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Anabela Mota Ribeiro

No domingo fui às Antas (1998)

11.06.14

Porque é que o futebol é o que é? Elementar. Porque é bom ganhar. Porque os outros corporizam o mal. Os onze que correm por nós não são o que são mas o que a nossa imaginação quer que sejam. Os apóstolos eram doze. Com o nosso sagrado coração, a conta faz-se: passamos a ser doze.

No domingo fui às Antas.

14.55 h. Carros já estacionados em cima da relva do separador. As inevitáveis mulheres gordas a venderem bandeirinhas e cachecóis. Uma mãe desvia com um safanão a miúda do calipo. Filas extensíssimas para as diversas entradas. Hão-de ser cinquenta mil. Conjuga-se o verbo palmar (se é que me entendem). 

Chegam os primeiros onze ao relvado. Assobios de estridência relativa por serem vizinhos da mesma cidade. Com os mouros já imagino gente esmigalhada, "Ides levar poucas", faces coléricas, "Meu este, meu aquele".

Chegam os nossos. "Porto, Porto, Porto és a nossa glória". Autocarro de vidros fumados. Eles a verem-nos de cima e a sentirem o que nunca vou poder saber. Talvez sintam medo de falhar.

Um rapaz chamado Paulo apoia-se na grade, chama-os pelo nome e faz-lhes um Fixe (de polegar). Nessa noite, há-de contar ao pai como ludibriou um responsável qualquer e chegou sozinho até à última barreira que o separava dos seus heróis.   

Entrei nas Antas, onde nunca tinha estado, pelas traseiras, atravessei não muitos corredores, bebi café e água à borla na sala de imprensa. Finalmente, o estádio. O campo onde vinte e dois marmanjos vão correr atrás de uma bola. A bola é redonda. O campo é um rectângulo verde. Deduções sofisticadas ensinadas nos taxis e nos cafés que cheiram a fritos. O povo instalado na bancada, um ver se te avias, cinquenta mil de povo feliz. A felicidade pode justificar tudo. Todos os Filhos Da, todas as Filhas Da, toda a animalidade expulsa com êxtase. A felicidade é uma coisa difícil e viver cansa mesmo muito.

Ainda no corredor vi passar uma anafada senhora com voltinhas de pérolas azuis e brancas enroladas ao pescoço. Cruza-se com ela um senhor que diz com um suspiro: "Vou pôr a coisinha a chorar". Juro.

A fórmula clássica, usada no Porto, substitui "a coisinha" por "a malandra". Fica então: "Vou pôr a malandra a chorar". É um eufemismo para o acto prosaico do xixi, ou pipi, como se ensina às crianças.

Ocorrem-me os cinquenta mil que estão na bancada e a quase impossibilidade de se dedicarem a actos prosaicos.

De qualquer forma, está a chover.

16.10h. Na sala arregalam os olhos às Spice portuguesas, as Tentações. A diabolização da mulher é muito mais antiga que o futebol. Imagino os homens feios que se babam com elas. Seguem pelo corredor a desejar "Merde, merde" umas às outras. Hão-de voltar no final. Também lá estavam o Emanuel (sabem, o do Pimba, pimba) e o Iran Costa que fazia uns trejeitos indescritíveis com uma cabeleira platinada (o Iran é o do "Bicho, crocodilo eu sou").

Cinco minutos depois é distribuída a constituição das equipas. Volto à bancada. Ainda não estavam os cinquenta mil.

Um corredor é ocupado por deficientes motores que nestas alturas são chamados de aleijadinhos. As carripanas estão enfileiradas junto ao arame farpado. Um deles, um senhor, olha para mim e diz-me: "Vá por cima, menina, que aqui escorrega muito." Engoli a comoção e levantei também os braços para fazer a onda.

Passou o homem das "Batatas a duzentos, Chocolates a duzentos e cinquenta [escudos]". Agarrou-se ao arame e, abanando-o, gritou: "Porto, Porto, Porto".

Dez para as cinco. O povo levanta-se para aplaudir o Pintinho. No anedotário das Antas, a única brincadeira consentida é entre Penta da Costa e Pinto da Costa.

No mesmo camarote estava o ministro Sócrates, o autarca Gomes e uns tantos conhecidos da política e do futebol. Metros adiante identifiquei pelo Boavista o Major Valentim. Não muito longe, deveriam estar as mulheres dos jogadores, que não cheguei a encontrar. Reconheci o Madger, um argelino que há dez anos marcou um golo de calcanhar e agora assiste, gordo, a um mundo que já não é seu.

O primeiro remate à baliza do Boavista é frouxo. Sustêm-se os primeiros ah’s! e ganha-se fôlego para, em uníssono, chamar o que muito bem imaginam ao guarda-redes. Filho Da. Está ao meu lado uma figura que me ilucida: o desejável é que deixe entrar a bola; como fez pela vida e impediu o gooolo, merece ser castigado. Vai daí, tem o estádio inteiro a insultar-lhe a mãe.

Anotei canções para a próxima visita: "Quem não salta é lampião, Quem bate palmas é tripeiro", "Pinto da Costa Olé Olé", "E o Benfica vai pró caralho". Timidamente também se ouvia o já clássico "Eu só quero ver Lisboa a arder".

O presidente, o Pinto, assiste impenetrável. Nem uma só vez lhe vi os braços no ar.

No primeiro golo, a menina ao meu lado levantou-se toda, com a cintura apertada e a anquinha a dar a dar.

No dia seguinte, perguntava-me uma amiga: "E tu não te empolgaste?, um estádio assim cheio tem uma força do caraças". Lembro-me de ter pensado que o futebol, como a religião, como a pátria, como o amor, alimenta-se dessa entrega abnegada, dessa fé inquestionável, dessa perpétua comunhão. Que eu saiba, a crença não é um processo racionalizável.

Fim. Apenas do jogo. Não da festa. 

Quando estava já a desfalecer de fome e cansaço, segui a procissão, espalhafatosa e profana. Comiam-se bifanas e rodopiavam latas de cerveja. Retinha a expressão dos jogadores na voltinha pelo campo, os cachecóis esticados na bancada que faziam parte do sonho.

Do outro lado da rua um homem grita para o amigo e exibe a dentuça de felicidade agitando o guarda-chuva: "Eh, ó filho da puta". Intimamente disse-lhe: "Ganhámos".

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 1998

                  

 

António Bagão Félix (sobre Portugal)

04.06.14

Miguel Torga escrevia num dos seus diários: “A olhar a mentira dos salões, esquecemos a verdade das celas”. A citação é feita por António Bagão Félix e funciona como um bom intróito a esta entrevista. Nela se fala dos salões e das celas, apontam-se algumas verdades (apesar da militante omissão de nomes), não se chama mentiroso a ninguém. Fala-se de um país pobre, desalentado, sob protectorado (a expressão também é dele).

Bagão faz parte da entourage – assume que é ouvido por vários membros deste Governo – e aponta o dedo quando pede mais “personalismo” numa economia dominada pelo binómio custo-eficiência. Ou quando diz que “uma coisa é a inflação aumentar meio por cento. Outra coisa é a taxa de desemprego aumentar meio por cento.” É um católico, e não é um liberal.

Foi ministro do Trabalho e da Solidariedade e ministro das Finanças. Dá aulas numa universidade privada, onde nos encontrámos.  

 

É um apaixonado pela botânica. Sabe de alguma planta que se pareça com Portugal?

Sim. Uma árvore, a oliveira. As oliveiras têm uma longevidade acentuada, e Portugal é um país de quase nove séculos. Olhando para ela, não só para as folhas mas para o caule, retorcido: consegue exprimir a mistura que faz parte da nossa idiossincrasia. A paciência, a ternura, a persistência. A fúria, a solidão, a austeridade. A austeridade como valor ético, entenda-se. É ao mesmo tempo gregária e individualista (sabe viver só). É uma árvore que gosta de conviver, que não se zanga com as plantas à volta.

 

Nada que ver com o eucalipto?

O eucalipto tem uma má fama, em parte injusta. É uma árvore também imponente. Australiana, só existe em Portugal há pouco mais de cem anos. Essa característica – secar tudo à volta, porque há um grande consumo de água e nutrientes – não há em Portugal. A não ser em algumas falsas elites.

 

Políticos?

Também. Até porque são os mais expostos, e por isso aqueles onde mais rapidamente detectamos a existência de eucaliptos.

 

Já tinha pensado nesta associação, ou ela ocorreu-lhe na sequência da minha pergunta? A sua resposta foi rápida.

