é uma progressão. A progressão indica um movimento vertical. Para mim trata-se de um movimento horizontal. É um mapa, um mapa onde amplio o conhecimento do mundo, de onde vejo diferentes continentes. Não é um passo à frente na carreira. É mais uma experiência que alarga o meu mundo. Desafio? Se calhar Valencia ou Serralves foram desafios maiores. Em Valência não tinha experiência nenhuma, tive de construir uma colecção. Com imensas dúvidas. «Se calhar não sou capaz»... Em Serralves a pressão era muito superior: era um segundo projecto. Se não andasse para a frente, isso poderia invalidar tudo o que estava para trás. Desafios foram todos. IVAM [Instituto Valenciano de Arte Moderna] porque foi o primeiro, Serralves porque era preciso construir um museu do zero sem me repetir, e fazendo uma interpretação do lugar. Este é mais um desafio, «one more», nem maior nem menos. É uma mega estrutura, há uma parte de management que não tinha nos outros lugares, trabalho com uma equipa sénior, que já está formada. Daqui para onde? Pode ser daqui para uma estrutura muito pequenina, num lugar sem importância nenhuma.

 

Que coisas, então, constituem o desafio?

O desafio é poder fazer aquilo que não sei fazer. Aquilo que ainda não sei fazer. Serei capaz, não serei capaz? Para mim mesmo é uma interrogação. Mas se não conseguir, não vou ter uma sensação de falhanço. Faz parte do jogo. O sucesso e o falhanço são duas faces da mesma moeda. Se aprender algo, não é um falhanço. A ideia do sucesso está muito mediatizada por um sentido americano: «to make it» [conseguir]. «To make it» é não trair-se a si mesmo. É poder dizer no fim da vida «fiz aquilo que quis ou aquilo que devia fazer, e nunca cruzei linhas incruzáveis para conseguir um objectivo».

 

Quem é que o ensinou a ser assim? Saiu de Valência em ruptura, justamente por causa de um cruzamento de linhas. O PP queria pôr no museu uma pessoa que o Vicente achava que não tinha formação adequada.

Se calhar foram as leituras. Fui um leitor empedernido, desde muito pequeno. Aos nove, dez anos lia Walter Scott e Swift; mais tarde Julio Verne, (de que era adito!, lia até nas aulas as obras completas), e Homero.

 

Ulisses e os heróis na «Odisseia» não têm parança.

Se penso em heróis, penso em Ulisses. Em luta permanente. Tive também figuras muito marcantes na minha família, pater-familiae, para quem a ética era primordial e inultrapassável: o meu avó e o meu pai. Para eles o dinheiro não era importante, o importante era a atitude. O meu pai dedicava-se às laranjeiras. Produzia árvores pequenas, que outros agricultores plantavam, e tinha uma equipa que podava. Depois ampliou o negócio e dedicou-se a viveiros de plantas e frutais.

 

Ainda tem esses cheiros?

Absolutamente.

 

É verdade que quando acabar a sua aventura no mundo da arte vai dedicar-se à sua quinta em Espanha e fazer agricultura biológica?

Estou já a fazê-lo, em Valência. O processo, quando se lida com árvores, é lentíssimo.

 

Qual é o cheiro e a imagem dos laranjais?

Tenho olivais e laranjais. Gosto dos olivais quando faz vento. Com o movimento, as folhas mudam de cor, e parece um oceano, um oceano estranho. Por causa da minha infância, gosto dos pomares de laranjeiras. O cheiro é incrível em Abril e Maio, é uma experiência inebriante que me lembra uma imagem de um filme de Tarkovski. E há uma erva, que não sei como se diz em português, que cresce nos laranjais, e que se chama «agret», porque é acre. Tem um talo verde, e as folhas são de um amarelo intenso. Faz um tapete para onde, miúdos, nos lançávamos, achando que se ia manter... E não, caía.

 

Que comandita se atirava sobre esse manto?

Vivi numa aldeia muito pequena, Palmeira, até aos 16 anos, altura em que fui estudar para Valência. Onde gostava de ler era nos laranjais, para onde ia sozinho. Gostava de ler vendo grandes horizontes, ou protegido, dentro do pomar. Era um modo de me concentrar no mundo que estava a descobrir na leitura, e de não ser molestado por interferência alguma. Somos quatro irmãos e eu sou o mais velho.

 

Algum dos seus irmãos está no mundo da arte?

Não. Um é especialista em impostos, outro continua a tradição da agricultura, e a minha irmã é especialista em filologia catalã. Em minha casa não houve nunca livros. Mas o meu pai tinha uma grande inteligência e intuição para o mundo. Os trabalhadores do meu pai, quando souberam que eu ia estudar arte, disseram-lhe: «O teu filho vai estudar arte? Isso é o quê? Isso dá dinheiro? Vai passar muita fome». E o meu pai respondia: «O importante não é o que estudas. O importante é que sirva aquilo que queres fazer. E depois é preciso fazê-lo bem».

 

E os estigmas das gentes da arte? Que são bardinos, drogados, homossexuais, eles tinham-nos?

Não sabiam bem o que era arte! Sabiam que não dava para comer... Em Espanha, com o Franquismo, o nível cultural era muito baixo. Não havia museus. Os artistas eram os artistas da canção, do flamengo.

 

Não é tão extraordinário que um país com essas características tenha produzido um pintor como Picasso?

Todos os artistas saíram. Miró, Dali, Picasso, Gries. Se ficassem, ficariam destruídos. Foi uma constante. Um pouco como em Portugal. Por isso, não havia nem estigma. Na faculdade eram só meninas. Considerava-se o curso como um curso para alguém que não tinha de viver disto...

 

Como se fosse lavores?

Sim. «Olha, fica bem?».

 

Quando é que a arte aparece na sua vida?

No liceu, com uma professora completamente louca.

 

Estava apaixonado por ela?

Nada. Mas ela conseguia transmitir paixão. Foi com ela que apanhei a paixão pelo Maneirismo. Tinha 13 anos. Estava indeciso entre Arqueologia e Arte. Arqueologia era também ficção, tinha um lado fílmico. Desisti depois de um domingo passado em trabalho de campo. Não encontrámos nada! Seria o mesmo que entrar numa biblioteca e não encontrar um livro. Há tantos outros para ler... A minha mãe tinha a obsessão do conhecimento, uma grande admiração pelos sábios. «Ah, que sabut!». Eram os seus heróis. Estudava connosco pessoalmente, acompanhava-nos nas lições mesmo antes de irmos para a escola.

 

A sua mãe já veio à Tate?

Não. Nem virá. Nunca foram a nenhum museu onde estive. O meu pai não gostava de viajar; achava que lá não era dono do seu destino. A ideia de ir a um hotel era impensável!: «Isto não é a minha casa! Quanta gente dormiu aqui?». Um dia foi a Valência e mostrei-lhe o edifício do museu, ainda em construção: «Ah, está bem». Saíam coisas na imprensa, e liam. Mas nunca tiveram interesse nenhum. Não era o seu mundo. Era o meu mundo, muito bem.

 

A visão é o seu sentido mais apurado?

O cheiro é uma obsessão. Sinto logo o cheiro das pessoas, das situações. Os cheiros convocam imagens, viagens ao passado.

 

Disse-me que nos anos de Nova Iorque praticamente só existiu com os olhos.

É verdade. Via, via, via. Acabou por ficar perigoso: parecia que o mundo só era feito de imagens. Muito bidimensional. Era perigoso porque distorcia a realidade. Uma flor não é uma imagem. É corpórea, tem textura, tem peso, tem cheiro – isso é a sua tridimensionalidade. Para não cair no turbilhão da ficção, que conduz ao vazio, é preciso dar corpo e realidade a estas imagens. Se todo o investimento está nos olhos, o corpo deixa de existir. Eu achava que o corpo era o suporte dos olhos!

 

Como é que sai desse processo?

Comecei, por exemplo, a jogar futebol. Precisei de sentir o corpo.

 

Nessa fase em que viveu em Nova Iorque fazia-se a exaltação do hedonista, experienciavam-se drogas, com muito sexo à mistura.

Era a fase «die young and pretty». Uma época agonística, nesse sentido. Diria que era uma época neo-romântica. São ciclos que vão e vêm. Assisti, de fora.

 

Que fascínio tinha por isto?

Às vezes parecia-me que havia um excesso de vedetismo. Quando era puro exibicionismo, não me interessava. Tem sempre de haver uma estrutura. O exibicionismo como motor principal é vazio, não me interessa.

 

Nova Iorque, Valência, Porto, Londres. Tornará a Espanha?

Nunca deixei Espanha. Não é Espanha: é a minha aldeia. Com Espanha nunca tive relação nenhuma. E não é a minha aldeia: é o meu mundo. O que tenho é a memória. Da paisagem. A memória é a minha casa quando o espaço físico é destruído, adulterado. É verdade que não basta... A nostalgia não leva a nada nenhum. O sentido do lugar está sempre a mudar. Mas somos nós que o escolhemos. Com o tempo construí o meu espaço. Descobri há cerca de dez anos uma terra, reconstruí uma casa muito pequenina; vou lá um fim-de-semana por mês. E há ainda uma réstia daquele lugar primordial, de acesso dificílimo, onde me confronto com o mundo e comigo mesmo.

 

O que sente como casa? Pode ser um espaço mental, um recanto, uma situação.

Casa é onde a minha actividade não influi nem define a minha personalidade. É o lugar onde sinto que a base é minha e não preciso de mais nada para estar bem. É um exercício de solidão. A solidão é também o momento em que me ponho em dúvida, mas que depois me reafirma. Há um esvaziamento, e depois uma energia súbita. É um balcão para olhar para o tempo. Tempo e Lugar, são as premissas. Evitando a nostalgia. A nostalgia é uma tentação... É preciso não renunciar à memória. Mas o movimento é irrecusável. Mais, mais, mais!

 

Disse que esta seria a sua última instituição. Depois retira-se.

Faz vinte anos que estou ligado a instituições. Vinte! São muitos. Não quer dizer que vá trabalhar só em agricultura, posso continuar ligado à arte. Mas tem de ser fora de uma instituição, ou numa instituição muito pequenina. E sim, ficar com os meus projectos paralelos: ver crescer as árvores.

 

O seu discurso, a sua vida é muito menos impregnada pela arte do que eu esperava. Ainda que a arte e o trabalho consumam o grosso do seu tempo.

É um desafio. Quero que continue a ser assim.

 

Afinal, que peso tem a arte na sua vida?

É a minha profissão. É uma actividade. Não sou eu.

 

Como plantar laranjas?

Com a diferença de ter escolhido a arte como profissão; plantar laranjas, como profissão, nunca teria escolhido. O essencial é não confundir-me com nenhuma actividade que possa fazer.

 

O que constitui então a sua estrutura?, se fala em não se confundir.

Seria incapaz de fazer um auto-retrato. Tento ter distância, um dos exercícios é distanciar-me de mim mesmo; mas nunca vou ter. Senão, seria Dr. Jekyl e Mr. Hyde.

 

É por isso que não pôde ser artista? Pensando que todos os artistas são um pouco Dr. Jekyl e Mr. Hyde.

Sim. Também tenho essa tendência, mas consegui apresentá-los um ao outro! Conhecem-se!, espero.

 

Gostava de ter sido artista, de ter tido talento?

Não. Nunca. Estou confortável com a minha posição de espectador ou voyeur. Não quero entrar, cruzar aquele círculo.

 

Quando saiu do Porto ao cabo de sete anos tão importantes...

Tenho boas memórias, volto como assessor, tenho ligações com Portugal, falo ao telefone. Estou contente e orgulhoso por fazer parte.

 

Nós, portugueses, sentimos com orgulho a sua nomeação para a Tate: como se fosse um dos nossos.

Senti isso também. Em Espanha, quando fui para Serralves, o meu nome ficou completamente diluído. Agora, foi uma bomba. Gente que não me ligava, para quem eu não existia, de repente começou a querer ter relações... Que não vai ter.

 

Para os espanhóis foi incompreensível que tivesse escolhido Serralves, que não existia no mapa, e preterido o Guggenheim de Bilbao.

Não segui os conselhos que me davam, nem a lógica. Segui a minha intuição. E acertei!

 

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2002

 

Ricardo Araújo Pereira (2004)

17.06.14

Começamos por onde para encontrar o lado mais cómico disto? (parafraseando o Dinis Machado)? Como encontrar o teu lado mais cómico?

Isso é um capítulo do «Reduto Quase Final». [O Dinis] conta que uma vez caiu, partiu os dentes e pensou «Qual é o lado mais cómico disto?». Sempre que acontece alguma coisa má, mesmo que seja a ele... Sublinho: mesmo que seja a ele. Porque há uma frase, acho que do Mel Brooks, que diz: «Comédia é o telhado cair em cima de uma pessoa, tragédia é eu partir uma unha». Temos tendência para não achar muita graça às coisas que nos acontecem.

 

Como é que encontras, ou procuras (e a questão é também: procuras ou encontras), o lado cómico das situações?

É possível que esteja treinado, desperto para ver esse lado. Não sei exactamente porquê, nem quando, isso começou. Sinto que tenho um olhar infantil sobre as coisas, e isso ajuda bastante. Muitas vezes estou com outras pessoas, a ver a mesma cena e no final digo: «Repararam que o tipo não dizia os ‘eles’?», e mais ninguém tinha reparado. As pessoas, à medida que vão envelhecendo, aprendem a...

 

Normalizar?

Sim, normalizar, deixar de reparar em certas coisas. Mas as crianças apontam, dizem sempre «Isto é esquisito», «Por que é que estamos aqui?». O Einstein dizia... (Já pareço o [José] Sócrates, já fiz duas citações e ainda não passaram cinco minutos)!

