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Anabela Mota Ribeiro

Garcia Pereira

01.07.14

Como se sabe, e como se costuma dizer, Garcia Pereira é o último dos maoistas. Ou, pelo menos, o mais proeminente. Mesmo que Mao tenha morrido em 76. Mesmo que todo o monumento do Leste se tenha esboroado há mais de uma década. Mesmo que o PCTP-MRPP, cuja chama mantém viva, não se reúna em convenção vai para 20 anos.

Ao longo de três horas, explicou por que faz sentido acreditar na revolução nos tempos modernos. E encontrou-se consigo no que um homem pode ter de mais íntimo: as reminiscências da infância, a herança digna e corajosa de um avô republicano, a antevisão da morte e do que lá se encontra.

António Garcia Pereira formou-se em Direito, é um dos mais notados advogados da praça, é professor de Direito do Trabalho no Instituto Superior de Economia e Gestão. Tem quatro filhos de três casamentos. 48 anos. Uma concepção do mundo muito particular. Um mundo muito próprio.

Quando a entrevista começou mascava chiclete.

 

 

Os textos que li a seu respeito são de teor político, revolucionário. Num outro, que faz uma abordagem mais pessoal, parece-me crucial a influência do seu avô Pestana, determinante na paixão pelo mar e pela política. No seu escritório, os barcos e os objectos aludem de forma evidente a esta paixão pelo mar.

O bichinho da política é uma coisa que na minha família vem desde há longas épocas. Recordo-me de se falar de um antepassado que andava à espadeirada com os Miguelistas nas Lutas Liberais. A experiência que me tocou muito de perto foi a do meu avô e a do meu tio. O meu avô era um daqueles republicanos de rija têmpera que foi Ministro das Finanças no penúltimo governo antes do 28 de Maio de 1926; era licenciado em Direito, tinha uma cultura enciclopédica notável, e sabia muito de agricultura.

 

De agricultura?

Uma das lembranças curiosas da minha meninice era do meu avô, no Porto Santo, que era a terra natal dele, dar uma espécie de explicações de agricultura um dia de semana; as pessoas iam lá saber como se fazia um enxerto na vinha tal, como se podia atacar esta e aquela doença. Eu aprendi a fazer o sulfato de cobre com que se sulfatava as vinhas.

 

Chegou a andar com o sulfatador às costas?

Sim, sim.

 

Achava graça?

A isso e a fazer o vinho achava graça. Nas vindimas achava menos graça porque não podíamos ir para a praia e tínhamos de passar ali uns dias de costas dobradas ao sol. O meu avô entendia que era uma escola que deveríamos ter, não é que a nossa ajuda fosse importante. Toda a gente de casa participava: fazia-se a vindima, que se carregava para os cestos, e depois fazia-se o vinho no lagar.

 

Pisavam o vinho no lagar?

Sim. O meu avô dizia, (e eu na altura achava um preciosismo, mas mais tarde aprendi que era inteiramente verídico), que o vinho ficava de bastante melhor qualidade quando era pisado ao pé do que quando era prensado; aquele particular amargo que deriva da grainha que foi esmigalhada não se verificava, porque o peso da pessoa não era suficiente para isso. Fiz muitas vezes vinho, e tratava das galinhas, que não era um bicho com que simpatizasse muito.

 

Era o programa habitual das férias? Porque viveu sempre em Lisboa, na Avenida de Roma.

Desde que nasci, terei falhado dois Verões.

 

O que é que aconteceu?

Num, já tinha falecido há largos anos o meu avô, a minha mãe tinha arrendado a casa, houve um problema e ela ficou indisponível. O outro ano foi o de 74 que, como imaginará, foi muito agitado, e a actividade política tornou impossível a ida, mesmo que por pouco tempo. Mas ainda a propósito do meu avô, e só para não deixar coisas para trás, aprendi a conhecer e a orientar-me pelas estrelas com o meu avô, aprendi a gostar do mar com o meu avô. O nosso avô, quando tínhamos cinco, seis anos, punha-nos ao leme da embarcação, uma velha lancha de madeira, ensinava-nos a conduzir a lancha e exigia que fossemos capazes.

 

Nunca teve medo do mar da Madeira, que pode ser tumultuoso?