Nunca me tinha ocorrido a associação entre Portugal e uma árvore. Estudo há muitos anos a oliveira e penso que é a árvore que congrega a guerra civil que vai dentro de nós. Curiosamente, não disse sobreiro, apesar de há dias ter saído em Diário da República a resolução que o declara como árvore nacional.

 

O que, entre outras coisas, tem em vista os índices de exportação da cortiça. Já agora, gosta mais do azeite português, do espanhol ou do grego?

Daquele que me faz menos azia. [riso] Gosto do azeite português, por razões melancolicamente patrióticas.

 

Permite-se dizer agora, que já passaram muitos anos sobre a sua passagem pelo governo, e apesar da assumida proximidade a um dos partidos que constituem a coligação, tudo o que pensa sobre o país?

Sim. Considero-me uma pessoa bastante livre. Certo ou errado, digo aquilo de que estou convicto. Procuro preservar o valor da autenticidade. Tenho condições para isso. Não pertenço a nenhuma organização político-partidária, não pertenço a nenhuma facção religiosa ou para-religiosa. Não tenho de prestar contas a nenhum patrão. Esta independência tem os seus custos.

 

Que custos?

Custos de diversa natureza, designadamente financeiros.

 

Pode concretizar?

Não interessa. Cada um assume a sua maneira de estar na vida. Há pessoas que estão mais perto de centros de decisão e que se insinuam mais do que outras.

 

Está a dizer que não o convidaram para a EDP?

Não. Também, não aceitaria. Não percebo nada de electricidade. Certamente errei muitas vezes, e estou arrependido de decisões que tomei. Mas só aceitei lugares onde achei que podia ter alguma competência. Não sou caso único, mas pertenço à parcela minoritária de gestores e economistas que chegaram depois [do percurso na] privada a lugares políticos de relevância. Com a maior parte das pessoas em Portugal é exactamente o contrário: a seguir ao exercício dessas funções é que atingiram lugares de topo ao nível gestionário.

 

Não é disso que está a falar, mas uma coisa que entronca nisso é o problema dos boys.

Boys e girls.

 

A colocação de pessoas afectas aos partidos em determinados centros decisionais é um dos cancros da vida portuguesa? Falo da promiscuidade entre o poder político e o financeiro e o empresarial.

É. E com metástases perigosas. Ou seja, mesmo quando o Estado deixa de ser detentor de determinadas posições na economia, as posições privadas não deixam de se sentir condicionadas pelo poder político. Há fenómenos de transacção de influências que são mais ou menos implícitos, mais ou menos explícitos, e que condicionam a vida. É uma questão de tempo. Todos os governos caem com maior ou menor intensidade nesse tipo de recidivas.

 

Porque é que todos caem? Porque é que não se pode arrancar a raiz do problema?

Faz parte da erosão do poder. A pureza da política é mais vincada nos primeiros tempos que nos seguintes. A filtragem desse tipo de situações tende a diminuir com o passar do tempo. Ou por cansaço. Ou por acomodação. Ou por resignação. Ou por cedência às pressões.

 

Porque é que se cede às pressões? Fica-se com medo de quê, exactamente?

Tenho dificuldade em explicar. Mas este triângulo – política, empresas (ou economia) e comunicação social – consegue tornar as decisões numa espécie de pedra-pomes.

 

Pedra-pomes?

Sim. Com pouca densidade específica, leve e com alguns buracos ao nível dos valores axiológicos.

 

Outra característica da pedra-pomes é o seu efeito esfoliante. Logo, provoca erosão.

Claro.

 

Uma outra boa expressão para isso: os sapos que têm de se engolir.

Todos [engolem]. Eu também engoli os meus. Uns maiores, outros menores. Faz parte da política. Melhor, faz parte da governação. A minha experiência na política é ao nível da governação. Porquê? Porque a governação não é um acto isolado. É um acto que envolve compromissos colegiais – desde logo no conselho de ministros. Temos de encontrar o maior denominador comum para evitar o maior divisor comum. E às vezes, temos de fazer cedências.

 

Presumo que não queira nomear os sapos que teve de engolir…

Alguns são públicos. Basta uma pesquisa para se saber. Mas não quero falar de pessoas.

 

Teve de engolir o seu sapo com Cavaco quando integrou o Conselho de Estado? A disputa não foi com Cavaco, mas foi num governo liderado por ele que foi exonerado das funções de vice-governador do Banco de Portugal.

Com o presidente da República, tenho muitos pontos de convergência e tive alguns de divergência. Pensamos em muitos aspectos de maneira igual e num ou noutro de maneira diferente. Sou do Conselho de Estado nomeado pelo presidente da República. Tenho respeito por ele. Não tive que engolir nenhum sapo no exercício das minhas funções [de ministro] por causa de Aníbal Cavaco Silva. Fui secretário de Estado dele.

 

Disse que mais cedo ou mais tarde os governos acabam por escorregar para a situação da nomeação política. Foi uma surpresa para si que no último mês – porque as nomeações mais sonantes aconteceram no último mês – tivesse dado sinais de cedência?

Não sei se é cedência a palavra certa. Será “situação de stress que provoca a tal erosão”. Cedência tem uma conotação não-positiva. O primeiro-ministro, que considero um político elegante do ponto de vista pessoal, da honestidade, do carácter, laborioso, traduziu mal coisas que eventualmente queria dizer de outra maneira. A questão da pieguice. A tolerância [de ponto] no Carnaval. Em meu entender foram erros, desde logo de comunicação.

 

E o “custe o que custar”, outra expressão que provocou grandes reacções?

Percebo a ideia do “custe o que custar”. Deixemo-nos de lérias: o país, e o primeiro-ministro em particular, vive numa tensão brutal entre aquilo que acha que se deve fazer e o que é a imposição dos credores. Por outro lado, o Governo tem de perceber uma coisa – e tem sido o erro destes programas apertadíssimos de austeridade: em Portugal e na Grécia (casos bem diferentes) a riqueza nacional resulta muito do consumo. O nosso consumo privado são dois terços do PIB. Quando se faz um programa em que se retrai o consumo público, e bem, mas também o consumo privado – o investimento – está a dar-se desesperança a um país. Do ponto de vista económico, está a retrair-se ainda mais a possibilidade de crescimento. Do ponto de vista social, e isso não tem sido muito referido, está a proletarizar-se a classe média.

Não há retracção ao nível da classe mais rica. É interessante que ontem [segunda-feira] a página de cobertura de um jornal diário trouxesse um BMW, alemão! Ao mesmo tempo que a chanceler Merkel fala da nossa necessidade de disciplina ao nível do consumo. 

 

Temos uma expressão popular que ilustra bem isso: quem se lixa é sempre o mexilhão. Quem se lixa não é a lagosta ou o lavagante.

Mas o mexilhão aqui é uma vasta classe média. Um país não tem – não digo futuro, porque futuro tem sempre – mas uma ideia de esperança se a classe média ficar destroçada. A austeridade tem de ser inteligente. Tem de ser exemplar – esse é o primeiro ponto.

 

O que quer dizer que tem de ser transversal?

Uma das coisas piores que se pode fazer num programa de austeridade é, ao mesmo tempo que as pessoas vêem as suas pensões reduzidas ou a baixa de salários, aparecerem casos, epifenómenos, que destroem a ideia da coesão que é necessária.

 

Por exemplo.

Umas remunerações que têm sido tornadas públicas. Não estou a dizer que são justas ou injustas.     

 

Catroga?

É interessante como agora se fala de Catroga e não se falou do seu antecessor que esteve lá seis anos, a ganhar o mesmo. Não queria particularizar. Posso não conhecer a situação toda. Uma coisa que aprendemos com a idade é que temos que ter cautela quando falamos de pessoas. Já me enganei muitas vezes. Umas vezes pensando mal de uma situação que afinal de contas tinha explicação contextualizada, e outras vezes o contrário.

 

Voltando à análise que estava a fazer…

… falava da necessidade de o sacrifício ser justamente repartido. Que tenha sentido geracional. E tem que ser inteligente; as pessoas têm que o perceber. Talvez seja essa a parte mais criticável do discurso político do governo (entendo, e estou solidário com o Governo na maior parte das suas medidas): a austeridade não é um fim em si mesmo, é um meio. A austeridade é sempre instrumental. As pessoas têm de ver alguma coisa para além da austeridade. O “custe o que custar” podia ser feito de outro modo.

 

Do que precisamos, para não soçobrar, é de economia e de alento?

Sim. Mas também precisamos de valorizar eticamente alguns valores. Já falámos do valor da exemplaridade. A ética do esforço. Não há nenhum país que possa evoluir deixando degradar a ética do mérito.

 

Nunca fomos uma meritocracia.