 

O Mel Brooks e o Dinis Machado.

São três vezes, então. Não tinha dado por isso. Tu tiveste culpa no Dinis Machado! Eh pá, não me apetecia nada ser o Zé Sócrates da comédia.

 

Devo sublinhar que tudo o que for gravado é susceptível de ser reproduzido. A não ser que faças um pedido expresso. Mas tem graça!

Achas que sim?

 

Sim. E que tens a perder? Está bom de ver que isto vai ser uma grande embrulhada. Mas é verdade que a ordem não tem graça nenhuma. O humor, aliás, implica subversão.

- O caos é mais divertido do que a ordem. Todas as coisas têm um lado divertido. Eh pá, já ia fazer outra citação!, isto é muito mau! Conheces o livro do Jorge Amado «Dona Flor e seus dois maridos»? Há um que é mais espampanante e gosta de farra e outro que é ordenadíssimo, meticuloso. Mas a ordem desse tem muita graça, o facto de ter as camisas expostas por cores...

 

Para te ajudar nas citações, o lado arrumado e aprumado do Jacques Tati tem muita graça.

Agrada-me muito ver o lado humorístico de coisas que em princípio não têm piada nenhuma. O Seinfeld faz isso muitas vezes, esse humor de observação. (Posso citar o Seinfeld!)

 

E o Einstein.

O Einstein dizia que é preciso olhar para as coisas com o olhar que uma criança teria para as pôr em causa. Se calhar, é isso que ajuda: a minha imaturidade.

 

Do Einstein para o Sócrates, o José Sócrates, insisto em perguntar o que é que tens a perder por fazeres graça com o Sócrates, ou qualquer outra pessoa. Essa não é uma das condições do humor: tudo poder ser gozável?

Precisamente.

 

Excepto o Benfica, não é?

Tenho muita dificuldade em brincar com o Benfica. As pessoas não têm muito sentido de humor em relação às coisas de que são fanáticas. 

 

Mas não aguentas mesmo graças sobre o Benfica?

Aguento, mas é das coisas que mais me custam. Choro lágrimas de sangue quando tenho que escrever textos humorísticos a fazer pouco do Benfica. Nunca penso no que tenho a perder. Se faço uma piada sobre o Sócrates, é evidente que tenho muitas coisas a perder. O Herman sentiu na pele o que é que se tem a perder por brincar com a religião, com os políticos, foi censurado várias vezes. Eu podia perfeitamente não dizer que sou de esquerda ou do Benfica. No momento em que digo, perco leitores, os mais fanáticos, pelo menos. Não é por acaso que os humoristas não exprimem... Tu não sabes quais são as posições políticas do Jay Leno.

 

Então vamos ao facto de seres de esquerda. Quando nos conhecemos, contaram-me que punhas a tocar nas Produções Fictícias música do Fanhais, que cantavas os hinos do Partido Comunista. E que davas uma parte do vencimento ao PC, à Festa do Avante...

Pagava a minha quota. Não se pode dizer que fosse uma parte do meu vencimento porque não era assim uma soma tão avultada.

 

O lado cómico disto é seres um rapaz de boas famílias, entusiasticamente de esquerda, que tem o Mário de Carvalho como referência literária, que faz humor desta maneira. Parece contraditório, improvável.

Não sei se há contradição... É evidente que não sou propriamente um operário! Não posso dizer que venha de uma família pobre, também não venho de uma família rica.

 

Consegues apresentar os teus pais, sem fazer humor sobre isso?

Agora, aqui? Não é nada de especial: são tripulantes da TAP. O meu pai é piloto e a minha mãe é assistente de bordo.

 

Faz-se graça com a mãe? Eu diria logo que é aeromoça...

Habituei-me a ouvir isso. [A profissão deles] permitiu-me viajar bastante quando era pequeno.

 

És filho único e levavam-te nas viagens.

Exactamente. Há muitas coisas da minha vida que uso, que ponho nos meus textos. Tinha uma coisa de stand up que era: «Sempre soube que não era o filho preferido dos meus pais!» – o que é muito mais chato do que é costume, sendo filho único. Não sei se escrevi alguma coisa sobre eles, mas é possível que o tenha feito.

 

Mas isso é uma graça, ou não? Sentiste-te amado, desejado, a criança na qual depositavam todas as expectativas?

Suponho que seja verdade. É difícil lidar com essas expectativas, sobretudo quando mudamos de ideias. Era suposto ser advogado. Eu queria ser advogado porque o que queria era escrever, e boa parte dos escritores são advogados. Depois, comecei a desconfiar que não era bem aquilo... Normalmente, a gente tem uma impressão bastante romântica do que é ser advogado.

 

É o que acontece quando se vê demasiadas vezes o «Testemunha de acusação», do Billy Wilder, com a Marlene Dietrich.

É isso. E aquilo, a maior parte do tempo, deve ser escrever relatórios sobre este senhor que se quer divorciar, e tal.

 

Agora, até os padres têm que aprender a preencher as fichas do IRS. Não leste o D. Policarpo? Ninguém está imune às folhas.

Apercebi-me, na altura do liceu, que provavelmente não seria aquilo, e estive a fazer o ano zero de Direito na Católica ao mesmo tempo que continuava com o 12º cá fora – o que, acho, é ilegal. Não fiz Direito e disse-lhes que queria fazer literatura. Foi uma coisa bastante chocante!, acharam que não conseguiria fazer nada com aquele curso e então convenceram-me a ir para Comunicação Social, porque, vê bem, na cabeça deles, um jornalista sim, ganha bem!

 

É preciso explicar-lhes umas coisas.

E pronto, lá fui para Comunicação Social.

 

Qual é a formação do Mário de Carvalho?

É advogado, justamente. O próprio Eça, era licenciado em Direito. O Lobo Antunes por acaso é médico, o Saramago é metalúrgico. Onde é que íamos?

 

No teu percurso.

Ainda hei-de inscrever-me em Letras. Sempre que me inscrevo, acontece-me alguma coisa. Ou tenho uma filha, ou começa um programa de televisão em que entro e que requer a minha atenção.

 

É isso que vais ser daqui a 20 anos?, alguém das letras?

Não sei. Se há três me perguntasses o que é que a minha vida ia ser, não fazia ideia que ia estar a fazer um programa na Sic Radical e a lançar um DVD. Não vou certamente ser um tipo que faz stand up comedy. As minhas referências principais no stand up são o Woody Allen e o Seinfeld. Eu tinha muito apreço por aquele ambiente, são coisas bem mais sofisticadas do que a gente acha.

 

Cheias de referências e de citações.

Justamente.

 

Também gostas dos filmes do Bergman?

Não sou grande cinéfilo. E não sou tão apaixonado pelos filmes do Bergman como o Woody Allen.

 

E da música do Cole Porter e dos irmãos Gershwin (para referenciar, ainda, o Woody Allen)?

Também não sou grande melómano. Os meus interesses vão mais para os livros. Cresci no meio dos livros da minha mãe, no meio do interesse da minha mãe pela leitura. O curso da minha mãe chamava-se Filologia Românica, (hoje Línguas e Literaturas Modernas).

 

O teu rigor em relação à língua tem que ver com a tua mãe? Eles ensinaram-te a falar bem, a escrever bem, a ser exigente com o modo de expressão?

Sem dúvida. Mesmo nas escolas onde andei, havia uma especial exigência com a língua. A palavra escrita interessou-me desde sempre. É quase milagroso as pessoas entenderem-se. «Mesa» são apenas quatro letras e as letras são os desenhos que se convencionaram que fossem aqueles, e se disser «mesa», eu imagino uma, tu imaginas outra, provavelmente nenhum dos dois imagina esta à qual estamos. E ainda assim, entendemo-nos. No outro dia estive a ler uns livros meus da primária e havia lá uma linha para «o que é queres ser quando fores grande»; escrevi «escritor e futebolista do Benfica». Se repares bem são duas profissões que vão muito a par, os futebolistas têm um talento para se exprimirem verbalmente muito interessante!

 

O nosso Dinis Machado diz, aliás, que os jogadores de futebol dantes jogavam à bola e agora dão entrevistas.

Isso é absolutamente verdade. Trocava tudo para saber jogar à bola. Dava tudo para ser o número dez do Benfica.

 

Escolhe: escrever «Fantasia para dois coronéis e uma piscina» (Mário de Carvalho) e marcar um grande golo...

Nesses termos, é muito complicado. O que proponho não é ser jogador de futebol, o que proponho é ser jogador de futebol do Benfica. Não me interessa nada se o jogo for mau, se o Benfica ganhar, fico contente.

 

Mas o que é isso? Fazer parte de uma família?

Uma pessoa é de um clube por uma razão inexplicável. O meu primo António, que me deu a catequese do Benfica, levava-me ao estádio quando era puto, e tudo aquilo me fascinava. Olhar para aquelas pessoas todas, que estavam ali ao lado e que sentia que eram como eu... Tínhamos as mesmas bandeiras e os mesmos cachecóis, era uma coisa de peregrinos. Mesmo a história do Benfica... O Benfica nasce nas traseiras de uma farmácia, com um grupo de amigos. É muito diferente da história do Sporting, que foi formado por um conde. A história do Benfica comove-me.

 

Bate certo com a história do comunismo. Como se estivesses de repente no meio dos pobres e ofendidos...

As cores são o vermelho e o branco porque são cores garridas que transmitem vivacidade e alegria. A águia simboliza a elevação de princípios. O lema é «E pluribus uno» que significa «Entre muitos, um», aquele que se distingue – que é o Benfica, claro.

 

Os teus amigos de escola eram meninos finos. Também privaste com os metalúrgicos e com os benfiquistas?

As duas coisas. Não nego que os meninos que andavam no colégio comigo...

 

Foste educado onde?

Foi sempre em colégios privados.

 

Falas nisso com os olhos baixos, como se tivesses vergonha.

Não, não tenho vergonha. Estive numa escola de freiras vicentinas até à quarta classe, em Carnide. Fui daí para o Externato da Luz, que é um colégio de frades franciscanos, que acabava no 9º ano. No 9º ano fui para um colégio no Lumiar que se chama São João de Brito, e é de jesuítas. A seguir, fui para a [Universidade] Católica que é, como sabes, de malta da Opus Dei.

 

Essa fixação religiosa era porquê?

Os meus pais não são particularmente religiosos, eu não sou baptizado. Suponho que a questão era a qualidade de ensino.

 

De qualquer modo, não há melhor pasto para fazer humor do que o religioso.

Pois. Há um preconceito universal contra o humor. O riso é tido como uma falta de respeito, a alegria é depreciada. Confunde ser sério, no sentido de ser honesto, competente, rigoroso, com ser sisudo. Em relação à Igreja, o Umberto Eco, n’«O Nome da Rosa», fala naquela ideia de os padres terem queimado o equivalente para a comédia do Aristóteles. Quem ri, põe em causa as coisas...

 

Fazer humor significa subverter uma ordem instaurada?

O humor tem muitas vertentes. Essa vertente da subversão e da crítica ao poder está presente desde sempre, desde o Gil Vicente e por aí fora. Por outro lado, o humor retira peso às coisas. Não é por acaso que sempre que há uma tragédia, no dia seguinte já há piadas sobre a tragédia. Rir alivia o problema, torna-o mais manejável, e por isso mais humano. Agrada-me muitíssimo na comédia o facto de des-sacralizar as coisas e os problemas, (e é provavelmente por isso que a Igreja não gosta). O facto de a comédia dizer: «Atenção, este senhor engravatado e Primeiro Ministro também faz cocó como nós», é uma coisa que o põe ao nosso nível, desmembra-o, desmancha a sua construção social.

 

É nesse sentido que nada nem ningiém são imunes?

Sim, parece-me que ninguém nem nada devem ser imunes ao olhar humorístico.

 

Aos dez anos, com os teus amiguinhos, já fazias graças?

Fazia. Eu tinha dez anos quando o «Tal Canal» estava no ar e lembro-me de ir para a escola repetir com marionetas os sketchs que tinha visto no dia anterior. Passei boa parte da minha infância com a minha avó, justamente por os meus pais serem da TAP e passarem largos períodos de tempo fora do país. O que é engraçado é que a casa dela, um rés-do-chão ali na Pontinha, ficava a nove portas de distância de um centro de trabalho do PCP, com bandeiras e tal, e ela passava por lá e dizia: «Estes comunistas»! Comunistas era um palavrão. As ideologias de esquerda não pegam muito no Minho porque no Minho toda a gente é dona de um pedaço de terreno. No Alentejo, como ninguém tinha nada e havia gajos que tinham muitíssimo, era mais fácil. Aquela malta do Norte é uma coisa bastante pesada, isso vê-se no... vou cair em desgraça com esta entrevista!, nos contos do Miguel Torga.

 

Tu leste o Torga?

Mas achas que o Sócrates não leu?

 

Acho que não.

Nos contos do Torga vêem-se aquelas festas de Trás-os-Montes, e no Minho era igual. Aquelas festas de aldeia que acabam com uma cena de pancadaria e às vezes morte, sabes?

 

Sei. Navalhadas.

Navalhadas e «grossa avaria na caixa do peito», como escreve o Torga. O meu bisavó morreu com uma sacholada na cabeça, na sequência de uma discussão sobre por onde é que o riacho deve decorrer.

 

A tua avó odiava os comunistas.

Sim. Faltava a luz durante a hora da telenovela e ela ficava danada: «Isto são os comunistas, de certeza, não querem que a gente veja»!

 

Que desgosto foste dar à tua avó em tornares-te comunista. Pensei que a tua avó fosse a pessoa que mais estimavas na vida.

E era. Mas a minha avó não me levou isso a mal. Quando a minha mãe lhe contou que me tinha feito militante do PCP, ficou um tempo a pensar naquilo, «É um bom rapaz, não faz mal nenhum».