Quando íamos com o nosso avô, não. Ele tinha uma campanha de pesca e a minha avó tinha outra; também na caça, cada um ia com o seu grupo. Iam pescar para longe. Com as crianças a bordo faziam a viagem da volta à ilha, que já dava para apanhar uns sustos. Tudo era feito com respeito. Pelo mar deve-se ter respeito, e saber até onde se pode ir.

 

Nunca pensou ser marinheiro?

Devo ter pensado ser bombeiro, corredor de automóveis, as mais variadas coisas. E pensei ser engenheiro naval, para construir barcos. Quando cheguei à altura de optar, hesitei muito; gostei sempre também de ciências e as médias eram idênticas num ramo e noutro. Numa situação praticamente de empate, penso que o exemplo do meu avô pesou, acabou por me empurrar naquela direcção. Por outro lado já havia ligação a alguma actividade política; tinha um pouco a ideia, que se revelou verdadeira, que porventura havia uma ligação bastante mais próxima entre os juristas e o exercício da actividade política do que propriamente nas outras alíneas, como se dizia na altura.

 

A sua aproximação à política fez-se ainda no liceu?

Sim. Era miúdo quando o meu tio foi preso por ter sido um dos intervenientes no assalto ao quartel de Beja. Toda a minha família materna era da oposição; os meus avós paternos eram camponeses da zona de Aviz que não cheguei a conhecer. O pai da minha mãe tinha essa tradição, uma vida inteira de luta. Não foi só Ministro da República, foi um dos intervenientes mais activos da chamada Revolta da Madeira, e deportado para os Açores, Cabo Verde e para o próprio Porto Santo, na altura uma terra desértica. A minha família passou grandes dificuldades; a minha avó, que era uma senhora, digamos, de boas famílias, teve que fazer crochet e outras soluções de recurso para conseguir alimentar a família.

 

Conte a história do seu tio.

Em 61, 62 o meu tio foi preso na sequência do falhado assalto ao quartel de Beja. Foi uma experiência muito marcante para mim. Fui vê-lo ao Aljube, quando esteve na tortura do sono e depois fechado naquelas celas onde as pessoas mal cabiam e não se podiam ter de pé.

 

Foi a primeira vez que visitou um preso político?

Foi. O Aljube era das prisões mais esmagadoras na impressão que criava (era um edifício muito antigo, com umas enormes grades, uns enormes portões, muito escuro, paredes exíguas; acho, aliás, que deveria ser preservado como um museu daquela época, porque qualquer dia a Pide não existiu!...). Quando fomos visitar o meu tio tínhamos uma grade à nossa frente, um intervalo onde estava um pide a ouvir a nossa conversa, outra grade, e o meu tio do outro lado, que eu não reconheci à primeira, de tal maneira inchado. Comecei a choramingar, a minha mãe voltou-se para mim e disse: «Ao pé desta gente não se chora», olhando para o pide. Foi uma lição que nunca mais esqueci.

 

Ficou com coragem para a vida toda.

E aprendi o que é a dignidade. Porque a minha mãe estava evidentemente virada do avesso. Perante o irmão queria transmitir uma imagem de força e perante o esbirro queria também transmitir essa imagem. Eles tinham-lhe um ódio tremendo; foi várias vezes castigada em Caxias, uma vez por estar a falar em inglês com o meu tio, outra por se ter aproximado para lhe fazer uma festa. Sucessivos castigos e ela nunca quebrava.

 

São exemplos de tenacidade e coragem que acabam por marcar a sua vida. Quando se pensa em si, pensa-se em rigidez, em firmeza, em inflexibilidade.

Inflexibilidade?

 

Ah não?

Do ponto de vista dos princípios, sim.

 

Então, onde é que é permitido mudar?

Acho que não se muda de ideias como se muda de camisa. Do ponto de vista do posicionamento fundamental na vida, as pessoas não mudam, e quando mudam devemos retirar daí conclusões. Mudar de opinião sobre esta e aquela questão, ter uma opinião hoje e verificar amanhã que está errada e mudá-la, é um imperativo de consciência, às vezes é até um acto de coragem. Agora, estar de um lado da barricada e passar-se para o outro, é porque nunca se esteve verdadeiramente daquele lado.

