António Nogueira Leite
“Portugal não aguenta mais dez anos iguais aos últimos 35 e tem de ser uma pessoa com uma origem política e um percurso de vida diferente do meu a marcar essa diferença. Por isso é que tomei uma opção diferente da da maior parte dos meus amigos. Porque fizemos um modelo que chegou ao fim. Sou minoritário logo na família. Não sei se esta pessoa o consegue, mas um de nós teria mais dificuldade em fazê-lo”. António Nogueira Leite, sobre o seu apoio a Passos Coelho.
A entrevista realizou-se uma semana antes das eleições no PSD. Na sede do grupo Mello, onde trabalha. Com um Tejo magnífico em frente, o que não interessou nada. Havia rebuçadinhos sobre a mesa, café e água, como é normal em casas destas. E dois telemóveis sobre a mesa, no silêncio. Conversa sem interrupções.
Falámos de tudo. Do seu percurso, da influência da mãe que ainda se faz sentir, dos Mello, de como se passam as coisas num dos grandes grupos portugueses, de twittar e provocar, de Pacheco Pereira, dos Estados Unidos onde se doutorou, do que engordou nos últimos anos, de não ter subido na vida, de provir de uma família onde há várias gerações há licenciados e homens que usam fatos por medida. Também de ser ou não ser o Ministro das Finanças-sombra de Passos Coelho.
Vamos continuar a ouvir falar muito de Nogueira Leite?
É um polemista. Podemos ler o pior sobre ele na blogosfera. “Evidentemente que há coisas que não aceito. Dizerem que não sou uma pessoa séria na maneira como conduzo a minha vida, é essencial. Se me vêm dizer que sou burro, vivo lindamente com isso. Antes podia ficar um bocadinho triste, mas hoje em dia é-me indiferente”.
Nogueira Leite tem 48 anos, uma filha.
O seu momento, chegou?
Foi Secretário de Estado de Joaquim Pina Moura. Ou seja, é um PSD que foi Secretário de Estado de um ex-PCP. Este é o elemento mais surpreendente do seu currículo?
É. Não que tenha de o justificar, mas, para que se perceba, isso tem uma explicação. Com uma certa graça, os socialistas hardcore do ministério do Dr. Jorge Coelho chamavam àquele ministério “vodka laranja”. Chego lá através de um processo que começa em 1983/84, quando António Guterres, (que era amigo do Diogo Lucena, uma pessoa marcante na minha vida), organiza uns almoços com pessoas da Universidade de Economia da Nova. Guterres gostava de falar com economistas que não fossem os tradicionais do Partido Socialista. Fala com as pessoas que o Diogo tinha mais à mão. Criámos uma boa relação. Ele é uma pessoa extraordinariamente inteligente e preparada no plano intelectual, não apenas no plano político; é capaz, culto, persuasivo.
Era desde sempre um PSD?
Sempre tive uma costela laranjinha. Fui consultor de vários Ministros das Finanças do Professor Cavaco, participava nos retiros da Quinta da Penha Longa, tinha sido aluno dele. A minha família, no norte, era mais PSD ou CDS. Tinha andado na Universidade Católica, que não tinha grande pensamento para além do CDS e do PSD. Era um ambiente onde naturalmente não seria socialista. Sigo a minha vida, Guterres vai para Primeiro-Ministro. Uns anos mais tarde, reencontro-o. Tinha participado em algumas reuniões onde estavam empresários e gestores com o Pina Moura e o Guterres. Estava no aeroporto de Banguecoque quando recebo um telefonema a convidarem-me, de chofre, para fazer parte do Governo.
Quem é que o convidou?
O Pina Moura, que tinha conhecido pela mão do António Guterres. Referindo que precisavam de uma pessoa credível, respeitada no meio académico, e que achavam que eu tinha o perfil. Quando cheguei a Lisboa tivemos duas conversas; na primeira, recusei, e 24 horas depois, aceitei.
O que é que pensou na viagem de avião?
Que ia dizer que não, porque não fazia sentido nenhum. Mas foi deixada a ideia de que aquele era um momento difícil para Portugal, que ia ter uma segunda presidência da União Europeia, que havia um problema de finanças públicas de extensão desconhecida. Disseram que precisavam de mim por ter pontes em vários lados. Fiz uma coisa que já aprendi na vida que corre sempre mal: não fazer aquilo que quero. Transigi, disse que sim, mas sem vontade.
O que é que o fez transigir, dizerem que precisavam de si?
