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Anabela Mota Ribeiro

Pedro Rosa Mendes

06.07.14

«A história principal – se é que há alguma, se é que é possível dizer «este livro é sobre qualquer coisa» - tem dois personagens, um marchant inglês e uma refugiada norueguesa. Um deles escolheu guardar da relação apenas o momento inicial, o mais intenso, e depois há uma opção pela ausência e pela distância. Essa tangente é tudo o que têm.

É um livro de fantasmas. Cada pessoa é construída e relaciona-se a partir de um puzzle de pequenas coisas. Coisas que formam a nossa memória, os nossos sonhos, as nossas rotas. E quando se mobilizam para alguém, quando dão atenção a alguém, o que fazem é partilhar esses fantasmas, esse património que carregam. De música, imagens, palavras, telas, pigmentos, texturas, paisagens.

É uma viagem exigente. Seria bom que o leitor se sentasse não em frente a um livro, mas numa sala de espectáculos. Um dos actores da Escola da Noite dizia-me: «Isto não é um romance, é um livro performativo». Achei a definição perfeita».

Esta é a apresentação sumária que Pedro Rosa Mendes faz de «Atlântico», um «romance fotográfico» assinado a meias com o fotógrafo João Francisco Vilhena. Um livro como nunca se viu.

A expectativa é elevada. Elevadíssima. «Baía dos Tigres», o seu primeiro romance, «é um livro capaz de justificar todo um passado comum de errância pelo mundo e de renovar a chamada literatura de viagens. Neste caso, grande literatura», (José Eduardo Agualusa).

«Ilhas de Fogo», o livro-reportagem com ilustrações de Alain Corbel, data do ano passado. «O que une estas histórias é estarem ancoradas em indivíduos que têm pelo menos o sonho, mas também a coragem de mudar a sua própria vida», (o autor ao Diário de Notícias).

O que há em cada um deste livros? Pessoas, e pessoas, e pessoas, o que as faz serem pessoas, como existem enquanto pessoas.

Pedro Rosa Mendes nasceu em Cernache do Bonjardim em 68. Estudou Direito em Coimbra. Era provável que fosse advogado ou juíz ou diplomata. Continua a dizer-se um jornalista. Vive em Berlim até ao Verão. Depois disso regressa a Lisboa e procura emprego. Diz que vai escrever porque não sabe fazer mais nada. 

 

 

Qual é para si o significado da palavra «tangencial»?

- Tangencial é algo que nos marca. Sendo tangencial, sendo momentâneo, deixa uma presença. No «Atlântico», as histórias de todos os personagens principais são tangenciais. Não houve uma intersecção. Só percebem com cerca de 20 anos de diferença que o momento em que estiveram em contacto foi o mais marcante na vida de cada um. Esse ponto de contacto que depois se perpetua é uma espécie de fantasma. É uma ausência presente.

 

A palavra evoca um sentido muito gráfico e fez-me pensar no seu interesse pelas cartografias. O que elas permitem é uma visão da vida num espaço delimitado. Uma visão que implica alguma distância. Distância e ausência são palavras-chave em si.  Este encadeamento à volta de tangente, faz sentido?

- Sim. É preocupante que, ao fim de três livros, haja palavras que eu repito...

 

Não são palavras. São noções.

- A noção de ausência é importante. Faz todo o sentido que na banda sonora de «Underground – Era uma Vez um País», do Kusturica _ um filme incrível, não só bom enquanto criação cinematográfica, mas enquanto reflexão sobre a guerra_ a seguir ao tema mais ruidoso e que simboliza toda a violência da guerra civil, apareça um tema da Cesária, lindíssimo, chamado «Ausência». Ausência é uma coisa diferente de exílio. Exílio é estar num sítio com o sofrimento da memória de outro sítio. Podíamos codificar isto com palavras como «saudade» ou com a expressão do António Variações «Estou além». Mas estar num sítio que não nos pertence ainda é ter uma cartografia, uma posição. A ausência é não ter direito a sítio.

 

Ter um espaço, como ter uma língua, são patrimónios preciosos. Porque são aqueles que nos fornecem referências.

- Mas fornecem-nos prisões, também. A língua fornece-nos um instrumento de pensamento, muito mais importante até do que um instrumento de comunicação. Não posso fingir que penso em qualquer outra língua como em português. Mas também é verdade que podemos expandir identidades, alargar territórios através de outras línguas.

 

Sim, mas já são migrações.

- São exílios ou ausências.

 

Será sempre uma tradução. Por mais fluente que se seja na outra língua, é sempre uma tradução da língua materna, não é?

- Não tem que ser uma tradução. Pode ser um acrescento. É por isso que acho tão interessante o processo de formação dos crioulos. São algo que acrescenta uma identidade ou que a duplica, às vezes de uma forma esquizofrénica. Não reduzem aquela de onde se parte. Recentemente estive a trabalhar num conto para a «Nova Tabacaria», da Casa Fernando Pessoa; ficciono uma presença de vários heterónimos do Fernando Pessoa em Cabo Verde. Esse personagem é já um heterónimo da 3ª geração, que encontro no Mindelo em 2003, e que diz: «As minhas pátrias são as minhas ilhas».

 

É o Eu estilhaçado, disseminado pelos diferentes espaços físicos?

- Não estilhaçado. Acrescentado. Num processo de enriquecimento. E por isso a história está no Mindelo. Porque o crioulo de São Vicente foi construído e empurrado por uma coisa tão simples como o Porto Grande do Mindelo, importantíssimo em todo o tráfego comercial do Atlântico, entre a Europa, América do Sul e África; implicava a passagem de pessoas de origem portuguesa, alemã, italiana, holandesa, judeus.

 

Essa multiplicidade de proveniências deixou marca na língua que é hoje falada, é isso?

- É. Isso não é um processo de exílio ou perda de pátria; é um processo de construção ou alargamento de pátrias. Há muitos portugueses que olham para o crioulo guineense ou cabo-verdeano como se se tratasse de um português mal falado. Isto é um insulto e uma imbecilidade pura. É não perceber os processos complexos e muito ricos de criação de uma outra língua a partir da nossa.

 

Lembrei-me de cruzar a ideia de tangencial com as epígrafes da «Baía dos Tigres» e do «Atlântico»...

- Deixe-me só interrompê-la. Quando falo de tangencial e de cartografia e de imagens, lembro-me por exemplo de como são bonitos, embora redutores, livros que antes se faziam, sobretudo nos séculos XVIII e XIX. Roteiros, por exemplo, da costa africana, feitos com ilustrações panorâmicas, muito magras na altura, muito compridas, quase narrativas. O livro era o somatório de imagens, que eram colhidas de um ponto exterior àqueles sítios. Era fachada dos sítios. Era uma cartografia de passagem.

 

E nisso há uma ausência de tridimensionalidade. Para si, que procura a espessura humana que não consta das cartografias, não é uma frustração imensa, essa ausência de tridimensionalidade?

- Digo que é redutor porque implica um desconhecimento de toda a cartografia que está para dentro de terra. Mas isto, voltando ao «Atlântico», tem a ver com algo que é intrínseco à experiência marítima e ao olhar do marinheiro, que é um olhar tangencial. Há uma espécie de pátria comum da gente dos marinheiros; é um território que não existe, feito de rotas, rotas que se interseptam. Essa cartografia de toca e foge, mas de um toca que marca, tentei guardá-la nas histórias do «Atlântico». A presença do mar não é porque todas as histórias se passam no barco, mas porque há esta intimidade marítima.

 

«Atlântico» está atravessado por naufrágios, reais ou metafóricos, e ressurreições. Cada um dos personagens, de maneiras diferentes, experimenta um naufrágio.

- Há vários tipos de morte. Há a morte por crucificação de um marinheiro. Há a morte por genocídio. Eu nunca fui a Israel, nunca conheci nenhum sobrevivente do Holocausto, mas estive no Ruanda depois do genocídio. Percebi que uma parte deles, que era a sua identidade, foi morta. Essa é a desgraça do genocídio. Pode haver 1 milhão ou 10 milhões ou 20 milhões que sobrevivam biologicamente. Mas já morreram. Morreu um modelo de sociedade, de relações, uma grelha cultural. O genocídio mata, em última análise, a memória e a linguagem. Não é por acaso que no pós-Holocausto dos judeus, na pós-Solução Final no Cambodja, ou no pós-Ruanda em 1994, encontramos uma coisa comum: uma falta de verbo. Há uma rarefacção das palavras de quem sobrevive.

 

Está a falar num sentido real ou metafórico?

- Real, também. É difícil encontrar palavras para nomear, explicar aquilo que já nos matou. Essa é uma das violências maiores do genocídio e que define a máquina do genocídio.

 

Uma das mais partes mais fortes do seu livro é justamente aquela em que se procura «a» palavra. Procura-se o verbo como se se procurasse a essência. A ideia de nomear significa uma primeira conexão com o exterior.

- É um poder incrível, um poder original, é quase um poder divino. Nós damos um nome.

 

A sua filha Inês esteve para chamar-se Sara. Decidiu mudar-lhe o nome quando realizava a viagem que resultou na «Baía dos Tigres», não foi?

- Foi. O nome mudou na minha cabeça algures na Zâmbia, dentro de um autocarro. Por razão nenhuma. Mas era óbvio que ela só podia chamar-se Inês.

 

Era óbvio como?

- Na altura foi óbvio. Como é que escolhemos os nomes? É angustiante porque os nossos nomes deixaram de ter significado etimológico.

 

Ou religioso.

- Religioso, ritualizado. Ainda hoje estava a ler um texto lindíssimo da Alexandra Lucas Coelho [jornal Público]; no Curdistão turco um pai fala dos seus vários filhos, e o nome de um deles significa «água que corre» ou «água que serpenteia». Perdemos isso.

 

Há um peso simbólico que as palavras, não só os nomes mas as palavras, vão perdendo. Vão sendo desinvestidas dos seus múltiplos sentidos, de significação.

- Porque as pessoas também desaprendem as palavras, desaprendem o uso, ou falam-nas mal. Agora que estamos em tempo de guerra, o exemplo clássico é despoletar. Despoletar é desactivar. Despoletar a guerra seria – em sonhos, neste momento – evitar a guerra e não começá-la. Há uma erosão da aprendizagem da língua, e do pensamento que isso possibilita.

 

Foi fundamental aprender palavras com um pai e uma mãe que são professores primários?

- Foi.

 

Para começar, e já que falamos da importância dos nomes, como é que eles se chamam?

- Manuel e Hermínia. Sobretudo num meio rural como aquele de onde venho, rural muito rural, fazia diferença ter pais que usam bem a linguagem, e não só de forma gramaticalmente correcta, mas também sabendo o valor de outros patamares, empurrando-me para outros patamares. Era importante que os meus pais tivessem em casa a biblioteca que tinham. Faz muita diferença conviver com livros, ter carinho pelas folhas e pelo que lá está escrito.

 

Como é que aprendeu a ler?

- Não me lembro. Tenho uma memória péssima. Senil. Lembro-me de muito poucas coisas, sobretudo da infância.

 

Mas aprendeu com os outros meninos na escola ou aprendeu em casa?

- Acho que aprendi com os outros meninos na escola. Os meus pais sempre tiveram um escrúpulo enorme em não criar distorções que tivessem a ver com o facto de serem professores do ensino primário. Sempre os incomodou que o processo de aprendizagem fosse aldrabado porque eu tinha condições excepcionalmente melhores. Sempre tiveram uma aversão ao ensino privado, que eu também tenho. É saudável crescer num ensino público onde, pelo menos à partida, todos os alunos são iguais e partilham de métodos e programas que não são a título nenhum excepcional.

 

Vai querer ensinar as suas filhas a ler ou vai fazer como os seus pais?

- Ser pai, em primeiro lugar, é arriscar impôr uma data de sonhos aos filhos.

 

Impôr?

- Impôr sonhos. Há sempre a tentação que emendem ou melhorem todos os sonhos que não concretizámos. É inevitável que aconteça, mesmo que depois se mantenha uma distância saudável. Quanto ao ensinar-lhes a ler, não penso que as vá ensinar. Espero que tenham bons professores para isso. Tentarei que aprendam a ler no sentido de gozarem com a leitura, de sentirem que os livros são sempre pequenas ou grandes janelas para sonhos, que as podem enriquecer, que as podem melhorar como pessoas.

 

Frequentemente os pais sonham através dos filhos.

- Eu continuo a sonhar os meus sonhos. Não há sonhos frustrados.  Felizmente não preciso que as minhas filhas concretizem os meus sonhos.

 

Não está ainda desesperançado, depois de assistir a tanto horror. O que é óptimo. Como é que se chama a sua segunda filha?

- Violeta. Há coisas muito mais importantes para ensinar aos filhos do que ensinar a ler e a contar. E aí, sou também muito cartográfico: gostaria que conseguissem aprender que estão no mundo. Que aprendessem a estar disponíveis para os outros. Para que acontecessem coisas. E isso implica o prazer da leitura ou da viagem. Ninguém lê sem curiosidade ou sem sede.