 

Significa que te amava incondicionalmente.

Ela já morreu, tive um desgosto fatal nesse ano. Foi a primeira vez que me custou ter de fazer o meu trabalho, no dia a seguir à minha avó ter morrido. A minha avó foi uma influência grande. Não é uma influência como o Seinfeld. Era uma pessoa triste e até zangada com a vida, que não lhe foi nada simpática. Estavam no Brasil, as coisas iam começar a resultar, quando o meu avô morre, aos 30 e poucos anos. Fazer rir a minha avó era um desafio. Fazer rir as pessoas em geral é uma coisa que sempre admirei. A convulsão do rosto que a gargalhada provoca encanta-me. 

 

Fazer rir a tua avó era uma retribuição ao amor que ela te dava?

Se calhar sim.

 

A morte da tua avó foi a dor mais aguda? O teu percurso parece sempre muito poupado.

Sem dúvida nenhuma. A minha vida é uma sucessão de acasos de sorte. Tenho mesmo muita sorte. De facto, a morte da minha avó foi uma coisa que me deixou devastado naquela altura. Não era nada que não se esperasse, ela tinha oitenta e dois anos, estava doente há algum tempo.

 

Há quanto tempo foi isso?

Foi há dois anos.

 

Quando a tua avó morreu, há dois anos, já tinhas algum sucesso. Nada comparado com o que tens hoje... Ela achava graça a que escrevesses para o Herman?

Sim.

 

Ou achava mais graça a que admirasses o Mário de Carvalho?

Ela não fazia ideia de quem era o Mário de Carvalho. Mal sabia ler, sabia assinar o nome com dificuldade.

 

Há aquela história deliciosa de estares na RDP com o Herman, a acompanhá-lo na gravação dos textos, e ficares estarrecido ao saber que o Mário de Carvalho se encontrava lá...

O Mário de Carvalho estava a ser entrevistado, cheguei com o Herman e apercebi-me que estávamos a desalojar o Mário de Carvalho e a entrevistadora dele! O Mário de Carvalho saiu e eu disse: «Posso cumprimentá-lo?», e ele disse: «Sim, com certeza», (é uma pessoa muito cordata e simpática), eu disse: «Gosto muito dos seus livros», e ele disse: «Muito obrigado».

 

O que é que mais admiras no Mário de Carvalho?

É multifacetado. O «Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto» ou o «Deus passeando pela brisa da tarde» não têm nada a ver com os contos. Tem um domínio da língua camiliano ou aquiliniano, e tem um sentido de humor espantoso. A «Fantasia para dois coronéis e uma piscina» é muito engraçado. Aquilo que eu dizia há bocado de haver um preconceito contra o humor... Há alguns quadrantes emocionais que têm mais prestígio do ponto de vista literário do que outros. A angústia tem muito prestígio...

 

Um lado dostoievskiano?

Sim. Vejo até humoristas a fazer a rábula do humorista angustiado para a granjearem algum respeito. A alegria não tem grande prestígio, o riso não tem grande prestígio. Sobretudo, é junto de uma falsa intelectualidade que é assim. Mas as grandes obras da literatura mundial têm humor! O D. Quixote é muito engraçado, o elmo de mambrim que na verdade é uma bacia de barbeiro é engraçadíssimo. «A vida e as opiniões de Tristram Shandy», do Lawrence Stern (meu deus, isto vai ser uma coisa...). Mesmo entre nós, o Camilo, o Camilo Castelo Branco, evidentemente que não é o Camilo de Oliveira, tem páginas de rir à gargalhada. Mesmo o Eça, noutro registo. 

 

O Eça é sarcástico. «As Farpas» são uma risota pegada. E há uma maldade...

Com certeza, um dos gatilhos do humor pode ser a crueldade.

 

Também tenho uma citaçãozinha...

Salva-me disto, que é para não ser o único!

 

O Pascal dizia: «Beau mot, mauvais caractere». Nem sempre nos furtamos a uma exibição dessa palavra certeira, dessa crueldade, poupando o outro. O que é que tu poupas?

Há uma contradição entre o facto de ter necessidade de agradar às pessoas e o facto de, às vezes, não ter pejo em dizer uma coisa que seja mazinha. Já perdi muitos amigos e namoradas por causa de uma piada. E tenho consciência, na altura de a dizer, que é possível que aquilo não dê bom resultado... Não consigo controlar-me. Prefiro dizer a piada do que manter o amigo, a namorada, seja o que for. É evidente que com os amigos a sério isso nunca acontece. Não porque não diga piadas, mas porque as toleram bem. Mas isso da crueldade é uma das modalidades do humor, dizer uma coisa cruel sobre outra pessoa dá muita vontade de rir.

 

A impiedade.

Sim, a impiedade.

 

O que é que tu poupas? O que é que delimita um território sagrado para ti?

Não posso dizer que tenha poupado nada nem ninguém. Mesmo no meu grupo de amigos, dizemos tudo como os malucos. Sempre que nos fazem perguntas sobre o Gato Fedorento, nunca vem à baila a pergunta «Como é que vocês aguentam trabalhar os quatro juntos, durante meses e meses a fio?». São quatro personalidades diferentes, quatro egos a chocar. Um dos segredos daquilo é dizermos tudo uns aos outros. Não há nenhum defeito que tenhamos escondido aos outros.

 

Há uma certa amoralidade na vossa relação?

Não considero que isto seja amoral,. O Luiz Pacheco faz isso. Tu lês o Luiz Pacheco e pensas: «Gostava de ter este gajo como amigo». Muito embora ele diga: «Você não percebe nada do que está a fazer», «O que escreveste é uma merda». Isso não é ser amoral, isto obedece a um princípio moral muitíssimo válido, que é: «Digo aquilo que penso». Às vezes, lês o Lobo Antunes e percebes que está a dizer uma coisa mazinha, não porque pensa aquilo, mas porque quer obter algum efeito com aquilo. Quando lês o Luiz Pacheco, não há nenhum interesse obscuro no que está a fazer, ele pensa aquilo, de facto.

 

Conta lá do teu encontro com o Pacheco.

Foi espantoso. Foi na altura em que trabalhava no JL. [RAP fez uma entrevista a LP]

 

Recapitulando, acabas o curso de Comunicação Social na Católica e segues directamente para o Jornal de Letras.

Havia um estágio de licenciatura e pensei que o único sítio onde me via a trabalhar como jornalista era aquele. Mais nenhum escolheu o JL, evidentemente! 

 

O Rodrigues da Silva tomou-te como delfim, e o José Carlos Vasconcelos.

Foi mais o Zé Carlos Vasconcelos. Até era embaraçoso porque o tipo era excessivamente simpático. Ainda hoje vou lá ver os meus amigos e sou recebido como uma efusividade que não mereço. Diverti-me como nunca, com a Maria Leonor Nunes, jornalista, o Miguel Eduardo Serrano, responsável pela parte gráfica do jornal, genial, irascível, nos dias de fecho começava a ficar enervado e a dizer obscenidades...

 

Vocês, os Gatos, dizem imensas! As pessoas chamam-vos Gatos?

Isso é um bocado maricas.

 

Os Fedorentos?

Exacto. É muito mais masculino.

 

Se um dos Fedorentos fosse gay, e uma vez que estão sempre a gozar com os “rotos” (para usar a vossa designação), seria tolerável?

Claro. É evidente que todos os dias a gente havia de fazer referência a isso, assim como todos os dias a gente faz referência ao facto de o Zé Diogo ser obeso. Não creio que o nosso humor seja homofóbico.

 

Como é que tu lidas com o assédio gay?

Não estava nada à espera dessa pergunta.

 

Não direi que és um ícone gay, mas há assim uns mancebos de quem os gays gostam especialmente. Como é que lidas com isso?

Exacerbas o lado homofóbico? Não, não. Até porque não tenho nenhum lado homofóbico. Tento não ter. Somos educados num meio que nos leva a rejeitar os comportamentos desviantes da norma. Não quero dizer da normalidade, quero dizer da norma, daquilo que é usual e não daquilo que é normal. Normais somos todos. Tento reagir da mesma maneira que reajo ao assédio feminino.

 

Give me a break.

Palavra de honra. Desde muito cedo que me habituei. Tenho familiares que são homossexuais, toda a gente tem, acho que agora com a União Europeia é obrigatório. Os meus pais tinham imensos amigos que eram homossexuais com os quais me dava maravilhosamente.

 

Agora toda a gente descobriu que tem um familiar gay. Há dez anos não era assim.

Toda a gente sempre teve familares gay, só que não sabia. Agora chegámos a um ponto em que as pessoas podem assumir. Ainda bem. Como é que reajo? Pensei que a maneira correcta era reagir de igual modo, tratando as pessoas de igual modo. Era a coisa de esquerda a fazer.

 

A tua mulher foi a única namorada séria. Tens uma vida muito certinha.

Muitíssimo. Isso ajudou-me. Como te disse tenho muita sorte, sempre muita sorte. As coisas vêm ter comigo sem que eu perceba como.

 

Perdeste o lado romanesco do Herman, que chegou a fazer espectáculos nas feiras, a receber cem contos em notas pequenas, soltas em sacos de plástico.

Com certeza. Eu trabalho, e trabalho muito. Tento todos os dias fazer melhor, aprender. O que está ao meu alcance é ler e estudar a maneira como as coisas estão escritas, fazer o mesmo com os textos humorísticos. Há um ensaio do Mark Twain chamado «How to tell a story»; a gente lê aquilo e percebe que é «How to tell a humor story». Faz a distinção entre o que é uma coisa parecida com o stand up e uma coisa parecida com a anedota. Uma história humorística não é uma anedota, no sentido em que uma anedota tem um enunciado normalmente longo e uma punchline no final_ só achas piada ao final. Uma história humorística tem graça à medida que a vais contado.

 

As tuas referências humorísticas são os  Monty Pyton, Woody Allen ou Seinfeld, mais do que os Irmãos Marx, Buster Keaton ou Chaplin. Estabeleci a diferença a partir do recurso à palavra.

De facto, não me interessa fazer humor físico, não sei fazer, não o desenvolvi. Interessa-me sempre mais o texto. A nós, aos quatro tipos que fazemos o Gato Fedorento, interessa sempre o texto. A gente diverte-se muito quando está a escrever, essa é a parte a que dedicamos mais tempo.

 

Escrevem rápido? No essencial, como é que funcionam?

Escrevemos 150 sketchs naqueles seis meses. Foi uma coisa dolorosa porque optámos por não repetir personagens, são 150 conceitos diferentes. Normalmente temos uma reunião de brainstorming, que é fundamental; depois, o que teve a ideia original ou a maior parte das ideias para aquele sketch, vai para casa, escreve e remete para os outros por e-mail, que ainda dão uns retoques.

 

Agrada-te mais o lado do escritor do que o do actor?

Nem sequer é uma questão de agradar. Eu não sou actor, não tenho nenhuma formação nessa área. Isto de eu estar a interpretar os meus próprios textos é uma coisa passageira, um acidente. Não me vejo a interpretar textos de outras pessoas. Se tivesse 40 anos provavelmente não estaria a fazer isto. Nesta fase é engraçado, estou com os meus amigos, é uma espécie de hobby divertido.

 

Uma entidade bancária convidou-te para fazer um dos sketchs mais famosos do Gato Fedorento. Isto revela, entre outras coisas, que tu és o elemento preponderante...

Dos quatro, eu tinha sido o que tinha ido mais vezes ao Levanta-te e Ri, e isso deu-me alguma visibilidade. E do ponto de vista da representação, tenho um pouco mais de facilidade do que eles, sou mais palhaço.

 

Embaraça-te estar ao lado de um Fernando Rocha, no «Levanta-te e Ri»? Aquele não é o tipo de humor que te interessa?

Não me embaraça, não é por isso que deixo de ir ao «Levanta-te e Ri». O Rocha descobriu intuitivamente que contar uma anedota em que o enunciado dura dois minutos e depois rematá-lo com uma punchline, não funciona. É por isso que o Rocha, através dos palavrões, a linguajar, vai metendo punchlines...

 

Há sobretudo um tom mais alarve no qual não te revês, não praticas e que não goza de boa fama. Interessa-te uma certa caução cultural, e por isso participas em projectos como o «É a cultura, estúpido!» [sessões mensais no teatro S. Luiz à volta dos livros].

Nunca fui fazer ao «Levanta-te e Ri» nada de que me envergonhasse. Fui fazer os meus textos, que acho que são bons textos sem facilitar. Cheguei a fazer piadas sobre «Os Maias» no «Levanta-te e Ri». Que ainda por cima resultaram. Recuso que, por osmose, seja contaminado por uma coisa mais aviltante. Nunca me passou pela cabeça que, o facto de ir ao «Levanta-te e Ri» e fazer a publicidade, ia causar anticorpos nesse lado mais cultural de que falas. Lá fora, a publicidade é vista como outro trabalho qualquer. O Woody Allen faz publicidade a uma companhia de telefones italiana, fala ao telefone com o seu psiquiatra em Manhatan, e não é por isso que as pessoas dizem «O Woody Allen...»

 

É um vendido.

Estou a vender-me desde o dia em que comecei a trabalhar. Vendo a minha imaginação e a minha capacidade de trabalho todos os dias. Há um caso específico: a pessoa que me acusou de me ter vendido à instituição de crédito que referiste, trouxe à baila as minhas convicções de esquerda. Por que é que quando comecei o meu programa na Sic Radical, as pessoas não disseram: «Este gajo vendeu-se ao Francisco Pinto Balsemão», que é o militante número um e fundador do PSD? A pessoa que diz isso, não está a dizer «Puta», está a dizer «Puta cara», é isso que faz confusão. Toda a gente sabe que a Sic Radical me paga muito abaixo daquilo que é aceitável, até para uma televisão por cabo.