Mas deveríamos ser, e temos de ser. Estamos a regredir, na minha opinião. Não concordo com a ideia de que o país tem de empobrecer. O empobrecimento é o movimento e pressupõe uma finalidade. Este modelo em que produzimos menos do que aquilo que consumimos não é viável. Temos de nos adaptar. Mas esta alteração de escala não significa um maior empobrecimento do país. Significa uma maior exigência de coesão e justiça social. Esta equação é a essência de um programa de futuro e devia ser a essência de um programa de austeridade.

 

Uma das acusações feitas a este Governo é a de que tenta ser o aluno bem comportado, para que não lhe puxem as orelhas, como acontece à Grécia, e que vai além do estabelecido no acordo assinado pelo governo anterior. “Custe o que custar”, como disse o primeiro-ministro. Concorda com esta tentativa de parecer um aluno exemplar ou pensa que o programa devia ser cumprido de outra maneira?

A questão não é ser o melhor aluno. Perante a troika, a questão é ser o melhor devedor. Uma coisa é o efeito escolar, de demonstração, do aluno que cumpre as regras, que tem uma perspectiva adulta na construção da União Europeia; outra coisa é mostrar que temos condições para satisfazer os nossos compromissos.

A Europa neste momento é uma construção estranhíssima. A única coisa que tem [em comum] é a moeda. Que devia ser a última, e não a primeira. A Europa, que devia ser, e é do ponto de vista fundacional, uma construção solidária, está a transformar-se numa construção egoísta. Já reparou que nenhum país quer ser o outro? Portugal não é a Grécia, a Espanha não é Portugal, a Itália não é a Espanha, a Irlanda não é nenhum dos outros…    

 

E também não parece, apesar de tudo, que Portugal queira ser a Alemanha.

[riso] Alguém dizia com muita piada que a diferença entre os portugueses e os alemães é que os portugueses têm muita qualidade mas falta-lhes a qualidade; os alemães têm poucas qualidades, mas têm a qualidade.

O que se está a fazer com a Grécia é acintoso demais. Trata-se a Grécia e os gregos como se fossem marionetas. Estes líderes europeus não sabem História. Não sabem o que foi o Estado na Grécia que fez ressurgir uma nação depauperada pelo império Otomano, pela ocupação nazi... Era isso que Schuman e De Gasperi sabiam – História. Seguem uma política de um pragmatismo puro e duro. Alguma vez se viu uma chanceler da República da Alemanha falar de uma “autarquia” como a Madeira, generalizando, passando do particular para o geral, a propósito de túneis e auto-estradas? É uma Europa que se permite mudar governos na Grécia ou na Itália. Perdeu-se pudor.

 

Ou vai caindo as máscaras. A conversa da semana passada entre Vítor Gaspar e Schäuble tornou patente o que já se sabia: verdadeiramente, quem manda é a Alemanha.

Claro, quem manda é a Alemanha.

O acordo com a troika foi negociado por um governo de gestão. Não vou fazer um juízo de quem negociou. Mas negociar um acordo destes, sabendo que um mês depois não se está em funções, não é a mesma coisa que negociar podendo, daí a dois ou três meses, continuar em funções. O acordo falhou em alguns aspectos: no tempo, no montante. Percebo que o primeiro-ministro use a expressão (embora pudesse usar outra) “custe o que custar” para, primeiro, dar sinais de inflexível cumprimento, e depois ter bases para negociar alguma plasticidade.

 

Se voltarmos à imagem da oliveira, é uma árvore resistente às intempéries. Fica. Outra coisa é dar um bom azeite.

Sem dúvida. Em Portugal sempre foi mais fácil, e até mais barato, comprar o leite do que ter uma vaca. A oliveira é uma árvore de grande austeridade. No princípio da nossa conversa falei da palavra austeridade, não como ela agora é usada. [Assistimos] a uma degenerescência, este uso não tem que ver com o seu valor ético. Quando escolho uma coisa tenho de renunciar a outra. O pobre não consegue ser austero porque não tem por onde escolher. Tem pobreza de escolhas e oportunidades. Mas é preciso regressar à austeridade nesse sentido ético, na família, nas empresas, na política.

 

Ouço-o e vejo este tempo, em meados de Fevereiro. Colheitas e problema da seca à parte, pergunto como podemos viver segundo esse princípio da austeridade quando o que queremos é estar ao sol?

É a história da cigarra e da formiga, certo? Mas só podemos construir futuro sendo formigas. Sabe porque é que não há outra alternativa? Porque já esgotámos todos os outros modelos. Esgotámos o modelo de consumo público (o Estado consome 50% da nossa riqueza). Acho piada aos que agora falam muito em Keynes. Quando Keynes era vivo, a despesa pública no Reino Unido não chegava a 20% do PIB. Se Keynes tivesse ressuscitado, morria de repente com o susto! O ambiente é de completa globalização. Só podemos lutar na mesma frente. Lutar na mesma frente é sermos melhores, mais capazes, mais produtivos, mais militantes do risco.

 

Porque é que, tendo feito este diagnóstico repetidamente ao longo da nossa história, somos uma promessa adiada? Nunca demos o passo.

É verdade. Conseguimos, em ambiente próprio, ser formigas. Veja os nichos em que isso acontece, em Portugal e fora de Portugal. Para se ser formiga, a grande revolução é na educação. O verdadeiro ministério da economia é o ministério da educação. 

    

Estava a pensar que pôs as suas filhas no colégio alemão. Se me permite o desvio, que características nos alemães o fizeram preferir essa escola?

Por questões de proximidade de casa, questões laterais. E porque me entusiasmou incutir nas minhas filhas a ideia de um maior rigor e de que nada se consegue sem esforço. Só aprendemos na dificuldade. Não aprendemos no facilitismo e na permissividade. Eu, pelo menos, só aprendo com os meus erros e obstáculos que me surgem. Até porque isso fica depois encravado na memória. Não se volta a repetir.

 

Não?

Em algumas coisas, não. Só volto a repetir quando a emoção me tolda a razão. Mas isso é porque não sou eu numa situação normal. Há também a perspectiva religiosa, muito presente em mim. Com a idade aprendemos a consciência dos limites, e esta é a maior das sabedorias. Isso dá-nos uma humildade natural, e não artificial, no juízo dos outros, e uma maior exigência em relação a nós próprios. Somos muito fortes na ética da terceira pessoa. O problema da ética é um problema a pôr na primeira pessoa – o que é que eu devo fazer?  

 

Portugal, ao contrário, repetidamente comete o mesmo erro, alguns dos mesmos erros. Dois dos principais: malbaratar oportunidades e ficar sempre aquém do passo que faz a diferença. Apesar da repetição do erro, e da consciência de que aquilo é um erro, não se criam condições para que seja diferente.

O português tem uma relação curiosa com o interdito e a transgressão. Se nos disserem que uma coisa é proibida, gostamos mais de a fazer do que se formos obrigados por lei [a fazê-la]. Esse jogo faz de nós, como povo, adeptos da distracção, do epifenómeno, da espuma. Olhe para o país nas últimas semanas: de que é que falámos de importante?

 

A narrativa do frio polar distraiu-nos, por uns dias, da crise, que é uma narrativa gasta e depressiva, da qual estamos saturados.

É verdade. Temos uma relação conflituosa com o tempo. A esperança precisa de tempo, e não damos tempo ao tempo. Dantes as pessoas não tinham nada que fazer e matavam o tempo – expressão curiosa. Agora, é o tempo que nos mata. Não paramos para pensar, reflectir. Voltando à política: as questões demográficas, que vão ser a base do enterro ou a sustentação do Estado Social, as questões dos recursos naturais… Não abrem os telejornais, não são notícia de primeira página, nos programas dos partidos aparecem em rodapé.  

 

O que abre o telejornal é a notícia de que metade dos jovens portugueses não tem emprego ou é obrigada a emigrar.

É uma realidade duríssima. Vai a alguns municípios e só há emprego público! Erro enorme das últimas décadas, em especial dos últimos 15, 20 anos: a desertificação [do interior]. O país vive duas desertificações. Ao nível da administração pública vive a desertificação das competências; em vez da ética do mérito, está-se a desestimular as pessoas a serem competentes. O Estado desertificou-se e está refém de interesses particularistas.

 

Partidários.

Particularistas, nos quais incluo os partidários.  A outra situação é que o país abriu auto-estradas, artérias por todo o interior, e fechou postos de correio, centros de saúde, escolas, tribunais. Um velhinho tem de andar de táxi 50 quilómetros para fazer um curativo. É um problema muito grave, porque a economia está dominada pelo utilitarismo do binómio custo-eficiência.

