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Anabela Mota Ribeiro

Filipe Pinhal

22.07.14

Filipe Pinhal tem 65 anos. “Quando iniciei a minha actividade bancária, nunca pensei ser administrador do banco. Não é que não aspirasse a ser. Mas até chegar a administrador havia uma filtragem muito grande. Também nunca esperei vir a ser vice-presidente. Queria chegar ao fim da minha carreira bancária como uma pessoa que tinha gerido muito bem a sua área e as suas equipas. Sou vaidoso como qualquer mortal é vaidoso”.

Não foi assim que chegou ao fim da sua carreira bancária.

Na entrevista, o discurso é menos enraivecido do que se esperava. Mas no livro Prova de Vida pergunta-se em primeira página: “Os Governantes que agiram, as Autoridades que apadrinharam e os Aliados que ajudaram à festa estão satisfeitos com a obra feita?” Fala-se da guerra do BCP, é claro. Aliás, o livro é uma espécie de “toda a verdade sobre o BCP, a partir de Filipe Pinhal”. Uma forma de se defender, diz ele.

 

 

Que preço pagou por não ser Opus Dei?

Não creio que tenha pago algum preço por não ser Opus Dei. Toda a minha vida convivi com pessoas da Opus Dei. Comecei a trabalhar em 1973, no Banco da Agricultura, onde a Opus Dei tinha uma influência importante através do Banco Popular Espanhol. Inclusive, chegou a ter um administrador residente espanhol. Isto nos anos 60. O senhor saiu de Portugal em circunstâncias rocambolescas. Mas a verdade é que a influência do Banco Popular Espanhol ficou. Nunca tive qualquer tipo de abordagem.

 

Está a dizer-me que Jardim Gonçalves nunca o tentou seduzir para a Obra?

Falámos várias vezes sobre a Obra. Eu tinha uma posição crítica e acontecia falarmos sobre o assunto. Mas nunca por nunca o Eng. Jardim me fez um convite para ir à missa, para me aproximar ou frequentar algum curso da Opus Dei. Havia, e tanto quanto sei continua a haver, uma relação académica entre o BCP e a AESE (a Associação de Estudos Superiores da Empresa). Eu fiz o PADE (programa de alta direcção de empresas) no ano em que fui administrador. Privei com as pessoas da escola, deixei lá amigos, ainda o mês passado tiveram a gentileza de me convidar para almoçar.

 

Porque é que acha que nunca foi abordado?

Provavelmente acharam que eu era demasiado pecador. [riso] Devem ter achado que eu era desalinhado. Tive algumas abordagens, relativamente discretas, para integrar partidos, governos. Mas não me sujeito à disciplina partidária. O único clube de que sou adepto, e não sou sócio, é o Sporting.

 

Não teve sequer admoestações por ter casado duas vezes?

Não. O que se passava atrás das cortinas, não faço ideia.

 

Não pensou nisto quando Paulo Teixeira Pinto foi escolhido para suceder a Jardim Gonçalves?

Falou-se muito que o Dr. Paulo Teixeira Pinto tinha sido escolhido pelo Eng. Jardim por afinidades espirituais. Não senti que fosse isso. Estive do lado daqueles que sempre pensaram – e continuo a pensar, entendamo-nos – que a escolha do Dr. Paulo Teixeira Pinto foi em razão dos seus méritos pessoais e intelectuais.

 

Em que circunstâncias soube que o sucessor de Jardim seria Teixeira Pinto?

Foi o Eng. Jardim que me disse. Tanto quanto me disse, fui a primeira pessoa a saber fora do núcleo reduzido do conselho superior com quem o Eng. Jardim trabalhava. Antes de tomar a opção terá falado com os accionistas, com os donos do dinheiro.   

 

Acha que os ouvia, ou decidia autonomamente? Visto de fora, parecia que o jardinismo era um bloco sólido, autónomo, que não precisava de ouvir ninguém, mesmo os que eram donos do dinheiro.

Ouvia alguns, outros não. Esses alguns, ouvia numas circunstâncias, não ouvia noutras. O banco começou nesta lógica: a de ser um banco que ia crescendo com muitos accionistas detentores de pequenas poupanças, pequenas participações. É o modelo de gestão de empresas que foi lançado nos anos 60 em todo o mundo contra o modelo familiar. Haja em vista nos Estados Unidos a família Rockefeller ou em Portugal o grupo Mello. Andei numa escola de gestão de empresas de 1965 a 1970; este modelo era contestado em todo o mundo, a favor de empresas com uma base de capital alargada em que não havia propriamente donos e o poder residia nas mãos do que se chamava a tecno-estrutura. O introdutor deste modelo em Portugal, ainda nos anos 60, foi o grupo Mello. O BCP nasce com esta matriz. O banco é criado por escritura pública em 1985, inicia actividades em 1986, vai à bolsa em 1987. Os resultados nos primeiros anos de vida do banco foram tão espectaculares que os accionistas aplaudiram.

 

Ou seja, Jardim Gonçalves tinha uma força extraordinária mercê desse dinheiro que dava a ganhar.

E dos bons resultados que tinha. A imagem que passou para a opinião pública de que, ali, quem governava era a tecno-estrutura, correspondia à realidade. Correspondeu à realidade, pelo menos, até 1995, altura em que o BCP comprou o Atlântico e ao fazê-lo integrou um banco que era maior do que ele próprio. No ano 2000, quando o BCP integrou o Banco Mello e o Banco Pinto & Sottomayor a capitalização do BCP era superior à do Commerce Bank alemão e do Banco Popular Espanhol. Nessa altura, os accionistas ainda estavam satisfeitíssimos com a gestão. 