Eu era presidente da Bolsa de Valores de Lisboa, e na minha hierarquia isso era melhor do que ser Secretário de Estado. Estava em reuniões ao mais alto nível com financeiros do mundo todo, com o projecto de transformar a BVL em qualquer coisa de mais moderno. Na minha cabeça, andei de cavalo para burro. Não tenho uma vida de actor político, e Secretário de Estado…, o anátema do ajudante… O meu trato era estar lá ano e meio. Devo dizer que as pessoas do meu gabinete sabiam que, passado pouco tempo, estava completamente arrependido. Foi um split second em que não consegui resistir.
Foi a vaidade de ser jovem, de direita, e ser convidado para um governo PS?
Gosto de pensar que não, mas é evidente que sou vaidoso. Basta-me pensar que quando as pessoas não me prestam atenção, fico triste – se não fosse vaidoso, isso era-me indiferente.
Racionalmente não fazia grande sentido.
Nenhum. Quando estive no Governo estive calado. Dei uma entrevista ao Expresso que podia ter sido dada num Governo à direita do PSD. Foi vaidade e foi ignorância. Achava que ia estar ali numa posição asséptica em que ia ser um tecnocrata, que ia realizar uma função que tinha alguma relevância, a partir da qual podia avançar para um patamar diferente de volta ao meu mundo. E as coisas não são assim: política é política.
Havia ingenuidade política nessa experiência?
Sim. Fiz um programa de doutoramento em experiência de vida, um crash course de nove meses, enquanto estive no Governo. Tinha uma noção de torre de marfim de como é que as coisas funcionam. Tornei-me muito mais cínico. Pessoalmente enriqueceu-me bastante, mas foi um choque violento do qual podia não ter resistido.
O que é que foi mais chocante?
Tive uma vida muito protegida pela minha família até determinada altura. Uma mãe que sempre fez com que tudo aparecesse tratado. Fui para a Faculdade de Economia da Nova, que era um oásis. Quando fui para os EUA fiz logo imensos amigos, entre eles uns portugueses excepcionais de quem ainda sou amigo. Portanto, tenho uma carreira, tenho uma certa exposição, mas não conheço o mundo. Isto permitiu-me perceber que as pessoas, nomeadamente na nossa cultura, não podem ser tomadas pelo seu valor facial, que são mais complexas do que imaginava. No Verão, em que já estava demissionário mas não era público, tive um jantar em casa com amigos e senti inveja por pensar que eles tinham a sorte de não estar no Governo!
Correu assim tão mal?
Não tenho todas as características que um político tem de ter, e estava no sítio errado. Paguei um preço pela ingenuidade, que foi público. Não me saí muito mal, a imprensa andou comigo ao colo. O Pina Moura era o mau da fita e eu era o bonzinho – serviu como contraponto. O problema foi estar a fazer uma coisa de que não gostava, foi o Governo não tomar as medidas que eu achava que deviam ser tomadas, foi defender no Parlamento e em Bruxelas um mau orçamento. Também teve coisas boas: a cimeira de Lisboa e a estratégia de Lisboa foram consideradas marcantes na União Europeia. A equipa funcionava muito bem em termos dos assuntos europeus e foi aí que me refugiei até ao fim de Junho. Depois demiti-me.
Pensou que aquilo pudesse ficar como um anátema no seu currículo?
O meu currículo é demasiado vasto, mas politicamente é uma arma de arremesso imediata. As pessoas mais básicas da política atiram logo com isso, as pessoas mais elaboradas percebem que não é cadastro. Mas uma das vantagens de se passar pela política é ganhar alguma pele de crocodilo, coisa que não tinha.
O que é exactamente uma pele de crocodilo?
É uma pessoa não relevar coisas que relevava no passado e viver bem com o facto de dizerem mal de nós. Não me deixei comprar, no fim. Tinha a hipótese de ter ido para vários sítios e não fui, saí em ruptura. Fiquei de bem com a minha consciência e isso é uma vantagem para o futuro. Se tivesse feito um mau lugar sentia-me pior.
Já voltamos à política. Foi educado para ser o quê?
Durante muitos anos ia ser engenheiro, que é uma profissão que abunda na minha família.
O que é que há na história da família que percebe como uma marca na pessoa que é hoje?
A marca da pessoa mais improvável da família, o meu avô materno. Quando se casou com a minha avó, a família dela achou que a diferença social era tal que ninguém esteve presente no casamento. Foi um homem que se fez a si próprio.
Era pobre?
Sim. Era filho de uma família que tinha empobrecido, decaído. Havia problemas de mau comportamento da parte do meu bisavô.
O que é diferente de ser realmente pobre. Vir de uma família arruinada é diferente de vir de uma família de gente do campo.
Mas acabou por ter uma vida muito desestruturada quando era novo. Não era bem no campo, era em Ílhavo. O meu avô, aos oito anos, decidiu mudar de escola primária, à procura de melhor ensino. Aos 20 anos já tinha uma função relevante na sociedade comercial marítima. Acabou por ter um papel importante na armação de pescas e na área da marinha mercante. A vida correu-lhe bem. Ele punha ênfase em demonstrar o que lhe tinha acontecido, de onde é que vinha. Ficou-me sempre a marca daquela vontade, do carácter. Era extremamente cumpridor e superiormente inteligente.
