Pedro Rosa Mendes
«A história principal – se é que há alguma, se é que é possível dizer «este livro é sobre qualquer coisa» - tem dois personagens, um marchant inglês e uma refugiada norueguesa. Um deles escolheu guardar da relação apenas o momento inicial, o mais intenso, e depois há uma opção pela ausência e pela distância. Essa tangente é tudo o que têm.
É um livro de fantasmas. Cada pessoa é construída e relaciona-se a partir de um puzzle de pequenas coisas. Coisas que formam a nossa memória, os nossos sonhos, as nossas rotas. E quando se mobilizam para alguém, quando dão atenção a alguém, o que fazem é partilhar esses fantasmas, esse património que carregam. De música, imagens, palavras, telas, pigmentos, texturas, paisagens.
É uma viagem exigente. Seria bom que o leitor se sentasse não em frente a um livro, mas numa sala de espectáculos. Um dos actores da Escola da Noite dizia-me: «Isto não é um romance, é um livro performativo». Achei a definição perfeita».
Esta é a apresentação sumária que Pedro Rosa Mendes faz de «Atlântico», um «romance fotográfico» assinado a meias com o fotógrafo João Francisco Vilhena. Um livro como nunca se viu.
A expectativa é elevada. Elevadíssima. «Baía dos Tigres», o seu primeiro romance, «é um livro capaz de justificar todo um passado comum de errância pelo mundo e de renovar a chamada literatura de viagens. Neste caso, grande literatura», (José Eduardo Agualusa).
«Ilhas de Fogo», o livro-reportagem com ilustrações de Alain Corbel, data do ano passado. «O que une estas histórias é estarem ancoradas em indivíduos que têm pelo menos o sonho, mas também a coragem de mudar a sua própria vida», (o autor ao Diário de Notícias).
O que há em cada um deste livros? Pessoas, e pessoas, e pessoas, o que as faz serem pessoas, como existem enquanto pessoas.
Pedro Rosa Mendes nasceu em Cernache do Bonjardim em 68. Estudou Direito em Coimbra. Era provável que fosse advogado ou juíz ou diplomata. Continua a dizer-se um jornalista. Vive em Berlim até ao Verão. Depois disso regressa a Lisboa e procura emprego. Diz que vai escrever porque não sabe fazer mais nada.
Qual é para si o significado da palavra «tangencial»?
- Tangencial é algo que nos marca. Sendo tangencial, sendo momentâneo, deixa uma presença. No «Atlântico», as histórias de todos os personagens principais são tangenciais. Não houve uma intersecção. Só percebem com cerca de 20 anos de diferença que o momento em que estiveram em contacto foi o mais marcante na vida de cada um. Esse ponto de contacto que depois se perpetua é uma espécie de fantasma. É uma ausência presente.
A palavra evoca um sentido muito gráfico e fez-me pensar no seu interesse pelas cartografias. O que elas permitem é uma visão da vida num espaço delimitado. Uma visão que implica alguma distância. Distância e ausência são palavras-chave em si. Este encadeamento à volta de tangente, faz sentido?
- Sim. É preocupante que, ao fim de três livros, haja palavras que eu repito...
Não são palavras. São noções.
- A noção de ausência é importante. Faz todo o sentido que na banda sonora de «Underground – Era uma Vez um País», do Kusturica _ um filme incrível, não só bom enquanto criação cinematográfica, mas enquanto reflexão sobre a guerra_ a seguir ao tema mais ruidoso e que simboliza toda a violência da guerra civil, apareça um tema da Cesária, lindíssimo, chamado «Ausência». Ausência é uma coisa diferente de exílio. Exílio é estar num sítio com o sofrimento da memória de outro sítio. Podíamos codificar isto com palavras como «saudade» ou com a expressão do António Variações «Estou além». Mas estar num sítio que não nos pertence ainda é ter uma cartografia, uma posição. A ausência é não ter direito a sítio.
Ter um espaço, como ter uma língua, são patrimónios preciosos. Porque são aqueles que nos fornecem referências.
- Mas fornecem-nos prisões, também. A língua fornece-nos um instrumento de pensamento, muito mais importante até do que um instrumento de comunicação. Não posso fingir que penso em qualquer outra língua como em português. Mas também é verdade que podemos expandir identidades, alargar territórios através de outras línguas.
Sim, mas já são migrações.
- São exílios ou ausências.
Será sempre uma tradução. Por mais fluente que se seja na outra língua, é sempre uma tradução da língua materna, não é?