 

Um pai pode ensinar o significado da palavra disponibilidade. Pode até ensinar a escrever disponibilidade. Mas o que está contido na palavra disponibilidade...

- Mas é a isso que me refiro. Isso não sei se se pode passar. Diria que queria ensinar às minhas filhas disponibilidade, curiosidade, uma data de coisas boas. Será que as tenho?, será que é preciso tê-las para as ensinar? Está a fazer-me pensar nisso agora. Nunca pensei nisto assim.

 

Disponibilidade e curiosidade são uma base. Mas muitas vezes existe um desfasamento entre a tematização de uma palavra e a vivência dessa palavra.

- Ensinar a tolerância, por exemplo, acho que é terrivelmente simples. Seja a um indivíduo, ou ainda mais a uma criança, ou a uma sociedade inteira. Até conheci gente, em Moçambique ou em Angola, cuja profissão era ensinar tolerância.

 

Como?

- Através da criação de espaços sociais, de tempo para discussão, para se ser confrontado com opiniões diferentes. Normalmente quando existe um conflito, numa situação extrema, as pessoas entrincheiram-se nas suas verdades, nas suas identidades, verdadeiras ou falsas, e não estão dispostas a discuti-las. A guerra é a materialização dessa recusa.

 

É a incomunicação absoluta?

- É a falta de linguagem. É a recusa a ser questionado por outra linguagem. Ou o desejo enorme de impôr outra linguagem (a nossa), de impôr outras palavras (as nossas). A guerra é a imposição violenta de uma narrativa. Não é por acaso que, no fim de cada guerra, há uma versão do vencedor.

 

Que é tida como verdadeira. O elemento verdade é aqui fundamental.

- É o direito a ocupar a cadeira da verdade. Há uma narrativa com que todos crescemos da Segunda Guerra Mundial. Uma das coisas interessantes de estar a viver na Alemanha é descobrir outras narrativas – e não estou a falar de outras versões ideológicas, de revisionismo, de negação do Holocausto. Outras palavras para narrar a mesma coisa. Há palavras do alemão que carregam tanto mal, que faziam parte da narrativa nazi, que desapareceram da linguagem. Voltando à guerra como confronto de linguagens ou como negação absoluta da linguagem, o conflito militar pode referir-se em primeiro lugar a isso: a versões, a palavras, ao direito de impôr um sítio no mapa.

 

Porque é que o seu intuito de vida foi sempre avançar “para lá de”? Para lá do horizonte, para lá da previsibilidade das palavras, para lá da pura factualidade.

- Há mecanismos de curiosidade e insaciabilidade que implicam mais e mais descoberta. É uma espécie de resgate nunca completo da ignorância. Eu considero-me um homem bastante ignorante.

 

Está a dizer isso com que tom?

- Com um tom muito lúcido. Sou, sou ignorante em relação a muitas coisas. Espero ser menos, cada vez menos. Uma das melhores coisas do «Atlântico» é tudo aquilo que me obrigou a investigar e a saber que não sabia antes. História da Pintura, por exemplo; implicou muitas leituras porque um dos personagens principais é traficante de arte e porque o motor da história é o tráfico de arte nazi em toda a Europa durante a Segunda Guerra Mundial. Obrigou-me a conhecer melhor a obra do Van Gogh, a obra do Gauguin.

 

Existiu entre os dois pintores uma relação inflamada. Inflamada também é uma palavra que vai bem consigo... Parecem irmãos desavindos, não é?

- Sim. O período da casa amarela é uma guerra civil. Eles estavam muito próximos um do outro, foi por isso que se zangaram tanto. Como aconteceu nos Balcãs, ou em Angola. É o tipo de conflito mais violento e mais doloroso. O confronto implica uma terra queimada. Não resta nada depois disso.

 

O facto de estarem muito próximos fá-los perceber intrinsecamente o outro. É mais fácil perfurar e ir ao ponto nevrálgico.

- Conhecemos bastante bem, sabemos onde dói. Algo que estes personagens do «Atlântico» sabem, é que ninguém nos pode fazer tanto mal como quem nos ama mais. E isso tem a ver com a proximidade quase patológica de qualquer relação, (conjugal, fraternal, paternal, maternal); oferece também a possibilidade de maior violência.

 

Quanto à ignorância...

- É uma constatação de quanto pode escapar, de quantas coisas não nos chegam. O tempo que temos para descobrir, avançar, ir para lá de, é muito reduzido. O maior privilégio da viagem que fiz para a «Baía dos Tigres» foi descobrir. Foi um privilégio que dei a mim próprio. Tive a intuição, (confirmada com a viagem e a reflexão sobre a viagem), de que precisava de criar tempo. Precisava de cair dentro desse tempo e desse espaço para avançar nele. Esse é um privilégio que raramente nos concedemos.

 

Porque é que a viagem aconteceu naquela altura, (entre Junho e Setembro de 97)?

- Houve condições práticas que a viabilizaram, depois de vários anos a pensar nela. Consegui o apoio do Centro Nacional de Cultura, que me permitiu estar cinco meses fora do Público. A viagem, do ponto vista financeiro, custou muito mais do que a bolsa. Aliás, aprendi que com as bolsas ganha-se tempo, não se ganha dinheiro. Quem pensa que as bolsas são formas fáceis de ganhar dinheiro, está enganado. Uma bolsa é uma forma fácil de perder dinheiro, com a consciência, porém, de que se vai receber algo em troca.

 

O que recebe é tempo?

- Tempo e disponibilidade mental. Não é uma forma de parasitismo. Eu ganho muito menos dinheiro desde que saí do Público. Mas tenho o privilégio enorme de ter mais tempo para aquilo que quero fazer. Que é escrever, decidindo aquilo sobre o qual vou escrever, seja ficção, seja reportagem.

 

O dinheiro serve para quê, para viabilizar sonhos?

- Serve para viabilizar tempo. Ter tempo para pesquisar, descobrir, ir para o tal «para lá de». É preciso não ter pressa. O tempo é um luxo, custa caro.

 

Retornemos ao «para lá de» e à ignorância. Julgo que a ideia da ignorância vinha da insaciabilidade.

- Sim. O «para lá de» pode ser em termos intelectuais ou culturais. O privilégio da reportagem é possibilitar ir «para lá de» do ponto de vista humano. Se estou em Belgrado durante os bombardeamentos, se há uma situação que num curto espaço de tempo transforma a vida das pessoas, é interessante estar lá.

 

Desfeitos os laços da normalidade, o que é que muda?

- Percebemos os mecanismos do medo, da coragem, do ódio. Foi sempre sobre estas coisas que me interessou escrever. Acho um desperdício que um repórter passe 3 meses a dizer quantas saídas de F16 é que a NATO fez ou quantas bombas chegaram do Adriático. Eu estou interessado em saber que, ao fim de algumas semanas de bombardeamento, o amor passa a ser outra coisa. Lembro-me de uma entrevista a uma psicanalista a quem as pessoas contavam isso: já não dormiam paralelas, dormiam enroscadas umas nas outras, como se fossem fetos. Este tipo de coisas enriquece-me. Estava lá e venho diferente se o meu trabalho me obrigar a modificar-me. Se ficar 3 meses a escrever sobre F16, venho na mesma, e nem sequer mudei de sítio, não houve deslocação.

 

A ideia de deslocação, de mobilização, perpassa o «Atlântico». Naquele mapa podemos assistir a uma série de tangentes. O que dá uma espessura tridimensional àquilo são as histórias das pessoas. Mas o que faz com que esta aconteça é o facto de as pessoas se mobilizarem.

- No sentido de movimento ou no sentido de adesão?

 

Podem ser ambos os sentidos, mas pensava mais especificamente numa adesão às coisas.

- Se se refere a mobilização como contrário de indiferença, sim. Há paixão e há adesão, e há, às vezes, confronto. Há sobretudo o carinho da troca e da atenção.

 

A epígrafe do livro é de Amagatsu: «Por passatempo/tecendo sol e cinzas:/mariposas». Em que é que pensou? Porque é que é este?

- A epígrafe é um haiku japonês porque tem a ver com as coordenadas que quero sinalizar ao leitor. É uma pista cartográfica de orientação. Como nos aikai tradicionais, o que é mais importante, não é tanto o sentido lógico da leitura como a experiência da leitura e os estímulos quase sensoriais da leitura.

 

As aproximações metafóricas que cada um pode fazer?

- Aquilo que experimentamos de ler sol e cinzas, independentemente de haver alguma lógica que os relacione. É evidente que sol e cinzas me interessam também pela metáfora e polarização. É um livro para o qual é preciso estar disponível, não para ler com a avidez de saber a história, mas com abertura para a experiência de entrar num livro que implica uma exibição cinematográfica, dramaturgia, banda sonora, implica estarmos num museu. Não há nenhum desfecho da história. À semelhança da «Baía dos Tigres», em que o pretexto era uma viagem em que nunca cheguei a lado nenhum. A viagem nunca acabou.

 

É para mim evidente a relação entre estes dois livros. Como se as grandes coordenadas, (as palavras), fossem as mesmas: Sentido, Viagem, Demanda, Intersecção.

- E deriva.

 

Como é que o autor faz a ligação entre uma obra e outra? Aparentemente são muito diferentes. Uma é uma viagem com uma base documental e assente na realidade; é terra. A outra é pura ficção que decorre num espaço imaginado; é mar.

- Em termos de técnica de escrita, há coisas que eram experimentadas ao de leve na «Baía dos Tigres» que me interessou explorar. Implica uma grande liberdade de escrita. Implica também um grande risco. Depois de escrever o «Atlântico» continuo na dúvida se sei escrever um romance, e se quero. Se calhar não quero escrever romances. Quero escrever, que é diferente. E aí pode haver uma grande incompreensão entre quem escreve e quem lê.

 

Não quer escrever romances ortodoxos, ponto.

- Não sei se me interessa escrever romances no sentido tradicional do termo. Até porque o romance está demasiado ligado ao suporte, o papel, que é estreito, de certa forma atávico. Tentei conceder-me a liberdade teórica de fazer um livro que finge ser um espectáculo. Por isso, para mim e para o João Francisco, era óbvio que isto tinha de se chamar «Romance Fotográfico».

 

O texto viveria sem as imagens?

- Não faz para nós sentido que aquela sequência de fotos respire por si mesma, e o texto precisa das fotografias como espaços que induzem poesia, que abrem à capacidade do leitor sonhar. O «Atlântico» é um puzzle que já está completo. Mas nas cicatrizes, é possível acrescentar mais e mais peças. Tem a maleabilidade de aceitar mais peças.

 

Qual é a imagem final do puzzle?

- É um puzzle de linhas, de tangentes e de cicatrizes. Não podemos esquecer-nos que aquela imagem é formada por estilhaços, por fragmentos. Não sei se consigo encontrar um rosto mais forte que outros para o livro. A fotografia onde perdi mais tempo a olhar é um grande plano dos dedos dos pés.

 

É uma foto inesquecível. O que é que têm os pés, então?

- Aqueles pés, fotografados daquela maneira… É a fotografia que tem um erotismo mais latente e, ao mesmo tempo, são apenas 10 dedos pintados, com uma meia de renda por cima. O conjunto é perturbante.

 

É extraordinário que essa seja a sua foto... Porque não há vestígio nos «Tigres» desse erotismo sofisticado.

- Pois não. Mas, concordando consigo, o que há nos «Tigres»?

 

Há carne crua.

- O que há é uma experiência de corpo feito de lixo. Consigo encontrar beleza nisso, não consigo encontrar erotismo nisso. Metaforizando, nos «Tigres» não há dois pés com unhas pintadas porque nos «Tigres» os pés não estão lá, já foram comidos. Teríamos algo também muito intenso, visual e sensorialmente, mas que tem um lado de horror. Em Angola há um novo corpo humano. A normalidade do corpo não é feita apenas de pele, carne e osso, é feita dos lixos da guerra. De próteses que podem ser formadas de um bocado de pneu, de madeira. A normalidade do corpo foi destruída, massacrada. Mas há outra. E isso tem a ver com uma capacidade de reinvenção e sobrevivência que caracteriza Angola e os angolanos, e que é notável, e que não encontrei nos outros sítios.

 

Não só a fotografia como a realidade romântica dessa fotografia não poderiam constar dos «Tigres» porque essa realidade não existe no espaço dos Tigres?

- O «Atlântico» é um livro romântico. Os «Tigres» não, porque não encontro romantismo possível na guerra. Não há beleza na guerra. É muito enervante assistir com frequência a uma estetização da guerra. No jornalismo ou no cinema. Contraponho a esse tipo de estetização da guerra o «Apocalipse Now», do Coppola, onde há um trabalho sobre a intimidade da guerra. O Vietnam é um pretexto. Podia ser o Zaire.

 

Quer dizer que a intimidade da guerra não será tão diferente no Zaire, no Vietnam, onde seja?