E do lado do pai?
Socialmente era uma família diferente. Era a mistura de uma burguesia com alguma educação com uma fidalguia arruinada de entre Douro e Vouga. O meu pai e a minha mãe também são referências. A minha mãe é uma pessoa muito presente; hoje, aos 80 anos, tem uma cabeça de 50. O meu pai, ainda fico encantado quando me dizem que é o último cavalheiro que existe. As pessoas fazem sempre referência ao carácter, ao saber estar. Não é um génio, no sentido de [não] ter tido uma carreira profissional marcante. Nascer com essa vantagem foi muito útil. Deram-me isso em casa.
O que é que fazia o seu pai?
Trabalhou na área dos petróleos, primeiro na Sacor, depois na Petrogal, nos anos 80. Reformou-se cedo e trata de assuntos da família na região de Aveiro, que é o que gosta de fazer. Estudou no Instituto Comercial no Porto. Não prosseguiu [os estudos] porque era a pessoa que ajudava o meu avô, na área dos transportes e daquilo que hoje seria chamada a logística, de vinhos e produtos para a agricultura. O meu pai estava a ser treinado para lhe suceder.
Provém de uma família onde há licenciados há várias gerações, mesmo que o seu pai não o fosse. Era claro para si que iria para a universidade?
O meu pai não era bom aluno. Julgo que ainda fez uma tentativa já casado, sem filhos. Nós tínhamos a noção de que isso era um must, até por ele não ter tirado. Em 1978, tinha 16 anos e começaram a falar-me de um bom curso de Economia na Católica. As faculdades de Engenharia estavam em dificuldade, devido aos efeitos do PREC. Vários amigos foram para a Católica e desafiaram-me. Eu, apressado, decidi fazer o ano propedêutico da Católica, que era um verdadeiro primeiro ano da universidade; e ao mesmo tempo o propedêutico que me permitiria ir para Engenharia caso não gostasse da Católica. Concluí os dois e fiquei na Católica. Percebi que gostava de Economia. Mas a minha irmã é engenheira civil.
Apressado, porquê?
Porque queria acabar rapidamente a parte formal da universidade.
Para chegar onde?
Não sei explicar. Queria acabar depressa porque achava que depois é que era bom. Que tínhamos mais liberdade. O que imaginava é que acabava o curso, mais ninguém me aborrecia, e depois ia fazer o que queria. É evidente que a minha vida foi a continuidade do que tinha sido até então.
Quando olha para trás, quando é que se lembra de fazer aquilo que quis?
Nas brincadeiras, fiz sempre. Tinha a capacidade de convencer os outros miúdos a brincar ao que eu queria. Até ao fim do 3º ano achava que estava a fazer as coisas por obrigação. A partir daí percebi que estava mesmo a fazer o que queria.
Estava a viver a vida que tinham estipulado para si.
Exactamente, e que era mais ou menos teleguiada. Ninguém o dizia. Mas sabia que tinha de ser assim. Sabia que não valia a pena ser criativo até terminar o curso, depois logo se veria.
A sua mãe foi mais activa do que o seu pai?
O meu pai estava muito ausente por causa do trabalho, e a minha mãe verificava se estudávamos, acompanhava-nos à natação, à ginástica, interessava-se por saber em que parte da matéria íamos. Até vir para Lisboa ela controlava bastante o que acontecia. Nesse sentido acabou por, directa e indirectamente, moldar muito o meu percurso. Quando vim para a Católica, o meu pai pôs-se na posição de que eu fizesse o que queria; a minha mãe aprovou, achou que era uma boa escolha. Foi sempre mais proactiva.
Nunca a desapontou?
Acho que sim, mas mais por questões da minha vida sentimental. Não gosta que me meta em actividades políticas – diz-mo muito claramente. À parte isso, tenho sido um filho querido.
De momento, a sua mãe não tem grande sorte em relação à actividade política.
Vamos ver os passos que isto dá. Gosto de vê-la como actividade cívica. Para fazer uma verdadeira actividade política tinha de deixar a minha profissão. É incompatível. Ao ser conselheiro de alguém, ao participar no caminho de alguém, num partido que não é poder mas aspira a sê-lo, estou no limite daquilo que uma pessoa que quer manter uma actividade profissional na área em que estou pode ter.
Ou seja.