 

Como é que olha para ex-maoístas, como o Durão Barroso, o Pacheco Pereira, o José Lamego, que se instalaram na social-democracia e no socialismo, que foram seus companheiros de barricada e depois se passaram para o outro lado?

Se alguma coisa caracteriza negativamente a nossa política, é uma razoável dose de vira casaquismo. Quando vejo essas pessoas fico entre o divertido e o confirmado. O Pacheco Pereira andou por alguma coisa que se chamava de Maoismo, mas em meu entender não o era. O Durão Barroso foi afastado do PCTP-MRPP, mais concretamente da sua organização para a juventude estudantil, porque se revelou... O meu avô costumava dizer que os bons marinheiros não se vêem quando o mar está um mar de senhoras, conforme se diz machistamente na linguagem marítima!, vê-se quando o mar está mau. Personagens como o Durão, assim que perceberam que a revolução não era uma coisa ali ao dobrar da esquina, que a viagem era muito mais sinuosa, apearam-se rapidamente e foram à procura de outro comboio.

 

Está a dizer que não tem nenhum respeito pessoal ou político por estes vira casacas, para usar a sua designação?

Não, não tenho. Há pessoas que estiveram próximas, chegaram a militar, e embora se tenham afastado do partido e ido para outros, mantiveram sempre uma posição de respeito por valores essenciais que não renegaram; mais do que isso, não renegaram o seu passado. Assumiram-se como tendo tido um período da sua existência em que defenderam aquelas ideias e orgulhando-se de o ter feito. Dou-lhe um exemplo: o actual Secretário de Estado do super Ministro Pina Moura, o Dr. Vítor Ramalho, de quem sou pessoalmente amigo e por quem tenho respeito, ainda que seja um homem do Partido Socialista e do Governo.

 

Pela ironia no seu tom, imagino que esse seja um caso mais ou menos único.

Eu queria salientar: o Durão Barroso não se afastou do MRPP, o Durão Barroso foi, e em muito boa hora, corrido do MRPP! Assim que se deu o 25 de Novembro e a luta política se tornou muito mais complicada, começou a mostrar a realidade das suas posições.

 

Esse «corrido» parece denotar uma sobranceria moral e intelectual, como se este e aquele e aqueloutro não fossem dignos de fazer parte da luta.

As pessoas não são expulsas por terem ideias. O que está aqui em causa é o oportunismo de se adoptarem determinadas posições que realmente não se pretendem defender, apenas na mira de chegar ao poder.

 

No seu partido não há qualquer sede de poder?

Se calhar há de menos, até! (risos)

 

Qual é a ambição destes partidos? Para que servem partidos como o MRPP nos tempos que correm?

Provavelmente as questões até se põem de uma forma mais aguda em períodos de grande força do movimento revolucionário do que noutros períodos como aquele que vivemos hoje. Aí, a possibilidade, mesmo que teórica, destes partidos chegarem ao poder, é muito maior. O problema que se põe, e sobre o qual pouco se tem reflectido, é: Como é que o povo exerce a sua vigilância democrática em relação aos partidos.

 

O poder, e sobretudo o exercício do poder, tem frequentemente efeitos perversos. A história está carregada de exemplos de uma degenerescência absoluta em relação à ideia original. Olhe o que aconteceu ao seu comunismo.

É um ponto interessante para se pegar. Quando, a propósito da queda dos regimes do Leste, se diz que foi uma derrota do comunismo, eu acho que foi uma enorme vitória do comunismo! Porque aqueles regimes não tinham nada de comunistas! Tinham a denominação de socialistas ou comunistas, mas eram verdadeiros regimes fascistas: com uma minoria no poder, tendo toda a sorte de benesses e regalias com a esmagadora maioria do povo vivendo na miséria, com polícias políticas prendendo e eliminando adversários. O facto de aqueles regimes terem sido derrubados, é um enorme progresso, porque as pessoas viram que aquilo não era o caminho.

 

A ditadura do proletariado alguma vez existiu? Alguma vez se reviu no funcionamento de um país na sua dimensão político-social?