- Claro. É um filme sobre a desumanização da guerra e sobre o horror. O Coppola percebeu demasiado bem «O Coração das Trevas» do Conrad e percebeu demasiado bem a guerra para estar a estetizá-la.

 

O Adelino Gomes falava dos «Tigres» como viagem à pátria do horror. O horror será então a última pátria?

- O horror é a última concretização do «para lá de».

 

Avançando, avançando, avançando…

- É isso que encontro.

 

Foi isso que encontrou sempre?

- Na viagem dos «Tigres», sim. A única coisa que me interessava partilhar era esse processo iniciático de ir tão para lá de uma normalidade e de uma grelha moral, que quase se corre o risco de não se voltar inteiro. Esta possibilidade de nos perdermos indo demasiado longe é atraente e assustadora. Foi uma coisa que tive de aprender na viagem. Podia ter lido, mas não lhe poderia tocar se não a tivesse vivido. Vivemos felizmente demasiado longe para lhe podermos tocar. Chame-lhe perversão – talvez também o seja –, mas é interessante podermos aproximar-nos desse horror. Quanto mais não seja para contá-lo.

 

Qual é a importância do contá-lo?

- É quase uma justificação…

 

Eu li aqui: «Sem testemunhas ficaríamos para trás».

- Isso está?

 

No «Atlântico». «Deus precisava de Adão para ter alguém que acreditasse nele».

- Se não há ninguém a ver, não acontece.

 

E então: vir para trás, contar, resgatar.

- As narrativas implicam trânsitos. É trágico quando todos os canais de troca são cortados. Interessava-me nos «Tigres» analisar um país onde seres humanos estão completamente cortados das trocas. Vivem numa insularidade absoluta. Isto acontece por ironia numa época em que andamos todos obcecados com um novo paradigma civilizacional, que é o da rede. A internet é ao mesmo tempo a metáfora e a materialização disso.

 

Mas não será nada por acaso que, apesar da materialização da rede, o problema da insularidade, ou seja, da solidão, se põe cada vez mais.

- Quando falo de insularidade absoluta, falo de podermos cortar todos os fluxos que compõem o indivíduo como pessoa humana. Cultura, educação, etnicidade, memória, grupo, família, afectos, religião, ideologia. A insularidade significa também uma ausência de troca de palavras. Quando falo de narrativas, falo do que nos pode pôr em relação com o outro, com o diferente, com o que está do outro lado. Hoje, as narrativas de que dispomos, são muito poucas. 

 

Quando fez a viagem, quanto tempo demorou a desligar-se da lógica do nosso tempo e a imergir nesse outro tempo muito próprio?

- Aqueles três meses significaram um distanciamento progressivo. Primeiro deixa-se a normalidade de tudo o que está à nossa volta. Depois a paisagem é cada vez mais estranha, rarefeita. Como se o mapa tivesse sido comido. É a sensação de estar a navegar no vácuo. É por isso que sempre que me mexo na «Baía dos Tigres», é uma viagem através da noite.

 

Deixe-me abrir um parêntesis para uma das passagens mais violentas que encontrei no «Atlântico»: «Dá-me a lanterna, não quero vomitar de noite».

- Isso é um diálogo às cegas, entre o judeu argelino e o oficial nazi.

 

Quer dizer assistir-se?, conhecer-se na dor?

- Ele precisava de ver o seu nojo.

 

Precisava de ir ao limite, precisava de ir até ao fim.

- Confesso que se me perguntar porque é que escrevi a maior parte das imagens e metáforas dos meus livros, não lhe saberia dizer.

 

Voltando aos «Tigres», a Baía dos Tigres foi o sítio onde não foi.

- Exacto. O único dos importantes onde não consegui ir.

 

Tinha realmente a intenção de ir à Baía dos Tigres?

- Eu gostava de ir à Baía dos Tigres. É o último sítio na costa angolana, já a meio do deserto. No início dos anos 90 houve uma pequena expedição à Baía dos Tigres. Falaram-me de um sítio fantasmagórico, onde a população tinha saído de um dia para o outro e a areia tinha invadido as casas. Falaram-me de casas onde a mesa continuava posta, 30 anos depois. Fascinou-me o sítio dos homens estar intacto na ausência dos homens. Comecei a imaginar se haveria livros, que livros seriam.

 

O que é que esses livros diriam das pessoas que habitaram aquelas casas.

- Encontrar livros em qualquer parte é bom. Mas às vezes é fabuloso. Por exemplo, encontrar um livro do Pato Donald num infantário que foi destruído por um obus. Isso resgata-nos e limpa-nos sobre a destruição. E não são só os livros. A beleza resgata-nos da desgraça mais completa.

 

É isso que permite voltar?

- Sim. É isso que permite manter um fio de contacto quando parece que o chão nos começa a faltar debaixo dos pés. A beleza pode ser uma coisa tão ridícula como poder escutar italiano através de multibandas. Houve uma altura em que era a única coisa que podia consumir. Tinham-me tirado tudo o resto. Foi a parte mais difícil da viagem, em que estive várias vezes detido, digamos assim, pela UNITA. Não me podia mexer, não podia receber pessoas, não podia falar, não podia fotografar, pelo menos podia evadir-me daquele esterco, do esterco que aqueles chefes da guerra representavam, do lixo que já tinha consumido durante a viagem.

 

Deixe-me voltar à Baía dos Tigres. Não sei bem como é a sua fobia em relação aos cães...

- É uma fobia. Funciona sem que possamos controlar.

 

A Baía dos Tigres é também o espaço mítico onde, por falta de água, os cães se tornaram absolutamente ferozes.

- E o espaço metafórico para aquilo que caracterizava o tipo de violência em Angola.

 

O horror último?

- Sim. É uma espécie de condições para a perpetuação da violência.

 

Porque a moeda de troca era apenas o ódio?

- É. É o mecanismo normal, quotidiano de relação, e isso ajudou a perpetuar aquela guerra.

 

Essa Baía, onde os cães são ferozes, é o reduto final. Há uma ligação metafórica entre o espaço da sua fobia e aquele que sintetiza as entranhas e o horror da guerra? A sua fobia é a sua parte incontrolável, que contém os seus fantasmas. E foi à procura dos fantasmas dos outros.

- Eu não ia em concreto à procura de nada. Esse era um dos perigos da viagem: uma espécie de deriva sem saída. Mas é assim que se deve viajar. Viajar é o privilégio de estar ali.

 

Sim, mas ainda que haja uma ausência de intenção…

- Pode parecer-lhe uma diletância, mas é isso que é importante. De todas as viagens que o [Bruce] Chatwin fez e escreveu, quando escreveu sobre elas, escreveu as maiores mentiras. Lendo a magnífica biografia do Nicholas Shakespeare sobre o Chatwin, fica-se a perceber o mentiroso que ele era. No meu caso, fiquei a gostar ainda mais dele, da forma genial como inventava a sua própria biografia.

 

Tento estabelecer uma ligação subliminar entre motivos não expressos para ir à Baía dos Tigres e uma confrontação com as suas últimas partes. Já fez esta associação entre a sua canifobia e o facto de não ter ido à Baía?

- Nunca tinha pensado nisso. Pode haver aí um lençol subterrâneo, mas nunca tinha ligado as duas coisas. Os cães voltam a aparecer no «Atlântico», como instrumentos de vivência.

 

E de não consciência. Faz-se um quase paralelo entre a maldade das crianças e a dos cães. Há uma ausência de intenção, uma inconsciência, e uma consequente desresponsabilização.

- Isso é o mal em estado puro, no caso das crianças. A crueldade infantil é muito crua porque é muito honesta.

 

Claro. Não é nada burilada, não há sofisticação alguma.

- Não tem filtros, incluindo os da educação e os que acumulamos quando crescemos.

 

Com os cães, é a mesma coisa?

- A narradora diz isso. Não é forçosamente aquilo que eu penso.

 

Quando se fez à viagem, não estava prometido que regressasse vivo, como se escreve na entrada dos «Tigres».  No fundo, foi um depositar-se nas mãos do acaso?

- Sim. Visto que me obriga a pensar nessa relação, nos «Tigres» os cães são a barreira geográfica e metafórica entre o território da violência e o território da normalidade.

 

É muito novo para ter...

- Tão pouco cabelo?

 

Para ter vivido tudo o que viveu e para escrever como escreve.

- Nunca ninguém me insultou de forma tão subtil! Envelheci antes de tempo.

 

Não é envelhecimento. É amadurecimento. É como se já tivesse visto tudo, vivido tudo. Continua curioso, mesmo assim?

- Somos os nossos espectadores menos lúcidos. Não sei se se trata de amadurecimento ou não. É obvio que experimentei muitas coisas, com tanta intensidade, num tão curto espaço de tempo, e isso foi um privilégio. Que tem também a ver com a profissão e com a intensidade com que fui obrigado a segui-la. Há coisas que fazem hoje parte de mim e que não teria se tivesse seguido outra profissão, se tivesse ido para outros sítios, se tivesse conhecido pessoas diferentes.

 

Se as tangentes fossem outras.

- Falo de poder estar em sítios onde não é muito comum ir, mas sobretudo em situações de grande honestidade. Numa situação de emergência, quando perdemos muitas das nossas âncoras, ficamos muito mais despidos. Somos mais honestos na coragem, na cobardia, na ânsia, na tranquilidade, no ódio, na generosidade. Poder acrescentar sítios à nossa cartografia, poder pôr pessoas no nosso atlas, (são as folhas desse atlas que nos distinguem e nos modificam), é um privilégio. A insaciedade tem a ver com acrescentar folhas ao meu atlas. Há uma necessidade, que nunca é saciada, de viver mais pessoas e de as viver intensamente. Visualizo isso como uma forma de expandir territórios.

 

 

Publicado origininalmente no DNa do Diário de Notícias em 2003

 

 

Ana Drago

03.07.14

Ela queria fazer coisas: “O que me encantou a certa altura foi [a possibilidade de] ir fazer coisas onde podia deixar a minha marca. Ter uma participação”. Ela sentia-se tocada por palavras “que tinham muito a ver com política, com nomeação política do mundo e vontade de acção”.

Foi criada em casa, em torno dos livros e da família. Ainda é tratada como uma menininha. Contudo, é deputada pelo Bloco de Esquerda na Assembleia da República. E confessa:Há sempre momentos em que me rio de mim própria quando me vejo deputada eleita no parlamento. Aos 29 anos. Eu não tinha planeado a minha vida assim”.

Tinha planeado estudar e investigar Sociologia. O colectivo é o seu habitat. E, talvez por isso, não é estranho que seja deputada eleita no parlamento, aos 29 anos.

Encontrámo-nos, primeiro, numa fila para pagar discos e livros. E reencontrámo-nos daí a minutos num terraço com vista para Lisboa. Ao fim da tarde. Falamos dela e procurámos a definição de palavras que compõem o seu léxico privado. Como escolha, desilusão, dor, fazer.

Ela chama-se Ana Drago.  

 

Em que é que estava a pensar?

Quando?

 

Há um minuto, há uma hora, o dia todo, o que é que foi dominante?

Estava a pensar que é uma pena que hoje, no final da tarde, se conjugam uma série de coisas. Tenho agora a entrevista, tenho uma reunião à noite, tenho um jantar de anos de uma amiga. Estava a pensar como é que vou conseguir ir a tudo.

 

Durante o dia, esta conjugação foi aquilo que mais a consumiu?

Isso e o meu discurso na apresentação da candidatura do Bloco a Lisboa, amanhã. Vou falar porque sou cabeça de lista à Assembleia Municipal. Estava a pensar como é que ia organizar um discurso escorreito, curto, sintético, que exprimisse a ideia desta equipa que se formou para concorrer a Lisboa.

 

A minha primeira pergunta é arrancada do livro «Jerusalém» de Gonçalo M. Tavares. É uma pergunta cuja resposta não podemos nunca saber se é verdadeira. Mas que coisas ocupam a sua vida mental? Quais são os assuntos e quais são as palavras nucleares? Apesar da vida pública, apesar das conjugações episódicas.

O problema dessa pergunta é que ela é sempre...

 

Completamente aberta.

Muita aberta e ao mesmo tempo muito intrusiva. Colocada dessa forma, pede às pessoas que sejam transparentes sobre o seu estado de alma, de espírito. Mesmo que se revelem as enormes insignificâncias em que gastamos imenso tempo, que ocupam o quotidiano.

 

Ainda que nos saibamos ocupados com “as grandes coisas”, relativas à vida social, quantitativamente e até qualitativamente nunca deixamos de nos ocupar das coisas mesquinhas. Que são o que provoca mossa na nossa vida...

Aquilo em que pensamos, as impressões que temos, as coisas que nos atormentam, as futilidades, interessam verdadeiramente às outras pessoas? Pode não ser interessante, pode ser banal. Partilhá-lo retira parte da capacidade que temos de, com o discurso, seduzir o outro. E a palavra tem muito essa função: a de nos mostrar, a de nos dar a conhecer, a de seduzir.