 

Estava a contar que Jardim lhe disse que era a primeira pessoa a quem comunicava que o sucessor seria Teixeira Pinto.

E por uma razão: o Eng. Jardim podia pensar que eu seria um candidato natural ao lugar.

 

Toda a gente podia pensar. Inclusive o senhor.

Não, nunca fui candidato ao lugar. Isto dá-se em 2005, eu estava a fazer 60 anos. Sobretudo numa banca sujeita ao escrutínio que as sociedades cotadas são hoje, a partir dos 60 anos os analistas começam a perguntar pelo plano de sucessão. Fui uma das pessoas que apoiaram, e convencido de que estava a fazer bem, a escolha do Dr. Paulo Teixeira Pinto. Porquê? O Eng. Jardim tinha feito 20 anos de mandato, e o Dr. Paulo Teixeira Pinto, com os 40 anos que tinha, ia assegurar pelo menos um consulado de 20 anos. A estabilidade na gestão dá uma enorme confiança aos mercados, aos investidores, aos accionistas, aos empregados dos bancos, até aos clientes. Não fazia muito sentido que eu fosse eleito em 2005, fizesse dois mandatos e viesse embora.

 

Por outro lado, era uma aspiração legítima para quem estava no banco desde a fundação, era há anos o número dois de Jardim, e tinha sido mais jardinista do que todos os jardinistas.

A afirmação é sua, essa de eu ser mais jardinista do que todos os jardinistas.

 

Não era indefectível?

Eu concordava, normalmente, com as boas ideias do Eng. Jardim. As nossas divergências (somos pessoas diferentes e pensamos pela nossa própria cabeça) nunca transpareceram para fora. Sempre as resolvi dentro do gabinete. O Eng. Jardim foi meu chefe no Banco da Agricultura.

 

É aí que se conhecem?

É, em 1973. Uma equipa comercial, quatro pessoas, chefiada pelo Eng. Jardim. Nunca discordei do Eng. Jardim em público. As divergências eram resolvidas em conversas um a um.

 

Lembra-se da primeira vez que o enfrentou?

[Aconteceu n]o Banco da Agricultura. Divergências no sentido de eu preconizar uma solução para determinado problema que era diferente da solução que o Eng. Jardim preconizava. Coisas da organização comercial do banco.

Comecei a trabalhar com 15 anos. Fiz o curso comercial e comecei a trabalhar numa empresa importadora de produtos alemães. Distribuía produtos ópticos junto dos oculistas e tinha uma actividade junto dos oftalmologistas para receitarem as lentes que representávamos. Isto coincide com o início do ensino do marketing em Portugal, em 1967, em Económicas. Estava a viver na universidade uma coisa que eu fazia todos os dias. Fui motivado para as questões de natureza comercial, da organização e promoção do negócio.

 

Não é muito diferente do que fez mais tarde na Nova Rede.

A Nova Rede colhe a parte boa de tudo o que tinha feito antes. Procurei eliminar os erros que cometi.

 

Voltemos à relação com Jardim Gonçalves. Assumir a divergência com uma pessoa que é nosso superior hierárquico e que tem a aura que ele tem…

Não só a aura. Tive a felicidade de trabalhar com três pessoas com uma capacidade intelectual acima da média e com características muito diferentes. Curiosamente os três no Banco da Agricultura. O Eng. Jardim, o Dr. Almerindo Marques (que é o oposto do Eng. Jardim e que foi meu colega em Económicas) – de ambos sou amigo ainda hoje. A terceira pessoa, que já morreu, e que foi a pessoa com quem mais aprendi do negócio do retalho foi o Dr. Eduardo Consiglieri Pedroso. Quando se encontram pessoas em quem a componente intelectual e a componente prática estão muito bem escoradas, é difícil batermo-nos com elas. Procurei cuidar das duas vertentes e, no fundo, ser o que eles eram. Mas eles iam uns anos à minha frente, tinham mais experiência do que eu. Não me envergonho de dizer que na maior parte das divergências que tive com o Eng. Jardim ele tinha razão.

 

Era uma coisa tão pública que se pode dizer: Jardim era conhecido como O Papa. Dá uma ideia do poder que tinha.

Sim, sim, um poder incontestado. Nem entre accionistas, nem entre empregados do banco, nem entre administradores do banco. Há o savoir faire, o carisma. Onde está, marca. Mas não vamos imaginar que no banco 20 mil pessoas tinham medo do Eng. Jardim. Nem o Eng. Jardim teve alguma vez tiques de autoritarismo na condução das coisas.

 

Havia um temor reverencial?

É verdade. Era uma autoridade natural, e que as pessoas aceitavam como natural. Por força da sua superioridade intelectual. Por força do modo como apresentava uma ideia – já muito trabalhada.

 

Tudo começa, de certa maneira, com a sucessão de Jardim Gonçalves…

Quando diz “tudo começa” refere-se aos problemas do BCP?

 

Ia dizer que quando se fala do BCP fala-se do ano de 2007 e do que decorre da sucessão de Jardim. Mas o que lhe queria perguntar é quando é que começaram na sua opinião os problemas do BCP?

Em Março de 2006, quando é aprovada uma alteração de estatutos para adaptar os estatutos do banco a um dos dois novos modelos de organização das sociedades que estavam contemplados nas orientações da CMVM. Um modelo monista, com conselho de administração único e uma comissão executiva, e um modelo dualista com dois órgãos de governo, um conselho geral e de supervisão e um conselho de administração executivo. O código das sociedades comerciais, na parte em que trata da organização dos modelos de governo, tem um erro, uma entorse.

