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Anabela Mota Ribeiro

Fernanda Tavares

30.07.14

No banco de trás do carro, troca as sandálias ponteagudas por uns ténis All Star. Dinho, o assessor, confirma que não haverá fotógrafos por perto. Dirigem-se ao último dos jantares da estadia em Lisboa. Providencia um sumo de laranja para acompanhar a entrevista _ «Tem de tangerina?», pergunta ela.

É uma rapariga como as outras quando recorda as cartas que escrevia ao pai quando era pequena: “Estou morrendo de saudades, te amo muitão”. Contava tudo, desenhava corações, fazia recortes. E não é uma rapariga qualquer quando cede a sua imagem à Associação Laço para apoiar o Programa Nacional de Rastreio do Cancro da Mama.

Tudo começou quando Mário Testino a fotografou para a capa da Vogue francesa. «Cheguei em Paris em Fevereiro, e em Abril fotografei para a Vogue francesa, com Mário Testino!». Tinha 15 anos. Começou, então, uma fulgurante carreira internacional. Fez incontáveis desfiles, campanhas publicitárias, produções de moda. A completar dez anos de carreira, considera que o mais gratificante  é a associação da sua imagem a causas nobres.

Desde 2002 que, a par de Cindy Crawford, percorre mundo para promover esta campanha. (Mariza ou Fátima Lopes são dois dos rostos da Laço em Portugal). Veste a t.shirt desenhada por Ralph Lauren que a Lanidor comercializa a 19,90 euros (a cadeia de lojas comprometeu-se a entregar o equivalente à venda de 15 mil t’shirts).

FernandaTavares é brasileira, tem 25 anos. É um ícone de beleza. Conheça a sua história nas próximas páginas.   

 

Podemos começar por falar da sua mãe?

Começamos pela pessoa certa. O nome dela é Sheilha Correia, tem cinquenta anos, mora em S. Paulo. Foi ela que me incentivou nesse trabalho. Sempre viajou comigo, sempre me deu a maior força, cuida das minhas coisas. Quando engravidou, falou assim: “Se for menina, vai ser modelo”. Ela adorava ser miss. Só que meu avô era muito autoritário, “Imagina, miss, coisa de mulher leviana”. Como não realizou esse sonho, botou na filha.

 

Cresceu sabendo que era bonita?

Sempre fui muito vaidosa. Com seis anos, adorava me maquilhar! E tinha essa coisa que a minha mãe sempre falava, “Vai ser modelo”. Cada vez que eu caía, não queria mostrar, queria esconder, porque ela dizia: “Não, você não pode ter marcas, modelo tem as pernas lindas, não pode ter marcas nas pernas”. Mesmo hoje, quando caio, fica desesperada: “Não, você tem trabalho!”.

 

Que cicatrizes é que tem?

Tenho uma no rosto, mínima [sobre a sobrancelha, imperceptível]. Eu tinha três anos, o meu irmão fingia que era um monstro e corria atrás de mim; quando olhei, tinha um vaso de plantas na minha cara! Me lembro disso até hoje. Minha mãe chorava mais do que eu.

 

O sonho dela corria riscos...

Aos nove anos, frequentei um curso de modelo. Sendo uma menina vaidosa, adorei fazer o curso. Mas quando tinha catorze anos, pude realmente escolher. Minha mãe não me pressionou em nenhum momento.

 

Seria um desgosto se não tivesse condições físicas para realizar aquele sonho. Imagine que era gordinha...

Em 91 fui morar no Rio de Janeiro com a minha mãe e o meu irmão. Só que do Rio, não gostei; estava cheia de saudades do meu pai, era muito apegada ao meu pai. E voltei para Natal. Morei oito meses com os pais da minha mãe. Tinha tudo o que queria em casa da minha avó: se acabava o pudim, ela fazia biscoitinhos, se acabava o chocolate, fazia bolo. Em Setembro de 92, minha mãe chegou em Natal e fui buscá-la na rodoviária. Olhou para mim três vezes! Não me reconheceu, foi um choque! “Mamãe, o que você fez com a minha filha?”. Alimentou, né? Nessa época, pesei cinquenta e cinco quilos!

 

Obrigou-a a fazer dieta?

Comprou uma calçola, apertada. Não é que fosse gorda, era só barriga. Dormia toda a noite com essa cinta que me machucava. Para fazer cintura. Funcionou. Em 92, era magríssima. Minha mãe me botou nos eixos.

 

Eram pobres?
Não. O meu pai era cantor. Brega. O nome dele é Fernando Luís. Estourou com uma música, em 85, estourou mesmo. O meu pai sempre fazia show, a minha mãe cuidava das coisas dele. Depois de os meus pais se separarem, a coisa foi ficando mais delicada. Foi o tempo das vacas gordas e depois o das vacas magrinhas. Mas nunca passámos fome. O meu avô sempre ajudou muito.