 

É simultaneamente revelação e enamoramento?

Sim. As pessoas que são interessantes são capazes de misturar as duas: verdade e encantamento. Não são completamente fantasiosas, porque isso as descola do quotidiano, mas também não são absolutamente factuais, porque isso lhes retira encanto. Portanto, por um lado, aquilo em que pensamos pode não ser interessante. Por outro lado, é o nosso espaço de intimidade, de individualidade. Nem sempre, mesmo numa relação amorosa de enorme partilha, o dizer tudo faz sentido, ou é uma boa estratégia de manutenção da relação.

 

Então vamos aos factos. Volto ao Gonçalo M. Tavares: “Pensava nas palavras fundamentais da sua vida. Dor, pensou, dor era uma palavra essencial”. Quais são os factos, e quais são as palavras?

Quando estava a estudar Sociologia, lembro-me de ter aulas, aulas encantatórias, de conhecer coisas novas, e havia palavras a que chamava “palavras-paredes-de-água”. Pareciam uma parede feita de água, como um vidro em que a luz atravessa. É muito bonito ver a água a ser atravessada pela luz. E temos a percepção de que, se partimos o vidro, a água que cai dali tem uma enorme força, leva tudo à frente.

 

Que palavras, então.

Para mim, e por isso é que estou, com a idade que tenho, no Bloco, eram palavras que tinham muito a ver com política, com nomeação política do mundo e vontade de acção.

 

Vontade de acção significa vontade de fazer?

Palavras que puxam para coisas que foram construídas, e são bonitas, e para uma vontade de mexer no mundo. Mexer no mundo dessa maneira meio abstracta e macroscópia que é a política. Obviamente a ideia de Socialismo, mas também a ideia do Estado, a ideia de Poder. A palavra Poder é uma palavra encantatória, porque é sempre um conceito de difícil definição. Parece que raspamos, raspamos e nunca damos a definição correcta.

 

Qual é a que corresponde de modo mais aproximado?

Poder: eu sinto-a sempre como subordinação disciplinar, como um domesticar o mundo. O mundo e os outros. Qualquer forma de acção comporta sempre uma dimensão de poder. Aquilo por que luto é um equilíbrio de poderes. A utopia é essa: é a subversão do poder, é arranjar uma forma em que o poder se desestruture e sejamos todos autónomos, livres de criar o nosso próprio caminho. E depois há as outras palavras, as palavras da intimidade, da nossa vida, dos nossos amores, que ficam presas em livros, em frases. Mas essas não devem ser ditas nem reveladas muitas vezes, porque senão perdem a sua força interior e tornam-se banalidades.

 

Mais do que o pudor pela revelação da intimidade, é sobretudo a ideia de que esse reduto da intimidade não deve ser banalizado?

É. A sua intensidade e a sua unicidade também residem numa revelação ascética do que é isso da intimidade. As palavras que definem a nossa inquietude, os nossos medos, os nossos afectos, as nossas atracções devem ser protegidas da banalidade.

 

Podemos apontar, na entrevista, para um equilíbrio, no fio da navalha, entre aquilo que é factual e o seu lado fantasioso e sedutor?

Mas é que a revelação da intimidade deve ser sempre feita cara a cara. O problema de uma entrevista transcrita é que ela chega a pessoas relativamente às quais não posso argumentar, justificar o meu discurso. Isso retira-me liberdade. Fica plasmada uma coisa que não sei se quero dizer àquela pessoa. A revelação do que somos, cá dentro, desta busca de coerência, deve partir sempre da interacção_ porque é aquilo que permite a comunicação. Não acho que seja interessante, nem sequer nos consola, revelarmo-nos perante uma audiência anónima.

 

Estava a tentar perceber como é que, a partir dos factos, e dando-lhe a si o papel de traçar a sua biografia, podemos perceber e adivinhar outras coisas. O jogo da incoerência e do contraditório é sempre o mais instigante.

Sim.

 

Por exemplo, quando a vi com a madeixa vermelha no cabelo, que não colava com a imagem pre-concebida que tinha de si, lembro-me de ter pensado: o que é que lhe terá passado pela cabeça?
Aos 20 anos pensei em fazer três furos numa orelha e uma madeixa vermelha. Fiz os três furos; entretanto já fecharam, deixei de usar brincos. Mas nunca fiz a madeixa vermelha. E agora apetecia-me fazer qualquer coisa diferente, e repeguei a madeixa vermelha. Durante uma semana andei a pensar: vou ter que cortar isto tudo ou pintar outra vez, mas habituei-me, e gosto.


O que parece é que lhe passou uma coisa pela cabeça, que decidiu divertir-se.

É isso mesmo.

 

Qual é, desde sempre, o espaço que se permite para a experimentação, para o risco, para a contradição?

Não sei se sei responder. Vou fazendo. O que me encantou a certa altura foi [a possibilidade de] ir fazer coisas onde podia deixar a minha marca. Ter uma participação. Eram coisas que ao mesmo tempo me assustavam muito. De cada vez que tinha que as fazer, tinha que me desafiar para as fazer. Ultrapassar-me. Eu tinha imensa dificuldade em falar em público, entretanto habituei-me.

 

Falar em público?

Mais do que seis pessoas num sítio. Tinha um enorme receio, e comecei a fazer rádio, associativismo, e depois política, sempre coisas que me puxavam para falar. Tinha aquela mania, achava que tinha qualquer coisa para dizer.

 

Quem é que a convenceu disso? A sua mãe?

Não.


Parece uma “filha da revolução”. Uma rapariga que acha que tem qualquer coisa para dizer seria improbabilíssima há 30 anos.

Não sei bem se sou filha da revolução nesse sentido tão estereotipado. Em casa falava-se de política, mas não muito, e para os meus pais a participação política não era tão determinante quanto isso.

 

Os pais modernos sabem da importância de dotar os filhos de auto-estima. Como sei que tem uma relação forte com a sua mãe, imaginei que pudesse ser ela a convencê-la de que tinha coisas para dizer.

Os meus pais tentaram dotar-me de um conjunto de competências para andar na vida, obrigaram-me a ter uma mínima cultura geral – funcionava um bocado pela vergonha de não saber determinadas coisas... –, e sempre me pediram que soubesse justificar cada decisão, que me responsabilizasse pelas minhas acções. Isto, num ambiente em que as gerações são muito parecidas, (a música que oiço não é muito diferente da música que o meu pai ouve, os livros que interessam não são muito diferentes), dá uma vivência em família diferente da da geração anterior. E isso é uma mudança cultural revolucionária. É uma outra revolução.

 

Não estou a falar da revolução política. Estou a pensar num novo ciclo e nessa transformação, que é transversal, que ocorre na sociedade portuguesesa no pós 25 de Abril.

Há uma mudança cultural profunda nas relações entre os pais e os filhos, e sou muito o produto dessa transformação. Os novos pais têm uma outra forma de relacionamento com as crianças; elas participam desde cedo na vida da família, são responsabilizadas, discutem assuntos que supostamente não seriam para jovens nem para crianças. E são levadas a sério as suas opiniões.

 

Isso é quão importante?

É importantíssimo. Isso depois é que dá confiança para a pessoa se afirmar fora do núcleo familiar e achar que pode ser levada a sério, que tem qualquer coisa para dizer ao mundo. Antigamente não, os jovens eram considerados ineptos.

 

Significa que, quando fala em público, e desde sempre, nunca lhe ocorreu que não a iam levar a sério, porque é muito nova, muito menininha...

Confesso que jogo com isso... Sempre foi uma forma de defesa. Como tenho um tipo físico muito de menina...


Que idade é que tem?

Estou com 29 anos. Sou assim baixinha e magrinha, tratam-me como uma menina. Eu quero que levem a sério as minhas palavras, mas a minha postura física ou a minha colocação das ideias tem esse ar de menininha que me protege um pouco. Não sei se é uma boa estratégia, às vezes exagero...

 

Situação concreta: recentemente, aquando do arrastão, que é um assunto de que eu não queria falar...

É inevitável.

 

Eu queria destacar a convicção com que falou, dizendo qualquer coisa que contrariava tudo o que vinha sendo dito. Essa convicção inabalável, que é pública desde, pelo menos, o programa de televisão com o Luís Osório e o Daniel Sampaio, fez-me interrogar sobre o que a sustenta.

O arrastão... Eu sabia que estava a comprar uma guerra difícil. E as coisas ficam sempre truncadas, mas já sabemos que vão ser truncadas. Durante a intervenção que fiz, fui citando testemunhos que tinham chegado até ao Bloco: de que não havia arrastão ou não tinha sido naqueles moldes. Achámos importante, naquele momento, fazer aquela intervenção, sabendo que depois ia cair sobre nós tudo e mais umas botas. Mas estas batalhas não podem ser ignoradas. Era um momento em que se estava a jogar no alarmismo, no racismo.

 

Não lhe ocorre pensar: “Não vou fazer isto porque não me vão levar a sério” ou “Não me vão ouvir como ouviriam o Francisco Louçã”?

Mas é mesmo assim, não podemos fugir das nossas circunstâncias! Quando estou a falar a sério tento fazer com que as pessoas me levem a sério. Ás vezes utilizo esse ar de menina, (protecção ou defesa), faço com que me levem menos a sério. Mas não sei se me quero modificar. Ou se me quero robotizar para desempenhar determinado papel. Sei que muitas vezes sou gozada, mas não é isso que me tira o sono.

 

A noção de que somos alvo da troça é tremenda. Kafka dizia que não há nada mais estigmatizante que a vergonha.

É. A troça é uma coisa horrível, quando é pessoalizada. A mim só me aconteceu uma vez, (assim uma coisa mais séria), nas páginas de um jornal. Foi muito, muito desagradável. Mas na luta política sabemos que isso acontece. A partir de determinado momento, percebemos que também nos vai acontecer a nós. Ao princípio, uma pessoa tenta manter a respeitabilidade, acha que no dia em que lhe acontecer um editorial arrasador se vai embora, porque não está disposta a ser tratada assim.

 

É sempre uma boa pergunta: por que é que aturam isto?

Porque achamos que as coisas porque lutamos valem a pena.

 

Mas é um idealismo assim tão puro? Eu e mais uns quantos cínicos, achamos que, além dos casos de puro interesse e desonestidade, há noutros um misto de vaidade e de fascínio pelo poder. É um exercício de subordinação do outro.

Penso que não.

 

Há com certeza um substracto, um ideário; mas além disso, o que é que os faz continuar?

Com certeza todas aquelas coisas, aparentemente ingénuas, que as pessoas enunciam, e que são o que nos move. Desde muito cedo, encanta-me a ideia de movimentos sociais, de gente que se organiza por coisas por que acha que deve lutar. Isso foi-me conduzindo a níveis diferentes de participação política. Depois, há uma coisa que é muito importante: não é só o ideário que o Bloco defende, mas é a ideia de estar a participar na construção do Bloco. Estar aqui, estar presente no sítio onde as coisas estão a acontecer, dá-nos também um sentimento de bem-estar, de realização. Durante muitos anos tive uma enorme desconfiança da ideia de um partido político, era muito crítica da lógica de funcionamento dos partidos; hoje em dia, quando oiço as pessoas criticarem os partidos, já não tenho muita paciência. Tenho a sensação de que já respondi a essas questões.

 

Como?

Já sei que não há organizações perfeitas. O Bloco não tenciona ser a Santa Madre Igreja, infalível. Comete erros, tem pecadilhos, tem protagonismos pessoais, tem erros estratégicos, há coisas que fazemos mal. Mas quanto a mim, está-se a construir bem. No fim de contas, acredito naquilo e estou lá. Uma pessoa responsabiliza-se por aquilo que acontece.

 

Como membro de uma família? Família por ser construído de raiz.

Isso foi uma das coisas fundamentais: entro, e a partir de agora sou responsável. Se um dia achar que não, saio fora.

 

Estava à espera de ouvi-la falar mais de si. Não tinha percebido que se sente tão responsável pelo Bloco, que o Bloco é uma parte dominante da sua vida.

É, hoje em dia é uma parte quase sufocante da minha vida. Preenche-me muito, profissionalmente, ideologicamente, ocupa muito do meu tempo e do meu espaço. Os amigos estão no Bloco. E muitas vezes penso: estas pessoas, militantes, activistas, que estão a trabalhar para o Bloco, será que não estamos fechados no nosso mundinho, a darmo-nos uns com os outros e a falarmos uns com os outros? Embora seja gente muito interessante, dinâmica, que traz muita informação, que está muito atenta ao que acontece lá fora. Não sei se continuo a ter um espírito suficientemente crítico relativamente às coisas que vamos fazendo, porque estou imersa nisto. E assumo isto claramente.

 

Até onde é que se identifica com as pessoas que votam em si?