Tenho um princípio muito claro: quando uma pessoa ajuda a gerir um grupo económico não pode ir mais além daquilo que faço. Não vejo pessoas com funções executivas em partidos serem simultaneamente gestores de empresas significativas. E não deviam ser advogados activos em grandes escritórios de advocacia. A partir do momento em que tem poder executivo na política ultrapassou o seu limite de actuação, e passa a estar numa situação em que, mesmo que seja legalmente possível, é, na minha perspectiva, eticamente indefensável. Tem de se fazer uma escolha: ou uma pessoa está na política ou nas empresas. A maneira como vejo a minha vida nos próximos tempos é nas empresas. Estou disponível para participar e dar a cara, para lutar pelas minhas ideias, mas tenho que o fazer sem exercer poder político.
Fazemos esta entrevista antes das eleições no PSD. Vamos pôr um cenário: Passos Coelho é o novo líder do PSD, há uma dissolução do Parlamento, eleições legislativas, Passos Coelho ganha, constitui Governo e convida-o para Ministro das Finanças. Não lhe era apetecível?
É muito ingrato falar de coisas que não existem. No momento actual, a não ser que seja uma situação absolutamente extrema, quem ocupe uma pasta dessas é carne para canhão. A minha generosidade não chega a esse ponto. Estou a diminuir-me moralmente ao dizê-lo, mas francamente não me apetece ser vítima de todos os opinantes que há por aí, que nunca se interessam por coisa nenhuma mas que se entretêm a massacrar quem tenta resolver os problemas do país. Teria de abdicar de vez da vida que tenho levado. Não poderia voltar para o sítio onde estou. A lei permite-o, mas moralmente não poderia voltar. Tenho um código moral e ético muito mais exigente do que a lei impõe. A minha educação e a minha passagem pelo mundo anglo-saxónico levaram-me a ter estas preocupações muito enraizadas. Não sou fariseu, a ética não é para os outros, em primeira instância é para mim próprio.
Em circunstância alguma o faria?
Fazer um sacrifício desses só faria sentido numa situação de emergência nacional. Estamos numa situação degradadíssima mas não de emergência, ou que não é percepcionada pelos meus concidadãos como de emergência. O limite daquilo que é a minha obrigação moral de intervir, e de largar a minha vida de vez, e de não voltar a ela, é um ponto a que não chegámos. É assim que ponho as coisas. Não é tanto se é o Passos Coelho, ou a mãe do Passos Coelho, ou a Manuela não sei das quantas que me convidam. Como também sei, pela experiência de 1999, que uma pessoa não deve fazer as coisas quando não está convencida de que as deve fazer, sei que não posso vacilar como vacilei. Aos 48 anos não posso cometer os mesmos erros que cometi aos 36.
Por outro lado ainda não tem 50 anos.
Pode haver outras oportunidades, mas não é tão cedo.
O que é que quer fazer?
Há várias áreas onde posso contribuir muito, cívica ou politicamente. Uma coisa que falta imenso em Portugal é pensamento livre, pensamento estruturado. Em Portugal não há think tank como há nos países anglo-saxónicos, na Alemanha e na França, ou mesmo na Espanha. Existem uns arremessos de think tank. O Alexandre Relvas fez um excelente trabalho no Instituto Sá Carneiro.
Do Compromisso Portugal faziam parte pessoas que estavam intimamente ligadas ao poder económico. Como é que se pode falar de think tank livre e de uma intervenção que não seja contaminada pelo poder económico?
Há sempre contaminação na intervenção, umas vezes mais óbvia e outras menos. Não diria que o think tank era eu e outras pessoas iguais a mim, mas tenho dado provas de independência de pensamento maior do que a maior parte das pessoas do Compromisso Portugal. Digo coisas que, objectivamente, para mim, a curto prazo, não são boas.
Um exemplo.
Refiro que o Governo devia refrear as obras públicas quando sou administrador de uma empresa que gere concessões. Não estou a desalinhar o meu interesse individual do interesse público. O que estou a dizer é que o interesse do país, a longo prazo, é sempre bom para quem quer fazer vida no país. Estou disposto a abdicar de algumas coisas no curto prazo para ter um longo prazo mais equilibrado e melhor.
É questionado internamente, no grupo Mello, por causa de posições como essa?
Imagino onde sejam os meus limites. Desde que as coisas tenham uma coerência e sejam ditas de boa fé, há no grupo um grau de liberdade muito razoável. Também sinto que tenho um estatuto mais ou menos especial.
Porquê?
Porque digo coisas que alguns dos meus colegas não se atreviam a dizer.
Como é que conquistou esse estatuto?