No BCP, ambos os órgãos passaram a ser eleitos em Assembleia Geral. Quando esta entorse é introduzida – e ainda lá está – fica aquilo a que eu chamo um reino com duas cortes. Ambos vão beber o seu poder à base. Ambos podem dizer que foram eleitos pelos accionistas.

O conselho geral de supervisão, que está acima do conselho de administração executivo, chama-se [justamente] conselho geral e de supervisão. Uma supervisão que não tem poderes, designadamente o de destituir o supervisionado, é fraca.

 

O que aconteceu no BCP, na sua opinião, resulta disso?

Sim. São duas pessoas com personalidade forte. Ambos pensam pela sua cabeça. Como estes órgãos são independentes, completamente independentes, em determinada altura estão em trajectórias divergentes.

 

Numa linha: Jardim não esperava que Teixeira Pinto se autonomizasse. Que, apesar da sua personalidade forte, ousasse seguir um caminho que não o de Jardim.

É uma leitura.

 

Faz-lhe sentido?

Faz todo o sentido. Para mim, foi uma surpresa. O Dr. Paulo Teixeira Pinto é uma pessoa com o sentido das conveniências. Pensei sempre que duas pessoas inteligentes a trabalharem num banco que sempre primou pela unidade seriam sempre capazes de dialogar o suficiente para que os seus rumos fossem convergentes. Porque é que os rumos passaram a ser divergentes? Ainda hoje não sei. Não vejo nem um nem outro a querer alguma coisa que não fosse o interesse da sociedade.

 

Poder?

Não acredito. Não vi nunca o Dr. Paulo Teixeira Pinto interessado em ter poder. Tinha era as suas próprias ideias sobre o que era o melhor caminho para a instituição. E aí entram influências de consultores, colegas de administração, accionistas. A pessoa, por muito forte que seja, por mais que pense que não é influenciada, acaba por ser influenciada.

 

Não deixa de ser irónico que a escolha de Teixeira Pinto tenha sido uma aposta na juventude, e que depois, aquele que era considerado o delfim de Jardim, se tenha emancipado e cortado, precisamente, com a continuidade pretendida.

É preciso situarmo-nos. Em 2005 o BCP acabava de reunir quatro bancos num só. BCP, Sottomayor, Atlântico, Nova Rede, já para não falar do Banco Mello. Esta reunião foi-me confiada. Estava absolutamente concentrado em dar unidade [a estes quatro bancos]. O banco tinha 1400 balcões em Portugal, muitos balcões foram encerrados, muita gente reformada, recolocada, houve a adopção da marca única Millenium BCP em Outubro de 2003 e depois a exportação deste conceito nos outros mercados em que operávamos. Eu estava tão absorvido nessa tarefa que tinha muito pouco tempo para me ocupar de outras coisas.

 

Não deu por nada – é o que está a dizer.

O primeiro sinal de divergência que tenho é no início de Maio de 2007 quando se está a preparar a assembleia-geral de 28 de Maio e há uma proposta que o Dr. Paulo Teixeira Pinto se recusa a subscrever. O Eng. Jardim insiste em levá-la à assembleia.

 

Isso quer dizer que as duas partes, a cúpula do banco, tiveram quase um mês para perceber como é que se iam enfrentar na assembleia.

Não sei o que se passou no conselho geral e de supervisão. Sei o que se passou no conselho de administração. Quando o Dr. Paulo Teixeira Pinto dá conta desta decisão, a perplexidade de todos os elementos, sem excepção, foi enorme. Aquilo caiu como uma bomba. Nove pessoas à mesa. Era uma divergência inesperada num banco onde tudo tinha sido muito harmónico até então. Eu não tinha o mínimo sintoma de que alguma coisa de dissonante estava a acontecer.

 

Mas como podia não haver sinais dessa dissensão?

O Dr. Paulo Teixeira Pinto participava nas reuniões do conselho geral de supervisão, mas não era membro. Nisso era escrupuloso: nunca fez report do que se passava num órgão do qual ele era convidado. Era espartano na obediência a esta disciplina.

 

Em Maio de 2007 foi o começo do desmoronamento do grande império romano. Foi uma coisa inaudita.

Inaudita é a palavra adequada.

 

Quando é que começou a perceber a proporção irreversível que aquilo tinha?

Em Agosto de 2007, em Julho ainda, quando aparece uma proposta de destituição de cinco administradores. O desmoronamento do império romano, como lhe chama, dá-se em quatro momentos: na assembleia de 28 de Maio, naquele ponto oito que não foi subscrito pelo conselho de administração e que teve a oposição de accionistas (antes disso tinha havido entrevistas na televisão a dizer que esse ponto era o ponto em que o Eng. Jardim se queria perpetuar no governo e mandar em tudo e que queria ser ele a nomear e a destituir o presidente executivo). Todos nos lembramos da célebre imagem do V de vitória à saída do Palácio da Bolsa. 

 

Joe Berardo.

Pensei que o problema se ia ultrapassar. Havia ali um furúnculo, rebentou. Pensei que as pessoas não queriam a destruição do banco, a desvalorização dos seus activos. Ainda sou do tempo em que se ensinava nas escolas de Economia que o mercado tem sempre razão.

 

Este caso contrariou a tese…

… de que os mercados são racionais, de que os accionistas são racionais. Os accionistas deram todos os tiros, não nos pés, mas no estômago, nos braços.

 

Estômago e braços próprios ou nos dos outros?

Deram nos outros, mas no entusiasmo também deram muitos tiros neles próprios. Não foram balas perdidas. Não tiveram consciência de que estavam a dar, mas deram. Quando dois accionistas propõem a destituição de cinco administradores, eu não tinha notícia disto em nenhuma empresa cotada em nenhum grande mercado. Não pensei que estava tudo perdido, mas pensei que ia ser muito difícil consertar isto. O banco ficou cindido em dois. 