Identifico-me com uma camada que vota Bloco e que é muito, muito exigente em relação ao Bloco. É gente letrada, que tem uma dose de cinismo e de idealismo, as duas fortes. É gente muito desconfiada da política e do poder, e às vezes muito metida nas coisas. Tenho a sensação de que foi a extracção de onde eu vim. Há depois um outro Bloco, popular, que vem da velha extrema-esquerda, que tem uma experiência de derrota do PREC, que é marcada por isso, e que agora volta a interessar-se e volta à política. E há a componente PSR, que é uma sub-cultura, muito radical, libertária. Há gente apoiante do Bloco com quem não tenho sequer linguagem comum, de passado ou de leitura do mundo, embora nos entendamos quando chegamos à parte programática. Mas os partidos fazem-se dessa mistura.

 

Fiquemos na sua leitura do mundo. Expressa-se muito bem. Quem é que a ensinou a exprimir-se? E quem é que a ensinou a ler o mundo? Onde radica a sua vivacidade, atenção, curiosidade?

Tenho curiosidade, gosto da ideia de estar nos sítios onde as coisas estão a acontecer. Li muito, muito, muito quando era miúda.

 

Porquê?

Gostava imenso.

 

Era pouco exuberante?

Era. Cumpria todos os patamares, mas falava pouco nas aulas, era muito timidazinha, amedrontada. Depois tive um período em que não sabia propriamente o que fazer. Aos 17 anos pensava que queria ir para Agronomia, acabei por entrar em Psicologia.

 

Mas está a galgar muito depressa isso tudo! E os anos da adolescência são fundamentais.

São horríveis! A adolescência, graças a Deus, é um período que passa. A adolescência não me correu bem. Tinha expectativas muito elevadas... Como era muito boa aluna e filha única, muito queridinha dos adultos, cheguei à adolescência e não tinha as capacidades para ser popular.


Que competências são essas?

Estar à vontade, falar facilmente, ser gira. Demorou algum tempo a passar e a sarar... Os adolescentes são muitíssimo maus uns para os outros.

 

Achava-os desinteressantes e desinteressados?

Não. Fui criada em casa, em torno dos livros e da família. Aquilo que me tinha sido ensinado, do que é que se conversava, como é que as pessoas mostravam o seu valor, no contexto da adolescência não funcionava. Os meus valores não funcionavam ali.

 

Tinha um outro paradigma?

E não tinha grande grande facilidade em adaptar-me à situação. Depois fui para Macau e as coisas foram diferentes.

 

Foi para Macau no fim da adolescência?

Fui para para lá com 16 e vim com 18, 19. Mas também não gostei muito Macau era muito fechado, era um meio muito pequenino, as pessoas controlavam-se muito. Verdadeiramente, libertei-me e comecei a fazer coisas quando cheguei à universidade, aos 19 anos. Aluguei um quarto muito pequenino em Coimbra, tinha um metro e meio por um metro e meio, e disse: «Não vou ficar aqui muito tempo». Comecei a sair e a conhecer gente.

 

O que é que a fez ousar sair?

Foi aquela sensação de...

 

Claustrofobia?

Exactamente. No último ano de Macau comecei a sentir que a minha vida estava a estreitar, e que não podia ser. Eu tinha que fazer não sei quantas coisas na vida e tinha que ter coragem de me atirar a elas. Depois logo se via como é que tentava resolvê-las.

 

Estava a entrar em desespero?

Não, não é bem desespero. É a ideia de que há um momento em que nós temos que nos fazer. Temos que arriscar. E eu arriscava muito pouco, jogava muito pelo seguro. Não me mostrava, não fazia, não nada. E também não ganhava muita coisa. Aos 18 anos tive assim uma coisa que me bateu na cabeça, e percebi: “Tenho que ver do que é que sou capaz e o que é que sou”.

 

A convulsão que a faz formular as coisas dessa maneira acontece porquê?

[riso] Desgosto amoroso. Salvou a minha vida. Grande paixão, coração partido... Aquela coisa de uma pessoa pensar: “Agora não tenho nada a perder”, e atira-se para a frente. E foi mesmo a ideia de começar uma vida nova. Resolvi ir para Coimbra, começar de novo e experimentar ser alguém. Acho que correu bem, fui-me metendo em coisas, umas puxaram para as outras.

 

Foi estudar Psicologia.

Aquilo acabou por correr mal, aquela linguagem não me seduzia...

 

É demasiado virada para o indivíduo e para o interior, e o que lhe interessa é sempre o colectivo e o exterior?

Um amigo de Psicologia disse-me uma coisa engraçada: “As pessoas têm dois tipos de preocupações: umas com os aspectos das emoções e da interioridade, outras com os aspectos éticos do mundo e a sociedade”. De facto, aquele aspecto mais introspectivo servia para pouco. Achava que para falar da interioridade, da inquietude interior e dos estados de alma, mais valia lermos romances e boa poesia.

 

Aprendeu a ler o mundo cá fora ou nos romances?

Muito nos romances. Acabei por perder isso. Quando comecei a ler Sociologia, praticamente larguei o romance. Praticamente só compro ensaio, de História, Sociologia. Tornei-me analfabeta em literatura. 

 

A decisão de se fazer a si mesma e de se fazer à vida são já uma vitória, porque correspondem a uma audácia. E fê-la sair desse hiato que foi a adolescência. Porque saltou... do mundo dos adultos para o mundo dos adultos, certo?

Sempre disse que nasci velha e que foi esse o meu problema na adolescência. Sempre fui demasiado adulta e sempre tive ar de miúda. Como se houvesse uma contradição. Passei do mundo dos adultos, de viver em função dos adultos, de gostar muito de ouvir as conversas que os meus pais tinham com os amigos ou entre eles...

 

Essas conversas eram mais éticas ou mais sentimentais, recuperando a divisão feita pelo seu amigo?

Havia uma diferença. O meu pai é mais para os aspectos da ética, da política. A minha mãe é mais para os aspectos da interioridade, do crescimento. Há essa diferenciação e isso também se traduz nos apoios que vou tendo da minha vida.

 

Portanto, ouvia as conversas dos adultos.

Eu adorava as conversas dos adultos! As crianças em geral apanham seca quando os pais estão a conversar com os amigos; eu gostava imenso. Passei do mundo dos adultos para o mundo dos adultos, sim, é uma boa definição.

 

Esta adulta que é agora, isto que fez de si, corresponde ao que projectava nessa primeira fase do ser adulta?

Não sei, as coisas ganham vida própria. Há sempre momentos em que me rio de mim própria quando me vejo deputada eleita no parlamento. Aos 29 anos. Eu não tinha planeado a minha vida assim.

 

Para si, era improvável? É que, ouvindo-a, não parece muito estranho que o seu percurso tenha sido este.

Pois... Como é que hei-de explicar? Conheci gente muito interessante a partir dos 20 anos, em Coimbra. Gente muito capaz, muito inteligente. E, daquele grupo, acabei por estar eu como deputada; e essas pessoas foram fazer outras coisas. Acho isso sempre um pouco estranho.

 

É quase uma culpa por ser priveligiada?

Não. Uma das coisas que me ensinaram, e que aprendi bem, foi a aproveitar todas as oportunidades. Não me quero sentir culpada, porque acho que aproveitei bem as oportunidades.

 

O discurso psicologista da culpa, consigo, não dá.

Não, culpa, não entra. Mas há uma sensação de estranheza em relação a essas pessoas com quem cresci e depois... Sou a deputada aos 29 anos. Onde é que estão os outros?

 

Então, como é a sua vida de deputada aos 29 anos? E vamos pensar no que seria a sua vida aos 29 anos se não fosse deputada.

Estaria com uma bolsa de doutoramento. É uma vida excelente, ser bolseiro. Não pagam muito, mas uma pessoa tem tempo para ler e para fazer investigação, que é uma coisa de que gosto. Gosto dessa busca, de andar a ler coisas diferentes e tentar escrever e depois aquilo ficou tudo mal e depois é preciso escrever outra vez...

 

Se estivesse a escrever a tese de doutoramento, seria sobre quê?

Seria sobre o movimento de contestação à globalização. É um pouco um movimento de renovação da esquerda, movimentista, alternativa, radical, que refabrica o tecido da esquerda numa lógica ofensiva, que nos anos 80 e 90 se foi perdendo. Parece-me ser uma nova onda política muito interessante, e eu gosto dessa ideia dos percursos das pessoas, em particular das pessoas de esquerda.

 

Eu também. Por isso é que pergunto porque é que o seu percurso foi este. O percurso alternativo seria a tese de doutoramento. Assim sendo, é deputada. Que vida é que tem?

A vida de deputada é uma vida de estar no parlamento, de estar sempre a responder a coisas, estudar projectos de lei, ir buscar informação nova, fazer projectos de lei, fazer uma intervenção sobre isto, sobre aquilo. É uma vida em que temos que estar sempre a saltar de umas coisas para as outras. Depois há toda a vida de militante do Bloco. São as inúmeras reuniões que temos para decidir umas coisas, programar outras, fazer não sei quê, fazer não sei que mais. A minha agenda quase que pertence ao Bloco.

 

Pareceu-lhe que esta vida seria a mais excitante porque só acontece agora, e o doutoramento pode ser adiado? Foi a razão essencial da escolha?

Um bocado. Há a ideia de que podemos sempre fazer o doutoramento... Mas o Bloco está a fazer-se e a construir-se, e é agora. As coisas estavam a acontecer agora. Há momentos em que penso: por que é que não estou a fazer o doutoramento? Mas isto é muito desafiante, tem momentos de adrenalina, provoca uma atracção enorme. É uma vida que puxa por nós, sempre.

 

A reputação é uma coisa importante?

A reputação é uma coisa fundamental.


Quando se faz um doutoramento há uma reputação académica, mais sólida. A política corresponde à popularidade, a um reconhecimento e a um poder que são efémeros.

Quem se mete na investigação, está sempre muito em busca do prestígio intelectual, do reconhecimento das suas ideias.


Achou sempre que era inteligente?

Houve um momento, no final da adolescência, em que achei que não. Tinha sido muito boa aluna, mas depois descuidei-me um bocado. Quando estava em Psicologia, pensei: “Será que sou mesmo esperta ou sou um bluff”, e mudei para Sociologia. Enfim, descobri que não sou nenhum génio, mas que também não sou completamente parva.

 

A palavra que usou é muito persecutória: bluff. Faz-nos voltar mais uma vez àquela coisa de ser a menininha e de ser muito nova.

Pois. A tese de licenciatura foi para mim um desafio: fazer qualquer coisa a sério. Demorei meses a escrevê-la, estava tristíssima, a achar que não prestava... Mas hoje, quando olho para ela, gosto. Naquela tese, provei a mim o que tinha que provar como investigadora: sou capaz de fazer um trabalho decente e relativamente interessante, relativamente inteligente.

 

Qual era o tema?

Era sobre o movimento estudantil em Coimbra. É o que acho mais interessante: as pessoas serem capazes de se juntarem e de fazerem uma coisa juntas. Os desentendimentos, as cooperações, essa mistura, a forma como as pessoas vão andando pela vida e são capazes de criar coisas com as outras. Quando nos viramos uns para os outros, acho que somos sempre um bocadinho maiores do que quando somos só virados para nós.


Acha mesmo?

Acho, acho. Acho que as batalhas interiores ou muito individualizadas têm sempre o seu quê de mesquinho. Quando fazemos coisas por nós e pelos outros, quando se torna um bocadinho maior, quando nos ultrapassamos a nós, parece que dá sentido à vida. Ou, pelo menos, dá sentido à minha vida.

 

É para si urgência perguntar: para que é que isto serve?

Ai, sim, [em relação a] tudo na vida devemos perguntar para que é que serve. Às vezes serve só para ser bonito, ou para nos encantar, ou para nos mexer.

 

Marx escreveu «O Capital» na belíssima biblioteca do British Museum. Foram anos de reclusão e investigação. Se estivesse a fazer o seu doutoramento, estaria retirada do mundo, do fazer, dessa urgência. 

Gosto dessa abordagem da teoria social marxista: procurar conhecer para depois agir e transformar, e conhecer outra vez o que é que transformámos e o que é que correu mal. O novelo entre a acção e o pensamento crítico é o que deve ser a vida.

 

O mais extraordinário é a felicidade com que fala disto!

Sim, gosto mesmo disto. Tenho uma enorme sorte: até agora a vida tem me corrido mutíssimo bem, tenho tido oportunidade de fazer coisas que adoro

 

Voltando às palavras essenciais: “escolha” é uma palavra essencial?

É uma palavra essencial.

 

E a dilaceração da escolha, sente-a muitas vezes?

Sinto, sinto, sou um pouco indecisa. Indecisa, ansiosa. É uma palavra fundamental no meu léxico e na minha vida.

 

A escolha traz consigo a responsabilidade por essa escolha. É capaz de se depositar nas mãos do acaso, sentir o fluir, não escolher?

Não, isso não consigo fazer, preciso muito da sensação de...

 

Segurança?