Pela maneira de ser. Fiz uma, duas, três vezes. Depois sou muito disciplinado no que tenho de ser. Nunca ninguém me vê falar de coisas de que não posso falar por obrigações profissionais. Nunca tenho um deslize numa informação sobre uma empresa cotada, que não posso usar como argumento noutras esferas. É tudo muito controlado. Quando bato em alguém, bato sabendo que estou a bater. Quando bato no Pacheco Pereira, sei que o estou a fazer. Estou convencido de que é uma das pessoas que fazem pior à democracia portuguesa. Não é bom ter uma pessoa que tenta ser a referência moral do regime, quando no fundo é uma pessoa que vive da polémica. A contrapartida é o tempo de antena. Um tempo que não é gracioso como o meu. É um tempo de antena profissionalizado.
Está a referir-se ao “tempo de antena” na SIC e no Público, onde ganha dinheiro?
Obviamente. E não tem mal nenhum. Mas no plano ético, ele tem muito a aprender comigo. Não está à vontade para lançar aquelas polémicas; só o poderia fazer se, como eu, não recebesse para fazer televisão.
Chamou-lhe nomes feios, como se diz na blogosfera?
A ele, não. Há um grupo no PSD a que chamo “geração Fox News”: uma simbiose entre os ex-leninistas e os miúdos muito conservadores que têm no Pacheco Pereira uma espécie de ídolo. Houve uma altura em que ironizei porque achei que ele tinha sido pouco correcto com uma pessoa de quem gosto; em geral defendo as pessoas de quem gosto.
Estávamos a falar do que estava para ser a sua vida. Fale-me mais da intervenção da sua mãe, da marca que ela lhe deixa.
A nossa mãe foi sempre uma pessoa que nos orientou. Eu, desde a primeira classe até ao último ano da faculdade, em que fui ultrapassado pelo Luís Cabral, que é de facto um génio, fui muito bom aluno; nos EUA fiz o doutoramento e a tese muito depressa. Cheguei cá e tinha acabado de fazer 26 anos. A minha irmã foi a melhor aluna do Técnico do ano dela, é professora lá, é doutorada, fez o mestrado no Imperial College com uma mononucleose e um bebé nos braços. A nossa mãe trabalhava connosco e sobretudo estimulava-nos, desafiava-nos. Esse carácter permanente ainda hoje se mantém sobre nós. Ainda hoje nos controla os dias, não numa visão policial, mas para saber se nos estamos a tratar bem, se estamos a comer bem (o meu problema é sempre comer bem demais…), se descansamos o suficiente. Tem opiniões fortes sobre os actores políticos, que não coincidem necessariamente com as minhas.
Entendeu esse estímulo e desafio como expressões de amor? Por vezes confundem-se a admiração e o gostar.
Tive sempre uma mistura das duas. Ainda hoje me admiro com a velocidade com que [a minha mãe] consegue fazer julgamentos, sobre circunstâncias e sobre pessoas. Tem uma clara vantagem sobre mim. Com a experiência de vida que uma pessoa vai acumulando, às vezes chega lá mais depressa. No que diz respeito à influência, controla, indica ou sugere sem estar sempre presente. É uma presença diária.
Porque é que se deixou engordar?
Porque tenho um metabolismo lento.
Quando se “googla” o seu nome aparecem umas fotografias antigas. Nem parece a mesma pessoa. E o seu cabelo parece que ficou subitamente branco.
Isso coincidiu com a minha passagem pelo Governo. Não tem a ver com o casamento, porque a minha mulher é a primeira pessoa a não gostar de me ver assim. Um gordo é sempre um ser degradado no sentido estético. E pode revelar falta de cuidado consigo próprio.
E uma desistência numa determinada área.
Passei a ocupar-me demasiado com outras. Reconheço que estes sete, oito anos têm sido de um certo desequilíbrio. É algo que vou ter de corrigir rapidamente. Felizmente não tenho problemas de saúde, e como sou hipocondríaco vigio-me bastante. A forma como resolvo o stress é comendo. E o cabelo branco, ou grisalho, coincidiu. Hoje tenho mais ou menos o cabelo do meu pai, que tem 81 anos.
Foi para os EUA muito cedo. Antes disso, deu aulas.
Fui monitor na Católica porque o Professor António Borges levou um assistente de uma cadeira do penúltimo ano para trabalhar com ele em França. O Professor da cadeira foi ver quem é que tinha sido o melhor aluno no ano anterior, tinha sido eu, e fui dar Análise de Investimentos. No ano a seguir, aos 21 anos, fiquei como assistente do António Borges, eu e o meu amigo Luís Cabral. Não sabia bem o que é que queria fazer.
Já podia fazer o que queria, já podia decidir.
Já podia, e tentei várias coisas. Surgiu a oportunidade de ir para os EUA. O António Borges e o Diogo Lucena foram as pessoas que me influenciaram. Na Católica disseram-me que era demasiado novo – tinha acabado de fazer 22 anos – e davam-me o exemplo do Professor Cavaco, que tinha ido para York já trintão. Contei isto em desespero ao Diogo Lucena que me disse: “Há um concurso para assistente na Nova. Concorra que nós apoiamos a sua ida para os EUA”. Fui para os EUA, quase nem trabalhei como assistente. Foram quatro anos excepcionais. Consegui fazer o doutoramento e viver como um americano.