- Não tem que ser uma tradução. Pode ser um acrescento. É por isso que acho tão interessante o processo de formação dos crioulos. São algo que acrescenta uma identidade ou que a duplica, às vezes de uma forma esquizofrénica. Não reduzem aquela de onde se parte. Recentemente estive a trabalhar num conto para a «Nova Tabacaria», da Casa Fernando Pessoa; ficciono uma presença de vários heterónimos do Fernando Pessoa em Cabo Verde. Esse personagem é já um heterónimo da 3ª geração, que encontro no Mindelo em 2003, e que diz: «As minhas pátrias são as minhas ilhas».
É o Eu estilhaçado, disseminado pelos diferentes espaços físicos?
- Não estilhaçado. Acrescentado. Num processo de enriquecimento. E por isso a história está no Mindelo. Porque o crioulo de São Vicente foi construído e empurrado por uma coisa tão simples como o Porto Grande do Mindelo, importantíssimo em todo o tráfego comercial do Atlântico, entre a Europa, América do Sul e África; implicava a passagem de pessoas de origem portuguesa, alemã, italiana, holandesa, judeus.
Essa multiplicidade de proveniências deixou marca na língua que é hoje falada, é isso?
- É. Isso não é um processo de exílio ou perda de pátria; é um processo de construção ou alargamento de pátrias. Há muitos portugueses que olham para o crioulo guineense ou cabo-verdeano como se se tratasse de um português mal falado. Isto é um insulto e uma imbecilidade pura. É não perceber os processos complexos e muito ricos de criação de uma outra língua a partir da nossa.
Lembrei-me de cruzar a ideia de tangencial com as epígrafes da «Baía dos Tigres» e do «Atlântico»...
- Deixe-me só interrompê-la. Quando falo de tangencial e de cartografia e de imagens, lembro-me por exemplo de como são bonitos, embora redutores, livros que antes se faziam, sobretudo nos séculos XVIII e XIX. Roteiros, por exemplo, da costa africana, feitos com ilustrações panorâmicas, muito magras na altura, muito compridas, quase narrativas. O livro era o somatório de imagens, que eram colhidas de um ponto exterior àqueles sítios. Era fachada dos sítios. Era uma cartografia de passagem.
E nisso há uma ausência de tridimensionalidade. Para si, que procura a espessura humana que não consta das cartografias, não é uma frustração imensa, essa ausência de tridimensionalidade?
- Digo que é redutor porque implica um desconhecimento de toda a cartografia que está para dentro de terra. Mas isto, voltando ao «Atlântico», tem a ver com algo que é intrínseco à experiência marítima e ao olhar do marinheiro, que é um olhar tangencial. Há uma espécie de pátria comum da gente dos marinheiros; é um território que não existe, feito de rotas, rotas que se interseptam. Essa cartografia de toca e foge, mas de um toca que marca, tentei guardá-la nas histórias do «Atlântico». A presença do mar não é porque todas as histórias se passam no barco, mas porque há esta intimidade marítima.
«Atlântico» está atravessado por naufrágios, reais ou metafóricos, e ressurreições. Cada um dos personagens, de maneiras diferentes, experimenta um naufrágio.
- Há vários tipos de morte. Há a morte por crucificação de um marinheiro. Há a morte por genocídio. Eu nunca fui a Israel, nunca conheci nenhum sobrevivente do Holocausto, mas estive no Ruanda depois do genocídio. Percebi que uma parte deles, que era a sua identidade, foi morta. Essa é a desgraça do genocídio. Pode haver 1 milhão ou 10 milhões ou 20 milhões que sobrevivam biologicamente. Mas já morreram. Morreu um modelo de sociedade, de relações, uma grelha cultural. O genocídio mata, em última análise, a memória e a linguagem. Não é por acaso que no pós-Holocausto dos judeus, na pós-Solução Final no Cambodja, ou no pós-Ruanda em 1994, encontramos uma coisa comum: uma falta de verbo. Há uma rarefacção das palavras de quem sobrevive.
Está a falar num sentido real ou metafórico?
- Real, também. É difícil encontrar palavras para nomear, explicar aquilo que já nos matou. Essa é uma das violências maiores do genocídio e que define a máquina do genocídio.
Uma das mais partes mais fortes do seu livro é justamente aquela em que se procura «a» palavra. Procura-se o verbo como se se procurasse a essência. A ideia de nomear significa uma primeira conexão com o exterior.
- É um poder incrível, um poder original, é quase um poder divino. Nós damos um nome.
