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Anabela Mota Ribeiro

Paula Teixeira da Cruz

14.07.14

Vamos aos factos: eu telefono à secretária a pedir a entrevista. Paula Teixeira da Cruz, ela própria, fala-me daí a dois dias e desfaz-se em desculpas pelo atraso na resposta. Foi de uma amabilidade no tom que eu não poderia prever. Nunca a tinha visto senão na televisão, e daí tinha a ideia de ser uma mulher dura. E algo triste.

Acertámos aquilo que eu previa: que não haveria intromissões na sua vida privada, que não falaria da família. O marido, Paulo Teixeira Pinto, quando o entrevistei, fez o mesmo tipo de exigência. A família é um assunto que não deve ser publicitado, e ambos fazem disso um núcleo irredutível.

Não fiz todas as perguntas que gostaria, portanto. Mas creio ter percebido como é que, vivendo em mundos tão diferentes – o folclore que se sabe e que assenta sobretudo num ponto: ele católico fervoroso, ela agnóstica e livre – têm um casamento de tantos anos. Há no coração de ambos a memória de dias imensos em África. Dois filhos que tiveram com pouco mais que vinte anos. Uma militância política na área da social-democracia. Um paradigma que é comum. Um prazer indesmentível na declinação das palavras. Escritas, lidas, também faladas. Ela mais faladora do que ele. Ou talvez só mais descontraída. Mas nem por isso mais aberta. Discurso blindado, por vezes.

Talvez valha a pena dizer, desde já, que esta comparação é injusta, embora apetecível. Porque Paula Teixeira da Cruz tem vida própria, identidade própria. Arrisco dizer que seria afrontoso para ela depender do poder do marido. Mas não se pode negar que a carreira de ambos cresceu muito nos últimos anos, em simultâneo.

Tenho pena que não tenha respondido àquilo que entende como perguntas inevitáveis. Como saber se fez campanha pelo Sim no referendo ao aborto para dizer alto e bom som que não se deixa inibir pela Opus Dei. E por uma questão de consciência, claro.

Segunda parte: chego na hora e data combinadas. O escritório fica na Avenida da Liberdade, coração de Lisboa. Há a fiel secretária, que está com ela há muito tempo e lhe amacia os dias. Traz-lhe a sandes que invariavelmente almoça, e um sumo. É um rectângulo onde cabe a mesa de trabalho, alguns quadros, o sofá onde nos sentamos. Na estante em frente há fotografias, poucas. Uma do marido, em Boston, onde ele não parece nada “o” Paulo Teixeira Pinto. Parece um rapaz novo que gosta de livros. Quando ma mostra, já tínhamos desligado o gravador e já se referia a ele como “o Paulo”, e não como “o meu marido”. Falámos de velas, sapatos, perfumes, aquilo de que as senhoras também gostam de falar. Na entrevista falámos menos disso, mas falámos bastante de quem é e porque é como é. Mulher fria e dura?

 

Minutos antes da minha chegada, deu um mau jeito no pulso. Parece ser um osso fora de sítio, deve doer imenso. Mesmo assim, decidiu avançar com a entrevista já e descentrar-se da dor...

A dor física é uma dificuldade como outras, que temos que ultrapassar e saber dominar. Não podemos deixar que as coisas nos dominem, temos nós que tentar dominar as realidades.

 

Onde é que ganhou esse estoicismo?

Não é estoicismo.

 

Já estou a extrapolar e a pensar num dos tópicos que trazia: o de não ter medo. Com quem é que aprendeu a ter coragem? 

É evidente que tenho medo, é evidente que enfrento esses medos, umas vezes melhor, outras vezes pior. É uma lógica de actuação: em cada momento fazer o melhor que puder e o melhor que souber. Nem sempre conseguindo. Toda a gente tem esses momentos de um cansaço eterno, e outros de uma afirmação, ou vontade de afirmação eterna.

 

Uma afirmação que define uma identidade?

Não estou a falar em afirmação publicitada, mas em contentamento interior. Não há nada neutro. Perante cada acto, por mais pequenino ou indiferente que possa ser, há consequências e é preciso ter isso sempre presente. É a ideia de Sísifo, de que gosto muito.