 

Explique isso.

As coisas só se podem fazer se o binómio custo-eficiência tiver um resultado algebricamente positivo. Por exemplo, tenho uma pequena casa no Alentejo num sítio onde vivem 50, 60 pessoas num raio de alguns quilómetros. Por esse binómio, nunca lá teria chegado a electricidade, porque ela tem um custo superior à sua utilidade em termos económicos. Outro exemplo: sou contra a privatização dos CTT. Uma das razões é porque, se a empresa se torna privada, percebo que tem legitimidade para dizer que não pode haver um posto dos correios na aldeia mais recôndita do país. Simplesmente tem que haver um posto dos correios na aldeia mais recôndita do país! Em nome de outros valores – personalistas, sociais – que não os do custo-eficiência. Até como economista, estou cansado da análise árida, despojada de humanismo, com que às vezes se actua. A sensibilidade é uma forma superior de pensar a economia e a política.

 

A sua conversa leva-nos aos mínimos que não podem ser tocados. Os números não se podem equiparar por se tratar de realidades distintas, mas a semana passada uma notícia dava conta do prejuízo dos hospitais, na ordem dos 380 milhões de euros. O da Caixa Geral de Depósitos foi de 488 milhões.

Tem razão na sua observação, não tinha pensado nela. Neste momento só há uma medida comum para as questões de Portugal e da Europa: a métrica do euro. O que é um disparate. Uma coisa é um euro numa situação, outra coisa é um euro noutra situação. Um défice de 3% não é o mesmo em Portugal e na Alemanha, porque estamos em estádios de desenvolvimento completamente diferentes, com necessidades diferentes. Estes Pactos de Estabilidade e Crescimento são muito bonitos, mas são instrumentos de papel. Não atendem à diferença. Atendem ao ponto de chegada, que deve ser o mesmo, mas não ao ponto de partida, que não é.

 

O prejuízo dos hospitais e da Caixa dá força às críticas ao Governo, quando o acusam de ser ultra-liberal?

Não sei o que é ser ultra-liberal. Sei o que é ser liberal.

 

Qual é a sua definição?

Liberal é a pessoa que aposta sobretudo na iniciativa privada como motor do progresso. Não assenta os alicerces fundamentais do desenvolvimento no Estado mas na iniciativa privada, que produz riqueza, que por sua vez alimenta as funções soberanas do Estado, incluindo a do Estado Social. Devo dizer que não sou liberal. Sou democrata-cristão.

Uma das coisas em que me diferencio de um liberal, e que é um princípio da doutrina social da Igreja: o de que o destino dos bens é universal. Ou seja, sobre qualquer bem incide uma hipoteca social. Se qualquer um de nós tiver uma colecção de Picasso, é dele, mas não a pode destruir. Se tiver terrenos agrícolas que deixo ao abandono, não tenho esse direito enquanto membro da sociedade.

No liberalismo, há confusão de conceitos fundamentais. Legislação laboral: uma coisa é liberalizar despedimentos, a outra é flexibilizar despedimentos. Eu sou pela flexibilização, como instrumento que compatibiliza, tanto quanto possível, a defesa da parte mais fraca com a necessidade de o país avançar. A liberalização é dar a uma das partes mais força do que à outra parte. Desequilibra o próprio sistema.

 

Já falamos mais detalhadamente sobre as questões laborais. Mas queria retomar um fio que deixámos. Ao longo destes oito meses, o Governo foi ultra-liberal, como o acusam, pecando, aos seus olhos, por não observar princípios democrata-cristãos? Pode fazer uma avaliação?

É minoritária a corrente democrata-cristã no Governo, faz parte de uma coligação. É um Governo de pessoas comuns. Eu gosto disso. São pessoas que têm a sua vida normal, que hesitam, que erram, que acertam, umas mais, outras menos.

 

Está a pensar no Paulo Macedo?

No Paulo Macedo, no primeiro-ministro, no ministro da Economia, que é uma espécie de bombo da festa e que é um homem comum no bom sentido [da expressão]. Não quero fazer apreciações individuais. Há áreas, aliás, sobre as quais não tenho opinião porque não as domino.

É um Governo que se segue a um Governo de fantasias e de quimeras. Fez bem o contraponto. O contexto é muito difícil. É um governo tutelado. É um certo protectorado, sem dúvida. Se se pudesse corrigir alguma coisa, uma das vertentes a reforçar seria uma perspectiva mais personalista. E é um Governo que tem de construir a esperança, mais. As crises são como os aviões. Toda a gente percebe porque é que o avião cai. O que é preciso é perceber porque é que o avião não cai. O governo tem de explicar porque é que o avião não pode cair e as razões por que ele não deve cair.

 

Quando diz que o ministro da Economia tem sido, de certa maneira, o bombo da festa, isso passa por uma particular maneira de estar, mas também por aquela ser a área mais debilitada na vida do país.

É um ministério demasiado vasto, na minha opinião. Percebo que é das tais coisas que se fazem para assinalar a diferença, mas que não produzem grandes resultados. O Governo ter 11 ministros ou 14 ministro é a mesma coisa. Não é por aí que se resolvem as coisas. Às vezes, piora-se. Um governante que tem seis secretários de Estado, tem um mini-conselho de ministros, e de áreas tão diversas.

 

Uma das secretarias de Estado agora alocada no super-ministério de Santos Pereira esteve consigo. O Emprego.

Era meio-ministério.

 

O problema número um de Portugal é a falta de crescimento económico?, a falta de emprego?

Qualquer finalidade última da acção política têm de ser as pessoas. Portanto, o primeiro grande problema do país é o desemprego. As estatísticas, em si, são falaciosas. Uma coisa é a inflação aumentar meio por cento. Outra coisa é a taxa de desemprego aumentar meio por cento. Aqui, estamos a falar de pessoas, na outra estamos a falar de consumo. A estatística foi alcandorada a mãe de todas as análises. Respeito, mas detrás do biombo da estatística estão as pessoas. Era neste sentido que há pouco usava a palavra “personalização”.

 

A aposta devia ser mais por aí?

Sem dúvida. Reconheço que não é fácil. É mais fácil falar, que é a posição em que estou.

 

Se tivesse esta pasta em mão, a sua prioridade seria…

A minha prioridade seria aumentar a possibilidade de emprego, indiscutivelmente. Para isso é preciso haver economia, crescimento, empresas, e ter políticas sociais (o Estado Social pode ter uma função, não substantiva, marginal, mas com algum peso). Voltamos ao acordo com a troika: se no montante inicial tivesse havido mais 20 a 25 mil milhões de euros para substituir o crédito que os bancos dão às empresas públicas, então os bancos teriam dinheiro para as empresas privadas, para as pequenas e médias empresas. O país vive com duas brutais tenazes. A tenaz da dívida e a tenaz monetária, do crédito. As duas estrangulam.

 

É a favor de uma renegociação da dívida para abrir este aperto das tenazes?

Sou. E acho que mais tarde ou mais cedo se vai fazer. Agora, estou do lado do Governo no sentido em que este não é o momento certo para isto. Temos, primeiro, que ter uma avaliação que nos diferencie, nomeadamente da Grécia, e que prove que estamos a cumprir do ponto de vista técnico e político [aquilo a que nos obrigámos]. 

   

A troika está cá esta semana. Depois desta avaliação, crê ser possível fazer essa renegociação?

Depois desta avaliação, não. Antes do final do ano, creio, esta questão vai colocar-se. Todos olham para a Grécia, não por causa do acordo estabelecido no parlamento grego, mas no parlamento alemão e no finlandês... Vamos estar em banho-maria.

 

Qual é a sua opinião sobre o Código do Trabalho recentemente alterado?

Permita-me dizer, embora tenha sido responsável político por isso, que [o Código em que trabalhei] foi um passo bom. Codificou-se, arejou-se, derrubou-se o Muro de Berlim laboral (eram matérias intocáveis). Isso permite com mais facilidade tratarem-se agora estas questões. O Código do Trabalho, seja ele qual for, não é uma peça de museu. Como todas as outras, a legislação laboral tem de se adaptar aos novos desafios. O que foi decidido pela Concertação Social e pelo Governo, obedecendo ao que está no acordo com a troika, parece-me razoável. Aprecio muito a questão da maior flexibilidade da gestão do trabalho, do tempo de horas, etc. Quanto aos despedimentos, hesito. Acho que a prioridade não é flexibilizar os despedimentos, e muito menos liberalizá-los. Esse é um álibi para muitos empresários. Quando se diz que o país não progride porque os despedimentos não são liberalizados… Bom seria que o grande problema do país fosse tornar os despedimentos mais baratos. Era um clique! Sou favorável à flexibilização, não dos despedimentos, mas da contratação. O grande estrangulamento, sobretudo para os jovens, é não haver oportunidade de entrar no mercado de trabalho. Se um empresário quiser contratar uma pessoa por cinco anos, sete anos, porque é que não há-de fazê-lo? Não é o modelo ideal, mas é aquele que melhor se adapta às variáveis em jogo.