De controlo, que controlei uma escolha arriscada, mas que a fiz. Adoro a sensação de ter a minha vida nas minhas mãos. Adoro a sensação de mudar de uma cidade para a outra, mudar de casa. Se eu quiser, movo-me, se não me sentir bem, posso romper aqui e começar ali. Ou seja, conto comigo, e contando comigo, as coisas hão-de correr bem.  

 

Não há nada que seja para si intimidatório? Medo.

Para além da saúde, a única coisa em que o terreno é mais movediço é o terreno dos amores. Porque aí, se o controlo é total, não tem graça. Tem que haver uma margem de indefinição, de ambiguidade, de coisas que podem acontecer, que podem não acontecer.

 

Novamente na casa da partida: o que é ocupa a sua vida mental? Essas coisas de que fala em público são também o que aparentemente domina a sua vida. Então, quais são os seus nós mais íntimos?

Não sei se tenho uma resposta para isso. Eu tinha uma amiga psicóloga que falava da teoria do bitoque. Ela dizia que a vida deve ser como um bitoque, deve ter diferentes ingredientes e que o prato da vida fica bom se nós tivermos disso tudo um bocadinho: os amores, o trabalho, os amigos, o lazer, os interesses intelectuais, isso tudo é que faz a vida.


No léxico existe a palavra “desilusão”?

O que é que hei-de de dizer desilusão? Não me consigo lembrar de uma coisa que tenha tido...

 

Pergunto por ser tão idealista. Caetano Veloso tem um verso que diz: «A dor define a nossa vida toda». E Gonçalo M. Tavares fala também a dor como palavra essencial. Porque nos esculpe.

Há uma frase muito engraçada, no filme «Azul», quando ela encontra a amante do marido que morreu e a amante lhe diz: “Você é boa, ele disse-me que você tinha escolhido ser boa”. É genial: a escolha de ser qualquer coisa. Quando as pessoas me dizem que sou idealista, como se fosse um pouco para o tonta, apetece-me dizer-lhes: eu escolhi isto, isto faz-me sentir bem, isto dá sentido à minha vida. Poderia ser cínica, mas sei que não seria muito feliz. As desilusões, quando existem, amarguram-nos muito. E tento livrar-me delas, muito, muito. Tento limpar, limpar e passar à frente, porque a amargura, o cepticismo e o cinismo são cansativos, uma pessoa passa a vida inteira à defesa. Bom, agora pareço um livro do Paulo Coelho [risos].

 

O que é que anda a ler? Não anda a ler o Paulo Coelho?!! [risos]

Não ando a ler o Paulo Coelho, li um uma vez e jurei para nunca mais. Ando a ler um calhamaço que se chama “Pós Colonialismo – uma introdução histórica”.

 

Humm, apetitoso...

É interessantíssimo. Fala de movimentos de libertação em África, correntes marxistas, é mesmo aquilo de que gosto! Vou lendo um bocadinho daquilo ao final da noite. Como é muito grande, estou a ver que não avanço. Olhe, agora estou a pensar como é que levo para a praia um calhamaço destes!

 

Lanço outras palavras, como futuro, como ambição. Se tem a convicção de que tem coisas para dizer, que coisas são essas?

Não consigo dar uma cartilha. Não sei se devo dar lições às pessoas sobre o que devem fazer com a vida, ou sobre o que é que a vida, porque receio transformar-me de facto em Paulo Coelho e fazer grandes tratados lamechas sobre qualquer coisa!

 

Sim, mas recupero isto porque no início da nossa conversa disse que se meteu na política, também, porque tinha a convicção de que tinha coisas para dizer.

Eu acho que as pessoas devem perceber que muitas das coisas que temos foram conquistadas por outras pessoas. Aquilo que hoje temos de bem-estar, de liberdade foram lutas sociais antigas. Isso dá-me, primeiro, algum sentido histórico – o que existe não é natural, foi construído.

 

Isso faz de si um elo na cadeia, é isso?

Pois. Gosto da ideia de que temos responsabilidades para quem lutou por nós sem nos conhecer e para quem vem a seguir. A base política em que acredito é procurar mais e mais liberdade, mais autonomia. Que cada um de nós possa ser mais dono da sua vida. Falar de justiça social, de questões sociais, das questões da guerra, do que quer que seja, tem a ver com esta ideia central, (como diz a Constituição Americana): os homens devem ser livres para buscar a felicidade. A ideia de um novo mundo onde os homens serão livres, mais donos das suas circunstâncias.

 

«A liberdade é o reconhecimento da necessidade», dizia Marx.

No espaço onde estou é uma ideia que se mistura com a ideia de socialismo e de movimento socialista, que foi aquele que um dia sonhou, se constituiu na base dos que se sentiam oprimidos e que tentaram construir um mundo onde fossem mais livres. Esta é a base política e a ideia que tenho: por um lado peçam mais do poder instituído, exijam mais, mas também responsabilizem-se mais, estejam mais presentes, sejam mais lutadores e mais solidários.

 

Fica com horror se pensa que, como muitos políticos, pode ser outra, daqui a 20 anos?

Penso, acima de tudo, que ser política ou deputada não é uma profissão. E que não é saudável nem para mim nem para a política que eu esteja 20 anos.

 

O provável é que daqui a 20 anos esteja na Sociologia.

Espero bem que sim, se houver política de investigação neste país.

 

No fundo, trata-se de ler o colectivo e sentir-se parte desse colectivo.

É.

 

O futuro é isso?

É. O sentido da minha vida não está muito dentro de mim, está um pouco nos outros. Nada do que fazemos tem muito sentido se não houver testemunho, apreço, crítica sobre isso. Se damos um trambolhão nas escadas e estamos sozinhos, é como se nunca tivesse acontecido. O que somos e fazemos da nossa vida tem que ser visto pelos outros. É nesse jogo de espelhos que a pessoa se encontra.


Por fim, o jantar de anos da sua amiga. O saco que contém a prenda diz Women’s Secret...
São coisas de mulheres, evidentemente: lingerie.

 

Não é risível, nem é menos credível, se terminarmos a entrevista a falar da lingerie que comprou para a sua amiga.

Não, pelo contrário. Comprei uns discos para mim, [e comprei] uma lingerie para ela se sentir bonita, porque está a fazer trinta e poucos anos está lindíssima. Espero que ela goste.

 

 

Originalmente publicado no DNa do Diário de Notícias em 2004

 

Garcia Pereira

01.07.14

Como se sabe, e como se costuma dizer, Garcia Pereira é o último dos maoistas. Ou, pelo menos, o mais proeminente. Mesmo que Mao tenha morrido em 76. Mesmo que todo o monumento do Leste se tenha esboroado há mais de uma década. Mesmo que o PCTP-MRPP, cuja chama mantém viva, não se reúna em convenção vai para 20 anos.

Ao longo de três horas, explicou por que faz sentido acreditar na revolução nos tempos modernos. E encontrou-se consigo no que um homem pode ter de mais íntimo: as reminiscências da infância, a herança digna e corajosa de um avô republicano, a antevisão da morte e do que lá se encontra.

António Garcia Pereira formou-se em Direito, é um dos mais notados advogados da praça, é professor de Direito do Trabalho no Instituto Superior de Economia e Gestão. Tem quatro filhos de três casamentos. 48 anos. Uma concepção do mundo muito particular. Um mundo muito próprio.

Quando a entrevista começou mascava chiclete.

 

 

Os textos que li a seu respeito são de teor político, revolucionário. Num outro, que faz uma abordagem mais pessoal, parece-me crucial a influência do seu avô Pestana, determinante na paixão pelo mar e pela política. No seu escritório, os barcos e os objectos aludem de forma evidente a esta paixão pelo mar.

O bichinho da política é uma coisa que na minha família vem desde há longas épocas. Recordo-me de se falar de um antepassado que andava à espadeirada com os Miguelistas nas Lutas Liberais. A experiência que me tocou muito de perto foi a do meu avô e a do meu tio. O meu avô era um daqueles republicanos de rija têmpera que foi Ministro das Finanças no penúltimo governo antes do 28 de Maio de 1926; era licenciado em Direito, tinha uma cultura enciclopédica notável, e sabia muito de agricultura.

 

De agricultura?

Uma das lembranças curiosas da minha meninice era do meu avô, no Porto Santo, que era a terra natal dele, dar uma espécie de explicações de agricultura um dia de semana; as pessoas iam lá saber como se fazia um enxerto na vinha tal, como se podia atacar esta e aquela doença. Eu aprendi a fazer o sulfato de cobre com que se sulfatava as vinhas.

 

Chegou a andar com o sulfatador às costas?

Sim, sim.

 

Achava graça?

A isso e a fazer o vinho achava graça. Nas vindimas achava menos graça porque não podíamos ir para a praia e tínhamos de passar ali uns dias de costas dobradas ao sol. O meu avô entendia que era uma escola que deveríamos ter, não é que a nossa ajuda fosse importante. Toda a gente de casa participava: fazia-se a vindima, que se carregava para os cestos, e depois fazia-se o vinho no lagar.

 

Pisavam o vinho no lagar?

Sim. O meu avô dizia, (e eu na altura achava um preciosismo, mas mais tarde aprendi que era inteiramente verídico), que o vinho ficava de bastante melhor qualidade quando era pisado ao pé do que quando era prensado; aquele particular amargo que deriva da grainha que foi esmigalhada não se verificava, porque o peso da pessoa não era suficiente para isso. Fiz muitas vezes vinho, e tratava das galinhas, que não era um bicho com que simpatizasse muito.

 

Era o programa habitual das férias? Porque viveu sempre em Lisboa, na Avenida de Roma.

Desde que nasci, terei falhado dois Verões.

 

O que é que aconteceu?

Num, já tinha falecido há largos anos o meu avô, a minha mãe tinha arrendado a casa, houve um problema e ela ficou indisponível. O outro ano foi o de 74 que, como imaginará, foi muito agitado, e a actividade política tornou impossível a ida, mesmo que por pouco tempo. Mas ainda a propósito do meu avô, e só para não deixar coisas para trás, aprendi a conhecer e a orientar-me pelas estrelas com o meu avô, aprendi a gostar do mar com o meu avô. O nosso avô, quando tínhamos cinco, seis anos, punha-nos ao leme da embarcação, uma velha lancha de madeira, ensinava-nos a conduzir a lancha e exigia que fossemos capazes.

 

Nunca teve medo do mar da Madeira, que pode ser tumultuoso?

Quando íamos com o nosso avô, não. Ele tinha uma campanha de pesca e a minha avó tinha outra; também na caça, cada um ia com o seu grupo. Iam pescar para longe. Com as crianças a bordo faziam a viagem da volta à ilha, que já dava para apanhar uns sustos. Tudo era feito com respeito. Pelo mar deve-se ter respeito, e saber até onde se pode ir.

 

Nunca pensou ser marinheiro?

Devo ter pensado ser bombeiro, corredor de automóveis, as mais variadas coisas. E pensei ser engenheiro naval, para construir barcos. Quando cheguei à altura de optar, hesitei muito; gostei sempre também de ciências e as médias eram idênticas num ramo e noutro. Numa situação praticamente de empate, penso que o exemplo do meu avô pesou, acabou por me empurrar naquela direcção. Por outro lado já havia ligação a alguma actividade política; tinha um pouco a ideia, que se revelou verdadeira, que porventura havia uma ligação bastante mais próxima entre os juristas e o exercício da actividade política do que propriamente nas outras alíneas, como se dizia na altura.

 

A sua aproximação à política fez-se ainda no liceu?

Sim. Era miúdo quando o meu tio foi preso por ter sido um dos intervenientes no assalto ao quartel de Beja. Toda a minha família materna era da oposição; os meus avós paternos eram camponeses da zona de Aviz que não cheguei a conhecer. O pai da minha mãe tinha essa tradição, uma vida inteira de luta. Não foi só Ministro da República, foi um dos intervenientes mais activos da chamada Revolta da Madeira, e deportado para os Açores, Cabo Verde e para o próprio Porto Santo, na altura uma terra desértica. A minha família passou grandes dificuldades; a minha avó, que era uma senhora, digamos, de boas famílias, teve que fazer crochet e outras soluções de recurso para conseguir alimentar a família.

 

Conte a história do seu tio.

Em 61, 62 o meu tio foi preso na sequência do falhado assalto ao quartel de Beja. Foi uma experiência muito marcante para mim. Fui vê-lo ao Aljube, quando esteve na tortura do sono e depois fechado naquelas celas onde as pessoas mal cabiam e não se podiam ter de pé.

 

Foi a primeira vez que visitou um preso político?

Foi. O Aljube era das prisões mais esmagadoras na impressão que criava (era um edifício muito antigo, com umas enormes grades, uns enormes portões, muito escuro, paredes exíguas; acho, aliás, que deveria ser preservado como um museu daquela época, porque qualquer dia a Pide não existiu!...). Quando fomos visitar o meu tio tínhamos uma grade à nossa frente, um intervalo onde estava um pide a ouvir a nossa conversa, outra grade, e o meu tio do outro lado, que eu não reconheci à primeira, de tal maneira inchado. Comecei a choramingar, a minha mãe voltou-se para mim e disse: «Ao pé desta gente não se chora», olhando para o pide. Foi uma lição que nunca mais esqueci.