A sua filha Inês esteve para chamar-se Sara. Decidiu mudar-lhe o nome quando realizava a viagem que resultou na «Baía dos Tigres», não foi?
- Foi. O nome mudou na minha cabeça algures na Zâmbia, dentro de um autocarro. Por razão nenhuma. Mas era óbvio que ela só podia chamar-se Inês.
Era óbvio como?
- Na altura foi óbvio. Como é que escolhemos os nomes? É angustiante porque os nossos nomes deixaram de ter significado etimológico.
Ou religioso.
- Religioso, ritualizado. Ainda hoje estava a ler um texto lindíssimo da Alexandra Lucas Coelho [jornal Público]; no Curdistão turco um pai fala dos seus vários filhos, e o nome de um deles significa «água que corre» ou «água que serpenteia». Perdemos isso.
Há um peso simbólico que as palavras, não só os nomes mas as palavras, vão perdendo. Vão sendo desinvestidas dos seus múltiplos sentidos, de significação.
- Porque as pessoas também desaprendem as palavras, desaprendem o uso, ou falam-nas mal. Agora que estamos em tempo de guerra, o exemplo clássico é despoletar. Despoletar é desactivar. Despoletar a guerra seria – em sonhos, neste momento – evitar a guerra e não começá-la. Há uma erosão da aprendizagem da língua, e do pensamento que isso possibilita.
Foi fundamental aprender palavras com um pai e uma mãe que são professores primários?
- Foi.
Para começar, e já que falamos da importância dos nomes, como é que eles se chamam?
- Manuel e Hermínia. Sobretudo num meio rural como aquele de onde venho, rural muito rural, fazia diferença ter pais que usam bem a linguagem, e não só de forma gramaticalmente correcta, mas também sabendo o valor de outros patamares, empurrando-me para outros patamares. Era importante que os meus pais tivessem em casa a biblioteca que tinham. Faz muita diferença conviver com livros, ter carinho pelas folhas e pelo que lá está escrito.
Como é que aprendeu a ler?
- Não me lembro. Tenho uma memória péssima. Senil. Lembro-me de muito poucas coisas, sobretudo da infância.
Mas aprendeu com os outros meninos na escola ou aprendeu em casa?
- Acho que aprendi com os outros meninos na escola. Os meus pais sempre tiveram um escrúpulo enorme em não criar distorções que tivessem a ver com o facto de serem professores do ensino primário. Sempre os incomodou que o processo de aprendizagem fosse aldrabado porque eu tinha condições excepcionalmente melhores. Sempre tiveram uma aversão ao ensino privado, que eu também tenho. É saudável crescer num ensino público onde, pelo menos à partida, todos os alunos são iguais e partilham de métodos e programas que não são a título nenhum excepcional.
Vai querer ensinar as suas filhas a ler ou vai fazer como os seus pais?
- Ser pai, em primeiro lugar, é arriscar impôr uma data de sonhos aos filhos.
Impôr?
- Impôr sonhos. Há sempre a tentação que emendem ou melhorem todos os sonhos que não concretizámos. É inevitável que aconteça, mesmo que depois se mantenha uma distância saudável. Quanto ao ensinar-lhes a ler, não penso que as vá ensinar. Espero que tenham bons professores para isso. Tentarei que aprendam a ler no sentido de gozarem com a leitura, de sentirem que os livros são sempre pequenas ou grandes janelas para sonhos, que as podem enriquecer, que as podem melhorar como pessoas.
Frequentemente os pais sonham através dos filhos.
- Eu continuo a sonhar os meus sonhos. Não há sonhos frustrados. Felizmente não preciso que as minhas filhas concretizem os meus sonhos.
Não está ainda desesperançado, depois de assistir a tanto horror. O que é óptimo. Como é que se chama a sua segunda filha?
- Violeta. Há coisas muito mais importantes para ensinar aos filhos do que ensinar a ler e a contar. E aí, sou também muito cartográfico: gostaria que conseguissem aprender que estão no mundo. Que aprendessem a estar disponíveis para os outros. Para que acontecessem coisas. E isso implica o prazer da leitura ou da viagem. Ninguém lê sem curiosidade ou sem sede.
Um pai pode ensinar o significado da palavra disponibilidade. Pode até ensinar a escrever disponibilidade. Mas o que está contido na palavra disponibilidade...
- Mas é a isso que me refiro. Isso não sei se se pode passar. Diria que queria ensinar às minhas filhas disponibilidade, curiosidade, uma data de coisas boas. Será que as tenho?, será que é preciso tê-las para as ensinar? Está a fazer-me pensar nisso agora. Nunca pensei nisto assim.