Todas as experiências revolucionárias, desde a Comuna de Paris, (é uma experiência notável em que há a busca da aplicação da democracia directa de um povo: as pessoas são eleitas, prestam contas perante aqueles que os elegeram e há a tentativa de imposição desses princípios). A experiência da Revolução Bolchevique é outra. Mas devíamos preocupar-nos tanto com aquilo por que se caracterizaram de forma positiva como negativa. Sob esse ponto de vista, a experiência da Grande Revolução Cultural Proletária é muito interessante; demonstrou que, ao contrário do que fora afirmado na experiência soviética, só há uma forma de preservar a pureza das ideias da democracia popular depois da tomada do poder, que é exactamente impedir que se criem pessoas instaladas no próprio poder.

 

Concede que houve excessos?

Excessos e erros. Por exemplo, não concordo que na Revolução Cultural Chinesa se tivessem queimado obras do Shakespeare ou partido discos do Beethoven com o argumento de que eram obras burguesas. Há um património histórico da humanidade com o qual todos temos a aprender. E com certeza terá havido aqui e ali violências desnecessárias e até injustas. Apesar de ter representado um grande progresso em relação à Revolução Bolchevique, é uma experiência que falha.

 

O que é que sentiu quando morreu Mao Tsé Tung?

Senti que tinha morrido um grande dirigente e que ventos dos mais diferentes quadrantes se faziam soprar e que não se sabia muito bem o que viria a seguir.

 

Sentiu aquela espécie de dor que se pode sentir quando morre alguém próximo ou marcante na nossa vida?

Sim, e orgulho-me de o sentir. Como quando, por exemplo, assisti pela televisão à libertação do Mandela e me emocionei, quando vi a entrada de Xanana Gusmão em Díli e me emocionei. Não pelas pessoas em si, ou também, mas isso é secundário, mas pelo que isso simboliza. Simboliza que vale a pena lutar, vale a pena passar anos e anos na prisão, vale a pena defender um ideal e, ao contrário do que muitos pregavam, é possível lutar contra gigantes e vencer esses gigantes.

 

Continua a admirar Estaline? Como é que convive com a ideia das valas comuns? Isto não parece muito fácil de digerir numa pessoa que tem essa sede de justiça e se comove com cenas como as que descreveu.

Esta chamada admiração também tem que se lhe diga. Há dois aspectos da questão que não podem ser olvidados. Primeiro, Estaline foi dirigente da União Soviética numa altura de extrema dificuldade, de resistência ao nazismo, (é preciso dizer que a União Soviética é o país onde morreram mais pessoas vítimas da barbárie nazi).

 

Isso desculpabiliza os crimes do Estalinismo?

Não estou a dizer que desculpabiliza. Há também que ver uma coisa: uma experiência revolucionária com aquela dureza implica necessariamente violência. Nenhuma classe sai do poder pacífica e calmamente. A violência sempre esteve presente ao longo da história. Se falarmos daqui de Lisboa as pessoas lembram-se do Marquês de Pombal e do D. José. Então e os Távoras? Mas aí, o aspecto principal que as pessoas escolhem é «O líder político que dirigiu a reconstrução de Lisboa na sequência de um cataclismo horrível e que conseguiu mobilizar a sociedade para vencer a dificuldade». O resto deixa-se para trás e não se fala, está a ver? O que mostra que os critérios são completamente diferentes.

 

O que me parece é que o senhor invoca esses exemplos para ficar mais apaziguado consigo e com a sua admiração pelo Estaline e pela Revolução Cultural.

Não, não, não! Não insista nisso! Eu continuaria, neste regime como noutro qualquer, a defender isso. Não querendo fugir ao tema de que estamos a falar, acho um disparate completo, a vários níveis, o que se está a passar hoje na União Europeia. É muito polémico o que vou dizer, e tem-me valido muitas incompreensões, mas discordo que um artigo na Constituição proíba que haja pessoas ou organizações que defendam ideologia fascista. Que pratiquem actos, que agridam emigrantes, que procurem eliminação física de pessoas de outras etnias, é completamente diferente, e devem ser inquebrantavelmente perseguidos. A proibição parece-me até perniciosa, porque não há nada que faça desenvolver mais uma ideia que a ilusão que, por métodos administrativos e proibitivos, se possa impedir essa ideia de granjear apoios e se desenvolver.