Sempre com a ideia de voltar?
Tinha dado a minha palavra ao Professor Alfredo de Sousa de que voltava, não se punha questão sobre isso. A escola estava a investir em mim. Fui com uma equiparação a bolseiro da faculdade de Economia da Universidade Nova. Depois tive bolsas da universidade americana. Dei aulas e herdei o trabalho de um português, o Vasco d’Orey. No último ano ganhei uma bolsa adicional da universidade, num concurso público, porque tinha tido uma boa performance e tinha um projecto interessante. Vivi lá com bastante dinheiro.
Vou fazer uma pergunta muito americana: “what makes you run”?
Boa pergunta. Ainda não encontrei aquilo por que me apetece correr. Gostava de deixar qualquer coisa feita e ainda não percebi muito bem o quê. Agora estou a ajudar outros a fazer os projectos deles. Estou assoberbado com o curto prazo.
Então, o que é que o fez correr? A ambição, a sede de poder, o dinheiro, o reconhecimento?
Acho que é reconhecimento. Às vezes faço umas introspecções, e dinheiro não é, porque não tenho um estilo de vida muito caro.
Tem um fato por medida.
Tenho, mas isso sempre tive. Vou ao alfaiate que era do meu pai. Não subi de vida na perspectiva monetária. Quando ficamos mais entregues a nós próprios, aos 45 anos estamos melhor do que aos 30, mas não é qualitativamente diferente. E não sou uma pessoa que tenha a ambição de ter um iate em Ibiza.
Não é o dinheiro que o faz correr porque não tem desejos de grandeza, é isso?
Não estou a dizer que desprezo o dinheiro. Gosto de dinheiro. Mas nunca me faltou para ter uma vida confortável. Vejo no dinheiro a segurança para ter no futuro a vida que tive até hoje. Poder político: gosto de poder. Toda a gente gosta. Mas em Portugal exercer o poder tem um custo demasiado elevado. As áreas onde poderia ser útil são áreas onde mexemos com interesses, e rapidamente há não sei quantas pessoas a dizer mal de nós. Uma pessoa como o Bagão Félix, que tentou imenso e só disseram mal dele… Um aspecto que me parece muito relevante: há um custo sobre a nossa intimidade. Não a financeira – já passei por isso e não tenho nenhum problema. Não tenho nenhum tio com offshores que não sei explicar, ou primos. Não preciso fazer nenhum cheque de viabilidade.
Queria ser alguém importante?
Alguém importante, não, mas alguém que deixe uma marca relevante, sim. O que é emocionante é deixar uma marca. Em alguns círculos sou conhecido, faço o que quero, digo o que quero. Se fosse multi-milionário tinha muito mais poder, mas não é a isso que aspiro.
Estamos naquela fase em que, como há 12 anos, “vai ser um homem importante”, ou “poderia ter sido um homem importante”.
Reconheço que com esta minha postura corro o risco de me transformar em Marcelo Rebelo de Sousa dos economistas. [riso] Ou seja, uma pessoa que podia ser e nunca foi. (É uma pessoa de quem gosto e que acrescenta imenso em várias áreas.) Não desisto de encontrar um projecto. Neste momento, sinto-me muito realizado com o que faço profissionalmente. Só não é tão visível porque é dentro de uma organização e sou disciplinado. Tenho participado em alguns projectos públicos, mas não sou líder de coisa nenhuma. Estou a participar num projecto da Nova, que me entusiasma imenso, e que ainda está numa fase muito embrionária: sermos, na próxima década, uma das melhores business school da Europa. Não tenho que ser nem sou o líder do projecto, mas é entusiasmante.
Aí está uma coisa pela qual pode correr, ser líder, e não pôs nesse projecto os seus cavalos. Porquê? É uma falta de confiança em si mesmo? É um supporter, mas não é o que está na boca de cena.
Na política, não tenho estatuto para líder. Não me estou a minorar. Um líder na política tem de seguir um cursus honorum. Fi-lo noutras áreas, mas não na política, e preciso fazê-lo. Para citar um exemplo concreto: não sei se o Paulo Rangel vai ganhar, mas acho que houve uma precipitação dele ao concorrer: não fez esse cursus honorum. (Sou um amante da história de Roma e um conhecedor, e às vezes uso estas analogias. É uma ideia importante: para serem cônsul tinham de ter um curso de honorum na república).
Porque é que há estes dois movimentos na sua vida? Porque é que é tão acelerado no seu percurso, nomeadamente na área da Economia, e na vida profissional, ocupando lugares de destaque, não é o número um?