Disponibilidade e curiosidade são uma base. Mas muitas vezes existe um desfasamento entre a tematização de uma palavra e a vivência dessa palavra.
- Ensinar a tolerância, por exemplo, acho que é terrivelmente simples. Seja a um indivíduo, ou ainda mais a uma criança, ou a uma sociedade inteira. Até conheci gente, em Moçambique ou em Angola, cuja profissão era ensinar tolerância.
Como?
- Através da criação de espaços sociais, de tempo para discussão, para se ser confrontado com opiniões diferentes. Normalmente quando existe um conflito, numa situação extrema, as pessoas entrincheiram-se nas suas verdades, nas suas identidades, verdadeiras ou falsas, e não estão dispostas a discuti-las. A guerra é a materialização dessa recusa.
É a incomunicação absoluta?
- É a falta de linguagem. É a recusa a ser questionado por outra linguagem. Ou o desejo enorme de impôr outra linguagem (a nossa), de impôr outras palavras (as nossas). A guerra é a imposição violenta de uma narrativa. Não é por acaso que, no fim de cada guerra, há uma versão do vencedor.
Que é tida como verdadeira. O elemento verdade é aqui fundamental.
- É o direito a ocupar a cadeira da verdade. Há uma narrativa com que todos crescemos da Segunda Guerra Mundial. Uma das coisas interessantes de estar a viver na Alemanha é descobrir outras narrativas – e não estou a falar de outras versões ideológicas, de revisionismo, de negação do Holocausto. Outras palavras para narrar a mesma coisa. Há palavras do alemão que carregam tanto mal, que faziam parte da narrativa nazi, que desapareceram da linguagem. Voltando à guerra como confronto de linguagens ou como negação absoluta da linguagem, o conflito militar pode referir-se em primeiro lugar a isso: a versões, a palavras, ao direito de impôr um sítio no mapa.
Porque é que o seu intuito de vida foi sempre avançar “para lá de”? Para lá do horizonte, para lá da previsibilidade das palavras, para lá da pura factualidade.
- Há mecanismos de curiosidade e insaciabilidade que implicam mais e mais descoberta. É uma espécie de resgate nunca completo da ignorância. Eu considero-me um homem bastante ignorante.
Está a dizer isso com que tom?
- Com um tom muito lúcido. Sou, sou ignorante em relação a muitas coisas. Espero ser menos, cada vez menos. Uma das melhores coisas do «Atlântico» é tudo aquilo que me obrigou a investigar e a saber que não sabia antes. História da Pintura, por exemplo; implicou muitas leituras porque um dos personagens principais é traficante de arte e porque o motor da história é o tráfico de arte nazi em toda a Europa durante a Segunda Guerra Mundial. Obrigou-me a conhecer melhor a obra do Van Gogh, a obra do Gauguin.
Existiu entre os dois pintores uma relação inflamada. Inflamada também é uma palavra que vai bem consigo... Parecem irmãos desavindos, não é?
- Sim. O período da casa amarela é uma guerra civil. Eles estavam muito próximos um do outro, foi por isso que se zangaram tanto. Como aconteceu nos Balcãs, ou em Angola. É o tipo de conflito mais violento e mais doloroso. O confronto implica uma terra queimada. Não resta nada depois disso.
O facto de estarem muito próximos fá-los perceber intrinsecamente o outro. É mais fácil perfurar e ir ao ponto nevrálgico.
- Conhecemos bastante bem, sabemos onde dói. Algo que estes personagens do «Atlântico» sabem, é que ninguém nos pode fazer tanto mal como quem nos ama mais. E isso tem a ver com a proximidade quase patológica de qualquer relação, (conjugal, fraternal, paternal, maternal); oferece também a possibilidade de maior violência.
Quanto à ignorância...
- É uma constatação de quanto pode escapar, de quantas coisas não nos chegam. O tempo que temos para descobrir, avançar, ir para lá de, é muito reduzido. O maior privilégio da viagem que fiz para a «Baía dos Tigres» foi descobrir. Foi um privilégio que dei a mim próprio. Tive a intuição, (confirmada com a viagem e a reflexão sobre a viagem), de que precisava de criar tempo. Precisava de cair dentro desse tempo e desse espaço para avançar nele. Esse é um privilégio que raramente nos concedemos.
Porque é que a viagem aconteceu naquela altura, (entre Junho e Setembro de 97)?