 

Vamos chamar as coisas pelos nomes: era uma tentativa de purga do jardinismo?

Penso que sim. Mas era também uma tentativa de apropriação do comando do banco. Do lado accionista, mas também do lado da tecno-estrutura. Se virmos a lista das pessoas que subscrevem as propostas, que são candidatas à eleição, nos assessores e advogados que estavam a apoiar esses accionistas activistas, encontramos uma presença marcante dos golden boys do Compromisso Portugal. (Foi a Clara Ferreira Alves que usou a expressão, que achei ajustada). Há uma clara tentativa de tomada de posição em Agosto. O João Vieira Pereira, no Expresso, foi a primeira pessoa que viu com nitidez o que se estava em causa: era uma luta pelo poder e pelo dinheiro. É o segundo acto.

O terceiro acto dá-se em Novembro, já eu sou presidente, quando há a proposta de fusão do BPI com o BCP a que o Governo e os maiores accionistas se opuseram. Ainda há dias, Fernando Ulrich disse: “A fusão só não se fez porque o Governo não quis”. 

 

Já vamos dissecar alguns destes elementos. Mas complete a sua sequência. Quarto acto.

O dia 21 de Dezembro de 2007 quando o Banco de Portugal (BdP) e a CMVM actuam no mesmo dia. E não foi um dia qualquer. Às seis e meia da tarde da última sexta feira antes do Natal.

 

Acha que a escolha do dia não foi inocente.

Foi premeditada, como é evidente, estrategicamente escolhida. O Dr. Vítor Constâncio reúne com meia dúzia de accionistas, todos menos um eram activistas – e ele sabia-o – e diz-lhes: “Os senhores Pinhal e Beck não podem ser eleitos”. Branco é, galinha o põe, escolham outros. A reunião prosseguiu no dia seguinte, sábado, nas instalações da EDP, e à saída os jornais já diziam qual era a nova composição do conselho de administração.

O BdP, se não estava satisfeito, ou se tinha preocupações em relação ao que se estava a passar no BCP, podia não falar comigo; mas tinha para falar o conselho geral de supervisão, o conselho superior onde estavam representados 50% do capital do banco, o presidente da mesa da assembleia-geral do banco; podia ter chamado o órgão correspondente ao conselho fiscal. Tinha muito por onde escolher.

 

Está a dizer que não compreende porque é que o BdP chama os accionistas.

Aqueles accionistas. Chama os oposicionistas. Podia ter chamado os órgãos legítimos do banco. Nesse mesmo dia, sexta-feira, a CMVM manda ao banco uma carta com as conclusões preliminares das investigações que tinha feito no banco. A seguir temos quatro dias [até dia 25 de Dezembro] em que alguns dos principais accionistas estão no estrangeiro.

 

Voltemos ao segundo acto, nessa sua hierarquização de acontecimentos. Há o momento de guerra aberta entre Jardim e Teixeira Pinto, e depois a sua ascensão à presidência do banco. A sua entronização é feita no Tagus Park e não na sede. O que é bem sinal de que lado estava. E era também uma expressão de uma réstia do poder de Jardim.   

Não é essa a minha leitura. Se me pergunta se gostei que a conferência de imprensa em que é comunicada a minha passagem a presidente do banco fosse no Tagus Park, não gostei. Sempre achei mal que as reuniões públicas fossem no Tagus Park e não na Rua Augusta.

 

Mas eram dois quartéis.

Eram. Claramente a corte do conselho de administração executivo era na Rua Augusta, a corte do conselho geral e de supervisão era no Tagus Park. Eu não estava a ser eleito. Estava, como vice-presidente, a suceder ao presidente. O conselho geral e de supervisão não quis passar para o mercado a ideia de que eu era um presidente interino. Para usar a sua palavra, sou entronizado pelo conselho geral de supervisão. O conselho de administração não está na mesa, está na primeira fila do auditório. Era um modo simbólico de dizer: acabaram-se as veleidades de independência do conselho de administração executivo, porque ele reporta ao conselho geral de supervisão.

 

Então, concordará comigo quando digo que foi Jardim a dizer: ainda mando nisto.

Foi o conselho geral de supervisão.

 

Que é que sentiu quando Jardim o convidou?

Que recebia um banco em cacos. Mas que tinha a experiência, energia e vontade para unir os cacos. Nunca aceitei um desafio fadado ao insucesso. Se eu imaginasse que ia ser presidente por quatro meses, obviamente não teria aceite.

 

Não lhe passou pela cabeça que ia ser um presidente interino, mesmo que esse período fosse de um ano, dois?

Não. Eu faria mais um mandato e combinaria com Christopher de Beck qual de nós sairia primeiro; um sairia em 2010 e outro em 2011. Passaríamos a pasta à geração dos 40 anos. Eu não queria ser presidente para além dos 65 anos. Há uma prática, sobretudo na banca espanhola, que me é familiar: aos 65 anos os administradores passam a não-executivos.

 

Alguém acredita que não é Emílio Botín que manda no Santander, apesar de já ter passado os 65 anos?

A presença de Emílio Botín é um elemento de credibilidade para os mercados. Há uma simbologia própria que leva a que as dezenas de milhar de trabalhadores do Santander se sintam confortáveis. Não é que não acreditem na dona Ana Patrícia Botín. Enquanto aquele senhor estiver ali, sabem que o banco tem um rumo.

 

Trago isto pelo facto de se fixar na questão da idade para justificar a sua não-ambição. Botín tem uma simbologia própria, mas não está ali a fazer de conta que manda.