 

Como olha para a situação política austríaca?

Acho um disparate completo da União Europeia. Aquela pessoa e aquele partido tiveram a votação que tiveram, e os primeiros e principais responsáveis são os partidos que se proclamam da Esquerda, que abandonaram completamente o ideário clássico da Esquerda à extrema Direita. Este é um problema mais fundo do que parece à primeira vista. Quem é que sofreu um abalo com a queda dos regimes de Leste? Sofreram antes de mais os partidos comunistas, que proclamavam aquilo como o pai/mãe-sol de todos nós. Mas não foram os únicos. Porque os partidos Socialistas identificavam aquilo como sendo o Marxismo, e afirmavam-se como sendo Marxismo mais Liberdade. Quando um dos pés caiu, o outro deixou de fazer sentido. A saída que estes partidos encontraram foi ou o seu puro e simples desaparecimento da cena política ou a sua direitização progressiva.

É por isso que se diz que cada vez menos se encontram diferenças no ideário fundamental entre estes partidos e os do centro, centro direita.

 

Não deixa de ser curioso que, na cena portuguesa, seja o PP a viabilizar tudo o que há de significativo no projecto socialista. É a esta direitização que se refere?

O PP tem tido um espaço e uma dimensão que lhe são dados sobretudo pelo abandono dos ideais de luta da Esquerda. Não só o PC mas também o PS, deixaram de falar naquilo que eram esses valores fundamentais, e deixaram o campo aberto a que os salvadores da pátria apareçam.

 

O senhor é um democrata?

Sim, considero-me isso.

 

Como encaixa a ditadura do proletariado no seu conceito de democracia?

As pessoas imaginam que na ditadura do proletariado que os marxistas- leninistas defendem, o proletariado deve chegar ao poder e instituir um regime férreo, uma polícia política, uma violentíssima repressão em cima de toda e qualquer força política que não seja a sua. Isto não tem nada a ver com a ditadura do proletariado! O proletariado quando toma o poder é para pegar no Estado e demolir pela raiz o Estado burguês!, não é para criar em substituição do Estado burguês um outro que se chama Estado Proletário. A tarefa é a da demolição do Estado como instrumento de opressão de uma classe por outra. Se me pergunta «Nesse regime há lugar a outros partidos?» Há, em meu entender, há, deve haver, é bom que haja. Significa que os pontos de vista diferentes daqueles que se tornaram dominantes podem ser expostos, devem ser expostos.

 

Depois dessa explicação, gostaria de saber exactamente o que é que o senhor e o seu partido defendem. Qual é o ideário, presumo que ajustado a este princípio de milénio e à nova realidade planetária, que o MRPP reclama?

Ora óptimo! Há uma autocrítica e uma reflexão que todas as forças políticas que se reclamam da Esquerda, e em particular os partidos que se reclamam do Marxismo-Leninismo, têm de fazer; no que toca ao PCTP-MRPP não está feita. Uma profunda reflexão acerca das experiências que houve e o que podemos retirar daí; mas há ainda um outro trabalho por fazer, de grande fôlego. Como é que hei-de dizer isto, para não fazer um discurso de horas... Começamos hoje a compreender que, sobretudo nos últimos 30 anos, houve enormes modificações no mundo que conhecíamos: ao nível económico, com uma profunda modificação da estrutura de classes tradicional que representou, e esteve também aliada, ao surgimento de novas categorias de trabalhadores. Novos operários; só que hoje não andam de fato macaco e de chave inglesa na mão. Se calhar andam de fato Hugo Boss e de computador portátil debaixo do braço. Um engenheiro de sistemas informáticos é claramente um operário dos tempos modernos!

 

Mesmo que a vida desses operários seja burguesa.

Diga?

 

Tem uma definição para burguês e para proletário?

É simples. Os termos em que se coloca hoje é que são diferentes: quem vive da exploração do trabalho alheio é o burguês, quem só tem o seu trabalho, dantes eminentemente físico ou manual, hoje em larga medida manual e sobretudo intelectual, é um operário dos tempos modernos.

 

Queria chegar ao ideário base do MRPP.