 

É ouvido por membros do Governo?

Sou, por alguns ministros. Por afinidades políticas e pessoais – o Paulo Portas, o Mota Soares. Ou porque nos encontrámos profissionalmente no caminho – o ministro da Saúde, que me substituiu na Médis.

 

E depois foi seu director-geral dos impostos.

O ministro Álvaro Santos Pereira, não conhecia pessoalmente, mas tive vários contactos. É uma pessoa encantadora e de grande abertura de espírito. O primeiro-ministro. Se puder ajudar em alguma coisa, estou disponível. Às vezes a minha opinião não coincide com a do Governo – caso da Taxa Social Única, a transferência de fundos das pensões da banca, determinados aspectos técnicos. Não temos de coincidir.

 

Não sei se acontece com a oliveira haver uns anos em que não dá azeitona?

Dá sempre. Há anos em que dá menos. A recuperação depende do sol, da água, também depende da idade. O ano passado foi um ano óptimo em termos de azeitona. Este ano não sei como vai ser.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2012

 

Inès Sastre

03.06.14

Inès Sastre tem uma beleza de gioconda – misteriosa, profunda. Em pessoa, é como nas fotografias e nos filmes – belíssima, misteriosa, profunda. Tem uma voz grave, um corpo fino. Nasceu em Valladolid, completa 35 anos em Novembro. Vive em Paris. Tem um filho de dois anos por quem está visivelmente apaixonada. É um dos rostos da Lâncome desde 1996. No cinema, começou a trabalhar com Carlos Saura aos 13 anos; Antonioni fez dela a musa de “Para além das nuvens”. É embaixadora da Unicef. Licenciou-se na Sorbonne em Literatura Francesa. Fala fluentemente francês, inglês, italiano e espanhol, claro. Falou em espanhol, e da importância da língua materna. Acedeu em ser entrevistada durante 30 minutos na limousine, em sossego. Acendeu três cigarros. Foi extraordinariamente simpática e disponível. Riu muito. De tudo e de si própria.

 

Fazemos a entrevista em espanhol? É-lhe mais confortável? Fala em espanhol com o seu filho?

Falamos uma mistura de espanhol e francês. Tenho baby-sitters portuguesas, que lhe falam em português, e o pai fala-lhe em italiano. A língua materna é muito importante. O meu filho nasceu em França e anda na escola em França. Mas comprei uma casa em Espanha, antes do seu nascimento. Quero que o Diego tenha contacto com a sua raiz. Estou há muitos anos a viver no estrangeiro, e este Verão foi importante estar dois meses em Espanha.

 

Porquê?

Para retomar contacto com os meus amigos e com a minha própria língua, e fazer as coisas que se fazem em Espanha no Verão. Estou há 18 anos fora, vivendo entre Londres e Paris, sobretudo em Paris; profissionalmente, é importante estar em França.

 

O que é que sente como sendo casa?

Casa é onde está a minha família mais próxima: o meu filho e eu. Em qualquer lugar do mundo.

 

Quando faço uma pesquisa sobre si na internet diz-se sempre que é espanhola. Porque é que se sente espanhola? O seu tipo físico é muito francês.

Francês, italiano – fiz muitos filmes italianos em que fazia papel de italiana. Não me sinto exclusivamente espanhola. Sinto-me europeia. Sempre gostei do conceito de viagem, de aprender com outros. Não só ao nível da língua, mas da cultura, dos costumes. E sempre fui camaleónica, adaptável.

 

Foi educada nesse contexto?

A minha mãe educou as suas duas filhas de uma forma muito espanhola: sempre quis que fôssemos independentes. Em Espanha, a educação é austera, mas dá a possibilidade e a independência de questionar a vida que se tem. O melhor presente que a nossa mãe nos deu foi uma certa estrutura.

 

Como é que a sua mãe reagiu quando, aos 13 anos, Carlos Saura a escolheu para fazer o seu primeiro filme?

Agora que sou mãe, penso novamente na sua atitude. Ela deu-me uma enorme liberdade e confiança. Teve que deixar a minha irmã em Espanha, com o meu pai, e foi comigo para a Costa Rica três meses. São decisões muito difíceis e corajosas. Ser pai ou mãe é uma das coisas que dão mais medo. Porque é sempre preciso tomar decisões. A minha mãe disse-me: “Eu não posso trabalhar por ti; por isso, é uma decisão tua”.

 

Era uma grande responsabilidade, posta sobre os seus ombros. Muito precocemente.

Sempre fui muito precoce. Era uma menina muito responsável.

 

A sua mãe reconhecia-a como sendo especialmente bonita?

Nunca me educaram desse modo. Havia uma absoluta ausência de vaidade física em nossa casa. E não me sentia nada bonita. Eu era muito tímida. Acho que comecei a falar quando fiz o primeiro filme.

 

A falar em público, quer dizer.

A falar. Mesmo em privado, falava muito pouco. Era uma miúda excessivamente, quase doentiamente, tímida.

 

Em que é pensava nesses anos silenciosos, de quase reclusão?

Num monte de coisas. Lia muitíssimo, tinha uma vida interior incrível. Brincava comigo mesma. Este trabalho deu-me a possibilidade de comunicar com o mundo exterior, com as pessoas. Para além de ter sido uma coisa de destino.

 

Mas era uma forma de comunicar a partir da sua beleza, e não a partir do seu mundo interior.

Ah, acredito que reflectimos o que somos.

 

É uma mulher lindíssima, mas misteriosa. Não é fácil adivinhar o que se passa dentro de si.

Porque guardei da infância uma parte mais minha! [risos] Através dos meus filmes, das minhas fotografias, é possível saber de mim, ainda que seja de um modo silencioso.

 

A quem revela a sua vida interior? A quem mostra o que se passa dentro de si? No fundo, pergunto com quem tem relações de grande intimidade.

Tenho muitas. Como todas as pessoas, tenho um círculo mais pessoal, em que me conhecem de um modo mais humano. Quem é a “Inesita” de verdade? Nem toda a gente a conhece. Mas sou muito transparente. Não gosto de mostrar o que não sou.

 

É muito significativo que as outras mulheres a apreciem, apesar de ser um ícone de beleza. Não há uma relação de competitividade.

Disseram-me, quando comecei a trabalhar com a Lancôme, que há sempre que pensar que as minhas clientes são mulheres. Eu não estou aqui para roubar o marido a ninguém! [risos]

 

Portanto, não pode ser demasiado sexy.

Não. Nem sequer o sou. [Parecer demasiado sexy] iria contra a minha natureza. O meu último perfume para a Lancôme foi um projecto muito pessoal; quis projectar a imagem de uma mulher bonita, moderna, forte, com um filho; que não seja lamechas e que seja simpática.

 

Uma mulher que pode tomar conta de si própria. E que conta com as suas vulnerabilidades, com as suas fraquezas...

Claro, claro.

 

Assumir as fracturas, as perdas é uma coisa importante? Não cultiva o estilo da “super-mulher”…

Não cultivo, não. Um amigo meu francês, que é um grande actor de teatro, disse-me que a falha, a pequena debilidade, é o mais charmoso, o que mais toca. Uma mulher perfeita? Isso não seria interessante.

 

Descobriu a sua timidez doentia como uma coisa tocante? Um ponto vulnerável e, ao mesmo tempo, uma qualidade distinta...

Eu não descobri. Fui evoluindo, fui crescendo, fui fazendo coisas. Mas creio que há uma parte do carácter que se mantém intacta. E é o que parece agradar às pessoas. Posso ser muito segura de mim própria e outras vezes não. Fico num quase pânico! “Como é que posso fazer algo tão público, sendo tão tímida?”. Tenho vontade de sair a correr, fugir. Mas ficar é também uma forma de ultrapassar a dificuldade, de desafiar-me.

 

Quando vê as fotografias das campanhas ou de produções de moda, reconhece-se completamente, ou reconhece-se mais em fotografias tiradas lá em casa?

Na maioria dos trabalhos, consigo ficar próxima daquilo que sou.

 

Existe um desfasamento entre a personagem pública e a pessoa privada?

Às vezes, dizem coisas sobre mim, não sei quê, não sei que mais, e fico incrédula: “Que é isto? Que estão a dizer de mim?”.