 

Ganhas mais a escrever textos para o Herman.

Muitíssimo mais, do que a escrever a interpretar um programa na Sic Radical. Não tenho que sentir nenhum embaraço por finalmente ter ganho algum dinheiro com o Gato Fedorento.

 

Comenta-se que este mesmo colectivo era responsável pelo blog O Meu Pipi. Dá-se a coincidência de o Pipi ter saído de circulação quando apareceu o Gato Fedorento.

Veio uma informação parecida com essa, até publicada num suplemento que certamente conheces...[Dna] [risos] Os jornalistas guardam para o fim esta pergunta, «Queria fazer uma última pergunta», e eu digo sempre: «Não sou eu, não sou eu, vá para casa descansado». O boato surge aqui mesmo nas Produções Fictícias – por causa de ser muito asneirento. Não posso dizer mais nada para além disso, não consigo provar que não sou eu. Não se consegue provar que não se tem, como é o caso das armas de destruição maciça. É mais fácil provar-se que se tem ou que se é.

 

Os temas preferenciais para o humor são o sexo, a religião, o poder?

Na minha opinião, os temas para o humor são todos. Historicamente, são mais esses, a autoridade, a religião, o sagrado, a morte.

 

Trata-se de revelar o centro da terra, de modo impúdico?

Acho que sim. Boa parte resulta do facto de se tirar a máscara, de mostrar o que está por trás, desconstruir uma construção que é social. As pessoas importantes são importantes porque se convencionou que são importantes.

 

Mas também fazem cocó.

Justamente. Esse estilhaçar das regras que puseram essas pessoas num pedestal, é muito característico do humor. Quando se faz uma crítica a alguém, a reacção é uma; quando, além de criticar, consegues fazer rir as pessoas, aquilo é mais duro, é mais feroz.

 

Tu és um animal feroz.

Não sou.

 

Ser ridicularizado dói. Consegues fazer esse exercício impiedoso sobre ti? Estilhaçar-te a ti?

É impossível ter sentido de humor se não se fizer esse trabalho primeiro e constantemente. Muitas vezes me perguntam por que é que não há mulheres a escrever textos humorísticos.

 

Se há, são normalmente gordas e feias. As mulheres têm uma noção de pudor, em grande parte físico, mais apurada do que os homens. É mais fácil quando são feias.

Muito bem. Não tinha visto as coisas nessa perspectiva.

 

Não têm nada a perder… Sabes aquela velha da Marylin, «Eles gostam de mim porque sou gira ou porque gostam de mim?» As feias e gordas estão no «Gostam de mim e acham-me graça, e não é pelos meus lindos olhos».

Acho que não há muitas mulheres na comédia e a escrever textos humorísticos porque as mulheres têm de se levar muito mais a sério do que os homens, no sentido em que têm de ser melhores para conseguir o mesmo. Uma pessoa que se leva muito sério, normalmente, não tem o sentido de humor assim tão apurado.

 

A tua mulher acha-te graça?

Conheço-a há doze anos e torna-se bastante difícil que ela me ache piada... É evidente que me acha graça, chegou a ir ver os espectáculos do Tivoli e riu-se em todos. Mas muitas vezes é doloroso estar a experimentar texto com ela, porque eu digo-lhe qualquer coisa e ela «Hmmm, hmmm, isso é giro, é giro»... Já tive que ir buscar um livro do Dave Berry, (que é um americano extraordinário, contemporâneo nosso, que ganhou um prémio Pulitzer em 88 por comentário humorístico), li-lhe alguns dos parágrafos mais engraçados para ver a reacção dela. E ela não achava graça na mesma. Portanto, o problema não é meu! Era embaraçoso, eu queria testar coisas que ia dizer...

 

Podes ser inseguro? Testar mesmo com a tua mulher e outras pessoas, pensando será que isto tem graça ou que não tem graça?

Sim. Eu acho que, se não fosse inseguro, não conseguia um nível de qualidade mínimo nos meus textos. Sou muitíssimo inseguro. Sem as pessoas perceberem eu tento testar aquilo em que estou a trabalhar. O sucesso do Gato Fedorento foi uma coisa que ultrapassou a todos. A repercussão pública daquilo, ser de tal modo que, como disseste, haja interesse da parte da publicidade em capitalizar aquele sucesso, significa que o programa extravasou em muito as fronteiras da Sic Radical, que é um canal de cabo que tem dez mil espectadores. De uma maneira ou de outra, provavelmente através da Internet e da troca de e-mails com os sketchs, a popularidade do programa cresceu exponencialmente. Nós tínhamos consciência absoluta do sucesso que os sketchs faziam junto das pessoas e escolhemos para o espectáculo ao vivo aqueles de que gostávamos mais, mas também (e muitas vezes coincide) aqueles de que as pessoas nos falam quando nos abordam na rua. O sucesso do espectáculo estava garantido. Nas semanas que antecederam o espectáculo, ensaiamos aquilo várias vezes e eu dizia «isto não tem graça nenhuma». Essa insegurança para nós foi fundamental porque nos levou a ensaiar mais ainda, a acrescentar coisas, a programar as coisas para que nada fosse deixado ao acaso. As entradas e saídas foram muito complicadas porque nós somos quatro, eram vinte e um sketchs, cada um entra para aí em quinze, e nada foi deixado ao acaso, justamente motivado pelo receio de falharmos redondamente. Esse receio de falhar parece-me uma coisa muito produtiva. Pelo menos para mim é.

 

Se tu estilhaçasses a tua vida, se tentasses pensar a tua vida, o quadro podia ser: o rapaz mais alto que a média, mais esperto que a média, filho único, boas famílias, com a contradição de perfilhar ideias comunistas de pôr as canções do Fanha...

Não é do Fanha, é do Padre Fanhais. «Vemos, ouvimos e lemos...».

 

E depois tens uma casa com piscina, guias um BMW.

Alto.

 

Casas com a namorada de sempre. És muito certinho, tens trinta anos, coisa assim, e vais a caminho do segundo filho. Há todo um quadro social muito instaladinho...

Sim.

 

É como se fosse uma «belle de jour», uma vida de dia e uma vida de noite. Mas tudo isto verdade?

Sim, sim.

 

O gozo da vantagem de te conhecer há algum tempo, se alguns destes elementos não forem conhecidos e não quiseres que sejam conhecidos...

Provavelmente a maior parte deles não é conhecida. Mas compreendo o interesse jornalístico da pergunta.

 

Como é que se espatifa isto?

Mas queres que eu espatife isso?

 

Sim, quero ver até onde é que consegues fazer humor sobre.

Eu não tenho problema com essas contradições, muitas das quais nem sequer creio que sejam contradições. Já lá irei. Aquilo que ponho em causa de mim próprio, são coisas que provavelmente entram nos textos mesmo e nos textos humorísticos que escrevo. Quando eu estou a desempenhar um papel de um palerma, aquele palerma que ali está também sou eu. E aquilo resulta tão melhor quanto mais palerma eu for na vida real. Provavelmente as minhas personagens matarruanas são do matarruano que eu sou, são do tipo do Minho, de Viana do Castelo e Paredes de Coura, que cresceu juntamente com aquelas pessoas e sabe o que é arroz de sarrabulho e arroz de cabidela.


E sabe o que é uma sachola.

E sabe o que é uma sachola. Eu sou um matarruano, sou um palerma, e não tenho vergonha de pôr isso cá para fora e de usar essas minhas facetas para as trabalhar. Isso tem vindo muito à baila por causa do anúncio e coisas afins: eu disse sempre que era comunista e mantenho, muito embora neste momento não seja já filiado no PCP; mas nunca disse que era um frade franciscano. Uma coisa que ninguém me pode apontar é ter gostos extravagantes ou dar-me a luxos bizarros, mas não nego que gosto de ter dinheiro, de ir à Fnac e comprar os livros que me apetece e de, de vez em quando, estar cansado e ir uma semana de férias para o sítio que me apetecer. Não tenho vergonha disso, desses comportamentos burgueses como tu os qualificaste. O que eu digo é: o dinheiro faz falta, não tenho nada contra o dinheiro, antes pelo contrário. É justamente por isso que eu gostava de o ver mais bem distribuído. Não corresponde bem à realidade apenas porque eu vivo uma vida desafogada, sem dúvida nenhuma, mas estou muito longe de ser rico.

 

Não estou a dizer que a questão do dinheiro é crucial para ti como parece ser para o Herman, insisto nesta questão: daqui a vinte anos, tanto quanto consegues perceber, é mais provável que sejas um Herman ou um Mário de Carvalho. As tuas ambições são mais literárias do que humorísticas, ou não?

Sim, sem dúvida nenhuma. Aliás, não tenho grandes ambições humorísticas, sempre que me vejo a projectar o futuro, aquilo que me vejo a ter feito no futuro tem sempre mais a ver com a escrita do que com outra coisa qualquer. É por isso que eu digo, isto do «Gato Fedorento», o que está a acontecer agora, dura mais seis meses, talvez a gente faça mais uma série de programas, talvez façamos mais uma outra coisa qualquer, não sei exactamente o quê, mas a minha profissão não vai ser ser artista do mundo do espectáculo. Não é isso que eu sou. Às vezes sou chamado para reuniões em que me fazem propostas como fazer umas rábula humorística num novo programa de uma televisão generalista. Chamam-me até de outros canais que não a SIC e perguntam-me se estou interessado em fazer uma rábula humorística num programa de horário nobre na televisão generalista. A sensação que eu tenho quando as pessoas estão a falar comigo é que não estão a falar comigo, mas com outra pessoa, a pessoa com quem acham que estão a falar e que, claramente, não sou eu.

 

É a imagem pública?

Se calhar é isso. Não sei exactamente o que é, mas claramente não sou eu.

 

Mas tu tens núcleo e consegues preservar bem isso, o núcleo, a tua essência, ou já estás disseminado nesse personagem público nessas coisas todas que fazes.

Essa é uma pergunta interessante. Se calhar é uma mistura das duas. Todos os convites eu recuso. Tive imensos convites para fazer publicidade antes deste e ia recusando, aceitei este porque... do ponto vista artístico e criativo havia...

 

That means money?

Sim. Do ponto de vista artístico e criativo havia uma proposta que me agradou imenso como artista, que é o facto de me pagarem um balúrdio. Normalmente, as pessoas tendem sempre a dizer «não, eu fiz o anúncio porque artisticamente era engraçado».

 

«É porque é um detergente e eu fui passar uma semana lá fora e vi como aquilo lavava bem a roupa».

É isso. Não vou fazer essa rábula. Mas é evidente que não me apeteceria fazer um anúncio a dizer: «compre este champô, é mesmo bom». Enquanto este que implica que eu faça um sketch que é uma coisa que eu sei fazer, que eu domino, também pesou. Esse tipo de propostas eu recuso porque sei que não sou aquela pessoa. Por muito vantajoso que isso fosse do ponto de vista financeiro. Seria mais vantajoso para mim estar a fazer um rábula humorística num programa de grande audiência numa televisão generalista do que estar a fazer, por pura carolice, com os meus amigos, um programa sem meios nenhuns, em que os bigodes somos nós que compramos e a roupa somos nós que levamos às costas, na Sic Radical. O núcleo existe, eu sei recusar fazer isso. Até porque não saberia fazer isso, as pessoas que vêm falar comigo não fazem ideia, mas eu não sei fazer isso. Sei aquilo que sou, já não é mau. Pelo menos tenho uma ideia. Mas esse núcleo é um núcleo muito pouco ortodoxo porque não é vulgar um tipo que gosta de escrever ou que projecta escrever ao mesmo tempo ter um lado mais histriónico de interpretar os próprios textos, não é muito frequente.

 

Tu és muito esquivo. Não consigo perceber se te esquivas realmente ou se não encontrar esse lado que é o núcleo que tem que ver com dor e com vergonha e com aquilo que é íntimo e que não se quer expor.

Parece que sou o Álvaro Cunhal, que estou a responder às tuas perguntas tipo: «é interessante que me faça essa pergunta, mas antes note...». É evidente que não vou aqui despejar as minhas angústias e mágoas para a comunicação social, para toda a gente ir lá ler. Estou a ser o mais honesto que consigo. O que é que estavas à espera que eu te dissesse.

 

Estava só a perceber que há algumas zonas que são impenetráveis e não sei se são impenetráveis para a comunicação social ou para todos. E para todos é toda a gente mesmo.

Mas referes-te a que zonas? Achas que não respondi a alguma pergunta...

 

Não, respondeste muito bem, foste muito competente nas tuas respostas. Este «todos» quer dizer zonas impenetráveis para qualquer pessoa. Até para a tua mulher ou para os teus pais. Significa que tu tens partes tuas que são mesmo impenetráveis.

Suponho que sim. Supunha eu que as outras pessoas fossem iguais. Quando tu te habituas a estar sozinho, que é o caso de um filho único, eu fiquei muito em casa da minha avó, depois fiquei bastantes vezes sozinho em casa, enquanto as outras pessoas têm irmãos e isso provavelmente estimula alguma coisa... uma pessoa aprende a fechar-se sobre si próprio.

 

E a observar?