Calma. A viragem do século é o agravar de todas as contradições: toda a gente hoje percebe que os ricos são cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Isto é válido para os países e para as pessoas. A outra contradição é a de que os últimos 20 anos se caracterizaram por um enorme progresso científico e tecnológico e, todavia, nunca se trabalhou tão arduamente e em condições tão penosas como hoje se trabalha. Portanto, há aqui uma coisa que mostra que esses progressos não foram colocados ao serviço do conjunto da humanidade mas apropriados apenas por uma pequena minoria. E temos aqui a velha contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais de produção! Ou seja, temos um enorme desenvolvimento da ciência e tecnologia por um lado e temos relações sociais caducas que se aproveitam e utilizam esses progressos não para aumentar o bem-estar da humanidade no seu conjunto mas para agravar cada vez mais o fosso. Esta contradição é a revolução!

 

Qual será o papel do MRPP neste cenário? O seu partido parece estar...

Adormecido.

 

Adormecido. Não se sabe se Arnaldo Matos aparece ou não aparece. Não há convenções há 20 anos.

Não tanto. Mas por acaso é capaz de ter uma surpresa agradável dentro de pouco tempo. Está já em marcha a preparação do congresso do partido ainda na primeira metade do ano.

 

Quanto ao papel do partido.

Temos de distinguir vários planos. Em termos estratégicos o partido continua a defender o socialismo, o comunismo, a tomada de poder pelo proletariado, a instalação da sociedade sem classes. Agora toda a gente percebe que não é um objectivo que possa ser alcançado amanhã.

 

Desculpe, toda a gente percebe, antes de mais, que esse é apenas um pressuposto teórico.

Não é um pressuposto teórico.

 

Depois de tudo o que acabou de dizer, acha que faz algum sentido?

Pelo contrário. Deixe só assinalar coisas que durante muito tempo foram negadas e apresentadas como análises teóricas e que hoje ninguém discute: a globalização veio confirmar, como os comunistas sempre disseram, que o capital não tem pátria nem rosto, que a evolução da sociedade se tem caracterizado por um crescente cavar do fosse entre os exploradores e os explorados (ao contrário da mistela que nos venderam que nesta segunda metade do século se teria assistido a um desenvolvimento das classes médias e dos países médios). É forçoso reconhecer que nunca as contradições estiveram tão agravadas e os extremos tão distanciados, e portanto não é um pressuposto teórico. O capitalismo transporta no seu seio o gérmen da sua própria destruição. Não é utópico! Mas, sendo certo que esse é o objectivo político final, evidentemente só um louco diria que é uma coisa para cumprir amanhã e que estão reunidas as condições. 

 

Como é que assistiu ao surgimento do Bloco de Esquerda e que comentário lhe merece o seu resultado eleitoral, nomeadamente os dois deputados que conseguiu em S. Bento?

O BE apanhou duas boleias. Aparece numa altura em que há sectores crescentes da sociedade, designadamente das pessoas influenciadas pelos valores tradicionais da Esquerda, que no PS não vêem nada de Esquerda e no PC nada de Esquerda vêem. E foi levado ao colo pela comunicação social, que desempenhou um papel de amplificador e de arauto da necessidade de uma alternativa. Estes factores todos conjugados deram um resultado francamente bom para o BE. Mas quais são os princípios do BE, e não estou a falar de intervenções pontuais, a propósito do aborto, etc?

 

Parece que, justamente, é nessas intervenções que o BE vai conquistando votos e assumindo a defesa de causas sociais que não encontram espaço em nenhum outro partido. Logo aí, e partindo do princípio que o MRPP é o mais conservador dos partidos da extrema Esquerda, não se vislumbra qualquer possibilidade de concordância ou trabalho conjunto.

A posição do PCTP-MRPP em relação ao aborto é muito clara, e é diferente, de facto, da do BE. As mulheres devem ter o direito de praticar o aborto em condições higiénicas, médicas e terapêuticas com o máximo de assistência. Mas há outra coisa que não pode ser iludida: o PCTP-MRPP é contrário a políticas neo-Malthusianas da população. Defendemos que a revolução não se faz com filhos únicos. Uma coisa é concordarmos com o ponto de vista pequeno burguês que acha que o casal tem muitas dificuldades e não deve ter filhos porque as dificuldades vão aumentar; o ponto de vista dos proletários é o de que se deve ter filhos com as dificuldades que isso implica.