 

Leu o mito de Sísifo a partir do Camus?

Claro, claro, “O Homem Revoltado” e “O Mito de Sísifo” foram, e são, leituras recorrentes. Camus é o meu escritor fetiche. É o meu mito do eterno retorno.

 

Quando é que se lembra de ter experimentado medo pela primeira vez?

Não tenho nenhuma situação muito concreta... Quando esperava os resultados dos meus exercícios de escola, isso tenho presente...

 

Era o medo de desiludir os que estavam à volta?

Não tanto desiludir. É difícil fazer essa retrospectiva com verdade intrínseca. Todos nós podemos ser muito frágeis e muito fortes. Esta dupla dimensão é essencial para perceber aquilo que é a nossa natureza, para perceber que somos capazes do melhor e do pior.

 

Um dos rótulos que lhe colam é o de uma certa frieza. Mesmo quando fala de causas nas quais se empenha, como a dos imigrantes, não percebemos onde estão as suas zonas frágeis, onde estão os seus afectos.

Tudo aquilo que faz parte dos meus afectos, e sou uma pessoa com sorte nos afectos, não tem que fazer parte da minha vida pública. Seria uma devassa para mim e para quem faz parte do meu mundo, seja o meu marido, sejam os meus filhos, os amigos, a família. Há uma parte que deve permanecer nossa e só nossa.

 

Como é que está a dor?

Está contida.

 

A conversa, e o entusiasmo com que se entrega à conversa, ajudam-na a desviar-se do foco da dor?

Provavelmente. Quando nos debruçamos exageradamente sobre uma qualquer coisa, um qualquer sentimento, essa coisa, esse sentimento assume uma dimensão que provavelmente não tem.

 

Tem uma pulseirinha do Senhor do Bonfim. Que surpresa.

Tenho-a há quase um ano. Não tem a ver com superstições. Foi uma criança, em S. Salvador, que quando a pus disse: "Só pode tirá-la quando... tem que me prometer... quando romper naturalmente". Achei tanta graça à história e à conversa que tive com ela que está aqui até hoje.

 

E tem dois anéis muito bonitos.

Foram presentes do meu marido, mas não de noivado.

 

Quais são os objectos essenciais a partir dos quais podemos contar a sua história?

Objectos, propriamente nenhuns. Excepção feita a uma caneta, um bocado de papel, um livro ou outro. Desde um post-it a um guardanapo de papel. Não há objectos que me limitem ou condicionem. Há momentos, há ideias, há pessoas.

 

E malas?

Malas lembra-me, mais do que viagens, partidas. O conceito de “malas” não é simpático para mim. Se for mala, no singular, não, mas no plural associo quer à descolonização, quer a um período curto de voluntariado que fiz no Inatel da Costa da Caparica, em 75.

 

Fala-me do dia em que soube que tinha que deixar uma vida. Deixar África.

Não deixei propriamente uma vida. Fui muito privilegiada nessa conturbação toda, tinha os meus pais, tinha a minha família. Vim para Portugal, depois fui para a Suíça, (eu e os meus irmãos estivemos num colégio interno), depois ainda fomos para Inglaterra, voltámos. Eu nasci em Angola, gostava do sítio onde estava.

 

Como é que era o seu quarto? Costuma voltar a esse tempo?

Não, aquele quarto deixou de existir. Nunca voltei àquele quarto nem tenho nenhuma vontade de voltar àquele quarto. Foi um quarto que teve um período, um período bom.

 

Nem para olhar para trás volta àquele quarto?

Gosto de olhar para trás. Mas não faço disso um ponto de fixação. Não escondo que Angola foi para mim uma quase obsessão. A lógica do retorno foi, durante muitos anos, uma quase obsessão. Depois foi sendo sublimada. Havia um sonho autonomista assumido, desde muito cedo, discutia-se nos liceus, falava-se nele – como, aliás, é próprio das etapas dos impérios.

 

A vida passada em África, nesse desejo de voltar, nessa rememoração obsessiva, foi mitificada?