- Houve condições práticas que a viabilizaram, depois de vários anos a pensar nela. Consegui o apoio do Centro Nacional de Cultura, que me permitiu estar cinco meses fora do Público. A viagem, do ponto vista financeiro, custou muito mais do que a bolsa. Aliás, aprendi que com as bolsas ganha-se tempo, não se ganha dinheiro. Quem pensa que as bolsas são formas fáceis de ganhar dinheiro, está enganado. Uma bolsa é uma forma fácil de perder dinheiro, com a consciência, porém, de que se vai receber algo em troca.
O que recebe é tempo?
- Tempo e disponibilidade mental. Não é uma forma de parasitismo. Eu ganho muito menos dinheiro desde que saí do Público. Mas tenho o privilégio enorme de ter mais tempo para aquilo que quero fazer. Que é escrever, decidindo aquilo sobre o qual vou escrever, seja ficção, seja reportagem.
O dinheiro serve para quê, para viabilizar sonhos?
- Serve para viabilizar tempo. Ter tempo para pesquisar, descobrir, ir para o tal «para lá de». É preciso não ter pressa. O tempo é um luxo, custa caro.
Retornemos ao «para lá de» e à ignorância. Julgo que a ideia da ignorância vinha da insaciabilidade.
- Sim. O «para lá de» pode ser em termos intelectuais ou culturais. O privilégio da reportagem é possibilitar ir «para lá de» do ponto de vista humano. Se estou em Belgrado durante os bombardeamentos, se há uma situação que num curto espaço de tempo transforma a vida das pessoas, é interessante estar lá.
Desfeitos os laços da normalidade, o que é que muda?
- Percebemos os mecanismos do medo, da coragem, do ódio. Foi sempre sobre estas coisas que me interessou escrever. Acho um desperdício que um repórter passe 3 meses a dizer quantas saídas de F16 é que a NATO fez ou quantas bombas chegaram do Adriático. Eu estou interessado em saber que, ao fim de algumas semanas de bombardeamento, o amor passa a ser outra coisa. Lembro-me de uma entrevista a uma psicanalista a quem as pessoas contavam isso: já não dormiam paralelas, dormiam enroscadas umas nas outras, como se fossem fetos. Este tipo de coisas enriquece-me. Estava lá e venho diferente se o meu trabalho me obrigar a modificar-me. Se ficar 3 meses a escrever sobre F16, venho na mesma, e nem sequer mudei de sítio, não houve deslocação.
A ideia de deslocação, de mobilização, perpassa o «Atlântico». Naquele mapa podemos assistir a uma série de tangentes. O que dá uma espessura tridimensional àquilo são as histórias das pessoas. Mas o que faz com que esta aconteça é o facto de as pessoas se mobilizarem.
- No sentido de movimento ou no sentido de adesão?
Podem ser ambos os sentidos, mas pensava mais especificamente numa adesão às coisas.
- Se se refere a mobilização como contrário de indiferença, sim. Há paixão e há adesão, e há, às vezes, confronto. Há sobretudo o carinho da troca e da atenção.
A epígrafe do livro é de Amagatsu: «Por passatempo/tecendo sol e cinzas:/mariposas». Em que é que pensou? Porque é que é este?
- A epígrafe é um haiku japonês porque tem a ver com as coordenadas que quero sinalizar ao leitor. É uma pista cartográfica de orientação. Como nos aikai tradicionais, o que é mais importante, não é tanto o sentido lógico da leitura como a experiência da leitura e os estímulos quase sensoriais da leitura.
As aproximações metafóricas que cada um pode fazer?
- Aquilo que experimentamos de ler sol e cinzas, independentemente de haver alguma lógica que os relacione. É evidente que sol e cinzas me interessam também pela metáfora e polarização. É um livro para o qual é preciso estar disponível, não para ler com a avidez de saber a história, mas com abertura para a experiência de entrar num livro que implica uma exibição cinematográfica, dramaturgia, banda sonora, implica estarmos num museu. Não há nenhum desfecho da história. À semelhança da «Baía dos Tigres», em que o pretexto era uma viagem em que nunca cheguei a lado nenhum. A viagem nunca acabou.
É para mim evidente a relação entre estes dois livros. Como se as grandes coordenadas, (as palavras), fossem as mesmas: Sentido, Viagem, Demanda, Intersecção.
- E deriva.
Como é que o autor faz a ligação entre uma obra e outra? Aparentemente são muito diferentes. Uma é uma viagem com uma base documental e assente na realidade; é terra. A outra é pura ficção que decorre num espaço imaginado; é mar.