 

O que, na prática, transforma os filhos em mão-de-obra, em força braçal.

É preciso compreender que aí se está perante um caso de pura e simples subsistência económica.

 

É por pura e simples dificuldade de subsistência económica que os casais hoje não têm mais filhos.

A questão é a oposta: não é fazendo com que as pessoas não tenham filhos, é tendo filhos e travando a luta para que eles tenham direito a um futuro melhor.

 

Está a abstrair-se de uma contingência prática. Mas ainda no que diz respeito ao conservadorismo do MRPP, consta que em 74/75 a directiva «Pensar e agir como um revolucionário» proibia affairs extra-conjugais aos seus quadros. Isto era mesmo verdade?

Existe um documento histórico, «Pensar, agir e viver como um revolucionário», que é uma directiva feita na sequência de um caso concreto de um quadro do partido que foi recolhido em casa de um casal e que, aproveitando-se da ausência do marido, acabou por se servir não só da cama como da mulher.

 

Coitadinha da indefesa.

Suscitou uma directiva que tem algumas preocupações moralistas; hoje, se a questão fosse vista, seria tratada de uma outra forma. Essa directiva é anterior ao 25 de Abril em que há questões muito particulares da clandestinidade, quando os quadros tinham, por vezes, de viver na casa de outrem, etc, etc. Pensei que ia referir a história do casar. Contam-se muitas lendas sobre o PCTP-MRPP; e a certa altura criou-se a lenda de que havia uma directiva no sentido de que as pessoas não podiam casar ou para casar tinham de pedir uma expressa autorização; é completamente mentira. Mas as pessoas que tinham pontos de vista mais dogmáticos... O Barroso, por exemplo, na Faculdade de Direito fez nessa matéria disparates uns atrás dos outros.

 

O que são disparates, no contexto?

Dirigir advertências quando uma militante do partido aparecia com uma camisola mais bonita, e estou a lembrar-me de casos concretos!

 

Não é possível olhar para o caso com o sorriso complacente que se tem com os exageros dos verdes anos?

Não, porque as coisas chegavam ao verdadeiro terrorismo no tratamento dos quadros que estavam sob a orientação dele.

 

Quando foi a última vez que falou com Durão Barroso?

Julgo que foi ainda na faculdade, por esses tempos.

 

Em 69, ano em que entra para a Faculdade, morre o seu avô Pestana. Nos momentos de desespero, e na sua vida a proximidade com a morte deve tê-lo mergulhado no desespero, não se voltou nunca para a fé, não apelou nunca a um ente divino?

Apelar a coisas que não são imediatamente materializáveis, como seja a amizade, a solidariedade, a saudade, seguramente. Só um autómato é que não passa por isso, e prezo-me de não ser autómato. Mas nessas alturas, de um grande choque emocional, como noutras de choque perante o perigo, (já tive algumas: desde o assassinato do Ribeiro Santos, muito marcante para mim, a um acidente violentíssimo de viação ou a um problema muito complicado no mar), a pessoa sobretudo confronta-se consigo própria.

 

E que momentos encontra?

No acidente de viação vi numa fracção de segundo praticamente a minha vida toda.

 

É verdade isso que se diz, da possibilidade de se rever a vida toda na proximidade da morte?

Tenho um pouco essa sensação, naquela fracção de segundo... Desmaiei e recordo-me de estar a alguns metros do outro carro, recordo-me do que estava a pensar na altura, mas não me recordo do embate. Pensei que provavelmente ia ficar ali. E lembrei-me de coisas muito fugidias, de imagens de miúdo, de miúdo muito pequenino, de miúdo um bocadinho maior.

 

Eram imagens de prazer?

Não propriamente, eram uma espécie de reprise, reprise da vida. Mas quando uma pessoa está confrontada com tempo, (essa situação do mar levou 20, 30 minutos), há a possibilidade de consciencializar as coisas. E pensa, «Se calhar vai acontecer isto, se calhar vou ficar aqui. Já fiz isto, há aquilo que gostava de ter feito».

 

Que imagens lhe acudiam?