 

Como se falassem de outra pessoa, uma pessoa fictícia?

Sim. Mas não posso evitar que tenham uma opinião sobre mim, que pensem que a minha vida é isto ou aquilo. Nem posso explicar ao mundo inteiro quem é que verdadeiramente sou. 

 

Porque é que sentiu necessidade de estudar na Sorbonne, e depois em Oxford?

Sempre me interessou estudar. Comecei a trabalhar muito jovem, e estudar é um reposicionamento no mundo real, com gente da nossa idade, com problemáticas da nossa idade. Era importante não perder essa etapa da minha vida. Tive muita gente contra, que dizia: “Nunca mais voltas a trabalhar, as pessoas vão esquecer-se de ti!” E voltei a filmar, contra todas as expectativas! [risos] Arrisquei, e foi difícil, naquela altura.

 

Trabalhava em moda e cinema, ao mesmo tempo.

Decidi estudar com base numa convicção pessoal profunda. Passava diante da Sorbonne e pensava que tinha que entrar ali. Havia um instinto muito forte. Hoje em dia sinto a mesma necessidade de me reposicionar no mundo real. Se não levar o meu filho ao colégio posso perder o sentido da realidade. Sou a mamã que vai ao colégio, que vai ao supermercado…

 

Como era a relação com os seus professores e colegas? Porque não era uma simples colega...

Claro que era.Eu não era tão conhecida assim. O meu primeiro contrato com a Lancôme foi em 96 e comecei a universidade em 92.Já tinha chegado ao quarto ano, e diziam-me: “Chegaste até aqui, não podes desistir!”

 

É previsível que volte a mergulhar na literatura? Os livros são um refúgio?

Provavelmente. Não é de estranhar ter escolhido estudar literatura, era também uma maneira de evadir-me, mentalmente. Não gosto, nunca, de pensar no futuro.

 

Porquê?

Sou uma pessoa mais do dia-a-dia. Quando uma pessoa projecta demasiado o futuro, perde o momento, perde surpresas, perde coisas que a vida pode dar. É importante estar aberto para aceitar a novidade, a mudança.

 

O que mudou na sua vida com o nascimento do seu filho?

Tudo. É muito difícil explicar o sentimento de ser capaz de dar vida a alguém, de ser responsável pela vida de alguém. Pessoal e profissionalmente mudou muita coisa. O que estava em primeiro ou segundo planos, passou a estar em terceiro, quarto…, nem sei. Agora é Diego, Diego, Diego! E há certas coisas que voltamos a encontrar da nossa infância que podemos reviver com um filho.

 

Que recordações da sua infância revive com o seu filho?

Muitíssimas. Por exemplo, sempre gostei muito de regras, que haja horários, um certo rigor. Gosto que se reze à noite, gosto de cantar para ele, gosto de ler-lhe livros. Eu mesma sou muito infantil! Acho que acabamos por reproduzir as coisas mais positivas, e não as negativas. Há pouco telefonei-lhe e disse-lhe: “Diz à mamã que gostas dela”, e ele respondeu: “A mamã foi embora” – e tem dois anos!

 

Está amuado porque teve de ausentar-se?

Sim, sim. “A mamã saiu”...

 

Para ele, não é uma das mulheres mais bonitas do mundo, é simplesmente a sua mãe. Falemos da sua beleza: quando é que percebeu que era bonita?

Quando na escola me disseram, tinha 12 anos, “Fizemos uma votação e tu és a mais bonita da turma”. Eu??? Não era de todo consciente da minha beleza. Às vezes surpreende-me que me olhem num restaurante; as pessoas gostam muito de falar, de contar coisas… E eu gosto que me contem!

 

Encarna a amiga, a irmã, a pessoa que tem disponibilidade para ouvir.

Adoro ouvir as histórias das pessoas. Gosto de sentar-me num café e olhá-las... Apaixona-me. No final, as histórias são sempre as mesmas!

 

São histórias de amores...

Desamores! [risos] De triunfos, de derrotas. Toda a gente se engana, eu e os outros, e acho que a vida não é fácil, nessa matéria...

 

Não resisto a pedir-lhe que partilhe connosco alguns dos seus segredos de beleza…

Regularidade, credito muito na regularidade. E no desporto, e nos gestos básicos de beleza. Duches de água fria, cremes, hidratação, beber água.

 

 

 

Publicado originalmente na revista Máxima em 2008

 

Rui Veloso

02.06.14

Espero na sala com vista para o jardim. Uma empregada brasileira instala-me enquanto ele vai buscar as crianças. As crianças são os filhos, os primos e amigos destes, que entram depois com grande estrépito e perguntam entre si «Que é que vamos fazer? O que é que te apetece fazer?». É meio-dia e meia. Ocorre-me que a substancial diferença entre as crianças e os adultos é que aquelas formulam as perguntas com uma precisão que estes, por força da dispersão e da vida, deixam de saber fazer. Às vezes, pode ser tão simples quanto saber o que se quer fazer.

Rui Veloso sempre soube que gostava da música. Da música que era um sinónimo de perdição num Portugal recém instalado da democracia, titubeante nas perspectivas que oferecia a uma juventude ansiosa. Ele queria ser músico. De rock. Atrever-se a cantar «merda na algibeira», e de isso ser o haxixe que se fumava com gozo e atordoamento na roda de amigos. Chico Fininho, oohooh.

Foi então que lhe chamaram «O pai do rock português», a ele, tripeiro, de figura franzina, óculos escuros, atitude cool. Nessa altura ele ouvia Ry Cooder, respirava uma ambiência de cordas que transportava para as canções que fazia. Depois integrou  Stevie Wonder, Tom Waits, alguns nomes improváveis. Fez canções que não eram canções de rock num sentido estrito. Metamorfoseou-se de Mingos, um rapaz igual aos trolhas da Areosa, que empenha o anel de rubi para levar a amada ao Rivoli, que desconfia que o mundo inteiro se uniu para o tramar...

Foi o filho da vizinha do lado, a cantar a vida e as ralações de todos os dias. Vendeu centenas de milhar de discos, uma coisa nunca vista.

Foi com o dinheiro dessa aventura, a de Mingos e do seu grupo, «Os samurais», que começou a comprar estar casa, escondida numa aldeia a 30 ou 40 km de Lisboa. Uma casa imensa que recuperou palmo a palmo. Mais o jardim, a piscina, o estúdio de gravação que fez de raiz.

Na sala há os discos arrumados por ordem alfabética, e há fotografias desordenadas, consoante são os afectos. Há o pai e mãe, em cima do piano. O pai, que está sempre a dar-lhe cabo da cabeça para que toque coisas do «Auto da Pimenta» (uma ode aos Descobrimentos), que é o disco do filho de que mais gosta. A mãe, que iniciou todo o processo quando se plantou na editora com gravações caseiras debaixo do braço.

Eu conhecia o Rui Veloso faz anos. Sabia do seu imenso amor pela música – ele pode meter-se no avião e ir a Londres ou a Frankfurt, de propósito, ver um grupo como os Steely Dan; e não é pelo investimento profissional, “aquilo não é uma feira discográfica...”; é porque grama aquela música.

O que não conhecia no Rui Veloso era o recorte da sua insegurança. Foi tocante que o revelasse. Confirmou-o como um rapaz da nossa rua, com a vulnerabilidade e a imperfeição que assiste aos humanos. Quê? O Rui Veloso que se mantém no topo disco após disco, desde há anos, o artista português que mais vendeu no ano passado, com medo que lhe fujam as canções? Ele ainda é esse. E é um pai babado que apresenta o filho que reconhece a guitarra de Carlos Santana, e que ele, pai, gosta de levar ao barbeiro.

Rui Veloso tem 47 anos. Escreve canções que as pessoas gostam de cantar.

 

O disco acústico, que faz uma revisitação da sua carreira, foi o álbum português mais vendido em 2003. Quando ouvi o disco a primeira vez dei-me conta de que conheço quase todas as canções e que, além disso, sei cantá-las. Quer dizer, compõe melodias que perduram. Sejam as do «Ar de Rock», que têm 25 anos, sejam as da odisseia «Mingos e os Samurais».

O John Coltrane dizia (vindo do John Coltrane é curioso): “if the people on the street can’t sing it, you don’t have a song”. A canção popular é como a anedota. O processo de composição até a pessoa na rua cantar a canção é uma coisa extraordinária.

 

Como é que sabe que tem «a» canção? Antes mesmo de a canção eclodir, percebe que aquela é que vai ser?