É verdade. Não sou o número um porque na minha actividade principal trabalho numa entidade que tem dono. Não sendo o dono, é natural que não seja o número um. Nem aspiro a sê-lo, não faria sentido. Sinto-me parte de uma equipa e trabalho com um conjunto de pessoas, que do ponto de vista moral e do carácter, são raras e exemplares (é um aspecto que valorizo muito depois de ter passado pela política). As pessoas perguntam-se porque é que estou aqui. Pode dar uma ideia de descontinuidade no percurso, ou até de retrocesso, mas dá um certo conforto. E depois tenho a vida académica, que ainda vou fazendo, pro bono, e a vida mais exposta na política.
Fale-me do encontro com os Mello. Mudou a sua vida?
Tem mudado a minha vida. A minha primeira colaboração foi nuns trabalhos de consultoria para um tio dos actuais Mello e colaborador do Sr. José Manuel de Mello, o Dr. José Guimarães. Depois fui convidado para uma coisa alargada, o conselho consultivo da então UIF, depois Grupo Mello, e hoje Banco Mello. E fui conhecendo as pessoas. Quando saí do Governo, havia um conjunto de portas que tinha aberto antes que ficaram fechadas, pela maneira como decidi sair. Fui trabalhar como consultor de uma empresa, em parte gerida por um grande amigo, o António Carrapatoso, (que até correu algum risco por ter ido buscar uma pessoa que tinha afrontado o Governo daquela maneira); estive lá bastante tempo.
Como é que retoma o contacto com os Mello?
Uns anos mais tarde começo a envolver-me numas tertúlias do Sr. José Manuel de Mello. Uns encontros em Sintra para pensar o futuro da economia portuguesa, onde participa o actual presidente Cavaco Silva e a nata dos empresários, dos economistas e dos gestores. Já conhecia os filhos, mas começo a ter algum contacto com ele.
Figura mítica para si?
Mítica e uma das pessoas mais surpreendentes, pela positiva, que conheci. Uma pessoa que consegue refazer a vida, com a idade que eu tenho hoje, tem de ser uma pessoa notável. Era muito inteligente, não apenas para os negócios, culto, com uma inteligência política aguda. E tinha alguns aspectos de feitio que admiro: era desafiador, tinha um grande sentido de humor. Às vezes discutíamos política e economia, eu, ele, o José Manuel Morais Cabral e o Joaquim Aguiar, que são amigos e foram gestores do grupo toda a vida. Um ano e tal depois disto, praticamente três anos depois de ter saído do Governo, ele desafiou-me para ir trabalhar para a área química com o João de Mello, um dos filhos. É aí que entro no grupo.
Porque é que acha que ele reparou e apostou em si?
Porque tinha alguma maturidade, tinha um currículo, tinha feito coisas. Ele sabia que eu era uma pessoa que quando está num sítio sabe estar nesse sítio, que cumpre as regras, que é leal. Leal mas sempre dizendo o que penso.
Não era adulador?
Nunca fui.
Ele apreciava isso?
Adorava as pessoas que lhe diziam o que pensavam. Para mim, isso é o máximo sinónimo da categoria das pessoas: gostar de alguém que lhes faça frente. Um dos problemas dos líderes é rodearem-se de pessoas que não os ajudam porque são meras ressonâncias das opiniões do líder, daquilo que acham que o líder quer ouvir. O líder tem que ter pessoas que o confrontem, que o ajudem a pensar melhor, com autonomia de pensamento e coragem para dizer o que deve ser dito. O Sr. José Manuel de Mello apreciava muito isso.
O que é que aprendeu com ele?
A importância do risco, de saber correr riscos, que já tinha aprendido no papel e noutras circunstâncias. É o que define o empresário.
Devia acrescentar: “E que não aprendeu na faculdade”?, ainda que teoricamente tenha aprendido estes conceitos.
Sim. E uma capacidade que é muito rara, que é ver sempre além dos outros. O Sr. José Manuel de Mello via sempre à frente de todos os outros. Há uma série de coisas que estão a acontecer que, ditas na linguagem encriptada que ele usava, e que quem trabalhava com ele percebia, anunciou. Refere, candidamente mas de uma forma frontal, que em Portugal as pessoas não gerem activos, gerem dívida – que até aí ninguém tinha dito. Nos poucos anos que trabalhei com ele aprendi imenso.
O seu PSD é o PSD do grande capital? O sítio onde trabalha, todo o seu percurso para trás, é o do grande capital.
Onde trabalho não é uma casa do PSD.
É uma casa de direita, digamos assim. Contudo, o PSD que neste momento apoia, o de Passos Coelho, não é o PSD mais conservador. Isto pode ser entendido como uma cisão?