Não. Percebi que era inevitável. As aspirações de independência eram legítimas e certas. São sempre processos dolorosos, nenhuma nação nasce sem conturbação. É preciso respeitar esse tempo, é preciso respeitar essa gente. É por isso que não olho para trás com nenhum tipo de dor. Gostaria que as coisas tivessem corrido melhor. Isto é, que não tivesse havido a guerra civil, que todo o processo de transição para a independência tivesse sido menos doloroso. Mas não me sinto no direito de julgar.

 

Viveu um fim de ciclo.

Vivi num fim de império. Vim embora em Junho de 74. A violência foi muito mais psicológica. Eu tinha 14 anos, é a altura de todos os sonhos e inconsciências. Somos eternos, não é? Não há medo físico. Vim embora no início do processo, não tive o contacto com uma realidade mais brutal. Depois, essa obsessão foi-se transformando num sonho bonito. Está no sítio onde devem estar os sonhos bonitos.

 

Nunca mais voltou?

Estive em 95 com a minha irmã em Luanda, resolvemos fazer uma viagem de regresso. Quando chegámos à porta daquilo que tinha sido a nossa casa, não tive nenhuma curiosidade de entrar.


A fachada mantinha-se tal qual?

Não, estava muitíssimo diferente.

 

Percebo, então, que não tivesse querido entrar.

Não foi por isso. Estava lá legitimamente alguém, seria uma devassa.

 

É uma razão objectiva, muito válida. Estou a tentar perceber se, ao mesmo tempo, não era uma razão que usava para si mesma de modo a evitar o confronto com aquilo.

Não há nenhum tipo de confronto. Não tenho, sobre esse período, nenhum problema a resolver, nem nenhuma mitificação. Li o que devia ter lido, sonhei o que devia ter sonhado, acreditei no que devia ter acreditado e aceitei como devia ter aceitado, tudo na altura certa.

 

Não sabia que tinha irmãos, nem dessa vida em bolandas, entre a Suíça e a Inglaterra.

Foi um período muito curto. Estivemos um mês e qualquer coisa na Suíça, depois Inglaterra. Foram experiências muito episódicas, não há nada de particular a relatar.

 

Foi uma transição abrupta para uma outra vida?

Não. Todos os anos estávamos dois meses fora, vínhamos com os nossos pais, num grande passeio, pela Europa. A duração, a curtíssima duração, atenua naturalmente as coisas. O que guardo desse período é: "Definitivamente, não gosto de neve" e "Definitivamente, não gosto de raclette". Não mais do que isso.

 

Quando voltou, a primeira vez, tinham passado 20 anos. Outra vida tinha acontecido entretanto.

Luanda de 95 não tem nada a ver com Luanda de 2007. Hoje, a cidade regurgita de vida, de empreendedorismo, e, espantosamente, no meio de situações tão difíceis, de vontade, de nervo, de alegria colectiva. Todo aquele bulício, com as suas assimetrias, é muito impressivo. Em 95 era uma realidade mais crua. Também não ia à espera que a realidade em 95 fosse igual à de 77... Aquilo que é essencial e permanece, está lá.

 

Nesse tempo, olhavam para si como uma futura advogada? Foi crescendo para ser o quê?

Não sei como é que me olharam. Ninguém é bom juiz em causa própria e muito menos fazendo um processo de reconstituição de como os outros nos vêem; o que provavelmente nos leva a falar de como gostaríamos que os outros nos vissem. Tive uma actividade estudantil participada, até aos 14 anos.

 

Como era a sua escola?

Era um colégio particular, misto, com negros e brancos. Para a minha geração, já não era um problema. Acresce que Angola tinha uma tradição multicultural muito grande. Isso é visível nos primeiros romancistas nacionalistas. Não estou a dizer que não houvesse descriminação, porque havia, claro que havia, mas havia também uma cultura mestiça. Havia poetas, como Alda Lara, que aprendíamos desde os bancos da escola primária. Eu falava do Camus como o eterno retorno; o José Eduardo Agualusa também é muito esse eterno retorno...

 

Conhece-o?