Um grande erro que se cometeu no BCP foi a extinção do conselho superior. Estavam sentadas 25 pessoas com experiências empresariais muito ricas. Provavelmente a coisa que mais me chocou durante a guerra de 2007 foi começar a ouvir por parte de alguns elementos dos golden boys referências desrespeitosas ao conselho superior – classificando-o de “assembleia de múmias”. A banca precisa do input de pessoas que não estejam viciadas em raciocínios de carácter financeiro. Vou fazer uma afirmação ousada: não teria havido crise de subprime, não teria havido produtos tóxicos se todos os bancos do mundo, sobretudo os dos EUA, tivessem um conjunto de pessoas que não fossem só profissionais da banca.

 

Um pergunta que parece fora de lugar, mas que surge no seguimento disso que diz: teria havido a OPA hostil do BCP ao BPI se Jardim estivesse na presidência executiva? Se os intervenientes fossem Jardim Gonçalves e Artur Santos Silva, eles sentar-se-iam a uma mesa e resolveriam a questão entre eles?

Devo dizer que soube do lançamento da OPA na véspera do anúncio. Eu e alguns membros do CA. Dedico no livro um capítulo à hostilidade.

 

O vice-presidente do banco sabe na véspera de uma operação dessa envergadura.

Sim. O presidente achou que podia tratar o assunto com consultores, com algumas pessoas da equipa mais favoráveis a uma operação lançada naqueles termos. É mais comum do que se possa pensar que o líder de uma equipa tenda a resolver e a chamar à resolução dos assuntos aquelas pessoas que já sabe que são favoráveis àquela ideia.

 

Paulo Teixeira Pinto sempre o olhou como um jardinista.

É natural que me olhasse com algum distanciamento. Mas na primeira reunião do CA de 2006, menos de um ano depois de ter sido eleito, pedi para falar com ele. “O Paulo não escolheu a sua equipa. Herdou uma equipa. Estamos em Janeiro, a assembleia será em Março ou Abril. Eu não me importo de sair para ir compondo a sua equipa”. Eu quis sair em 2006. Teve sempre uma relação irrepreensível comigo, quer no plano pessoal quer profissional. No seu estilo – pouco afectivo. Não sei se ele acha o mesmo da minha relação para com ele. Respondeu: “Eu não tenho a equipa que herdei, tenho a equipa que escolhi”. Disse-lhe: “Mas fique a saber que todos os anos em Janeiro lhe vou pôr esta questão”.

 

Insisto: se o tempo fosse outro, isto teria ficado resolvido à mesa entre Jardim e Santos Silva?

Sente mais uma pessoa: o Dr. Carlos Câmara Pestana. Três pessoas que se davam muito bem.

 

Do que estamos a falar é de diferentes maneiras de fazer banca. Mas estava a contar o que sentiu quando foi nomeado presidente.

É a tarefa profissional mais difícil que já tive. Em 2002, quando ficou decidido em conselho que era eu que ia juntar os quatro bancos e fazer um só, seguramente metade dos 25 membros do conselho superior me perguntaram se eu me sentia capaz de cumprir a tarefa. Achavam que era tão difícil que se calhar uma pessoa só não era capaz. “Mas você acha mesmo que…” Havia nas perguntas um cunho dubitativo. Correu bem. No dia 31 de Agosto de 2007, sentado na mesa da conferência de imprensa, falei menos de três minutos. A minha cabeça já estava no dia seguinte. Eu acreditava que era capaz.

 

Vaidade: teve o contentamento íntimo de quem chega lá?

Tive. Mas não foi essa a minha vaidade. Foi a de aquela ser quase uma missão impossível. Gosto de mostrar trabalho feito. Quando eu era miúdo e andava na escola comercial (não fiz o liceu), no primeiro período nunca falava nas aulas.

 

Inseguro?

Não, não, não. Matreiro. Por pura vaidade. Eu sabia que as melhores notas iam ser as minhas. O grande prémio que atribuía a mim mesmo era o dia em que chegavam os primeiros pontos, o professor fazia a chamada e levantava a cabeça para ver quem era aquele. Isto aconteceu-me até entrar em Económicas. É um exercício de vaidade pura, reconheço-o.

 

Como é que se fez assim matreiro, porque é que se fez assim matreiro?

Acho que sou um bocadinho solitário. Gosto de oferecer-me algumas compensações. A minha mãe preocupava-se muito por me ver aos 14 anos, 15 anos sozinho. Ou acamaradava com os muito mais velhos ou brincava com os muito mais novos. Naqueles momentos de solidão (e aos 14 anos já tinha estudado História e Geografia) estava a viajar.

 

Estava a sair de Sesimbra.

Estava a imaginar o que eram os países escandinavos, o Canadá, a Austrália, que jurei que um dia visitaria. Estavam tão bem descritos, em palavras tão apelativas…

 

No dia em que foi empossado, e apesar das dificuldades de que já falou, pensou no self made man que era, no seu percurso ascensional?

Pensei. Faço sempre os meus projectos neste termos: se tudo falhar, resto eu. E eu sozinho, sou ou não sou capaz de fazer isto? Confiei muito na minha experiência passada, no trabalho que tinha feito nos sítios por onde tinha passado. Achava que o banco tinha o modelo de negócio certo, estava nos países certos e tinha as pessoas certas para servirem aquele modelo. Talvez tenha sido imodesto, mas tinha a convicção de que aquilo ia dar bem, que em Janeiro, Fevereiro o banco tinha recuperado a normalidade, que eu tinha conseguido pacificar a base accionista.