Cerca de 95 por cento dos meus amigos, militantes ou simpatizantes do PSD, estão com outras pessoas. Reconheço que escolhi um caminho diferente. As pessoas dos estratos sociais mais elevados, em geral, não estão, ou não estavam, com as pessoas que apoio. [A minha opção] prende-se com o facto de ser importante apostar em alguém que esteja liberto, e que liberte a sociedade, de uma excessiva promiscuidade que tem havido entre os grandes escritórios de advocacia, os grandes grupos, os grandes poderes de Lisboa e a política.
Está a falar de quê?
Não estou a falar de corrupção, estou a falar de demasiada proximidade. Ao contrário do que alguns opinion makers, mais da área do leninismo, fazem crer, ele, [Passos Coelho], é a pessoa que está mais em condições de fazer esta separação, entre a política e os interesses. A maior parte dos meus amigos vê ao contrário: “Pomos um dos nossos, dizemos que está ungido de bondade e continuamos a fazer tudo na mesma”. É assim que Portugal tem funcionado nos últimos 30 anos: arranja-se um santinho, diz-se que ele é bom, casto, e depois continua tudo na mesma. O país chegou a um ponto em que a inviabilidade económica e do Estado social exigem uma separação clara. Não só entre o capital e a política, mas também entre as corporações e a política, que têm de ser abordadas de uma forma mais inteligente do que a do José Sócrates. (Que foi a primeira pessoa que teve a coragem de o fazer, mas que o fez de forma truculenta e com poucos apoios, e que foi de alguma forma trucidado).
A propósito dessa promiscuidade entre o poder económico e a política, ocorre-me que na compra da GALP o Grupo Mello foi preterido, quando partia com algum favoritismo. Acha que isso aconteceu por razões políticas? O que acabou de dizer tem alguma relação com isto?
A minha passagem pelo Governo tornou clara esta minha percepção. Achava que tinha de haver uma separação de facto, que o poder político e o poder económico têm de estar “at an arm’s lenght”. É a melhor maneira de a sociedade funcionar. Há sempre tentativas, mas temos de ter regras de higiene mais estritas. Quanto ao processo da GALP, o erro que cometemos foi ter dito que estaríamos dispostos a ter o António Mexia como CEO da GALP. Isso não foi bem visto no ministério da tutela. Posso estar a ser injusto, mas a informação que tenho hoje é a de que isso marcou muito as hipóteses de sucesso. Discordei totalmente da maneira como as coisas foram feitas, até porque essas coisas devem ser feitas do modo menos dirigido possível. Aquilo era uma operação extraordinariamente dirigida, o Estado ia fazer um contrato-promessa para ficar com a posição de uns senhores que ainda não tinham saído... Um político gosta de controlar as coisas. A maneira como vejo as coisas exige um esforço, quer dos empresários, quer dos políticos. Isto envolve outro players. Uma pessoa não está ligada a interesses só porque é gestor de um grande grupo. Também está ligada a interesses se estiver num escritório por onde passam grandes negócios.
Um escritório de advogados. Já os referiu no começo da entrevista.
Não é um escritório qualquer, são os grandes escritórios de advogados. As pessoas têm tendência a achar que os gestores estão ligados a interesses e que os advogados não – o que não é verdade. Os advogados, em Portugal, têm um papel na intermediação dos negócios que é por vezes superior àquele que têm os bancos de investimento.
Ouço-o falar com esse entusiasmo, e do seu desejo de deixar uma marca, e isso não bate certo com o não querer aparecer a seguir.
Estou à espera do meu tempo. Que não é agora.
Tem pena que não seja agora?
Tenho e não tenho. Tenho que digerir melhor, em termos da compreensão das coisas, aquilo que aprendi e o choque que tive aqui há uns anos.
Ser Secretário de Estado deixou uma marca funda na sua vida.
Deixou. Há uma pessoa antes de 1999/2000, e uma pessoa depois. Não só fisicamente.
Vai “twittar” e dizer que esteve a dar esta entrevista?
Tenho “twittado” pouco, porque as pessoas andam muito excitadas, e para me preservar volto a “twittar” dia 27 de Março. [entrevista realizada no dia 20] Ponho uma ou outra provocação diária, e tenho uma enchente de respostas.
Diverte-se com isso?
Sou um provocador. Há pessoas que são tão ridiculamente previsíveis, e que se têm em tão grande conta, que dá um gozo enorme levá-las a fazer o que queremos. Ensaio isso com um conjunto de pessoas. É uma forma de exercício de poder, não político, mas mental. Não estou a falar do Pacheco Pereira; discordo dele em muitas coisas, mas é um homem inteligentíssimo e um adversário fantástico. Depois há aqueles que gostavam de ser assim…, e são esses que manipulo.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2011