Sim, observar, com certeza. Eu sei estar sozinho, não me custa nada estar sozinho, sempre passei largos períodos sozinho. Provavelmente a leitura também vem daí. E mesmo a escrita, não são propriamente actividades colectivas, são coisas que se desenvolvem solitariamente. É natural que haja partes... toda a gente tem coisas que não quer... o Luiz Pacheco, eu acho aquilo admirável, tu viste esta última entrevista dele, ele diz «agora estou incontinente, no primeiro mês ou dois aquilo chateou-me a sério, agora olha, já estou habituado». Ele diz tudo. Mesmo outras coisas que ele não tem pudor de dizer, o facto de os filhos não chorarem quando ele morrer, coisas desse tipo, mesmo coisas que são ditas com um embrulho humorístico e leve. A questão dos filhos tocou-me bastante por causa da minha filha, eu sei o que é isso porque custar-me-ia muito ter uma relação distante com a minha filha. A relação do Pacheco com os filhos, pelo menos com alguns deles, com o Paulocas é mais próxima, mas com os outros é mais distante. É muito engraçado porque ele distingue os filhos pelos números, quando eu fui lá fazer a entrevista, ele apontou para as fotografias e disse «este é o um, este é o dois, este é o três», depois há um muito engraçado que é o sete e meio, ele disse «não tenho bem a certeza de ter sido eu».

 

Então isto é a punchline?

Eh pá, tu é que sabes.

 

Às vezes há assim um final épico...

É, não é? Eu acho que isso é aldrabice dos jornalistas, eles devem guardar a melhor resposta para o final.

 

Não, não é. Depende dos jornalistas...

Também depende do entrevistado. Se eu fosse um gajo como deve de ser, já tinha trazido de casa uma coisa para acabar, apercebia-me que era agora o fim e dizia «de maneiras que...»

 

Para a posteridade, o que tem que ficar é esta.

E tu punhas como título.

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2004

 

 

Maria Filomena Mónica

16.06.14

Maria Filomena Mónica nasceu em Lisboa em 43. Estudou Filosofia ao mesmo tempo que comprava sabonetes no Martim Moniz. Doutorou-se em Oxford ao mesmo tempo que ardia na culpa de se ter separado com filhos pequenos. Falhou o projecto burguês que lhe haviam destinado. Desconfia do acento queque da sua voz. Na infância fugiu de colégios e inventou que via Nossa Senhora. Na adolescência leu desde fotonovelas a Camus e namorou uns quantos rapazes. Na idade adulta maçou-a que o sexo interferisse nas relações com os homens; casou a primeira vez novinha, e depois com Vasco Pulido Valente e com António Barreto. Investigou mormente o século XIX português. Apaixonou-se por Eça, e verteu, como este, um amor revoltado pela pátria em prosas aciduladas. Fez da educação questão central do seu estudo por acreditar no mundo que se pode abrir a partir da escola. Fala também da presença salvífica dos livros na sua vida. Destilou ironia em incontáveis crónicas de jornal, envolveu-se, envolve-se em disputas públicas permanentes. É historiadora e socióloga. Tem três netos. Pulsa entre um sorriso luminoso e uma dureza dos músculos da cara.   

 

 

Quando teve pela primeira vez consciência de si enquanto mulher? Quando é que percebeu que o género a marcava e condicionava?

A primeira vez foi quando vi que cresciam umas coisas aqui no peito, que se chamavam maminhas. E reagi negativamente. Comecei a usar blusas muito apertadas por debaixo da camisola. A minha mãe queria que eu fosse rapaz. Só sei agora porque ela está muito doente, tem Alzheimer, e deu-me o Livro do Bebé. Escreve logo na primeira linha: «Eu gostava que ela tivesse sido um rapaz».

 

Chocou-a?

Não me admira. Acho que, como é uma mulher muito frustrada, ela própria gostaria de ter sido homem. Sei que achei uma maçada ter maminhas. Ainda hoje acho que o corpo feminino é uma maçada.

 

Uma maçada como?

Tem-se mais chatices que os homens. O útero é dentro, as coisas são todas dentro. As hormonas são uma maçada, a menstruação é uma maçada. A parte positiva foi ao mesmo tempo reparar que era mulher e reparar que era bonita – através dos olhos dos rapazes. Estava nas Doroteias e havia imensos miúdos dos Maristas que iam esperar-nos de moto. Sentia que havia mais rapazes junto de mim, a olhar para mim do que para as outras raparigas. Eu não tinha irmãos…

 

Quantas raparigas são?

Somos três raparigas e um rapaz. Mas o rapaz e a última rapariga são 11 anos mais novos. Para todos os efeitos era eu e a minha irmã, que tem um ano a menos, e que era muito calma, pouco espevitada, etc. A minha primeira reacção foi também de medo, foi sentir que ser mulher era uma coisa perigosa, apetecível para o sexo oposto.

 

Quando tem a consciência de que é objecto de desejo tem simultaneamente a consciência de que isso representa poder erótico?

Não logo. Vivia num gineceu. O meu pai estava muito pouco presente. A minha mãe era muito forte. Lá em casa só havia mulheres. O homem era um bicho estranho que metia medo. Até aos 15 anos não queria ir a festas. Depois, entre os 15 e os 20, tudo isto muda. Fui – se possível – a um milhão de festas!, tive dezenas de namorados, fui objecto de desejos fortíssimos, tive relações amorosas complicadas.

 

Era muito segura de si, entre os 15 e os 20?

Acho que sou insegura. O facto de ter tido uma mãe tão forte tornou-me insatisfeita sempre com o que faço. Nunca está à altura do que ela esperaria de mim. Naquela altura muito mais. Se calhar, quando me via ao espelho, achava que não era feia. Mas isso não me trazia necessariamente segurança. Achava que era burra ou…

 

A sua mãe era muito inteligente?

Era. Excepcionalmente até esteve na Faculdade de Letras. Mas logo que casou deixou. Canalizou a inteligência/actividade para organizações católicas, foi muito importante no Movimento de Acção Católica. Ao contrário do meu pai, que também era inteligente, mas passivo e doce e que interferia pouco na nossa educação, ela era ambiciosa para nós e muito exigente. No meu caso, fez com que me transformasse numa rebelde. Ou seja, nunca vou ser como ela, vou ser ao contrário do que quer que eu seja.

 

O que é que ela esperava de si?

Que fosse muito boa mãe, que casasse com um marido socialmente de uma classe elevada, rico, com uma profissão glamorosa; que eu fosse inteligente, que toda a gente me admirasse, que fosse todos os dias ao cabeleireiro, que andasse sempre muito bem vestida – dava imensa importância à indumentária. Queria coisas que vim a verificar que não podiam ser conciliadas. Eu não podia ser a dona de casa que ela queria e frequentar a faculdade e doutorar-me. Teria que optar.

 

Teve um primeiro casamento muito cedo. Estava a ensaiar um desses modelos de vida? Optou depois por um outro, antítese do primeiro?

Prefiro não falar das razões que me levaram a casar, porque são demasiado íntimas. Mas casei por acaso.

 

Percebo que não queira falar. Mas... as pessoas casam por amor, por conveniência, qualquer uma dessas. “Por acaso” é mais enigmático.

Como lhe disse, tinha muitas namoradas…Namorados! Ai, não tenho nada uma costela lésbica. Entrei numa série de desvarios afectivos perigosos; a certa altura perceberam que se ficasse em Lisboa tais eram os escândalos, os disparates… Não quiseram necessariamente que fosse para a faculdade, eu é que não tinha nada que fazer. «Vou para um curso de decoração como a minha irmã? Não me apetece ficar em casa a coser e a aprender a cozinhar». E fui para a faculdade. E depois, disse: «Vou sair de casa».

 

O que é que realmente suscitou a saída de casa?

Tinha um namoro muito atribulado e deixaram-me ir para Londres em 1962. Foi determinante na minha evolução. Passei de uma clausura total – até aos 15 anos ia para o colégio com uma criada, e o colégio era em frente da minha casa – e de repente fui com uma amiga para Londres! Só quando lá cheguei é que percebi que ela me tinha deixado ir porque ia para outro colégio de freiras!, ainda mais extraordinárias chamadas Escravas de Maria, de onde não podia sair, mas de onde fui rapidamente expulsa. Estive em Londres cerca de 10 meses. Segui directamente para Espanha, para a casa de uma família muito rica. Em Outubro vim para Portugal e casei em Abril. Foi um namoro muito rápido que me conduziu por vias complicadas ao casamento.

 

Nessa altura tinha já ódio ao catolicismo?

Não! Eu não tenho ódio… Tenho indiferença.

 

A relação parece demasiado acicatada para traduzir indiferença.

A minha relação com a minha mãe é muito complexa e o facto de ela ser católica entra nessa complexidade. A relação com o catolicismo era mecânica. Embora tenha estado 14 anos num colégio de freiras, nada nos era explicado sobre a teologia ou os dogmas do catolicismo. Se a religião influísse na minha vida, seria virgem e casta; se a religião influísse na vida dos católicos, eles teriam que se preocupar com a pobreza gritante que havia em Portugal, e não se preocupavam.

 

Como olha para muitos católicos que se reaproximaram da igreja, que se reconverteram?

Não tenho medo de voltar. Nunca me comportei como se Deus fosse um princípio orientador da minha vida. Não tive um período místico a sério, a não ser aos 8 anos quando dizia que via a Nossa Senhora, mas isso era para me exibir perante as colegas. Quando me perguntam se sou agnóstica ou ateia, até hesito em responder. Não gosto do laicismo militante dos que acham que os católicos são uns atrasados mentais e que os padres deviam ser todos expulsos... Sou agnóstica no sentido em que o tema deixou de fazer parte da minha vida.

 

Porque é que era exibicionista? Nesse ambiente de clausura, que tipo de criança era?

Sempre fui bastante egocêntrica. Relativamente mimada por ser a mais velha e por ser o alvo das atenções, mesmo das negativas, da minha mãe. Ela sabia que era difícil dominar-me desde muito pequena. Tanto que entrei para o colégio aos três, fugi várias vezes, ia sendo atropelada...

 

Era tão arisca porquê?

Não gostava de obedecer a ordens. Ela também assentou no livro: «A primeira palavra que disse foi “Não”». Na turma, (eram aí umas 15 meninas), queria dominar todas as outras e reproduzir o modelo que tinha em casa – que era o de dominar a minha irmã mais nova, que ficou mais baixa que eu até aos 17 anos; depois, quando se casou, cresceu. Eu não a deixava crescer, mesmo fisicamente.

 

A sério?

É um facto. Ela casou com um irmão do meu primeiro marido. Posso ser muitíssimo opressiva, centralizadora e intervir na vida dos outros. É um dos meus defeitos. Na escola primária, queria ser a amiga de todas. Mandava-as escrever papelinhos: «Quem é a tua melhor amiga?». Tinham todas que escrever o meu nome em primeiro lugar! Foi nessa fase que descobri – maçava-me no terço e a rezar – que era a eleita de Deus. Nesse sentido, podia ver milagres! As freiras chamavam a minha mãe, assustadíssimas.

 

Mas isso era entre si e si ou entre si e a sua mãe?

Era entre mim e as meninas, em primeiro lugar. Saía da capela com ar iluminado a dizer: «Vi a Nossa Senhora». Elas, coitadas, não viam e achavam que eu era um ser místico. Era um exibicionismo perante as colegas, as freiras. Aí não entrava muito a minha mãe. Estava sempre à beira da expulsão, mas a mãe ia falar com o bispo e dizia: «Deixem-na lá ficar que ela é meio atontada, mas precisa de uma rédea curta e que tomem conta dela».

 

Ou seja, sabia que não constituía problema ser expulsa. Mas, insisto: não era uma tentativa de impressionar a sua mãe? Até onde é que tinha consciência de todo esse processo?

Acreditava mesmo que via a Nossa Senhora. Sabia que mesmo que fosse expulsa era reintegrada. Isso dava-me uma enorme margem para me portar mal ou de forma exótica. O que me fascinava era que as outras meninas me punham num pedestal, e gostava de estar num pedestal.

 

Como é que lidava com a resistência e a contrariedade?

Não tive muitas adversidades. Foi uma infância relativamente feliz. Ninguém morreu que estivesse perto. Havia dinheiro, tínhamos duas criadas, era uma família burguesa típica. O meu pai arruinou-se, mais ou menos na altura do meu casamento, e aí foi muito trágico para os meus irmãos mais novos. O momento problemático foi a adolescência, os 17, 18 anos. Em que deixei de ser católica, em que descobri o sexo, em que as relações amorosas se tornaram muito importantes na minha vida. Tive de começar a trabalhar muito cedo, aos 18. O meu marido estava na tropa e era cabo, não ganhava o suficiente. Tive duas crianças em sucessão no mesmo ano.

 

Porque é que teve filhos?

Também é muito íntimo. A pílula só foi descoberta em 1964. Tive os filhos em 63. A partir de então, passei a tomar duas pílulas todos os dias, não fosse o diabo tecê-las. O médico fartou-se de me dizer que isto não tem pés nem cabeça. Está bem, está bem... Durante 10 ou 15 anos tomei sempre duas. Devo ter sido das primeiras mulheres em Portugal a tomar a pílula.

 

Havia resquícios do projecto burguês? Quis ser a boa mãe, a fada do lar?

Imensos resquícios. Fui casada sete anos. Até ao quinto ano do matrimónio, quis fazer tudo. Copiava receitas da Elle em francês. Ia à drogaria comprar coisas com a minha mãe, que tinha a mania dos saldos. Em vez de estudar filosofia, perdia o tempo a comprar Tide e sabonetes a uma loja no Martim Moniz para poupar dez tostões! Três meses antes de nascer o meu filho arranjei um emprego como intérprete no Ministério da Saúde, onde ganhava bastante bem. Ter começado a trabalhar e sentir que a situação era injusta para mim dentro do casamento, começou a distanciar-me do modelo da minha mãe…. Foi uma coisa gradual. Mas percebi que haveria um momento em que aquilo ia estoirar. O papel social que me era imposto era incompatível com aquilo que desejava da vida.

 

Aborrecia-se de morte nessa altura?