 

A fusão proposta por Ulrich – é curioso que tenha sido o pequeno a propô-la ao grande, e depois de uma OPA hostil – acabou por ser rejeitada. Jardim era a favor, tanto quanto se sabe.

Era a favor, mas não influenciou nada. 

 

O BCP precisava desta fusão, do dinheiro e das parcerias que poderiam resultar dela?

Não era o problema de dinheiro. Era o poder dos votos. Muita gente tinha defendido a bondade da OPA. Eu sabia que havia uma grande complementaridade das redes, uma grande compatibilidade das culturas. Os três grandes accionistas do BPI mais alguns dos grandes accionistas do BCP iam antecipar o momento da estabilidade accionista. Como tínhamos passado quase um ano a perceber como é que o conjunto ia trabalhar [por causa da OPA], o “como” já estava resolvido. A proposta de fusão, embora no imediato perturbasse a minha vida (comecei em 31 de Agosto e ela foi anunciada no final de Outubro)… O Dr. Santos Silva foi ao banco falar comigo para me apresentar a proposta.

 

Foi Santos Silva que foi falar consigo, e não Ulrich?

Foi. Primeiro falou com o Eng. Jardim e depois comigo na Rua Augusta. As condições de fusão, tal qual eram apresentadas, eram favoráveis ao BPI, o que era natural. Começámos a trabalhar com grande seriedade e empenho na proposta de fusão. Interessava mais fazer do que discutir.

O BPI foi extremamente flexível na negociação. Previa um modelo monista. Presidente de conselho de administração, o Eng. Jardim. Vice-presidente do conselho de administração, o Dr. Santos Silva. Presidente da comissão executiva a indicar pelo BPI – o Dr. Fernando Ulrich. Especulou-se muito que o Eng. Jardim estava na base disto e que era uma maneira de se manter no poder.

 

Coincidência ou não, sai depois do fracasso da fusão. O que corrobora a teoria de que estava a tentar manter-se no poder, a manobrar nos bastidores.

A verdade é que ele fez uma declaração durante o processo a dizer: “Se a fusão for para a frente, eu saio do banco”. E então, alterou-se tudo. Presidente do conselho de administração indicado pelo BPI, presidente da comissão executiva indicado pelo BCP.

 

Artur Santos Silva e Filipe Pinhal.

É uma grande cedência do BPI. Para além do número de administradores e executivos que indicava. Gostava que ficasse claro que o comportamento do BPI em toda esta matéria foi irrepreensível. O nosso foi, até ao momento em que vimos que não podíamos prosseguir com a fusão porque ela ia ser sabotada.

 

Como é que viu isso?

Eram os tais tiros nos pés que os accionistas estavam a dar. Houve declarações públicas de que estavam contra a fusão a CGD – quando a CGD diz que está contra temos que ver que é o Ministério das Finanças que está contra –, a EDP – temos que imaginar que o Ministério da Economia está alinhado e que o Primeiro Ministro está alinhado –, a Sonangol, o Banco Sababell, o senhor Comendador Berardo, mais o Sr. Manuel Fino, mais Bernardo Moniz da Maia (funcionavam os três). A favor, estavam apenas Eureko e Banco Privado Português.

Tenho a noção de que as autoridades estão contra quando, decorria a terceira ou quarta ronda de negociações, fui à Gulbenkian participar numa jornada sobre micro-crédito. Os jornalistas não queriam ouvir-me sobre micro-crédito. Obviamente eu não podia falar sobre a fusão, e disse o mínimo.

Perguntaram-me se as negociações estavam a correr bem. Respondi que sim. Perguntaram se eu acreditava que as negociações seriam finalizadas num acordo. Respondi: “Quando duas partes se sentam à mesa para negociar é para procurar um acordo, não é para discordarem”. Aquilo foi transmitido pela rádio. À saída da sessão, já tinha sms’s do banco a dizer que a CMVM exigia um comunicado a dizer em que ponto as negociações estavam. Uma prepotência enorme!, descabida em relação ao que eu tinha dito. E percebi que o processo ia ser abortado.

 

Pode ser mais explícito?

Tínhamos definido em CA um conjunto de condições em que aprovaríamos a fusão. Todo o conselho. Essas condições eram favoráveis aos accionistas do BCP, e muito desfavoráveis, para não dizer leoninas, aos accionistas do BPI. Mas eram as únicas condições em que eu conseguia uma aprovação por unanimidade, e que tinham sido definidas à cabeça. Condições definidas à cabeça são o ponto óptimo, não quer dizer que sejam o ponto possível. A seriedade negocial manda que entre o ponto de partida e o de chegada haja um ponto intermédio em que consigamos estabelecer um equilíbrio. Disse aos meus colegas [que estavam a discutir a fusão]: “Se não conseguirmos fechar as negociações no ponto de chegada, o que vai acontecer é que em CA o projecto não vai ser aprovado por unanimidade. Vai haver três ou quatro votos contra. Depois vai ser aprovado no conselho de supervisão. Depois, como tem de ser aprovado na assembleia geral por 3/4, a assembleia geral chumba”. Como estávamos em guerra desde Maio, na assembleia um accionista diria que o projecto de fusão tinha sido trazido pelo CA mas que não tinha sido aprovado por unanimidade. Tudo quanto se passava no CA, três minutos depois estava nos jornais.

 

Quem é que deitava cá para fora?

Muita gente. Não sei. Certamente não foi só uma pessoa. Ia saber-se quem é que tinha votado a favor e votado contra. Quem aprovou uma coisa que não é vontade dos accionistas deve retirar daí as consequências e sair. Estava armada uma cilada para quem aprovasse a fusão. Quando a nossa delegação disse à do BPI: “Ou são estas condições ou não há acordo”, Fernando Ulrich fez a declaração que lhe competia: “Não há acordo”. 