Pessoalmente, não. Penso que é um grande, grande romancista da literatura lusófona. Para quem tivesse dúvidas "O Ano em que o Zumbi tomou o Rio" ou "O Vendedor de Passados" são dois certificados dessa grandeza, que já encontra o João Ubaldo Ribeiro no Brasil, por exemplo.

 

A minha insistência neste momento da sua história não é só porque a infância e adolescência são períodos seminais; é também porque tudo em si remete para um mundo ocidental. Não encontro imediatamente vestígios dessa raiz africana. Deixou essa realidade para trás?

Não. Ela é precedente, com muita simplicidade e com grande descomplicação. Temos duas atitudes perante a vida: ou nos revoltamos contra aquilo que nos vai sucedendo, ou tentamos perceber. E em função daquilo que percebemos, ou vale a pena combater aquela injustiça ou não. O ponto é tentar perceber.

 

Esse encontro com o espelho aconteceu quando? Foi um momento fracturante?

Não houve exactamente um momento. Como lhe disse, Angola foi uma obsessão efectiva. A ideia era sempre "para quando o regresso?". Mas também somos um produto de circunstâncias, há coisas que nos vão acontecendo, e há algo que é inexorável: o tempo. O tempo vai-nos dando distância. E há um dia atrás do outro. Esse dia atrás do outro, muitas vezes, faz uma vida.

 

Diz que é difícil perceber que intenções tinham a seu respeito; mas, podia ter sido médica, ou artista? Que influências chegavam da família? Posso saber o que faziam os seus pais?

Inicialmente, quereria ter tirado Medicina. O meu pai era Engenheiro Civil e a minha mãe, como era característico naquela altura, era mãe. E era um apoio muito grande. Devo à minha mãe uma aprendizagem de responsabilidade e liberdade.

 

Que é a sua máxima em relação aos seus filhos.
Exactamente. Apanhei-a aí. A minha mãe tinha esse tipo de postura e de conduta, o que na época não era comum. Desde muito cedo, podíamos escolher um sítio para onde ir durante as férias. Os nossos pais tinham que saber para onde, de que maneira, com que enquadramento. Foi assim que conheci a Roménia em 1980.

 

Foi à Roménia em 1980?! Não podia imaginar.

Tinha 20 anos, e a maior curiosidade. No fundo, era a fronteira do Império Otomano, e sempre gostei muito de ler História.

 

Tinha um fascínio por Alexandre, o Grande? Ele era uma espécie de herói romântico no seu imaginário?

Não. Eu não gosto muito de conquistadores, sabe?

 

Porquê?

Acho que sempre que o mundo se defronta com conquistadores ou detentores da verdade, dá-se mal, há muita gente concreta que se dá mal. A ideia dos grandes conquistadores, dos salvadores da humanidade é-me geneticamente antipática. Se me perguntar com quem é que gostaria de me ter identificado, na infância, seria com Florence Nightingale! Eu lia tudo sobre a Florence Nightingale, a fundadora da enfermagem moderna. Comecei a lê-la com o Adolfo Simões Muller.

 

É uma salvadora.

Não acho que seja. Foi uma pessoa que podia desempenhar um papel, que tinha a obrigação de tentar, e tentou. Tem essa dimensão humana e mais terrena. A mim, angustia-me e preocupa-me mais a “cotê” do sofrimento humano, e a resposta ao sofrimento humano, do que a vã glória de mandar.

 

Medicina era uma possibilidade.
Clássicas era uma possibilidade, Latim e Grego. Direito era uma possibilidade. Acabei por ir para Direito, não me arrependi nunca. Ainda estive no Centro de Estudos Judiciários, mas cheguei à conclusão que era modularmente incapaz...

 

Porque é que não poderia ser juíza? O que é que mais lhe custaria? Decidir sobre a vida de outro?

Não é tanto isso. De alguma forma, penso que sou mesmo parte.

 

O Grego e o Latim aparecem disseminados no seu interesse pela literatura. Por que é que se lia muito na sua casa?

O meu pai ainda lê muito. A minha mãe lia muito. Tínhamos o hábito de ir às livrarias escolher. Aos onze anos, todos os livros publicados na colecção Romano Torres, eu tinha.

 

Que colecção é essa?

É uma colecção que tem os clássicos, do Walter Scott ao Dickens.