Aborrecia-me de morte. Íamos muito a boites, dançar, e aquilo começou a cansar-me também, a desinteressar-me. Um dos meus refúgios era a leitura. Entre os 14 e os 18 anos li imenso. A minha mãe, de resto, também. Alguns livros ela dava-me, outros, mais ou menos proibidos, ia buscar à estante.

 

Lia o quê? Flaubert?

Não, não. Li desde as fotonovelas que as costureiras levavam lá para casa ao Gide ou ao Camus… Lia tudo. Isso continuou um bocado durante o casamento. Não tinha absolutamente nada que fazer. Trabalhava das 9 às 5 todos os dias, para, coisa patética, escrever uma carta por semana para a Organização Mundial de Sáude, em francês! Chegava a casa, tratava das crianças vagamente (apesar de tudo tinha empregada) e aborrecia-me. Lia e continuava o curso por desfastio. Quando acabei o curso em 68 ou 69, disse: «E agora, o que vai ser de mim?» Separei-me e fui para Oxford. Foi a grande viragem.

 

Até então, o que é que interferiu realmente no curso da sua vida? Que factores foram determinantes para a mudança?

Foi a percepção de que não tinha que aceitar o destino que me tinha sido reservado. E isso foi mesmo adquirido nos livros. Há uma frase nas «Ligações Perigosas» em que a Madame de Merteuil diz: «Eu sou a minha própria obra». Tinha coisas muito dolorosas. Era a primeira separação na família dele e na minha. Mas há momentos na vida em que uma pessoa não tem que decidir. Eu sabia que morria. Se continuasse naquela vida morria asfixiada.

 

Que claustrofobia era a sua?

Havia a Rua Rodrigo da Fonseca e a Rua da Artilharia 1, esse era o meu mundo. Mas desconfiava que havia outras coisas. Não foi uma decisão. Fui empurrada. Estava sem ar e de repente abri uma janela e veio um vendaval e levou-me.

 

Quando é que aconteceu pela primeira vez respeitar e admirar um homem?

Tenho muita dificuldade em usar esses termos. A distinção principal era entre paixão e amor. A minha tendência natural era para me apaixonar por quem me tratasse o pior possível. Qualquer idiota que me desse um pontapé, ficava logo apaixonada. Não era uma grande receita para a felicidade.

 

É inesperado descobrir em si uma costela masoquista.

A paixão era o elemento negativo, no sentido clássico em que os gregos usam o termo paixão – quer dizer: sofrimento. Foi isso que busquei até aos meus 30 anos. Era uma coisa destrutiva e aleatória. E não é muito difícil maltratar uma pessoa, não exige qualidades transcendentes.

 

Mas qualquer pessoa podia maltratá-la?

Qualquer pessoa que me maltratasse suscitava logo a minha curiosidade, porque eu era objecto de enorme adulação.

 

Por isso é que lhe perguntei há pouco como é que reagia à adversidade e à contrariedade…

Mas tive poucas contrariedades! Uma grande percentagem dos rapazes com que me dava tinham grandes paixões por mim, achavam que era lindíssima, inteligentíssima, maravilhosa, forte. «Este é um palerma» – deixava logo de me interessar. Restavam uns que me resistiam. E sentia-me atraída pelos que me resistiam.

 

Que eram?

Dentro dos que me resistiam havia alguns que eram inteligentes e outros que eram patetas; resistiam-me porque eram cobardes e tinham medo de mim. O esquema começou a repetir-se e percebi que não ia longe com o sofrimento todo causado pela rejeição. Comecei a privilegiar muito mais a amizade/amor. Uma «amitiè amoreuse». Mais calma, por alguém que respeitava, e sem o condimento da paixão, que acho que está ligado ao sexo e ao desejo da morte. Isto encarreira-se. Foi uma altura em que desejava muito ser homem.

 

Como assim?

Todos os filmes que via… Gostava muito do John Ford e ele tem muitos espaços de homens. Eu era amiga de imensos homens mas havia sempre aquela maçada... O sexo era perturbador. Numa amizade entre homens, o sexo não existe. Na ópera «Dom Carlos», do Verdi, há uma relação viril muito importante entre dois personagens – era a minha ópera preferida.

 

O sexo interpõe-se, vicia as relações. Ainda o respeito: quando descobriu o seu poder erótico, tinha respeito pelos que sucumbiam a esse poder? E tinha respeito por esse poder que naturalmente tinha?

Pelos que sucumbiam não tinha respeito. Desinteressava-me. No resto? Preferia ter poder erótico sobre os homens do que não ter. Imagino.

 

Provavelmente preferia que ficassem estarrecidos com a sua inteligência.

Há uma coisa interessante nos anos 60. Por ser bonita, era necessariamente estúpida! Quando entrei para a faculdade senti que os homens olhavam para mim: «Esta tipa veste-se tão bem, é loira, é estúpida de certeza». Os colegas e os professores. Tinha de passar por cima daquilo, sem ceder, a continuar a usar mini-saia, a pentear-me como me penteava... Não me tornei feia de propósito para pensarem que era uma intelectual!, isso era o terror do meu pai. O terror do meu pai era que eu fosse uma intelectual, porque ele achava que as intelectuais tinham um cabelo oleoso e vestiam mal.

 

E eram lésbicas.

Sim, e lésbicas. Mas disso acho que nunca teve medo. Ambos teriam preferido que eu tivesse tido uma vida mais ortodoxa.

 

Não está completamente resolvida para mim esta questão do poder erótico. Imagino que aquilo que desejava, até pela descrição que faz da relação viril, impoluta, era uma relação onde a inteligência e a força são elementos dominantes.

Era muito importante a durabilidade. O poder contar com o outro até à morte. As paixões são doenças curtas, são patologias. São desvios derivados do sexo, muito ligados ao desejo da morte, altissimamente gratificantes – uma pessoa sente-se fora do mundo, o trivial deixa de existir, só importa o objecto amado.

 

Muitas pessoas olham para si como a mulher que seduziu os dois homens mais inteligentes e interessantes de Portugal. [Vasco Pulido Valente e António Barreto]. Acho graça à formulação. Diz-se que seduziu, e não que foi seduzida.

Espero ter seduzido muito mais do que dois. Para aí 20!

 

Está bem, mas estes são particulares. Também por isso perguntei se qualquer homem a podia maltratar. Eles têm de ser estimáveis? Tem de os admirar para que a sua auto-estima saia fortalecida?

Não sei se fui eu que os seduzi se foram eles que me seduziram. Que eu respeito ambos, respeito. Mas não posso dizer muito mais sobre essas relações. São relações diferentes no tempo. Um deles conheci aos 16 anos. Sempre tive muita necessidade de ter um irmão mais velho, a quem pudesse contar coisas.

 

O Vasco Pulido Valente foi esse homem?

É uma amizade muito profunda e ambos sabemos que nunca pode acabar. Garanto que ele me tem feito muitas patifarias. Ele provavelmente dirá que tenho feito outras tantas em igual medida. Temos coisas muito parecidas. Apesar de sermos temperamentalmente diferentes.

 

A sua vida teria sido diferente se não o tivesse encontrado? Até onde é que ele foi um ponto de intersecção fundamental?

A minha vida teria sido diferente. De qualquer maneira, havia sementes em mim... Sempre senti que não pertencia a nenhum local, a nenhuma classe social, a nenhum destino, a nenhum grupo. Mesmo mais tarde, mesmo em Oxford. Assim como sinto que não pertenço bem aqui ainda. Estou fora de grupos ou de regras ou de cliques ou de nações.

 

Despatriada permanentemente?

Despatriada. Sofri uma mobilidade social ascendente muito rápida. O meu avô era um camponês abastado da região de Tomar. Mas a ascensão por via da minha mãe foi rapidíssima. Entrei de maneira muito fácil na elite mais fechada que havia em Portugal. Nessa altura não sabia, mas devia ter uma percepção inconsciente de que não era bisneta do Duque de Saldanha... Não pertencia totalmente. Embora me desse com eles: almoçava com eles, ia às festas deles, vestia-me como eles, falava como eles. Ainda hoje, se calhar, a entoação da minha voz é um bocado queque. Os meus amigos de infância: não os desprezo necessariamente, mas não sou igual a eles, porque a minha ascendência é diferente. Assim como em Oxford.

 

Oxford classista?

No meu colégio havia aí uns 60 homens e 4 mulheres. Ser mulher fazia com que fosse um bocadinho diferente. Ser mulher divorciada, então, diferentíssimo.

 

E com filhos?

Ainda mais diferente. Foi uma separação muito dolorosa, mas a bem. Combinámos que eu ficava 6 meses com os meus filhos e ele ficava outros 6 meses.

 

E a culpa?

Ah, imensa. O sentimento de culpa é uma das minhas especialidades. Culpabilizo-me pelas coisas mais fáceis. Se não houver água daqui a bocadinho no frigorífico, fico culpabilizada porque já não tem água. É dos poucos traços do catolicismo que me ficaram. E é muito fácil explorar esse sentimento.

 

É muito pouco condescendente.

Sou. Sou muito exigente em relação aos outros porque sou exigente em relação a mim.

 

Estávamos a falar de Oxford e de também aí não se sentir integrada. Mas o que é que aconteceu em Oxford?

Tudo. Se Portugal era um país opressivo, monolítico, cinzento, Oxford era o contrário. Embora fosse uma redoma, discutíamos tudo, tinha acesso a todos os livros… Cresci. Há um livro do Graham Greene que se chama: «England Made Me». De certa maneira, «Oxford made me». Aquilo que sou resulta muito do que Oxford fez de mim. No bom e no mau. Enquanto lá estive, estive sempre a criticar Oxford, fazia parte da clique contestatária. Felizmente que o meu reitor era excêntrico. Bêbedo, dava umas festas malucas, as meninas apareciam todas cheias de flores… Nunca fui hippie; as coisas muito dadas aos irracionalismos, orientalismos, haxixe… Nunca fumei um charro. Aqui há 5 anos tentei fumar e percebi que não sou capaz de engolir o fumo. E lá não fumava porque tinha medo. Sou fisicamente medrosa.

 

Já estava incompatibilizada com a menoridade de Portugal?

Um bocado. Comecei a ver Portugal cada vez mais longe e mais pequenino e mais triste. Acontece que vim fazer o doutoramento no Natal de 73, era para ficar 6 meses e aconteceu a revolução de 74. Isso também mudou tudo. Fez com que me apetecesse ficar.

 

Teve esperança?

Imensa. Era totalmente imatura do ponto de vista político e acreditei que a revolução ia trazer o paraíso sobre a terra. Comecei a ensinar um mês antes da revolução um curso de Sociologia; mas como o Salazar tinha proibido usar a palavra Sociologia em Portugal…

 

Porquê?

Achava que era parecida com Socialismo. Não fosse alguém enganar-se.

 

Não!!!

É verdade. O curso de Sociologia chamava-se Ciências do Trabalho! As primeiras aulas que dei foi Marxismo do princípio ao fim. Depois veio a revolução, a escola entrou em grandes convulsões internas, fui eleita para o Conselho Directivo_ provavelmente para terem uma mulher lá dentro, qualquer coisa assim bizarra. Entrei em grandes conflitos com a estrutura basista da escola. Sempre fui muito meritocrática, relativamente autoritária. Portanto, em Julho já estava totalmente desiludida. E disse: «Nem quero ouvir falar em Universidade em Portugal, é impossível no presente clima ensinar o que quer que seja». No Verão de 75 fui-me embora outra vez para Inglaterra e só vim em 77 quando acabei a tese.

 

Nunca pensou ficar fora?

Se me tivessem oferecido uma cátedra em Harvard, teria tido uma escolha difícil. Em 76, quando acabei a tese, os meus filhos tinham 13, 12 anos. Teriam que mudar para um sistema escolar diferente…

 

Estava a pensar até onde é que a culpa a dilacerava ou tomava conta de si.

Muito! Em momentos de grande crise faço diários. No outro dia descobri, para meu grande espanto, que já aos 23, 24 anos tinha imensas insónias e tomava calmantes. Agora tomo Valiums. Os calmantes são para diminuir a ansiedade que está ligada ao complexo de culpa. Não é só de ter ido para Inglaterra, de me ter separado, de os meus filhos ficarem com o meu ex-marido 6 meses, etc. É uma culpa mais profunda.

 

E o diário era porquê? A necessidade de um interlocutor que não existia de outro modo?

Era a necessidade de desabafar. São sempre diários infelizes. Quem lê os meus diários acha que sou uma desgraçada. Completa e horrorosa. Quando estou feliz não faço diário nenhum.

 

Vive!

Sim, vivo.

 

Mas durante esses anos, a sua mãe deixou de ser uma interlocutora? Ela alguma vez foi uma interlocutora?

Desde que me separei percebeu que jamais conseguiria dominar-me. Nunca mais tive intimidade com ela.

 

Nem agora?

Não. Ela perdeu a memória e sinto uma enorme responsabilidade por tomar conta dela. Na prática. Sei que não me reconhece há 5 anos. Alguns amigos dizem: «Mas o que é que vais lá fazer? Torturar-te?» Vou lá ver que ela está bem. Mas nunca mais tivemos uma conversa íntima desde os meus 25 anos.

 

E intimidade com os seus filhos?

Ah, isso tenho imensa! Excepto nos amores. Penso que entre os pais e os filhos é melhor não haver trocas de informação sobre esse domínio.

 

Por uma espécie de pudor?

Em parte por uma espécie de pudor. Em parte porque fui assim criada. Em parte porque posso ser dominadora sem ter consciência disso. Não quero ser assim com eles, quero que eles sigam a vida deles como entenderem.

 

Como é que definiria a intimidade? O que é ter uma relação de intimidade?

É não precisar de falar e o outro sentir exactamente o que estamos a sentir.