Das coisas agradáveis, das menos agradáveis: as imagens mais marcantes. Devo dizer que não é uma coisa de que goste muito de falar. A pessoa fica confrontada com o que de mais íntimo há de si.

 

Além dessas experiências muito fortes, já perdeu algumas das pessoas mais importantes na sua vida: os seus pais, o seu avô, a sua primeira mulher. O espectro da morte fez com que a olhasse de uma forma menos terrífica? Ou a morte assusta-o ainda de uma forma terrífica?

Sinceramente não. Talvez porque, evidentemente com os erros e insuficiências que qualquer um de nós tem, me preocupo em estar de bem com a minha própria consciência, ser capaz de me olhar bem nos olhos todos os dias de manhã e tomar as decisões mais importantes em função disso. Habituei-me, e fui um pouco moldado assim, a que a pessoa deve bater-se por aquilo que considera justo e às vezes, nesse bater-se, vai a vida; mas não é isso que deve fazer as pessoas deixarem de lutar.

 

O bem supremo é a dignidade?

Se fosse para ter medo de aceitar o patrocínio de determinadas causas, ou me encolher porque me fazem ameaças de morte relacionadas com essas causas, ou achar que era mais cómodo não levantar a voz para denunciar coisas que considero erradas, a vida, para mim, perdia sentido. O sentido que tenho na vida, entre outras coisas, é esse também.

 

Quais são as suas palavras ou valores? Liberdade, Dignidade, Mar?

Nunca pensei sobre isso. O mar, sim... O mar simboliza, no fundo, toda a vida; pode ser extremamente aprazível ou terrível. É uma imagem de enorme libertação e é também, não raramente, um símbolo de opressão, de cerco. As pessoas que nasceram ou viveram muito tempo numa ilha sabem bem o que estou a dizer. A outra palavra, Liberdade, diz-me também muito; no sentido histórico, de luta por um ideal contra um regime ditatorial, mas também no sentido de se ter liberdade de pensamento, de consciência, de não se ser escravo de ninguém, não se quebrar perante interesses, por mais poderosos que sejam. E depois Justiça, não no sentido aristotélico do termo, mas no sentido de que a pessoa conduz a sua vida por aquilo que entende que é correcto, acertado, em relação a si e aos outros. Há uma grande pressão para que as pessoas não pensem em ideais; mas experiências como a do cordão de solidariedade para com Timor demonstram que, ao contrário do que muitos pensam, as pessoas se mobilizam por causas e de forma extraordinária. Eu acredito profundamente nas pessoas.

 

Ainda se encanta com as pessoas?

Sim. Tenho uma enorme vantagem que me vem da minha profissão de professor; não sei se é o que mais gosto de fazer, porque gosto muito da advocacia, mas gosto muito de ser professor, de ensinar e de aprender. Ao fim de 25 anos tenho arreigada a convicção de que as pessoas merecem que se acredite nelas.

 

Estava a pensar que o seu avô, tendo morrido quando entrou para a universidade, não pôde orgulhar-se de si tanto quanto provavelmente se orgulharia se assistisse ao seu florescimento político, profissional, pessoal. Pensa nisso, às vezes?

Isso não. Mas não há dúvida que foi uma referência importante. O meu avô era uma pessoa de ideais que podia ter tido uma vida descansadíssima e teve uma vida atribuladíssima, embora feita de muitas satisfações construídas no quotidiano.

 

Quem é que se orgulha se si? Ou, perguntado de uma outra maneira, a quem gosta de agradar?

Uma preocupação que tenho é de poder constituir o melhor exemplo possível para os meus filhos (tenho uma do primeiro casamento, dois do segundo casamento, e o mais novinho deste casamento). Os actos são sempre muito mais pedagógicos que as palavras, sobretudo quando têm certa continuidade. Que os meus filhos possam pensar que o que é importante é que a pessoa aja de acordo com o que considera correcto em sua consciência, mesmo que não seja o mais conveniente, mesmo que não seja aquilo que lhe traz mais vantagens imediatas, e que se sintam bem com isso. Esse é que deve ser, dito assim de forma palavrosa, o ideal de vida de uma pessoa.

 

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2003

 

 

 

 

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