 

Quando é que teve a noção de que a sua opinião contava? Trago novamente o tópico inicial: o de não ter medo. Penso que está muito ligado à auto-estima, à noção de que somos ouvidos, considerados.

Talvez desde o momento em que organizava as festas do liceu. Isto é, escolhia os poemas, as peças de teatro.

 

E em casa?

Em casa, não há assim memória de sermos ouvidos...

 

Que relação mantinham?

A minha mãe já morreu, morreu muito nova, morreu com 47 anos. O meu pai tem uma actividade profissional e com uma projecção intelectual grande. Relativamente aos meus irmãos tenho uma relação de clã. Sou a mais velha. A seguir tenho um irmão, e depois uma irmã mais nova.

 

O apelido “von Haffe” é da mãe?

É. A minha mãe não nasceu na Alemanha, nasceu cá. Mas lembro-me perfeitamente do meu avô materno, Otto. Era menina, e ele levava-me pela mão a ver as flores abrirem de manhã, como era bonito e como se devia ter cuidado. Era uma pessoa com uma idiossincrasia muito especial. Muito alemão.

 

Quais são os momentos em que a sua vida se define? Vamos aos momentos que normalmente são essenciais. Como a morte da mãe muito cedo, o nascimento de filhos tão cedo.

Uma coisa são os momentos pessoais de dor ou de realização, os nossos afectos, os nossos sonhos. Outra coisa são as decisões que tomamos em termos de o que vai ser a nossa vida.

 

Esse sentido estratégico, tem-no?

Não sei se tenho um sentido estratégico, muitas vezes penso que não o terei. Aconteceram muitas coisas na minha vida cujas decisões foram precedidas de uma avaliação afectiva e não de uma avaliação racional.

 

Diz o que acaba de dizer com um sorriso. É bastante mais sorridente do que eu esperava. Quando fala na televisão, é sobre política, e passa a tal imagem da mulher de inteligência fria e ambiciosa. Vive bem com o facto de as pessoas terem só acesso a essa sua realidade, não lhe conhecerem a sensibilidade, a alegria, os sonhos?

Francamente, não penso sobre isso. Eu sou eu, independente de juízos que se possam fazer. Tenho a minha identidade.

 

Não é vulnerável a uma identidade pública que possam imputar-lhe?

Não sou muito vulnerável. Desde que esteja bem comigo e com aquilo que considero o meu núcleo, estou bem. A crítica ou elogio são sempre subjectivos, comportam um grau de subjectividade que partirá de uma análise parcelar. É o que é, apenas isso.

 

Está a dizer-me que só considera as opiniões daqueles que estima e respeita?

Considero a opinião de toda a gente. Mas uma opinião não é condicionante daquilo que eu sou.

 

Quem é que tem ascendente sobre si?

[risos]

 

Sendo uma pessoa com uma identidade bem definida, gostaria de saber quem mexe consigo?

Há duas coisas: vulnerabilidade e indiferença. Não sou indiferente, como ninguém é. Vulnerável, é dentro daquela lógica que lhe expus.

 

Quem é que lhe telefona a dizer uma coisa, e a faz, realmente, interrogar-se sobre o que acaba de ouvir?

Todas as pessoas que considero. Se estiver errada, não há porque não assumir que estou errada.

 

Lapso meu: ia perguntar-lhe “É-lhe fácil pedir desculpa” e acabei por dizer “É-lhe fácil pedir ajuda”. Mas interessa-me saber as duas coisas.

Quando não tenho razão, pedir ajuda e pedir desculpa é-me naturalmente fácil. É preciso alguma soberba intelectual, alguma arrogância para acharmos que não precisamos de ajuda ou que não temos de pedir desculpa.

 

As opiniões que publicamente expressa estão em campos opostos àquelas que o seu marido professa. Não é uma coisa muito fácil, pois não?

Não sei porque diz que são tão opostas! Não quero falar sobre isso e vou dizer-lhe porquê: se respeitamos ambos essa liberdade, ela não tem que ser exibida. Devia ser uma coisa natural, não devia despertar curiosidade a ninguém.