 

A noção de intimidade tem também que ver com máxima exposição, inclusive no sofrimento? Com um estar com o outro um pouco como se está consigo? Sem reservas.

Tem. Há pessoas a quem posso dizer tudo (não são muitas). Se tiver um desgosto horrível, espero que haja duas ou três pessoas a quem possa telefonar e que venham depressa e que não me perguntem mais nada.

 

Walter Benjamin dizia, sobre o lugar da arte, que uma criança perdida na floresta não precisa de ver um quadro muito belo. Precisa que a resgatem. O que pergunto é: para que serve ler tantos livros? O que é que a salva nos momentos mais difíceis?

Tenho vivido nos últimos 10 anos, durante a doença da minha mãe, momentos muito, muito dolorosos. Ser capaz de raciocinar, usar a razão para entender o meu coração, pôr alguma ordem nos meus sentimentos, ajuda-me.

 

É para o domesticar? Para se sentir menos perdida?

É para perceber o que me está a acontecer. As pessoas que percebem o que lhes está a acontecer eventualmente são depois capazes de determinar qual é o rumo melhor. Li um livro do John Updike, cujo pai tinha um tumor na cabeça; saber os passos que deu e como encarou a morte do pai, ajuda-me a pensar que isto não é uma tragédia individual. Dá consolo.

 

Tem medo que lhe aconteça o mesmo?

Muito medo. Não tenho nenhum medo de morrer. Tenho muito medo de perder a razão.

 

Porque é que o ensino e a universidade são temas de eleição para si? Ou seja, porque é que a formação e a educação de outro são fundamentais para si?

Porque sou universitária. É a minha formação, é isso que fiz nos últimos 30 anos. Tenho muita pena que a universidade portuguesa seja tão medíocre, que promova as pessoas de uma forma tão burocrática, que seja tão destituída de capacidade de criação. Por outro lado, e relacionando com o que disse há pouco, uma certa lucidez sobre as nossas motivações ajuda a viver melhor. Apesar dos seus limites, a escola pode contribuir para isso, pode ajudar a libertar um jovem das teias sociais.

 

A sua opção profissional tem que ver com uma reorganização, uma reformulação de carris. E o papel formador e fundador da escola aí é fundamental.

Em 1974 fiz um documentário chamado «Nados e Criados Desiguais», sobre 5 rapazes de 5 meios sociais muito diferenciados que frequentavam as escolas primárias. Para provar que as perspectivas deles eram muito diferentes. A pergunta era: «O que é que vais ser quando fores grande?». Evidentemente os meninos do Liceu Francês queriam ser médicos, e um menino do Alentejo queria, como ele dizia, «amanhar carros», que era ser mecânico. É verdade que os carris deles estavam formados desde a nascença. Mas, em certos casos, um menino do Alentejo podia dizer «Quero ser mecânico» e depois, se tivesse tido possibilidades de prosseguir o estudo, o mundo abria-se-lhe através da escola.

 

Esta débil mobilidade social é, para si, um dos traços mais irritantes em Portugal. Porque passa por um provincianismo, uma incapacidade de mudar de sítio e operar mudanças significativas na vida.

É uma incapacidade de correr riscos. É um traço mau para a sociedade, mau para a economia, mas que percebo. Os pobres não podem correr riscos. Quem está quase ao nível da subsistência, se correr um risco isso significa a morte. Portugal é um país muito pobre e às vezes esquecemo-nos disso.

 

Como é que leu esta notícia que diz que 200 mil pessoas passam fome em Portugal?

Não me espantou. Em parte sou de esquerda porque comecei a ir aos pobres com as freiras do meu colégio. Cada um tinha uma família que protegia (fazia parte da caridade cristã), e foi para mim tão chocante...

 

Como se fossem pobres de estimação?

A ideia é bizarra. Mas era assim. Fiquei tão escandalizada com a pobreza! Já não se vê aquela fome abjecta que vi nos anos 50 em Portugal. As desigualdades diminuíram a nível absoluto, os objectos de consumo estão disseminados, toda a gente tem televisão, frigorífico, etc. Que as pessoas vão todas ao supermercado, comprem brinquedos para os bebés, e televisões e tenham todas telemóveis, para mim não é uma coisa menor. É muitíssimo importante e fico alegre que o meu país seja consumista, se você quiser.

 

Por esbater essa diferença e esse fosso.

Porque há um nível de miséria absoluta abaixo do qual é abjecto viver-se. Pessoas que vivem no chão, na terra, miúdos não podem brincar porque não têm sapatos… Alguns intelectuais dizem: «Ah, mas só vêem televisão!». Não faz mal!

 

A pobreza é indigna.

É indigna. E força as pessoas a serem subservientes, fatalistas, a não poderem mudar a vida. O medo é tal... – e eu percebo o medo.

 

Teve medo de ser pobre? Estou a pensar no processo de ruína do seu pai. É claro que estamos a falar de uma outra escala…

Mas foi muito dramático para a minha família. Passámos de ser relativamente ricos para sermos… A minha mãe começou a trabalhar, por exemplo. Aos 45 anos. Teve coragem, pegou em si, arranjou um emprego. Eu estava fora. Não tinha casa, vivia em casa dos meus sogros, o meu sogro era embaixador em Madrid – está a ver, não era propriamente uma pobre típica. Mas não tínhamos dinheiro nenhum.

 

E sobretudo dependiam, não é?

É. Os primeiros anos de casamento foram com bastantes dificuldades materiais. Não serve dizer que isto era uma coisa tenebrosa. Não era. Mas não tinha dinheiro para nada.

 

Até onde é que essa restrição a constrangia?

Sou de uma frugalidade anormal. Sou capaz de viver com uma cadeira – como vivi em Oxford: uma cadeira, uma mesa e uma cama. Desde que tenha livros e televisão, vivo muito bem. E silêncio. Tenho muito poucas ambições materiais.

 

De que é que precisa absolutamente para viver? De pessoas, viagens?

Gostava muito de viajar até há 10 anos. Mas com a idade, estou muito sedentária. As últimas viagens têm sido para congressos, coisa que detesto. Os académicos viajam para se glorificarem e eventualmente dormirem os homens com senhoras fora do casamento e as senhoras com homens fora do casamento… coisa que também não me interessa particularmente. É uma fuga ao quotidiano de que não preciso. Tenho a sorte e o privilégio de gostar da minha rotina. Há sítios onde me apetecia ainda ir antes de morrer. Mas estou muito preguiçosa. Fazem-me falta amigos com quem conversar. Há alguns amigos que perdi, aos 60 anos já se tem amigos que morreram.

 

E as suas netas? Em público, parece bastante invulnerável, mas em privado tem com certeza algumas fragilidades. O que é que a pode tomar de um modo avassalador?

- Nunca pensei ter netas. Não gosto particularmente de bebés e achava que a Sofia [Pinto Coelho] não tinha idade para ter filhos (ela tinha 30 anos, eu tinha tido os meus filhos aos 20, de maneira que tinha muita moral para falar…) Quando nasceu a Rita, que é a mais velha, fiquei fascinada. Não sou nada a avó tradicional. Não vou buscá-las à escola, levá-las ao ballet. Ajudo no que posso, mas não mudo a minha vida para ficar com elas à noite. Gosto de brincar com elas, deixo-as fazerem o que querem, até porque em casa delas há regras como se fosse um quartel.

 

Acha bem?

Acho muito bem. Gosto imenso de estar com elas porque têm uma candura no olhar e uma capacidade de divertimento que às vezes me faz falta. Quando vou ver a minha mãe, muitas vezes vou buscá-las a seguir. A Rita no outro dia disse: «A avó é stressada, muito clássica (não sei o que é que quer dizer) e esperta».

 

Bateu nos pontos certos.

Achei uma coisa cómica! A mais nova diz que é especialista em arte egípcia. Detestam ir a museus. No outro dia disse-lhes para irmos ao Museu do Chiado e elas: «Não!!! Nós queremos ser analfabéticas!» E disseram mal de propósito, que sabiam muito bem que se diz «analfabetas».

 

O exercício da crítica e a mordacidade são coisas que não conseguimos dissociar da sua imagem pública. Vê nisso uma espécie de obrigação moral, uma expressão do seu amor pelo país? Aprecia as disputas por se saber invulnerável no espaço público?

Não é uma coisa que me tenha sido dada. Lutei muito para poder ser independente. Digo o que penso. Não tenho medo. Estou à beira da reforma, de qualquer maneira.

 

E dúvidas?

Se tenho dúvidas? Tenho mil!

 

Acerca do que pensa? Ou é sempre tão categórica?

Quando sai cá para fora é porque já passou pela fase da dúvida, não é? Tenho imensas dúvidas. Sobre se me devo reformar, se devo fazer assim, o que é que vou escrever, se serei capaz de escrever um livro bom, se devo dedicar mais tempo às minhas netas… Tenho, tenho dúvidas, como toda a gente.

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2004

 

Fátima Lopes

15.06.14

Fátima Lopes é uma mulher como as outras. Arrisco dizer que se fosse mais sexy, ou se investisse mais nesse lado, teria menos aceitação junto das mulheres. Elas olhariam para ela como uma concorrente, uma ameaça. Ela têm uma imagem cuidada, mas não excessivamente cuidada, e facilmente se transforma na amiga ideal, na filha ideal.

Fátima não quer ser ideal. Quer manter os pés assentes na terra. Acredita vivamente que a humildade é a chave do seu sucesso. Tem 37 anos e é a mais popular apresentadora da televisão portuguesa. Parece muito forte, determinada, positiva. E é.

Numa conversa no seu camarim, ao início da tarde, fala de não querer ofuscar a vida dos que ama, de querer ser apresentadora até ser velhinha, da compra de detergentes no supermercado, das aventuras que tem vontade de experimentar depois do livro «Amar depois de amar-te», de quando achava que não tinha carisma para estar no ecrã, de acreditar nos seus sonhos e de persegui-los. Conta tudo isto exactamente com a mesma voz que lhe conhecemos da televisão. Porque é a mesma.

 

As pessoas olham para si como um membro da família. Existe um desfasamento entre a imagem que os outros têm de si e aquela que tem de si própria?

Acho que existe uma coincidência muito grande. É óptimo não precisar de criar uma personagem para fazer o meu trabalho. Não conseguiria ser feliz se tivesse que ser uma quando as câmaras se ligam e outra dentro das portas da minha casa. Preciso de sentir que me movimento com liberdade, que sou com liberdade.

 

O público refere-se a si como uma “pessoa muito genuína”. Helena Sacadura Cabral, a propósito do seu livro, diz que “escreve como fala e fala como é”. Ainda que não haja uma distância entre aquela que é em público e aquela que é em privado, há uma linha intransponível. O que é que delimita a esfera da intimidade?

Apesar de ser muito transparente na minha forma de ser_ ou seja, tenho um convidado e gosto de exteriorizar os sentimentos, de dar as minhas opiniões – , quando entro em casa faço por deixar o trabalho lá fora. Não tenho que expor a minha família e os que me são próximos às consequências de ser uma figura pública. Não é que isso fosse necessariamente negativo nas suas vidas, mas fui eu que escolhi ser figura pública. A minha filha nunca apareceu numa revista – excepto, numa fotografia paparazzi.

 

Não quer que ela seja “a filha da Fátima Lopes”... Imagino que os seus pais sejam “os pais da Fátima Lopes”…

O meu marido é “o marido da Fátima Lopes”, a minha irmã é “a irmã da Fátima Lopes”.

 

É como se não tivessem individualidade. Em algum momento pensou que as pessoas se aproximavam de si por ser uma figura pública?

Não. Sou muito selectiva com os meus afectos. Dou-me bem com toda a gente, mas não gosto de toda a gente. Tenho uma intuição muito apurada, gosto de a ouvir. Mas percebo a sua pergunta... Tendo-me divorciado, e refeito a minha vida, poderia pensar que um homem se aproximava de mim por causa do meu estatuto. Estive muito tempo sozinha exactamente porque não é fácil cativar-me.

 

O que é que as pessoas têm de ter para passar essa barreira e merecerem a sua atenção?

A transparência. Uma pessoa que não mente a si própria e não mente aos outros, está a criar transparência na sua vida. A verdade é um óptimo fio condutor.

 

Corresponde ao que se espera da “filha perfeita”, encaixa numa imagem muito familiar.

Não sou uma filha perfeita porque não deve haver filhos perfeitos. Mas tenho uma relação muita boa com os meus pais e sei que não lhes causo problemas. Sou muito cuidadosa, falo com eles todos os dias. A minha mãe dizia-me [no momento de transição do anonimato para a popularidade]: “Não te deslumbres, nunca tires os pés da terra. Lembra-te sempre de quem tu és, só vais ter sucesso quando continuares a ser quem tu és”.

 

O que é que ela queria dizer com cada uma destas coisas? Com que tipo de coisas se podia deslumbrar?

Com fama, sucesso, ganhar mais dinheiro, ser conhecida, achar que era mais do que as outras pessoas. No meu caso, o que houve foi estranheza ao andar na rua e as pessoas apontarem o dedo, ou cochicharem ou virem ter comigo. Foi mais difícil gerir isso do que o facto de se abrirem portas porque eu era uma pessoa conhecida.

 

“Assustou-se” com o sucesso, com aquilo que pudessem dizer de si?

Fui lançada de pára-quedas e evoluindo à medida que me fui empenhando e corrigindo as coisas que fazia. Tive a sorte de trabalhar em equipas que criaram uma ligação afectiva forte comigo. Mas há um factor que é a chave do sucesso: a humildade. Sou extremamente humilde. É importantíssimo reconhecer que não é por sermos apresentadores que somos o supra-sumo. Somos uma peça da engrenagem televisiva, igual a todas as outras.