 

Percebeu que não o queriam?

Nunca senti que fosse uma coisa pessoal. Eles não queriam aquilo que eu representava. Administradores e directores que tinham iniciado o banco. Alguém deve ter pensado: “Estes senhores, por terem criado o banco, sentem-se donos do banco”. Portanto, é preciso substituí-los.

 

Estamos a falar de jardinismo, mais uma vez.

As palavras são livres.

 

A 21 de Dezembro o BdP diz: Pinhal e Beck não, alegando a existência de prática de crime.

Irregularidades.

 

Chamou a isto uma “condenação antes do julgamento”.

Digo, e escrevi no livro, que nesse dia eu e o meu colega Christopher de Beck sofremos a sanção de inibição para o exercício de funções bancárias. Embora, formalmente, como é uma pena, tenha de ser aplicada na sequência de um processo de investigação (que decorreu durante 2008, 2009 e que foi aplicada em 2010).

 

Quando se pergunta o que aconteceu no BCP há pelo menos duas teorias principais. Uma que aponta para gestão danosa e criminosa. E outra, que defende, que diz que o que se passou ali foi um assalto ao poder. Diz que houve uma cilada montada por banqueiros concorrentes – pergunta a quem é que serve o desmoronamento do BCP – com a cumplicidade do Governo e BdP. Antes das denúncias, o descontentamento em relação ao BCP era devido aos ordenados milionários. É diferente quando Berardo vai entregar na PGR, no BdP e na CMVM os processos sobre as offshores.    

O accionista Joe Berardo escrevia ao banco e exigia que lhe fossem dadas explicações e informação que o banco, assessorado pelos seus advogados, achava que não podia dar. Houve sempre latente a ameaça: “Se não me derem esta informação, farei estas denúncias”. Denúncias obviamente graves. Chamo-lhe a bomba atómica. Atinge todos, até aquele que a lança. Achava que era um factor de pressão, mas nunca imaginei que o fizesse. Admiti sempre chegar a um entendimento com ele. Não tenhamos dúvidas: não há organizações, nem empresas, nem ministérios, nem governos, nem empresas públicas, se calhar nem fundações ou instituições de caridade que sejam bacteriologicamente puras. Em todo o lado há alguma coisa que, sobretudo se for contado de determinada maneira, e se for apresentada uma determinada versão dos factos, tem o picante suficiente para dar uns bons títulos de jornais.

 

Quando é que se zangou com Carlos Santos Ferreira?

Não estou zangado com o Dr. Carlos Santos Ferreira. Não temos falado ultimamente porque não tem calhado.

 

Pensei que tinham cortado relações. Trocaram umas cartas e uns recados pouco simpáticos na imprensa. Para quem era visita de casa, concordemos que as relações estão no mínimo frias.

Sou partidário na vida das empresas de uma certa solidariedade entre quem fica e quem se vai embora. É um facto que considero que o BCP não fez o suficiente, e o que lhe competia, para se defender a si próprio, e defendendo-se a si próprio defender os ex-administradores. As medidas de 2010 foram medidas com uma carga de hostilidade pública que era escusada. Se gostei do comportamento do banco? Não gostei. Isso leva a que as minhas relações com as pessoas tenham ficado inquinadas? Não.

 

Como não? Visa quase toda a gente nos seus livros. Estamos a falar de guerra, e parece que está com uma arma na mão e que não poupa ninguém.

O que eu aponto são factos, que no meu entender não deviam ter acontecido, porque enfraqueceram tremendamente o banco, desvalorizaram o banco. As relações pessoais, comigo, nunca ficam inquinadas. A menos que alguém se porte pessoalmente mal comigo, e nenhum administrador se portou pessoalmente mal comigo. O CA tomou as decisões que achou que devia tomar. Eu não concordo com essas decisões. Mas sei distinguir a decisão do órgão da decisão pessoal. No órgão não sei quem fez o quê, quem influenciou o quê.

 

Não querendo fazer teoria da conspiração, o seu livro vai ser apresentado no próximo dia 15 por Miguel Cadilhe. Vamos lá recordar: era a pessoa que encabeçava a lista concorrente à de Santos Ferreira.

Não me tinha lembrado disso, com toda a franqueza! É uma leitura curiosa, a sua.

 

Curiosa? É evidente.

Não é tão evidente assim. Distribuí as primeiras versões dos três livros que escrevi a três amigos, que considero terem o grau de independência e franqueza para me dizerem: não concordo com isto. O Dr. Miguel Cadilhe é uma dessas pessoas. Tem sido um dos meus revisores de provas. Apresento este livro no Porto por razões simbólicas. O banco foi constituído no Porto, e por razões de gratidão e amizade. Era natural que, sendo no Porto, fosse o Dr. Cadilhe a apresentar. É capaz de fazer a crítica mais impiedosa ao que está a ler, mas é isso que eu quero. Do A bem dizer, excluí um capítulo porque ele lhe fez críticas devastadoras – era sobre a regionalização.

 

Diz no seu livro que houve um “cavalo de Tróia” infiltrado na estrutura interna do BCP. Dentro deste cavalo de Tróia, estavam Sócrates, Vara, Santos Ferreira, Constâncio, Mexia?

Não é a esse cavalo de Tróia que me refiro. Refiro-me a pessoas de dentro do banco, da mais alta hierarquia, que passaram documentos da vida interna do banco para fora. De Maio a Dezembro os jornais e os accionistas foram alimentados com documentos retirados de dentro do banco – o que é um crime. Quando fui ouvido em 2008 na comissão de orçamento e finanças, todos os deputados tinham centenas de fotocópias de documentos do banco.   