- Em termos de técnica de escrita, há coisas que eram experimentadas ao de leve na «Baía dos Tigres» que me interessou explorar. Implica uma grande liberdade de escrita. Implica também um grande risco. Depois de escrever o «Atlântico» continuo na dúvida se sei escrever um romance, e se quero. Se calhar não quero escrever romances. Quero escrever, que é diferente. E aí pode haver uma grande incompreensão entre quem escreve e quem lê.
Não quer escrever romances ortodoxos, ponto.
- Não sei se me interessa escrever romances no sentido tradicional do termo. Até porque o romance está demasiado ligado ao suporte, o papel, que é estreito, de certa forma atávico. Tentei conceder-me a liberdade teórica de fazer um livro que finge ser um espectáculo. Por isso, para mim e para o João Francisco, era óbvio que isto tinha de se chamar «Romance Fotográfico».
O texto viveria sem as imagens?
- Não faz para nós sentido que aquela sequência de fotos respire por si mesma, e o texto precisa das fotografias como espaços que induzem poesia, que abrem à capacidade do leitor sonhar. O «Atlântico» é um puzzle que já está completo. Mas nas cicatrizes, é possível acrescentar mais e mais peças. Tem a maleabilidade de aceitar mais peças.
Qual é a imagem final do puzzle?
- É um puzzle de linhas, de tangentes e de cicatrizes. Não podemos esquecer-nos que aquela imagem é formada por estilhaços, por fragmentos. Não sei se consigo encontrar um rosto mais forte que outros para o livro. A fotografia onde perdi mais tempo a olhar é um grande plano dos dedos dos pés.
É uma foto inesquecível. O que é que têm os pés, então?
- Aqueles pés, fotografados daquela maneira… É a fotografia que tem um erotismo mais latente e, ao mesmo tempo, são apenas 10 dedos pintados, com uma meia de renda por cima. O conjunto é perturbante.
É extraordinário que essa seja a sua foto... Porque não há vestígio nos «Tigres» desse erotismo sofisticado.
- Pois não. Mas, concordando consigo, o que há nos «Tigres»?
Há carne crua.
- O que há é uma experiência de corpo feito de lixo. Consigo encontrar beleza nisso, não consigo encontrar erotismo nisso. Metaforizando, nos «Tigres» não há dois pés com unhas pintadas porque nos «Tigres» os pés não estão lá, já foram comidos. Teríamos algo também muito intenso, visual e sensorialmente, mas que tem um lado de horror. Em Angola há um novo corpo humano. A normalidade do corpo não é feita apenas de pele, carne e osso, é feita dos lixos da guerra. De próteses que podem ser formadas de um bocado de pneu, de madeira. A normalidade do corpo foi destruída, massacrada. Mas há outra. E isso tem a ver com uma capacidade de reinvenção e sobrevivência que caracteriza Angola e os angolanos, e que é notável, e que não encontrei nos outros sítios.
Não só a fotografia como a realidade romântica dessa fotografia não poderiam constar dos «Tigres» porque essa realidade não existe no espaço dos Tigres?
- O «Atlântico» é um livro romântico. Os «Tigres» não, porque não encontro romantismo possível na guerra. Não há beleza na guerra. É muito enervante assistir com frequência a uma estetização da guerra. No jornalismo ou no cinema. Contraponho a esse tipo de estetização da guerra o «Apocalipse Now», do Coppola, onde há um trabalho sobre a intimidade da guerra. O Vietnam é um pretexto. Podia ser o Zaire.
Quer dizer que a intimidade da guerra não será tão diferente no Zaire, no Vietnam, onde seja?
- Claro. É um filme sobre a desumanização da guerra e sobre o horror. O Coppola percebeu demasiado bem «O Coração das Trevas» do Conrad e percebeu demasiado bem a guerra para estar a estetizá-la.
O Adelino Gomes falava dos «Tigres» como viagem à pátria do horror. O horror será então a última pátria?
- O horror é a última concretização do «para lá de».
Avançando, avançando, avançando…
- É isso que encontro.
Foi isso que encontrou sempre?
- Na viagem dos «Tigres», sim. A única coisa que me interessava partilhar era esse processo iniciático de ir tão para lá de uma normalidade e de uma grelha moral, que quase se corre o risco de não se voltar inteiro. Esta possibilidade de nos perdermos indo demasiado longe é atraente e assustadora. Foi uma coisa que tive de aprender na viagem. Podia ter lido, mas não lhe poderia tocar se não a tivesse vivido. Vivemos felizmente demasiado longe para lhe podermos tocar. Chame-lhe perversão – talvez também o seja –, mas é interessante podermos aproximar-nos desse horror. Quanto mais não seja para contá-lo.