 

Desperta a minha curiosidade porque gostava de perceber como é que se supera, como é que se harmoniza a diferença. Como é que pessoas que pensam coisas tão diferentes, que aparentemente estão em mundos tão diferentes, conseguem o encaixe.

As pessoas podem pensar circunstancialmente coisas diferentes, mesmo que essas coisas sejam estruturais, mas ter o mesmo paradigma. Reconduzirem-se, no essencial, à mesma lógica. Que é uma lógica de liberdade, por um lado, e por outro lado, de respeito. É só isso, não tem grande segredo. Relativamente ao meu partido, não tenho posições tão dissonantes assim...

 

Participou na campanha pelo Sim, no referendo do aborto...

Mas o PSD teve muitas pessoas do Sim e muitas do Não. É sintoma de que se assumiu [isto] como uma questão de consciência. E nestas, não há cores partidárias. Por outro lado, havia várias sensibilidades [acerca deste assunto no PSD].

 

É preciso liberdade e independência para se assumir aquilo que se pensa. Muitas vezes, é isso que inibe as pessoas de dizerem publicamente quem são e o que pensam: não são suficientemente independentes. Concorda comigo?

Concordo integralmente. Mas quando alguém aceita ser não-livre é sintoma de algo que está muito mal. Somos por natureza seres com vocação para liberdade.

 

Quando a vi na televisão a defender o Sim, pensei que era uma mulher corajosa. Que estava também a dizer publicamente que não se sente inibida pelo facto de o seu marido ser o presidente do maior banco privado português. Por causa do poder dele, não deixa de ser quem é, mesmo que isso tenha consequências no jogo social.

Demitir-me de uma intervenção cívica numa matéria dessas, pensando o que penso... Há uma característica na sociedade portuguesa que me é odienta, que foi beber na tradição inquisitorial: é a da intolerância completa para com aquilo que é diferente. Somos uma sociedade ainda paroquial, de aparências. É evidente para mim que a penalização do aborto empurra para o aborto clandestino.

 

Essa é a discussão relativa ao aborto. O que quero perguntar-lhe é se pensou que as pessoas podiam fazer uma leitura como a minha quando a viram apoiar o Sim...

Vai perceber que não comente isso. Porque isso era comentar de outra forma...

 

É inevitável que leituras como a minha se façam. Mesmo do ponto de vista político: nos últimos dois anos ganhou grande poder no PSD. Este protagonismo coincide com uma promoção na carreira do seu marido. Teme que este tipo de associações sejam feitas? Que as conquistas fiquem tingidas por uma promiscuidade que é imputada...

Isso vai continuar a ser uma reflexão interior minha.

 

Não é uma entrevistada muito fácil, ainda que as regras estivessem esclarecidas à partida... Vou tentando não devassar, mas questionar sobre o que me suscita curiosidade.

Não está a devassar, são perguntas que eu percebo.

 

Não é a minha veia sensacionalista. É só tentar perceber o mecanismo das peças. É claro que podemos sempre falar do respeito pela diferença, pela liberdade...

Às vezes aquilo que parece complicado, é simples.

 

Em frente a nós, há uma fotografia da sua mãe, com os seus irmãos e consigo, muito pequenos. Era parecida consigo?

Não.

 

O cabelo é diferente. O seu cabelo é a sua imagem de marca. Há quantos anos é que o usa assim?

Para aí desde os dez, doze anos. Isto é cabelo à preguiçosa.

 

Ao mesmo tempo, esses saltos são muito coquettes. Nunca a tinha visto de calças.

Tailleur, é normalmente como ando. Mas uso muito as calças e o blazer, de verão ando quase sempre assim. Porque é prático.

 

É uma mulher feliz?

Sou, claramente. Tenho muito mais, quer do ponto de vista dos afectos, quer do ponto de vista da minha realidade pessoal e profissional do que a maioria das pessoas. Não tenho desencontros com a história, como costumo dizer.

 

Isso não garante nada. Quantas vezes, apesar de tudo bater certo...

Não bate tudo certo! Todos os dias há milhares de contrariedades.

 

Já fez alguma coisa heróica, alguma coisa de que se orgulhe especialmente?