Não, isso nunca sei. A composição é um processo de busca muito solitário. Anda-se ali à volta, à procura de uma coisa que seja harmónica. Sei quando uma canção está feita. Sinto quando faz sentido e quando não. Chame-lhe, sei lá, um hábito, um feeling. Fiz uma agora, “A Espuma das Canções”, com uma letra muito gira do [Carlos] Tê. Tinha tentado uma ou outra vez compô-la e não dava. Pus de lado, estive dois anos sem olhar para ela. Há pouco, aí uns quinze dias, fiz a canção. Ainda não está completa. Ou está. Está gravada – de outro modo perdia-a completamente, era dramático! Vou ouvi-la outra vez, ver se falta alguma coisa. Senão, fecho e acabou.

 

Passou por altos e baixos nestes mais de vinte anos de carreira. Nos primeiros anos teve problemas vocais sérios; deprimiu a ponto de pensar que não conseguia superá-los, que não ia cantar mais. Depois de um interregno, reapareceu com um disco óptimo, que tinha o «Porto Côvo», por exemplo.

Oitenta por cento dos problemas de voz que tive foram psicológicos. Por causa da incerteza, da falta de confiança.

 

A incerteza é quanto ao seu talento ou quanto ao reconhecimento dele?

Em relação a tudo. Em relação ao talento, ao meu posicionamento na música, ao que os outros pensavam de mim; ao reconhecimento, portanto. Fui sempre muito tímido e desconfiado em relação a isso. Definhei nitidamente nos primeiros dez anos, aí até 1990. Foi melhorando gradualmente a partir do álbum do «Porto Côvo» e, sobretudo, do «Mingos e os Samurais». Só há poucos anos tenho um nível de auto-confiança que me permite ir para cima do palco, não morrer de nervos, não me enganar _ não consigo ir sem as letras escritas num papel... Tive uma vez um problema, uma branca, tive que parar a música. Nunca mais me refiz disso.

 

O que é que o fez ficar mais seguro? A apreciação de certas pessoas?

Não faço a mínima ideia.

 

Mas é importante saber de que é que o seu pai gosta, de que é que o seu filho gosta, de que é que o seu agente gosta? Se eles dizem que é bom, é porque é bom?

Não, não é por isso. Houve qualquer coisa cá dentro, uma espécie de clique. Com certeza que tem a ver com o crescimento, com o inevitável crescimento. Um dia, em cima do palco, descobri: “Olha, não estou com nervos”.

 

Foi há quanto tempo?

Há uns seis anos.

 

Não tinha ideia de uma insegurança desse tamanho. Apesar dos altos e baixos, tem uma carreira de enorme sucesso. Em que termos põe, de si para si, essa insegurança?

No fundo, tem a ver com a noção de que prefiro ser discípulo. Eu cultivo a admiração pelos mestres. Sou quem sou porque tive mestres. Esta busca vai sempre ao encontro daqueles que elegemos como modelos.

 

É muito importante admirar?

Sem dúvida. Admirar e respeitar. O respeito também é bonito.

 

O Chico Buarque dizia numa entrevista que quarenta por cento das vezes, senão mais, em que subia ao palco estava ligeiramente bebido. Era a única maneira de ter coragem para enfrentar a plateia.

Também eu! Antigamente era assim. Agora é muito raro. Às vezes acontece-me ir um bocadinho tocado, porque o espectáculo atrasa-se, estou ali a beber um tintinho com a malta e vou com um ligeiro grão na asa...

 

De outro modo ficava tomado pelo medo?

Sim, sim. Falhavam-me os dedos... Andei anos e anos a sofrer.

 

Por acaso parece-me que a sua atitude é agora, de um modo geral, bastante mais descontraída.

Também tem a ver com o facto de ter vindo viver para aqui [aldeia na serra de Sintra]. Aqui não stresso. Quando saio de casa, estou no meio de pessoas que me conhecem, sou constantemente observado. Na livraria, no supermercado, na rua. O meu filho está sempre a notar, mais do que eu, que, às vezes já nem noto. Ainda ontem fomos ao barbeiro às Amoreiras e ele dizia-me: “O pai da próxima vez tem que vir disfarçado. Entrámos ali e estavam todos: olha o Rui Veloso”. É um peso constante. Consegui ter privacidade dentro destes muros.

 

Gosta de levar o miúdo ao barbeiro? Gosta de ser um pai que acompanha de perto?

Ele também gosta muito que eu vá ao barbeiro! A maior parte das vezes cortamos o cabelo ao mesmo tempo.

 

Sobre o quê é que conversa com o seu filho?

Tanta coisa... Ontem, estava a dar uma música de fundo no parque das Amoreiras e o Manel disse: “Pai, Santana”. Realmente, em fundo, lá estava a guitarra do Carlos Santana. Isso tem piada. Já se topa o ouvido do rapaz! A perspectiva do mundo de um gajo com ouvido e de um gajo sem ouvido é completamente diferente. Não tem hipótese. O gajo sem ouvido, o gajo desafinado também tem um coração, como diz a canção. “No peito de um desafinado também bate um coração” [Tom Jobim e Vinícius de Moraes], com certeza. Mas...

 

Mas depois, como também canta, “Não se pode amar alguém que não ouve a mesma canção”.

Outra verdade! Para mim era impossível viver com uma pessoa que não fosse sensível à música. No outro dia conheci um indivíduo no Porto, no meu restaurante, por acaso simpático, um bocado formal, que disse que não gostava de música. Fiquei a olhar, nunca tinha ouvido tal em toda a minha vida... Aquilo, sim, era uma ave rara.

 

Numa entrevista de 87 dizia também uma coisa espantosa: que não seria mais infeliz se fosse trolha!

Sei muito bem o que é que queria dizer e não era bem isso. Referia-me à felicidade daqueles que não têm acesso ao conhecimento. É eventualmente mais telúrica, mais rústica, mais simples. Digamos que na altura eu ansiava por uma felicidade simples, que não tivesse aquela complicação toda da minha vida.

 

Complicação que se traduzia em quê?

Ser famoso e ser infeliz, não ter dinheiro, não ter confiança, pensar que aquilo que fazia não prestava grande coisa. Tudo isso era fruto de ter conhecimento, informação, formação. De estar completamente deformado por essa formação toda. Ansiava a felicidade dos simples. Mas agora não digo isso.

 

O que é que diz?

Digo que sou uma pessoa relativamente feliz, que me considero um privilegiado. Tenho uma boa vida, não tenho nervos antes de entrar em palco, tenho um grupo bestial, vivo com a família – estive separado seis anos –, tenho a casa porreira que sonhava ter, tenho um estúdio fantástico.

 

É um homem de família que gosta de levar o puto ao barbeiro... Que idade têm os seus filhos?

A Joana, de um primeiro casamento, tem vinte e dois. O Manel tem oito e a Maria dez. Perdi um período grande da vida deles, e nisso fui infeliz. Esta casa foi pensada para ter família, para receber amigos. Estamos num espaço reservadíssimo, ninguém vem tirar fotografias. É importante mantermo-nos dentro das nossas quatro paredes e levarmos a vida que quisermos.

 

Esta casa possibilita um tipo de vida que se aproxima da vida que levou no Porto, antes de ser famoso?

Andamos todos em busca de uma coisa que eventualmente já tivemos, quando nos sentimos bem e despreocupados. “É triste ser-se crescido”, como diz a canção. Descobrimos que já não temos a rédea solta.

 

O que é que gostava mais de preservar, ou recuperar, desse espaço primordial?

A curiosidade. A irresponsabilidade. Não dar satisfações, não ter que sair de casa para ganhar a vida. Buscamos essa sensação, nem que seja de modo fugaz, esse retorno à infância, ou, mais ainda, à adolescência. 

 

Mas se não foi especialmente feliz nem na infância nem na adolescência...

Não fui infeliz. Fui o típico rapaz do “Não há estrelas no céu”. A letra liga comigo, liga com o Tê, liga com muita gente. Havia alturas em que o mundo se unia para me tramar... Mas era só o meu mundo interior que ditava assim! Os meus pais, à sua maneira, fizeram o melhor que puderam para que andasse feliz.

 

A sua mãe fez aquela coisa comoventíssima de levar a sua cassete à editora.

A minha mãe estava tão insegura acerca do meu futuro... Eventualmente até achava piada ao que eu fazia e queria ter a certeza. Queria que alguém lá das alturas lhe dissesse: “O rapaz presta” ou “O rapaz não presta”. Eu era o filho mais velho que só ligava à música, à música que não tinha futuro em Portugal. “O que é que vai ser de nós?, o rapaz não estuda, não vai para Direito, não vai para professor”. Aproveitou uma altura em que eu estava de férias para me sacar as bobines – ela sabia que me ia passar, que me saltava a tampa.