Qual é a importância do contá-lo?
- É quase uma justificação…
Eu li aqui: «Sem testemunhas ficaríamos para trás».
- Isso está?
No «Atlântico». «Deus precisava de Adão para ter alguém que acreditasse nele».
- Se não há ninguém a ver, não acontece.
E então: vir para trás, contar, resgatar.
- As narrativas implicam trânsitos. É trágico quando todos os canais de troca são cortados. Interessava-me nos «Tigres» analisar um país onde seres humanos estão completamente cortados das trocas. Vivem numa insularidade absoluta. Isto acontece por ironia numa época em que andamos todos obcecados com um novo paradigma civilizacional, que é o da rede. A internet é ao mesmo tempo a metáfora e a materialização disso.
Mas não será nada por acaso que, apesar da materialização da rede, o problema da insularidade, ou seja, da solidão, se põe cada vez mais.
- Quando falo de insularidade absoluta, falo de podermos cortar todos os fluxos que compõem o indivíduo como pessoa humana. Cultura, educação, etnicidade, memória, grupo, família, afectos, religião, ideologia. A insularidade significa também uma ausência de troca de palavras. Quando falo de narrativas, falo do que nos pode pôr em relação com o outro, com o diferente, com o que está do outro lado. Hoje, as narrativas de que dispomos, são muito poucas.
Quando fez a viagem, quanto tempo demorou a desligar-se da lógica do nosso tempo e a imergir nesse outro tempo muito próprio?
- Aqueles três meses significaram um distanciamento progressivo. Primeiro deixa-se a normalidade de tudo o que está à nossa volta. Depois a paisagem é cada vez mais estranha, rarefeita. Como se o mapa tivesse sido comido. É a sensação de estar a navegar no vácuo. É por isso que sempre que me mexo na «Baía dos Tigres», é uma viagem através da noite.
Deixe-me abrir um parêntesis para uma das passagens mais violentas que encontrei no «Atlântico»: «Dá-me a lanterna, não quero vomitar de noite».
- Isso é um diálogo às cegas, entre o judeu argelino e o oficial nazi.
Quer dizer assistir-se?, conhecer-se na dor?
- Ele precisava de ver o seu nojo.
Precisava de ir ao limite, precisava de ir até ao fim.
- Confesso que se me perguntar porque é que escrevi a maior parte das imagens e metáforas dos meus livros, não lhe saberia dizer.
Voltando aos «Tigres», a Baía dos Tigres foi o sítio onde não foi.
- Exacto. O único dos importantes onde não consegui ir.
Tinha realmente a intenção de ir à Baía dos Tigres?
- Eu gostava de ir à Baía dos Tigres. É o último sítio na costa angolana, já a meio do deserto. No início dos anos 90 houve uma pequena expedição à Baía dos Tigres. Falaram-me de um sítio fantasmagórico, onde a população tinha saído de um dia para o outro e a areia tinha invadido as casas. Falaram-me de casas onde a mesa continuava posta, 30 anos depois. Fascinou-me o sítio dos homens estar intacto na ausência dos homens. Comecei a imaginar se haveria livros, que livros seriam.
O que é que esses livros diriam das pessoas que habitaram aquelas casas.
- Encontrar livros em qualquer parte é bom. Mas às vezes é fabuloso. Por exemplo, encontrar um livro do Pato Donald num infantário que foi destruído por um obus. Isso resgata-nos e limpa-nos sobre a destruição. E não são só os livros. A beleza resgata-nos da desgraça mais completa.
É isso que permite voltar?
- Sim. É isso que permite manter um fio de contacto quando parece que o chão nos começa a faltar debaixo dos pés. A beleza pode ser uma coisa tão ridícula como poder escutar italiano através de multibandas. Houve uma altura em que era a única coisa que podia consumir. Tinham-me tirado tudo o resto. Foi a parte mais difícil da viagem, em que estive várias vezes detido, digamos assim, pela UNITA. Não me podia mexer, não podia receber pessoas, não podia falar, não podia fotografar, pelo menos podia evadir-me daquele esterco, do esterco que aqueles chefes da guerra representavam, do lixo que já tinha consumido durante a viagem.
Deixe-me voltar à Baía dos Tigres. Não sei bem como é a sua fobia em relação aos cães...