Heróica, não. Mas não temos de ser heróis todo o tempo, e é preciso perceber isso.

 

Qual é a sua definição de heroísmo? Lembrei-me outra vez da Florence Nightingale: na adversidade, abdica de si e socorre outros.

Não sei se abdica de si ou se se realiza plenamente assim.

 

Aquilo dá-lhe dimensão. O que é que lhe dá, a si, dimensão? O que é que justifica mais que tudo a sua vida?

Os meus filhos, em primeiro lugar.

 

Surpreende-me essa resposta.

Porquê?

 

Porque tenho ideia que é realmente uma pessoa inteira. E que existe independentemente dos filhos, independentemente dos pais, independentemente da carreira.

Sim, mas se me pergunta o que é que me realiza mais, são naturalmente eles.

 

A dimensão política, que sentido tem na sua vida? Já disse que não será candidata à Câmara de Lisboa [quando a entrevista se fez, discutia-se a possibilidade de eleições antecipadas]; mas, programa um futuro político mais fulgurante, mais executivo para si?

Se me pergunta se tenho uma meta política, certamente que não. Tenho um horizonte profissional e tenho projectos profissionais. Estou bem como estou, neste momento. Para haver um posicionamento para determinados cargos é preciso ter vontade. A vontade face a isso, não é nenhuma.

 

Esse exercício de poder não é uma coisa que lhe apeteça?

Não. O exercício de poder que amo loucamente e de que não abdicarei em nenhuma circunstância é o de ser eu mesma. Todos os outros são pequenos géneros circunstanciais de poderes. Se me perguntar: “O poder é para si um desafio?”, qual poder? O poder de me libertar interiormente, é. O poder de melhorar, é.

 

Libertar interiormente de quê?

Libertar interiormente no sentido de conduzir a minha inteligência nas direcções que quero, nas coisas em que acredito, nas perguntas que faço – eu e quatro quintos da humanidade. O resto é uma dimensão mais limitada e, digo-lhe com toda a franqueza, não foi nunca procurado. A ideia do poder para mandar... mandar é um exercício de sofrimento.

 

Como assim?

Quando tem que escolher, quando tem que mandar, há sempre uma dose sacrificial. Há sempre uma escolha em prejuízo de alguma coisa. Isso é um exercício de sofrimento.

 

Ao mesmo tempo, há um lado apetecível no facto de ter poder: que é o de fazer vingar aquilo em que se acredita.

Isso não é poder. O fazer vingar aquilo em que se acredita é o objectivo, o poder é o meio.

 

Então, o rótulo de mulher ambiciosa que lhe colam, não se revê nele?

Não me parece que seja a vertente mais certa.

 

Como é que lida com a sua falha?

Umas vezes bem, outras vezes mal, como toda a gente. Se é uma falha estrutural, menos bem, obviamente.

 

A quem é que se confessa? Uma vez que não tem convicções religiosas... É importante ter um interlocutor com quem fala como de si para si?

Estou habituada a falar de mim para mim desde muito cedo. Fui sempre muito reflexiva. Quando as pessoas dizem que tenho um ar pouco alegre, não é um ar pouco alegre: é talvez um ar reflexivo. Desde que possa pensar de mim para mim e partilhar com as pessoas que considero e de quem gosto as minhas dúvidas, que são muitas, e as minhas certezas, que são algumas, não preciso de muito mais.

 

Porque é que fuma tanto?

Se puder fumar, fumo loucamente porque gosto mesmo de fumar. Se não puder fumar, não fico particularmente stressada com isso.

 

Gosta porque sabe bem?

Não sei, é tudo junto, é o gesto, é sobretudo um hábito. Fumo desde os dezoito anos.

 

Foi nessa altura que encontrou o seu marido, ou não posso perguntar?

Não, foi antes, que eu fui colega do meu marido no liceu. Depois voltámos a encontrar-nos na faculdade.

 

Começaram a namorar na faculdade. É uma coisa rara nos tempos que correm, um casamento acontecer tão cedo e ser tão duradouro. Podia imaginar que seria a pessoa da sua vida, quando o viu?

Não vou falar disso.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2007