 

Não era, então, pelo dinheiro que a sua mãe queria que fosse modelo?

Não. Era pelo glamour. Eu ouvia a minha mãe falando: “Ainda vou ver minha filha desfilando para Christian Dior”. E realizei esse sonho para ela, graças a Deus.

 

Que importância tem o dinheiro na sua vida?

Necessito ajudar a minha família. Quando comecei a trabalhar, pude dar de volta tudo o que me deram. O prazer maior não é ter um património impressionável, não é mudar de uma casa de dois quartos para uma de quatro. O prazer maior é ajudar pessoas que não têm condições e te ajudaram.

 

O seu nome figura entre o das modelos mais bem pagas do mundo.

Já disseram no Brasil que ganhava não sei quantos milhões por ano! Como é que eles fazem?, eu nunca falei. No mundo da moda é tudo imprevisível: pode fazer um desfile maravilhoso para ganhar porcaria nenhuma. Ou pode fazer uma coisa que ninguém nunca ouviu falar e está ganhando centenas, milhares. O primeiro dinheiro, ganhei quando tinha quinze anos.

 

Nessa altura, mudaram-se para S. Paulo, com o intuito de apostar na sua carreira.

A gente vendeu tudo em Natal. Maínha e eu fomos de ónibus para S. Paulo.

 

Quantas horas de viagem?
Cinquenta. Dois dias de ónibus. A casa virou um bazar, todo o mundo comprou tudo. Menos a casa, que ela não vendeu. Morámos um mês com a prima da minha mãe. Aí, encontrámos nosso apartamentozinho, um ovinho, o banheiro era menor que essa mesa. Eu vivia de empréstimo de agência, cem reais por semana, que na época valia cem dólares. O primeiro trabalho foi para uma loja de lingerie. Morria de vergonha no meio das mulheres mais velhas.

 

Por que é que tinha vergonha?

Era novinha, tímida, vinha de uma cidade relativamente pequena. Imagine, nunca tinha sido beijada, tudo em calcinha e sutiã..., e tinha homem. Deve ter sido o meu primeiro grande cachet, tipo mil reais.

 

Sabe gerir o seu dinheiro?

Confio até hoje na mamãe. É ela que pergunta: “Já ligou para Paris, cadê o dinheiro dos cachets do trabalho tal?”. É o meu braço direito. A agência fala primeiro com ela. É a pessoa que negocia.: “O que é esse trabalho?, é para quem?, é quanto tempo?”. 

 

Na adolescência teve crises de rebelião? As típicas crises em que as mães são odiadas...

Porque pegam no nosso pé? Nunca me separei da minha mãe, desde que os meus pais se separaram. Mudei para S. Paulo com a minha mãe, para Nova Iorque com a minha mãe, para Paris com a minha mãe. Nessa profissão, você não quer se separar da mãe. No meu caso foi assim. Nunca fui menina de festas, de sair, nunca fui louca na vida. Ela sempre foi o meu pilar, a minha fortaleza. Nunca foi de me proibir de nada, muito pelo contrário, foi me mostrando o caminho certo.

 

Quando descobriu o amor e o sexo, a sua mãe sentiu isso como uma ameaça?

Uma ameaça para o trabalho? Não. Sempre fui tímida. Quando comecei a  namorar, já era modelo: aqui está meu trabalho, aqui está a minha vida pessoal, não posso misturar, não posso me distrair. Esse negócio de namorar nunca levantou problema: eu sabia pôr a barreira

 

Como é que foi quando foi menstruada? O seu corpo mudou?

Virar mocinha? Como toda a menina, foi uma festa. Eu sempre tive corpo, muito corpo, me lembro de épocas em que estava um pouquinho corpuda demais. Ficava lindo para ser uma mulher, mas não uma modelo. Depois dos quinze anos, nunca mais fui magérrima. Não quis ir para Paris porque sempre me falaram que as mulheres lá eram lindas, magérrimas. E daí fui, e trabalhei super-bem.

 

Nas fotografias parece ter mais curvas do que na verdade tem. É magríssima!

Ai, que bom que aparenta. Você acha mesmo? Eu me acho cheia de curvas. Hoje em dia não me incomoda tanto não. Fui fazendo campanhas, óptimos trabalhos... Tenho que me cuidar, sei que não vai ser assim para sempre.

 

Houve um tempo em que diziam que tinha celulite e que mesmo assim tinha conquistado o contrato da L’Oreal...

Tinha não, tenho.

 

É verdade que tem contrato até 2007.

Não, não é o contrato, é a celulite, ainda tenho celulite. Qualquer mulher tem, acredite. Adoro comer o meu chocolate, o que é que posso fazer? Quando vim aqui jantar na quarta-feira, tinha aquele petit-gateux... Mas não como sempre. Não tenho na minha casa. Na minha casa tem leite de soja e cereal, mais nada.