 

Era já o material do «Ar de Rock»?

Tinha talvez o Chico Fininho, mas o resto eram canções em inglês, com letras do Tê. O Tê é uma parte que me falta, ou pelo contrário, uma parte que me completa. Prefiro dizer que me falta.

 

Que relação têm hoje? Ele continua a viver no Porto?

Falamos imenso, muito e-mail, muito telefone.

 

Qual das suas canções canta mais frequentemente? Pense naquela que canta no banho, ou no carro, num refrão que o acompanha numa circunstância não profissional.

Não sei... Ontem, por exemplo, acordei com uma música do Marco Paulo! É uma que tem uma melodia popular e que diz: “Nossa senhora me dê a mão”. Prendi-me pelo “Me dê a mão”, que não é o português que se escreve cá.

 

Mas entre as suas canções...

Ultimamente vem-me mais à cabeça o “Primeiro beijo”. É uma canção muito bem conseguida, muito bem arrancada. Aquela letra teve pelo menos três músicas diferentes: uma feita por mim, outra feita pelo Tim [Xutos e Pontapés], outra feita pelo João Gil. Depois teve uma quarta, também feita por mim; foi esta que foi gravada. Foi inspirada numa música, «Alice», do último disco do Tom Waits que vinha a ouvir no carro. Mal cheguei a casa sentei-me ao piano e fiz os dois acordes que tinha na cabeça. Pus a letra do «Primeiro beijo» à frente e entrou. Saiu de rajada.

 

Uma canção pode ser composta assim tão de repente? Anda à procura, à procura, depois ouve dois acordes no carro, senta-se ao piano e a coisa sai?

Sem dúvida. Já me saíram várias assim de rajada, em cinco minutos ficam feitas. Normalmente são canções que as pessoas cantam, o que é curioso.

 

 

 

Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em 2004

 

 

Os mais lidos em Maio

02.06.14

Os conteúdos mais lidos no meu blog em Maio:

5º Dona Bia (o micro-filme que fiz com Beatriz da Conceição) 

http://anabelamotaribeiro.blogs.sapo.pt/dona-bia-127422

4º Miguel Esteves Cardoso e Maria João Pinheiro
http://anabelamotaribeiro.blogs.sapo.pt/miguel-esteves-cardoso-e-maria-joao-92126

3º Grace Kelly (o perfil)
http://anabelamotaribeiro.blogs.sapo.pt/grace-kelly-128751

2º Ana Jorge (entrevista de quando era ministra)
http://anabelamotaribeiro.blogs.sapo.pt/ana-jorge-124120

1º Plácido Domingo
http://anabelamotaribeiro.blogs.sapo.pt/placido-domingo-126699

Mas, na verdade, a página mais acedida foi aquela em que fiz o balanço de um ano de blog:
http://anabelamotaribeiro.blogs.sapo.pt/e-passou-um-ano-um-ano-de-blog-127045

Obrigada pelas visitas e leituras. Valeu!

 

 

Budapeste

01.06.14

Budapeste tem uma identidade múltipla, que não coincide com a imagem antiga de uma cidade dividida pelo rio. O Danúbio não é azul, mas cor de chumbo. De um lado Buda, do outro Peste, duas identidades. No lado Buda há colinas e o palácio real, em Peste uma planura sem fim. Por toda a cidade há marcas do comunismo nos edifícios desmesurados, que esmagam o cidadão e a individualidade. E há marcas do império austro-húngaro, um certo tom operático nas ruas, uma sombra do que foram nas muitas lojas de antiguidades (não propriamente baratas). Quando procurar uma rua, não esqueça que se inverte a ordem: em vez de Béla Bartók, procure Bartók Béla.  

 

Os banhos são um ritual obrigatório para os habitantes da cidade. Vai ficar de fora?. São dezenas de piscinas termais que denotam a influência turca. As águas têm temperaturas na casa dos 36, 38 graus (dois graus fazem uma enorme diferença), o cheiro é levemente sulfuroso, instala-se uma nuvem de vapor sobre as cabeças. As pessoas conversam entre si, lêem jornal, jogam xadrez, parecem meditar, deixam-se invadir pelo torpor, baixam para zero a ansiedade. Ficam até engelhar a pele.

Os mais famosos são os Gellért (hotel contíguo). O chão de mosaicos, o ar fin de siècle, com ferro forjado e vitrais, agradou a Mathew Barney (o marido de Bjork), que filmou aqui “Cremaster 5”.

Outras possibilidades: Széchenyi Spa, um dos maiores complexos de piscinas da Europa (quinze, reconstruídas em 1999). E o Lukács Spa, com água a quarenta graus. São mais frequentados por velhos, de manhã cedo.

 

Gundel é o mais reputado restaurante da cidade. Em subtítulo, no cartão-de-visita, consta que serve o melhor foie gras de ganso do mundo. Vendem uma aguardente deliciosa, numa garrafa esguia, de rótulo elegante. Preço exorbitante. Os empregados têm um movimento coreográfico de filme. Cantam “parabéns a você” em húngaro ou inglês a todos os aniversariantes da sala.

www.gundel.hu

 

A língua magiar é impenetrável. “Nem odiabo fala húngaro” ou é a únicalíngua que o diaborespeita” são frases que traduzem esta dificuldade. É tão agreste que se torna difícil dizer “obrigada” ou “bom dia”. Sem exagero.   

 

“Budapeste?, e o que tem para fazer em Budapeste? Era difícil responder. Olhar o Danúbio?, tomar licores?, ouvir poetas?”. O livro de Chico Buarque é um maravilhoso jogo de espelhos, com uma ideia base: é possível aprender uma língua ao mesmo tempo que se aprende a amar uma pessoa, e desaprender a língua quando o amor chega ao fim. Budapeste é um caleidoscópio que dá para dentro de uma cidade, uma língua, um escritor e a sua namorada húngara (além da brasileira…). Quando o escritor e músico brasileiro escreveu o livro, não conhecia a cidade. Só depois a visitou. Ler o livro é uma maravilhosa aproximação a Budapeste.

 

10 coisas para fazer em Budapeste:

1- Beber Tokaj com foie gras de ganso. É um vinho licoroso, dulcíssimo, um néctar.

 

2- Ver The Shop Around the Corner, filme do mestre Lubitsch, supostamente passado na Hungria, e inspirado numa peça húngara de 1937. James Stewart é magistral. Hollywood fez uma adaptação muito, muito livre anos mais tarde com Meg Ryan e Tom Hanks: You’ve Got Mail! Descubra o original.

 

3- É normal ver um par atracado contra uma árvore, dois corpos a rebolarem na relva da Ilha Margit. O autor do guia Lonely Planet fala da fama que precede os húngaros: de serem especialmente descontraídos na manifestação da libido. Embaraçoso?

 

4- No mercado central, um imenso e irresistível edifício, compra-se salame, cebolas, alhos, toalhas de uma renda fina como a da espuma do mar, túnicas folclóricas com bordados, matrioskas (cada vez mais pequenas, até serem pouco mais do que um ponto). O cheiro a paprika invade a atmosfera.

 

5- O Le Monde descreveu o escritor húngaro Sándor Márai como um “cronista perspicaz de um mundo em colapso”. Uma certa Hungria, as contradições do amor, os desencontros da vida são centrais nos seus romances. As Velas Ardem até ao Fim, de 1942, é de leitura obrigatória.

 

6- O café Gerbeaud, jóia da coroa, fundado em 1858, é forrado a veludos e revestido a dourados. O serviço é tão lento que chega a exasperar. As empregadas são para lá de mal encaradas. Mas os bolos são soberbos, o ambiente transporta-nos para outra dimensão. Compensa a espera e a antipatia. 

 

7- A corte austríaca deixou marcas visíveis (na pastelaria, por exemplo). Os edifícios, de estilo imperial ou da transição para o século XX, denotam também essa ligação. Os secessionistas (movimento do começo do século XX liderado por Klimt e arquitectos como Otto Wagner) são preciosidades, de grande modernidade. Não perca as fachadas e os balcões art nouveau.

 

8- Visitar o quarteirão judeu, imensamente livre, a sinagoga (uma das maiores da Europa).

 

9- Comer goulash num restaurante de esquina. É o prato base da cozinha húngara. Um guisado com carne cortada aos cubos, pimentão e farinha.

 

10- Há ciganos da Europa central nas ruas da cidade. Tocam “Lili Marlene” ou “Dr. Jivago” pelas esplanadas, com o violino e chapéu estendido.

 

 

Publicado originalmente na revista Máxima 

  

 

 

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