- É uma fobia. Funciona sem que possamos controlar.
A Baía dos Tigres é também o espaço mítico onde, por falta de água, os cães se tornaram absolutamente ferozes.
- E o espaço metafórico para aquilo que caracterizava o tipo de violência em Angola.
O horror último?
- Sim. É uma espécie de condições para a perpetuação da violência.
Porque a moeda de troca era apenas o ódio?
- É. É o mecanismo normal, quotidiano de relação, e isso ajudou a perpetuar aquela guerra.
Essa Baía, onde os cães são ferozes, é o reduto final. Há uma ligação metafórica entre o espaço da sua fobia e aquele que sintetiza as entranhas e o horror da guerra? A sua fobia é a sua parte incontrolável, que contém os seus fantasmas. E foi à procura dos fantasmas dos outros.
- Eu não ia em concreto à procura de nada. Esse era um dos perigos da viagem: uma espécie de deriva sem saída. Mas é assim que se deve viajar. Viajar é o privilégio de estar ali.
Sim, mas ainda que haja uma ausência de intenção…
- Pode parecer-lhe uma diletância, mas é isso que é importante. De todas as viagens que o [Bruce] Chatwin fez e escreveu, quando escreveu sobre elas, escreveu as maiores mentiras. Lendo a magnífica biografia do Nicholas Shakespeare sobre o Chatwin, fica-se a perceber o mentiroso que ele era. No meu caso, fiquei a gostar ainda mais dele, da forma genial como inventava a sua própria biografia.
Tento estabelecer uma ligação subliminar entre motivos não expressos para ir à Baía dos Tigres e uma confrontação com as suas últimas partes. Já fez esta associação entre a sua canifobia e o facto de não ter ido à Baía?
- Nunca tinha pensado nisso. Pode haver aí um lençol subterrâneo, mas nunca tinha ligado as duas coisas. Os cães voltam a aparecer no «Atlântico», como instrumentos de vivência.
E de não consciência. Faz-se um quase paralelo entre a maldade das crianças e a dos cães. Há uma ausência de intenção, uma inconsciência, e uma consequente desresponsabilização.
- Isso é o mal em estado puro, no caso das crianças. A crueldade infantil é muito crua porque é muito honesta.
Claro. Não é nada burilada, não há sofisticação alguma.
- Não tem filtros, incluindo os da educação e os que acumulamos quando crescemos.
Com os cães, é a mesma coisa?
- A narradora diz isso. Não é forçosamente aquilo que eu penso.
Quando se fez à viagem, não estava prometido que regressasse vivo, como se escreve na entrada dos «Tigres». No fundo, foi um depositar-se nas mãos do acaso?
- Sim. Visto que me obriga a pensar nessa relação, nos «Tigres» os cães são a barreira geográfica e metafórica entre o território da violência e o território da normalidade.
É muito novo para ter...
- Tão pouco cabelo?
Para ter vivido tudo o que viveu e para escrever como escreve.
- Nunca ninguém me insultou de forma tão subtil! Envelheci antes de tempo.
Não é envelhecimento. É amadurecimento. É como se já tivesse visto tudo, vivido tudo. Continua curioso, mesmo assim?
- Somos os nossos espectadores menos lúcidos. Não sei se se trata de amadurecimento ou não. É obvio que experimentei muitas coisas, com tanta intensidade, num tão curto espaço de tempo, e isso foi um privilégio. Que tem também a ver com a profissão e com a intensidade com que fui obrigado a segui-la. Há coisas que fazem hoje parte de mim e que não teria se tivesse seguido outra profissão, se tivesse ido para outros sítios, se tivesse conhecido pessoas diferentes.
Se as tangentes fossem outras.
- Falo de poder estar em sítios onde não é muito comum ir, mas sobretudo em situações de grande honestidade. Numa situação de emergência, quando perdemos muitas das nossas âncoras, ficamos muito mais despidos. Somos mais honestos na coragem, na cobardia, na ânsia, na tranquilidade, no ódio, na generosidade. Poder acrescentar sítios à nossa cartografia, poder pôr pessoas no nosso atlas, (são as folhas desse atlas que nos distinguem e nos modificam), é um privilégio. A insaciedade tem a ver com acrescentar folhas ao meu atlas. Há uma necessidade, que nunca é saciada, de viver mais pessoas e de as viver intensamente. Visualizo isso como uma forma de expandir territórios.
Publicado origininalmente no DNa do Diário de Notícias em 2003