 

Há um outro cavalo de Tróia a que alude no livro anterior, não lhe chamando assim, quando fala da sua tese de tomada de assalto do BCP, e aponta o BES como mastermind de toda esta operação. Quando é que chega a esta conclusão?

Essa é uma leitura que provocou a tal carta do Dr. Ricardo Salgado [publicada no Negócios]. Nunca disse que o BES actuou. Disse que o BES não foi indiferente a isto. Se nos lembrarmos que nas listas que foram à assembleia para serem eleitos para os órgãos sociais do banco estavam administradores do grupo BES…, é uma coincidência muito grande.

 

Na abertura do livro diz: “O caso BCP foi providencial e serviu a várias famílias”. O itálico é seu.      

Vários grupos de interesses.

 

A família Espírito Santo é o grupo BES. A leitura é essa.

É uma leitura errada. Em itálico: dantes, nos discos pedidos, dizia-se: a pedido de várias famílias…

 

Há outros sentidos em que a palavra família é usada. Até no sentido italiano do termo. 

Longe de mim.

 

Quando se refere aos “que tinham interesse em abater um concorrente”, está a referir-se a quem?

O BCP era um banco conhecido pela sua dinâmica no mercado. Se o BCP diminuísse a sua pro-actividade comercial, e se fossem infiltrados na super-estrutura do banco elementos com afinidades com o grupo Espírito Santo, é evidente que o BCP ficava subordinado ao grupo Espírito Santo.

 

Este livro é uma espécie de parte dois do anterior?

É um aprofundamento do anterior. Três quartos deste livro é a passagem de coisas que estão nas contestações das acusações e nos recursos das condenações (em linguagem corrente).

 

Diz que “ninguém nega que tenha existido um assalto ao BCP”, que o banco do Estado – a Caixa – “financiou esse assalto”, que o controlo do BCP mudou de mãos – da Opus Dei para a Maçonaria –, que a urdidura “teve luz verde do Governo” e que foi “apadrinhado pelo Governador do BdP”; mais à frente junta a CMVM e o Ministro das Finanças. Como é que isto não é um ajuste de contas, que é o que escreve na página anterior, se visa todos aqueles que o põem em causa?

Eu tenho que me defender. Estou condenado pelo BdP, CMVM e aos olhos da opinião pública. Estou acusado pelo Ministério Público. Para me defender tenho de explicar as coisas tal qual elas são. Apresentei ao conselho geral de supervisão a proposta de convocação de uma assembleia-geral antecipada para Janeiro de 2008, para eleger um novo conselho de administração, onde eu estaria, onde estaria o Dr. Beck, e duas pessoas de fora. Quis dar uma ideia de continuidade, de abertura e de rejuvenescimento com a passagem de três directores a administradores. Depois de esta minha ideia ter sido validada pelo conselho geral de supervisão, apresentei-a ao ministro das Finanças, ao Governador do BdP, ao presidente da CMVM, ao presidente da CGD e ao presidente da EDP. Entre o dia 28 de Novembro e o dia 30 de Novembro. Não são quaisquer pessoas neste puzzle. No dia 3 de Dezembro, às 8.45, um dos accionistas activistas esperou-me à entrada do banco para me dizer: ou a minha lista incluía dois administradores da CGD ou os accionistas activistas fariam abortar o meu projecto.

 

Quem eram as duas pessoas? Já se falava de Armando Vara?

Duas pessoas. Não quero revelar. O meu projecto acabou por ser abortado. A solução final foi proferida pelo sr. Governador do BdP. No dia 20 à tarde, quando me comunicou e ao Dr. Beck que não tínhamos condições para sermos elegíveis e comunicou isto, no dia seguinte, aos accionistas.

 

Quando lhe falaram das duas pessoas da Caixa, era claro para si que era uma tentativa de politização do banco – que é outra das acusações que faz?

Que o Governo se tinha intrometido na vida do BCP, ficou claro para mim na manhã do dia 3 de Dezembro quando recebi três recados – o primeiro às 8.45; os outros dois por elementos que eram da minha lista e que se disponibilizaram para sair. Mas a decisão estava tomada. Curiosamente, é nesse dia 3 de Dezembro que entram as denúncias. A partir daí, o processo é irreversível.

 

Sentiu-se humilhado?

Decepcionado.

 

No meio desta guerra em que houve, no mínimo, feridos graves, houve alguém com quem tenha cortado relações?

Não. Nunca ninguém me fez uma coisa suficientemente má para eu cortar relações com ela. Os accionistas activistas procuraram preservar os seus interesses; posso criticar os meios que usaram para o fazer; mas não é ilegítimo. Quem é que procedeu muito mal? O cavalo de Tróia, quem passou documentos do banco para fora; mas esses não sei quem são.

 

Ou sabe e não quer dizer

Não sei realmente. Consigo chegar a um núcleo de quatro, cinco pessoas em que há uma elevada probabilidade de. Mas a minha convicção íntima não chega para acusar ninguém. Tenho o meu elenco de suspeitos que nunca disse a ninguém, nem direi enquanto não tiver provas. Os membros do governo… fazem a política do governo. O Dr. Constâncio deu-me a primeira nota do meu curso e a minha última nota do meu curso em Económicas. Sempre foi uma referência para mim como pessoa que se preocupava com a economia do país, como pessoa íntegra; foi uma enorme decepção o papel a que se prestou.

 

Sabe que parece um homem triste…

As pessoas que me conhecem desde miúdo sempre acharam que eu era triste. Nunca me considerei triste. A palavra que eu usaria para me caracterizar é melancólico.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2011