 

Ficou com coragem para a vida toda.

E aprendi o que é a dignidade. Porque a minha mãe estava evidentemente virada do avesso. Perante o irmão queria transmitir uma imagem de força e perante o esbirro queria também transmitir essa imagem. Eles tinham-lhe um ódio tremendo; foi várias vezes castigada em Caxias, uma vez por estar a falar em inglês com o meu tio, outra por se ter aproximado para lhe fazer uma festa. Sucessivos castigos e ela nunca quebrava.

 

São exemplos de tenacidade e coragem que acabam por marcar a sua vida. Quando se pensa em si, pensa-se em rigidez, em firmeza, em inflexibilidade.

Inflexibilidade?

 

Ah não?

Do ponto de vista dos princípios, sim.

 

Então, onde é que é permitido mudar?

Acho que não se muda de ideias como se muda de camisa. Do ponto de vista do posicionamento fundamental na vida, as pessoas não mudam, e quando mudam devemos retirar daí conclusões. Mudar de opinião sobre esta e aquela questão, ter uma opinião hoje e verificar amanhã que está errada e mudá-la, é um imperativo de consciência, às vezes é até um acto de coragem. Agora, estar de um lado da barricada e passar-se para o outro, é porque nunca se esteve verdadeiramente daquele lado.

 

Como é que olha para ex-maoístas, como o Durão Barroso, o Pacheco Pereira, o José Lamego, que se instalaram na social-democracia e no socialismo, que foram seus companheiros de barricada e depois se passaram para o outro lado?

Se alguma coisa caracteriza negativamente a nossa política, é uma razoável dose de vira casaquismo. Quando vejo essas pessoas fico entre o divertido e o confirmado. O Pacheco Pereira andou por alguma coisa que se chamava de Maoismo, mas em meu entender não o era. O Durão Barroso foi afastado do PCTP-MRPP, mais concretamente da sua organização para a juventude estudantil, porque se revelou... O meu avô costumava dizer que os bons marinheiros não se vêem quando o mar está um mar de senhoras, conforme se diz machistamente na linguagem marítima!, vê-se quando o mar está mau. Personagens como o Durão, assim que perceberam que a revolução não era uma coisa ali ao dobrar da esquina, que a viagem era muito mais sinuosa, apearam-se rapidamente e foram à procura de outro comboio.

 

Está a dizer que não tem nenhum respeito pessoal ou político por estes vira casacas, para usar a sua designação?

Não, não tenho. Há pessoas que estiveram próximas, chegaram a militar, e embora se tenham afastado do partido e ido para outros, mantiveram sempre uma posição de respeito por valores essenciais que não renegaram; mais do que isso, não renegaram o seu passado. Assumiram-se como tendo tido um período da sua existência em que defenderam aquelas ideias e orgulhando-se de o ter feito. Dou-lhe um exemplo: o actual Secretário de Estado do super Ministro Pina Moura, o Dr. Vítor Ramalho, de quem sou pessoalmente amigo e por quem tenho respeito, ainda que seja um homem do Partido Socialista e do Governo.

 

Pela ironia no seu tom, imagino que esse seja um caso mais ou menos único.

Eu queria salientar: o Durão Barroso não se afastou do MRPP, o Durão Barroso foi, e em muito boa hora, corrido do MRPP! Assim que se deu o 25 de Novembro e a luta política se tornou muito mais complicada, começou a mostrar a realidade das suas posições.

 

Esse «corrido» parece denotar uma sobranceria moral e intelectual, como se este e aquele e aqueloutro não fossem dignos de fazer parte da luta.

As pessoas não são expulsas por terem ideias. O que está aqui em causa é o oportunismo de se adoptarem determinadas posições que realmente não se pretendem defender, apenas na mira de chegar ao poder.

 

No seu partido não há qualquer sede de poder?

Se calhar há de menos, até! (risos)

 

Qual é a ambição destes partidos? Para que servem partidos como o MRPP nos tempos que correm?

Provavelmente as questões até se põem de uma forma mais aguda em períodos de grande força do movimento revolucionário do que noutros períodos como aquele que vivemos hoje. Aí, a possibilidade, mesmo que teórica, destes partidos chegarem ao poder, é muito maior. O problema que se põe, e sobre o qual pouco se tem reflectido, é: Como é que o povo exerce a sua vigilância democrática em relação aos partidos.

 

O poder, e sobretudo o exercício do poder, tem frequentemente efeitos perversos. A história está carregada de exemplos de uma degenerescência absoluta em relação à ideia original. Olhe o que aconteceu ao seu comunismo.

É um ponto interessante para se pegar. Quando, a propósito da queda dos regimes do Leste, se diz que foi uma derrota do comunismo, eu acho que foi uma enorme vitória do comunismo! Porque aqueles regimes não tinham nada de comunistas! Tinham a denominação de socialistas ou comunistas, mas eram verdadeiros regimes fascistas: com uma minoria no poder, tendo toda a sorte de benesses e regalias com a esmagadora maioria do povo vivendo na miséria, com polícias políticas prendendo e eliminando adversários. O facto de aqueles regimes terem sido derrubados, é um enorme progresso, porque as pessoas viram que aquilo não era o caminho.

 

A ditadura do proletariado alguma vez existiu? Alguma vez se reviu no funcionamento de um país na sua dimensão político-social?

Todas as experiências revolucionárias, desde a Comuna de Paris, (é uma experiência notável em que há a busca da aplicação da democracia directa de um povo: as pessoas são eleitas, prestam contas perante aqueles que os elegeram e há a tentativa de imposição desses princípios). A experiência da Revolução Bolchevique é outra. Mas devíamos preocupar-nos tanto com aquilo por que se caracterizaram de forma positiva como negativa. Sob esse ponto de vista, a experiência da Grande Revolução Cultural Proletária é muito interessante; demonstrou que, ao contrário do que fora afirmado na experiência soviética, só há uma forma de preservar a pureza das ideias da democracia popular depois da tomada do poder, que é exactamente impedir que se criem pessoas instaladas no próprio poder.

 

Concede que houve excessos?

Excessos e erros. Por exemplo, não concordo que na Revolução Cultural Chinesa se tivessem queimado obras do Shakespeare ou partido discos do Beethoven com o argumento de que eram obras burguesas. Há um património histórico da humanidade com o qual todos temos a aprender. E com certeza terá havido aqui e ali violências desnecessárias e até injustas. Apesar de ter representado um grande progresso em relação à Revolução Bolchevique, é uma experiência que falha.

 

O que é que sentiu quando morreu Mao Tsé Tung?

Senti que tinha morrido um grande dirigente e que ventos dos mais diferentes quadrantes se faziam soprar e que não se sabia muito bem o que viria a seguir.

 

Sentiu aquela espécie de dor que se pode sentir quando morre alguém próximo ou marcante na nossa vida?

Sim, e orgulho-me de o sentir. Como quando, por exemplo, assisti pela televisão à libertação do Mandela e me emocionei, quando vi a entrada de Xanana Gusmão em Díli e me emocionei. Não pelas pessoas em si, ou também, mas isso é secundário, mas pelo que isso simboliza. Simboliza que vale a pena lutar, vale a pena passar anos e anos na prisão, vale a pena defender um ideal e, ao contrário do que muitos pregavam, é possível lutar contra gigantes e vencer esses gigantes.

 

Continua a admirar Estaline? Como é que convive com a ideia das valas comuns? Isto não parece muito fácil de digerir numa pessoa que tem essa sede de justiça e se comove com cenas como as que descreveu.

Esta chamada admiração também tem que se lhe diga. Há dois aspectos da questão que não podem ser olvidados. Primeiro, Estaline foi dirigente da União Soviética numa altura de extrema dificuldade, de resistência ao nazismo, (é preciso dizer que a União Soviética é o país onde morreram mais pessoas vítimas da barbárie nazi).

 

Isso desculpabiliza os crimes do Estalinismo?

Não estou a dizer que desculpabiliza. Há também que ver uma coisa: uma experiência revolucionária com aquela dureza implica necessariamente violência. Nenhuma classe sai do poder pacífica e calmamente. A violência sempre esteve presente ao longo da história. Se falarmos daqui de Lisboa as pessoas lembram-se do Marquês de Pombal e do D. José. Então e os Távoras? Mas aí, o aspecto principal que as pessoas escolhem é «O líder político que dirigiu a reconstrução de Lisboa na sequência de um cataclismo horrível e que conseguiu mobilizar a sociedade para vencer a dificuldade». O resto deixa-se para trás e não se fala, está a ver? O que mostra que os critérios são completamente diferentes.

 

O que me parece é que o senhor invoca esses exemplos para ficar mais apaziguado consigo e com a sua admiração pelo Estaline e pela Revolução Cultural.

Não, não, não! Não insista nisso! Eu continuaria, neste regime como noutro qualquer, a defender isso. Não querendo fugir ao tema de que estamos a falar, acho um disparate completo, a vários níveis, o que se está a passar hoje na União Europeia. É muito polémico o que vou dizer, e tem-me valido muitas incompreensões, mas discordo que um artigo na Constituição proíba que haja pessoas ou organizações que defendam ideologia fascista. Que pratiquem actos, que agridam emigrantes, que procurem eliminação física de pessoas de outras etnias, é completamente diferente, e devem ser inquebrantavelmente perseguidos. A proibição parece-me até perniciosa, porque não há nada que faça desenvolver mais uma ideia que a ilusão que, por métodos administrativos e proibitivos, se possa impedir essa ideia de granjear apoios e se desenvolver.

 

Como olha para a situação política austríaca?

Acho um disparate completo da União Europeia. Aquela pessoa e aquele partido tiveram a votação que tiveram, e os primeiros e principais responsáveis são os partidos que se proclamam da Esquerda, que abandonaram completamente o ideário clássico da Esquerda à extrema Direita. Este é um problema mais fundo do que parece à primeira vista. Quem é que sofreu um abalo com a queda dos regimes de Leste? Sofreram antes de mais os partidos comunistas, que proclamavam aquilo como o pai/mãe-sol de todos nós. Mas não foram os únicos. Porque os partidos Socialistas identificavam aquilo como sendo o Marxismo, e afirmavam-se como sendo Marxismo mais Liberdade. Quando um dos pés caiu, o outro deixou de fazer sentido. A saída que estes partidos encontraram foi ou o seu puro e simples desaparecimento da cena política ou a sua direitização progressiva.

É por isso que se diz que cada vez menos se encontram diferenças no ideário fundamental entre estes partidos e os do centro, centro direita.

 

Não deixa de ser curioso que, na cena portuguesa, seja o PP a viabilizar tudo o que há de significativo no projecto socialista. É a esta direitização que se refere?

O PP tem tido um espaço e uma dimensão que lhe são dados sobretudo pelo abandono dos ideais de luta da Esquerda. Não só o PC mas também o PS, deixaram de falar naquilo que eram esses valores fundamentais, e deixaram o campo aberto a que os salvadores da pátria apareçam.

 

O senhor é um democrata?

Sim, considero-me isso.

 

Como encaixa a ditadura do proletariado no seu conceito de democracia?

As pessoas imaginam que na ditadura do proletariado que os marxistas- leninistas defendem, o proletariado deve chegar ao poder e instituir um regime férreo, uma polícia política, uma violentíssima repressão em cima de toda e qualquer força política que não seja a sua. Isto não tem nada a ver com a ditadura do proletariado! O proletariado quando toma o poder é para pegar no Estado e demolir pela raiz o Estado burguês!, não é para criar em substituição do Estado burguês um outro que se chama Estado Proletário. A tarefa é a da demolição do Estado como instrumento de opressão de uma classe por outra. Se me pergunta «Nesse regime há lugar a outros partidos?» Há, em meu entender, há, deve haver, é bom que haja. Significa que os pontos de vista diferentes daqueles que se tornaram dominantes podem ser expostos, devem ser expostos.

 

Depois dessa explicação, gostaria de saber exactamente o que é que o senhor e o seu partido defendem. Qual é o ideário, presumo que ajustado a este princípio de milénio e à nova realidade planetária, que o MRPP reclama?

Ora óptimo! Há uma autocrítica e uma reflexão que todas as forças políticas que se reclamam da Esquerda, e em particular os partidos que se reclamam do Marxismo-Leninismo, têm de fazer; no que toca ao PCTP-MRPP não está feita. Uma profunda reflexão acerca das experiências que houve e o que podemos retirar daí; mas há ainda um outro trabalho por fazer, de grande fôlego. Como é que hei-de dizer isto, para não fazer um discurso de horas... Começamos hoje a compreender que, sobretudo nos últimos 30 anos, houve enormes modificações no mundo que conhecíamos: ao nível económico, com uma profunda modificação da estrutura de classes tradicional que representou, e esteve também aliada, ao surgimento de novas categorias de trabalhadores. Novos operários; só que hoje não andam de fato macaco e de chave inglesa na mão. Se calhar andam de fato Hugo Boss e de computador portátil debaixo do braço. Um engenheiro de sistemas informáticos é claramente um operário dos tempos modernos!