 

Acontece-lhe ter pesadelos? Que engordou, que ficou feia, que ganhou uma cicatriz?

Isso não. Mas quando fui para Paris a primeira vez, passei um período muito preocupada: tinha medo de envelhecer! Não gostava nem de pensar que ia ter ruga...

 

Que idade tinha?

Dezasseis. Quando imaginava: “vou ter sessenta anos um dia”, isso me apavorava. Estava na fase: “todo o mundo me ama porque sou novinha”. Hoje em dia, que estou chegando perto dos trinta, (tenho vinte e cinco), não. Pelo contrário, falo em ser mãe, feliz, daqui a dez anos! Não quero fazer plástica, botar botox... Eu quero assumir, quero cuidar bem da minha pele para ter orgulho nela e envelhecer bem.

 

Já lhe aconteceu ser recusada?

Pelo menino que estava paquerando? Já, tinha treze anos. Namorei a primeira vez com catorze anos. Sabe, essa coisa de menina: “ai que gato!, ai mãe, que gato!” O meu pai falava: “Jesus, se a gente olha e sai fumaça, é Fernanda que está lá”! Eu era muito foguenta! Mas nunca fui de estar sempre trocando de namorado. Todos os namorados foram sérios. Foram quatro.

 

Deixou de estudar muito cedo. Gostou de andar na escola?

Agora morro de saudade, mas, na época, a gente nunca gosta. Em 95 fui para S. Paulo, e me falaram assim: “Se quiser seguir essa carreira, vai ter que parar de estudar, vai ter que escolher”. Foram noites de sono perdido. Eu sabia que ia começar a viajar e ia ter que parar de estudar. Me lembro do meu irmão falando, (ele é mais velho cinco anos): “Deixa de ser boba, quantas meninas estudam, estudam, estudam e acabam desempregadas? Estudar, você pode estudar em qualquer época; e isso não, isso tem que fazer agora”. O que me deu conforto foi pensar que posso estudar daqui a dez anos, e isso só posso fazer agora.

 

A sua vida é uma viagem permanente. O normal é que não saiba em que parte do mundo vai estar daqui a cinco dias.

Exactamente.

 

O que é que entende como casa?

Nos últimos anos, o Brasil é a minha casa. Já estive em Paris. Vou ainda muito a Nova Iorque, e entendo-a também como casa, mas é uma segunda casa. Nesta fase, tenho minha casa em Natal e meu apartamento em S. Paulo, que é onde trabalho.

 

Como é a sua casa? De que objectos precisa, que coisas a fazem sentir em casa?

Gosto de colocar retrato e fotografias que tiro em viagem. Adoro fotografar. Já tive uma parede com algumas capinhas. Mas não gosto de ter a minha casa enfeitada com as minhas fotos_ eu lá, linda, fazendo pose. Acho meio narcisista, sabe? As fotos espalhadas pela casa são fotos normais.

 

Na sua mala de viagem, que objectos lhe fazem lembrar casa?

Não tem muito, não. Na minha mala, o que não falta é a máquina de fotografar. O telefone! Ligo para minha mãe, quando tenho saudades. Quase todos os dias a gente fala.

 

Onde é que tem ginecologista, dermatologista, cabeleireiro, as suas pessoas indispensáveis?

Tudo no Brasil. Houve um período da minha vida em que eu ia ao Brasil uma vez por ano_ Natal e Ano Novo. De há um tempo para cá já posso me dar ao luxo de falar: não quero, vou para o Brasil, vou para casa.

 

O consumo de drogas e a cobiça sexual por homens poderosos são frequentemente associados ao mundo da moda. Escândalos como o de Kate Moss e, há uns anos, o da agência Elite dão-nos uma ideia do que por aí se passa.

Não conheço tão bem assim esse mundo, porque o mundo em que vivo é o do trabalho. Estou ali das nove às cinco, e nunca misturei as coisas.

 

Significa que não vai a festas?

É muito raro. Não curto. Não bebo, não fumo, nunca usei drogas. Vi uma vez na minha vida pessoas usando drogas e isso me deixou tão chocada, mas tão chocada! “Mãe, você não acredita no que eu acabei de ver”! Acho que ela nunca se preocupou; meu irmão tem trinta anos e nunca bebeu uma gota de álcool. Vem muito da criação. Por isso é que é importante ter uma pessoa ao seu lado.

 

Se tivesse uma filha, deixá-la-ia sozinha no mundo da moda?

Nova? Não. Muitas dessas meninas vão começando a fumar com quinze, treze anos; porquê? Porque estão sozinhas. Estão em depressão, saem com más companhias e começam. Às vezes você ouve: “Fulana, drogada no banheiro”. É uma história triste. Sou muito orgulhosa em mim mesma por nunca ter feito isso na minha vida.

 

 

Publicado originalmente na Máxima em 2005