 

Falou da importância que tem para si a segurança. Aprendeu a reconhecer o mundo num quadro de estabilidade ou de instabilidade? Que memórias é que guarda da sua família?

Vivi numa família bastante estável, e sei valorizar isso. Tenho uma irmã, três anos mais velha, e temos uma relação de muita cumplicidade, apesar de vivermos longe. Ela formou-se em Engenharia Agrícola em Vila Real, depois foi estagiar para Braga e acabou por fazer lá a vida dela. Neste momento, produz e vende flores. Por acaso, quando éramos miúdas andávamos sempre às turras uma com a outra.

 

Por que é que competiam?

Não era isso. A minha irmã era mais vivaça e eu era bem comportadinha, muito bonequinha, casinhas, fazer de mãe. A distância aproximou-nos de uma maneira impressionante, e passámos a ser grandes confidentes. Para nós, a família é um núcleo, um pilar. Numa família bem estruturada, quando há boa comunicação, as pessoas conseguem ser felizes. A instabilidade é uma coisa estranha na minha vida.

 

Cresceu a pensar que a sua vida ia ser o quê?

Cresci a pensar que ia ser professora de inglês, porque sempre gostei imenso de ensinar e de inglês. A minha brincadeira era espalhar os livros, o material [escolar], fazia os trabalhos no quadro, ensinava os meus alunos fictícios. É uma professora de jornalismo que me dá completamente a volta à cabeça. O jornalismo era uma paixão que eu não sabia que existia [em mim].

 

Em todas essas possibilidades, há sempre um desejo de comunicação e de estar com outros.

Sempre. Eu dava-me lindamente com as crianças todas. Eu vivia no Barreiro. No meu prédio havia imensas, quase todas da minha idade. E juntávamo-nos bastante, na casa de uma, de outra, brincávamos na rua. Havia sempre regras. Os meus pais não me deram uma educação castradora, mas deram-me regras. À minha filha faço questão de passar regras. Quando se estica um bocadinho a dar uma resposta leva logo um ralhete de todo o tamanho! A educação nunca fez mal a ninguém e as regras existem para balizar a criança.

 

Portanto, dava-se com os meninos do prédio.

Sim. Mas se a minha mãe dizia: “A estas horas não vais porque as pessoas estão a fazer o jantar”, eu entretinha-me bem sozinha. Já adulta não vivi bem o facto de estar sozinha. Houve uma fase, entre os 22 e os 25, em que lidava mal com a minha companhia. Precisava de estar acompanhada, senão sentia-me só.

 

Coincidiu com a entrada no mercado de trabalho e definição de um quadro de vida?

Um bocadinho. Hoje em dia, quando tenho que ficar sozinha, tenho prazer em desfrutar a minha casa. É quando me dá para arrumar, mudar coisas, comprar o que falta.

 

Ainda gosta de ir ao supermercado, escolher os detergentes, comprar mercearia? Imagino que por vezes tenha saudades das minudências de uma vida simples...

Sou sempre eu que faço essas coisas. Ou o meu marido. É bem provável que daqui a pouco nos cruzássemos no supermercado porque vou comprar as coisas que me faltam para o jantar. Tenho uma empregada que vai três dias a minha casa e me trata das roupas e da limpeza. De resto, faço eu. Eu é que levanto a minha filha às sete da manhã, despacho-a e deixo-a na escola, às oito, vou buscá-la, levo-a à natação. Sou eu que faço o jantar.


Sentir-se-ia um pouco perdida e incompleta se não tivesse essa dimensão? Se deixasse de ser uma mulher igual às outras…

Não me imagino a viver numa redoma em que estou afastada do que faz parte da vida das pessoas. Preciso de ter uma vida normal. Isso faz com que os pés não saiam da terra e seja mais fácil receber aqui as pessoas. Eu sei do que é que elas estão a falar.

 

O seu percurso distinguiu-se do dos meninos com quem brincava. Que elementos faziam então prever que o seu destino podia transcender uma “vida normal”?

Não acredito em acasos nem em coincidências. Tudo o que acontece tem um significado. O que é que me pôde distinguir das outras meninas que viviam no mesmo prédio? Continuei os estudos, empenhei-me nos estudos. Temos contacto frequente, ainda no outro dia estivemos juntas. Por outro lado, não me imagino a andar cá por andar, a fazer desta maneira porque é o normal, a sonhar até dez porque toda a gente sonha até dez. Quero é saber o que é que eu sonho, até onde é que posso ir. E acredito que posso chegar lá.

 

A história que se conta é que trabalhava na SIC numa empresa de audiotexto e um dia Emídio Rangel pensou em si para apresentar um programa. Essa possibilidade não lhe tinha ocorrido antes?

Quando estava no curso de comunicação social não escolhi televisão. Pensava que teria piada estar à frente do ecrã, mas que não tinha cara para isso, nem imagem. E que era preciso ter um certo carisma. Uma pessoa que chegasse ao ecrã tinha que ter presença. Não era só chegar ali e ter dois palmos de cara.

 

No fundo, ainda não tinha descoberto que o seu carisma passa por ser quem é, por ser genuína.

Eu não sabia. E escolhi outra área dentro do curso, de que ainda hoje gosto muito: marketing e publicidade. As minhas primeiras experiências profissionais foram nessa área. É engraçado as voltas que a vida dá... Tive aquele sonho que tive, que dobrei, dizendo “não, não é para ti”; não quer dizer que deixasse de me fascinar.

 

Explique-me melhor essa insegurança que a fez pensar que não tinha carisma ou presença para aparecer no ecrã.

Se pensava em mulheres que apareciam na televisão, pensava em grandes figuras – Maria Elisa e por aí adiante. Era gente com uma bagagem, uma presença forte. Eu era uma miúda: o que é que eu tinha para transmitir às pessoas? Nada. Mas não achava que era uma incapaz.

 

Ainda não perceber que relação é que tem com o seu corpo. Fez muito desporto, aprendeu a conhecê-lo, a senti-lo. Parece bastante cuidada e consciente do impacto que isso tem nos outros.

É curiosa a sua pergunta, nunca reflecti sobre isto... Todo o sucesso que tenho, passa também pela parte exterior, mas eu atribuo-o sempre mais ao meu desempenho como profissional e à minha postura como pessoa. O cabelo e tudo o resto são apêndices das primeiras. Numa campanha como a do cancro da mama [FL participou numa campanha sensibilizando as mulheres para o rastreio], nunca isso me pareceria importante.

 

Escrevia-se nas revistas, quando apareceu, que era “a bomba” da SIC e de Rangel. E escrevia-se também que era uma bomba sexy.

Isso não quer dizer que não tenha uma má relação com o meu corpo, contrariamente ao que pensa. Quando surgiu a primeira capa, jamais me esquecerei, a dizer “a bomba da SIC”, foi uma leitura feita a partir de uma declaração do Dr. Rangel. Ele não me chamou bomba; disse: “Vai aparecer aí uma pessoa que vai surpreender”. Leitura destas palavras: a bomba da SIC. Aquilo incomodou-me profundamente. Eu nunca me senti bomba! Não tenho o culto do físico, e às vezes peco por falta. Sou tão negligée nas minhas coisas, gosto tanto de andar com os meus ténis e as minhas calças de ganga...

 

Das fotografias e objectos que estão no camarim, o que podemos saber de si? Comecemos pelo rosário. É religiosa?

Sou, tenho muita fé. As pessoas associam espiritualidade a Igreja ou a Deus. É isso, mas não é só isso. Há doze anos cruzei-me pela primeira vez com pessoas que falavam em técnicas de desenvolvimento pessoal. Hoje vou a seminários com uma pessoa me ensina muito. Posso testemunhar com a minha vivência o quanto a nossa cabeça nos pode fazer viver experiências boas se bem orientada, o quanto podemos ser destrutivos se mal orientados. 

 

A questão da confiança em si mesma é fundamental.

Mas isso também se aprende. Não fui sempre tão confiante como sou hoje. Tenho as minhas dúvidas e medos, como qualquer ser humano. Mas já me é mais fácil parar e reflectir sobre eles. O que vou viver amanhã, depende muito daquilo que fizer hoje. Ou invisto num trabalho interior para ser uma pessoa que fortalece a sua confiança e segurança, ou amanhã, se calhar, estou muito pior.

 

Amanhã, ou seja, no futuro, que coisas se imagina a fazer?

Para já, quero ser apresentadora até ser velhinha. Não tenho nada aquela ideia de que expirou o tempo da juventude física, logo já não interessa. Os Estados Unidos dão-nos belíssimos exemplos de que não é assim.

 

A Oprah…

É a minha referência. Realmente é uma máquina comunicadora. Eu quero ser uma mulher madura, e, se tiver qualidade e capacidade para isso, continuar a fazer aquilo de que mais gosto, que é falar com as pessoas. E agora a história do livro… Deu-me tanto gozo escrever o livro! Fiquei com vontade de escrever mais. Tenho a certeza que vou experimentar muitas outras coisas. São os meus sonhos, faz-me bem pensar neles, alimentá-los, deslocar a minha energia para as coisas que quero que me acontecem. Não me apetece desperdiçá-la. É uma questão de opção.

 

A sua vida está nas suas mãos, é isso?

A vida de cada um de nós está nas nossas mãos. Não é só a minha, não sou uma privilegiada. As minhas amigas gostam muito de conversar comigo, pedir conselhos, porque recuso-me a entrar numa visão desgraçada das coisas.


Tem um grande ascendente sobre muitas pessoas. Quem é que tem ascendente sobre si?

A minha irmã. E a minha mãe. É engraçado, com o meu marido não acontece isso... É muito fácil eu comunicar com ele e ele entender-me. E respeitar-me na minha maneira de ver as coisas, porque as pessoas podem achar que sou fantasiosa.

 

Fantasiosa?

Porque quando toda a gente está à espera das desgraças e só vê os cacos, eu já estou a ver é o pedacinho que sobrou inteiro.

 

E a partir daí volta a construir o vaso.

Aquele bocadinho que ali está pode dar uma coisa a seguir. Então, deixem-me andar com o bocadinho...

 

 

Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em 2006

 

Candida Höfer

12.06.14

As suas imagens são silenciosas. Nunca se ouve o barulho das pessoas nem a desordem que criam. Porquê?

Os espaços falam, são simplesmente assim...

 

Ao mesmo tempo são tremendamente teatrais, quase operáticas. Você consegue esta opulência mesmo no ambiente mais simples. Como é que o faz?

Com a luz.

 

Às vezes, parece que a acção vai começar a qualquer minuto. Tudo está pronto para a contagem final. A história, o enredo são determinados pelo espectador?

Uma vez mais, os espaços falam, tudo o resto é projecção.

 

Se as pessoas são como edifícios, então devem ser desorganizadas no seu interior! Mas os seus interiores são organizados...

Sim, parece haver bastante ordem neles.

 

Pode explicar o seu fascínio por interiores? Não lhe apetece representar exteriores?

Pessoalmente, acho os exteriores difíceis de serem fotografados.

 

Porque é que retrata espaços públicos e não os familiares ou domésticos?

Porque são muito íntimos.

 

Rigor, elegância, linhas depuradas e disciplina são palavras normalmente utilizadas quando se fala do seu trabalho. A relação com a arquitectura é essencial para si?

Uma coisa não está sempre necessariamente ligada à outra. Mas sim, gosto de espaços construídos.

 

Passou algum tempo em Portugal para fazer esta série tão forte. Como escolheu os locais?

Da maneira habitual: lendo, perguntando aos amigos e procurando por mim mesma.

 

O que há em comum entre locais tão diferentes como os Jerónimos ou a Casa da Música? Aparentemente nada… Procurou a heterogeneidade acima de tudo?

Achei-os ambos em Portugal. Acho que isso diz alguma coisa sobre Portugal, não lhe parece?

 

Ouvi muitos portugueses dizerem que nunca pensaram que esses lugares fossem tão bonitos quanto as fotografias mostraram...

Há sempre uma diferença entre a imagem e o que chamamos de realidade. Às vezes as pessoas esquecem-se disso quando se deparam com o “medium” fotográfico. Trata-se de um mal entendido histórico sobre este “medium”.

 

Uma das fotos mais inusitadas é aquela em Mafra, com os veados empalhados nas paredes. Para mim representam o elemento morte... Foi essa a sua intenção? Provavelmente é a única foto em que vejo isso. Noutras encontro tragédia.

Eles estavam lá, faziam parte daquele espaço. Tragédia? Não sei. Tragédia é sempre a busca consciente da falha e a sua aceitação, não é? Acho que é mais como uma comédia: vemos algumas contradições onde os seus criadores nem as suspeitaram.

 

A disposição da luz, da mobília e dos objectos indicam uma "mise en scène". Acha que é uma espécie de encenadora teatral?

Não enquanto estou a fotografar, mas talvez quando estou a criar a imagem a partir da fotografia.

 

 

A acompanhar uma exposição da artista no CAV em 2008

 

 

 

Um abraço (a desempregados)

12.06.14

Acho que nunca estive desempregada, mas acho que sei o que é não ter emprego.

Sei muito bem, pelo menos, o que é a precariedade, o trabalhar no fio. Há anos que trabalho sem a certeza do mês seguinte e com a certeza do seguinte: se adoecer, não trabalho e não ganho.

Felizmente tenho tido saúde. É melhor não pensar como será quando tiver 70 anos.

Tenho, como todos, pessoas muito próximas sem trabalho, com trabalho precário, destroçadas, a caminho sabe-se lá de onde, nas suas cabeças e fora delas. Não queria falar com ligeireza de uma das duas coisas que mais me doem no país: o desemprego. A outra é a fome. Outro patamar.

Mas queria deixar um abraço.