 

Mesmo que a vida desses operários seja burguesa.

Diga?

 

Tem uma definição para burguês e para proletário?

É simples. Os termos em que se coloca hoje é que são diferentes: quem vive da exploração do trabalho alheio é o burguês, quem só tem o seu trabalho, dantes eminentemente físico ou manual, hoje em larga medida manual e sobretudo intelectual, é um operário dos tempos modernos.

 

Queria chegar ao ideário base do MRPP.

Calma. A viragem do século é o agravar de todas as contradições: toda a gente hoje percebe que os ricos são cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Isto é válido para os países e para as pessoas. A outra contradição é a de que os últimos 20 anos se caracterizaram por um enorme progresso científico e tecnológico e, todavia, nunca se trabalhou tão arduamente e em condições tão penosas como hoje se trabalha. Portanto, há aqui uma coisa que mostra que esses progressos não foram colocados ao serviço do conjunto da humanidade mas apropriados apenas por uma pequena minoria. E temos aqui a velha contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais de produção! Ou seja, temos um enorme desenvolvimento da ciência e tecnologia por um lado e temos relações sociais caducas que se aproveitam e utilizam esses progressos não para aumentar o bem-estar da humanidade no seu conjunto mas para agravar cada vez mais o fosso. Esta contradição é a revolução!

 

Qual será o papel do MRPP neste cenário? O seu partido parece estar...

Adormecido.

 

Adormecido. Não se sabe se Arnaldo Matos aparece ou não aparece. Não há convenções há 20 anos.

Não tanto. Mas por acaso é capaz de ter uma surpresa agradável dentro de pouco tempo. Está já em marcha a preparação do congresso do partido ainda na primeira metade do ano.

 

Quanto ao papel do partido.

Temos de distinguir vários planos. Em termos estratégicos o partido continua a defender o socialismo, o comunismo, a tomada de poder pelo proletariado, a instalação da sociedade sem classes. Agora toda a gente percebe que não é um objectivo que possa ser alcançado amanhã.

 

Desculpe, toda a gente percebe, antes de mais, que esse é apenas um pressuposto teórico.

Não é um pressuposto teórico.

 

Depois de tudo o que acabou de dizer, acha que faz algum sentido?

Pelo contrário. Deixe só assinalar coisas que durante muito tempo foram negadas e apresentadas como análises teóricas e que hoje ninguém discute: a globalização veio confirmar, como os comunistas sempre disseram, que o capital não tem pátria nem rosto, que a evolução da sociedade se tem caracterizado por um crescente cavar do fosse entre os exploradores e os explorados (ao contrário da mistela que nos venderam que nesta segunda metade do século se teria assistido a um desenvolvimento das classes médias e dos países médios). É forçoso reconhecer que nunca as contradições estiveram tão agravadas e os extremos tão distanciados, e portanto não é um pressuposto teórico. O capitalismo transporta no seu seio o gérmen da sua própria destruição. Não é utópico! Mas, sendo certo que esse é o objectivo político final, evidentemente só um louco diria que é uma coisa para cumprir amanhã e que estão reunidas as condições. 

 

Como é que assistiu ao surgimento do Bloco de Esquerda e que comentário lhe merece o seu resultado eleitoral, nomeadamente os dois deputados que conseguiu em S. Bento?

O BE apanhou duas boleias. Aparece numa altura em que há sectores crescentes da sociedade, designadamente das pessoas influenciadas pelos valores tradicionais da Esquerda, que no PS não vêem nada de Esquerda e no PC nada de Esquerda vêem. E foi levado ao colo pela comunicação social, que desempenhou um papel de amplificador e de arauto da necessidade de uma alternativa. Estes factores todos conjugados deram um resultado francamente bom para o BE. Mas quais são os princípios do BE, e não estou a falar de intervenções pontuais, a propósito do aborto, etc?

 

Parece que, justamente, é nessas intervenções que o BE vai conquistando votos e assumindo a defesa de causas sociais que não encontram espaço em nenhum outro partido. Logo aí, e partindo do princípio que o MRPP é o mais conservador dos partidos da extrema Esquerda, não se vislumbra qualquer possibilidade de concordância ou trabalho conjunto.

A posição do PCTP-MRPP em relação ao aborto é muito clara, e é diferente, de facto, da do BE. As mulheres devem ter o direito de praticar o aborto em condições higiénicas, médicas e terapêuticas com o máximo de assistência. Mas há outra coisa que não pode ser iludida: o PCTP-MRPP é contrário a políticas neo-Malthusianas da população. Defendemos que a revolução não se faz com filhos únicos. Uma coisa é concordarmos com o ponto de vista pequeno burguês que acha que o casal tem muitas dificuldades e não deve ter filhos porque as dificuldades vão aumentar; o ponto de vista dos proletários é o de que se deve ter filhos com as dificuldades que isso implica.

 

O que, na prática, transforma os filhos em mão-de-obra, em força braçal.

É preciso compreender que aí se está perante um caso de pura e simples subsistência económica.

 

É por pura e simples dificuldade de subsistência económica que os casais hoje não têm mais filhos.

A questão é a oposta: não é fazendo com que as pessoas não tenham filhos, é tendo filhos e travando a luta para que eles tenham direito a um futuro melhor.

 

Está a abstrair-se de uma contingência prática. Mas ainda no que diz respeito ao conservadorismo do MRPP, consta que em 74/75 a directiva «Pensar e agir como um revolucionário» proibia affairs extra-conjugais aos seus quadros. Isto era mesmo verdade?

Existe um documento histórico, «Pensar, agir e viver como um revolucionário», que é uma directiva feita na sequência de um caso concreto de um quadro do partido que foi recolhido em casa de um casal e que, aproveitando-se da ausência do marido, acabou por se servir não só da cama como da mulher.

 

Coitadinha da indefesa.

Suscitou uma directiva que tem algumas preocupações moralistas; hoje, se a questão fosse vista, seria tratada de uma outra forma. Essa directiva é anterior ao 25 de Abril em que há questões muito particulares da clandestinidade, quando os quadros tinham, por vezes, de viver na casa de outrem, etc, etc. Pensei que ia referir a história do casar. Contam-se muitas lendas sobre o PCTP-MRPP; e a certa altura criou-se a lenda de que havia uma directiva no sentido de que as pessoas não podiam casar ou para casar tinham de pedir uma expressa autorização; é completamente mentira. Mas as pessoas que tinham pontos de vista mais dogmáticos... O Barroso, por exemplo, na Faculdade de Direito fez nessa matéria disparates uns atrás dos outros.

 

O que são disparates, no contexto?

Dirigir advertências quando uma militante do partido aparecia com uma camisola mais bonita, e estou a lembrar-me de casos concretos!

 

Não é possível olhar para o caso com o sorriso complacente que se tem com os exageros dos verdes anos?

Não, porque as coisas chegavam ao verdadeiro terrorismo no tratamento dos quadros que estavam sob a orientação dele.

 

Quando foi a última vez que falou com Durão Barroso?

Julgo que foi ainda na faculdade, por esses tempos.

 

Em 69, ano em que entra para a Faculdade, morre o seu avô Pestana. Nos momentos de desespero, e na sua vida a proximidade com a morte deve tê-lo mergulhado no desespero, não se voltou nunca para a fé, não apelou nunca a um ente divino?

Apelar a coisas que não são imediatamente materializáveis, como seja a amizade, a solidariedade, a saudade, seguramente. Só um autómato é que não passa por isso, e prezo-me de não ser autómato. Mas nessas alturas, de um grande choque emocional, como noutras de choque perante o perigo, (já tive algumas: desde o assassinato do Ribeiro Santos, muito marcante para mim, a um acidente violentíssimo de viação ou a um problema muito complicado no mar), a pessoa sobretudo confronta-se consigo própria.

 

E que momentos encontra?

No acidente de viação vi numa fracção de segundo praticamente a minha vida toda.

 

É verdade isso que se diz, da possibilidade de se rever a vida toda na proximidade da morte?

Tenho um pouco essa sensação, naquela fracção de segundo... Desmaiei e recordo-me de estar a alguns metros do outro carro, recordo-me do que estava a pensar na altura, mas não me recordo do embate. Pensei que provavelmente ia ficar ali. E lembrei-me de coisas muito fugidias, de imagens de miúdo, de miúdo muito pequenino, de miúdo um bocadinho maior.

 

Eram imagens de prazer?

Não propriamente, eram uma espécie de reprise, reprise da vida. Mas quando uma pessoa está confrontada com tempo, (essa situação do mar levou 20, 30 minutos), há a possibilidade de consciencializar as coisas. E pensa, «Se calhar vai acontecer isto, se calhar vou ficar aqui. Já fiz isto, há aquilo que gostava de ter feito».

 

Que imagens lhe acudiam?

Das coisas agradáveis, das menos agradáveis: as imagens mais marcantes. Devo dizer que não é uma coisa de que goste muito de falar. A pessoa fica confrontada com o que de mais íntimo há de si.

 

Além dessas experiências muito fortes, já perdeu algumas das pessoas mais importantes na sua vida: os seus pais, o seu avô, a sua primeira mulher. O espectro da morte fez com que a olhasse de uma forma menos terrífica? Ou a morte assusta-o ainda de uma forma terrífica?

Sinceramente não. Talvez porque, evidentemente com os erros e insuficiências que qualquer um de nós tem, me preocupo em estar de bem com a minha própria consciência, ser capaz de me olhar bem nos olhos todos os dias de manhã e tomar as decisões mais importantes em função disso. Habituei-me, e fui um pouco moldado assim, a que a pessoa deve bater-se por aquilo que considera justo e às vezes, nesse bater-se, vai a vida; mas não é isso que deve fazer as pessoas deixarem de lutar.

 

O bem supremo é a dignidade?

Se fosse para ter medo de aceitar o patrocínio de determinadas causas, ou me encolher porque me fazem ameaças de morte relacionadas com essas causas, ou achar que era mais cómodo não levantar a voz para denunciar coisas que considero erradas, a vida, para mim, perdia sentido. O sentido que tenho na vida, entre outras coisas, é esse também.

 

Quais são as suas palavras ou valores? Liberdade, Dignidade, Mar?

Nunca pensei sobre isso. O mar, sim... O mar simboliza, no fundo, toda a vida; pode ser extremamente aprazível ou terrível. É uma imagem de enorme libertação e é também, não raramente, um símbolo de opressão, de cerco. As pessoas que nasceram ou viveram muito tempo numa ilha sabem bem o que estou a dizer. A outra palavra, Liberdade, diz-me também muito; no sentido histórico, de luta por um ideal contra um regime ditatorial, mas também no sentido de se ter liberdade de pensamento, de consciência, de não se ser escravo de ninguém, não se quebrar perante interesses, por mais poderosos que sejam. E depois Justiça, não no sentido aristotélico do termo, mas no sentido de que a pessoa conduz a sua vida por aquilo que entende que é correcto, acertado, em relação a si e aos outros. Há uma grande pressão para que as pessoas não pensem em ideais; mas experiências como a do cordão de solidariedade para com Timor demonstram que, ao contrário do que muitos pensam, as pessoas se mobilizam por causas e de forma extraordinária. Eu acredito profundamente nas pessoas.

 

Ainda se encanta com as pessoas?

Sim. Tenho uma enorme vantagem que me vem da minha profissão de professor; não sei se é o que mais gosto de fazer, porque gosto muito da advocacia, mas gosto muito de ser professor, de ensinar e de aprender. Ao fim de 25 anos tenho arreigada a convicção de que as pessoas merecem que se acredite nelas.

 

Estava a pensar que o seu avô, tendo morrido quando entrou para a universidade, não pôde orgulhar-se de si tanto quanto provavelmente se orgulharia se assistisse ao seu florescimento político, profissional, pessoal. Pensa nisso, às vezes?

Isso não. Mas não há dúvida que foi uma referência importante. O meu avô era uma pessoa de ideais que podia ter tido uma vida descansadíssima e teve uma vida atribuladíssima, embora feita de muitas satisfações construídas no quotidiano.

 

Quem é que se orgulha se si? Ou, perguntado de uma outra maneira, a quem gosta de agradar?

Uma preocupação que tenho é de poder constituir o melhor exemplo possível para os meus filhos (tenho uma do primeiro casamento, dois do segundo casamento, e o mais novinho deste casamento). Os actos são sempre muito mais pedagógicos que as palavras, sobretudo quando têm certa continuidade. Que os meus filhos possam pensar que o que é importante é que a pessoa aja de acordo com o que considera correcto em sua consciência, mesmo que não seja o mais conveniente, mesmo que não seja aquilo que lhe traz mais vantagens imediatas, e que se sintam bem com isso. Esse é que deve ser, dito assim de forma palavrosa, o ideal de vida de uma pessoa.

 

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2003

 

 

 

 

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