Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Anabela Mota Ribeiro

António Mota

31.08.14

Ele chega com uns minutos de atraso, talvez dez. Estende a mão, pede desculpa e chama a secretária ao gabinete. Depois começamos. Falamos quase duas horas. Uma única interrupção: quando a filha telefona.

Estava um dia cor de chumbo, no Porto. O rio vê-se do outro lado da janela. Não nos demorámos nestas contemplações. Falámos de tudo. Do pai, da empresa, de Jorge Coelho, do que é que leva um homem a passar a pasta aos 53 anos.

(Sim, ele só tem 55 anos. Porque é que parece mais velho?)

Falámos de negócios, de adjudicações, da sucessão. Do homem e do seu império. Do poder e da influência. Do que custa perder.

Tudo num registo terra a terra. Ou seja, sem palavras pomposas. Mas com duplo sentido, amiúde.

O Mota, o Eng. Mota, é tão famoso quanto a Mota Engil, a maior construtora portuguesa. (Também se falou da fusão com a Engil). Se se googlar o nome, tudo o que aparece diz respeito à empresa. Na entrevista, ele também descai muito para a empresa. Basta ver o número de vezes que aparecem palavras como “desenvolvimento”, “diversificação”, “ambição”.

Também diz muito, a começar as frases: “Vamos lá ver assim uma coisa”. É um modo de falar. É um homem simples, que não precisa de chamar a atenção sobre si. É um homem que ama o seu pai, mais do que tudo. Tudo é, ainda, em nome do pai?

António Mota, numa entrevista raríssima, num retrato de corpo inteiro: ei-lo.  

 

Quando é que isto deixou de ser uma empresa familiar?

Nunca. Fez a sua abertura ao mercado, fez um enquadramento de gestão cada vez mais profissionalizada, deu passos significativos nos últimos dois anos. Há que preparar a terceira geração; é bom que tenham apoios que não são só os da família. Uma empresa familiar define-se por haver referências. Aqui há uma muito forte, a do fundador. Há a referência de um accionista que está sempre presente, nos bons e nos maus momentos, junto dos gestores. E há uma cultura que, além de ser empresarial, voltada para os resultados, é uma cultura humanista. Vai ser reforçada na criação da Fundação Manuel António Mota.

 

Na recepção, está o busto do seu pai, fundador da empresa. Com uma pequena orquídea, ao lado. Um pormenor algo sentimental numa empresa de dimensão internacional.

Há muitas famílias que trabalham aqui: o pai, os filhos. Fazem os cursos, os estágios, trabalham lá fora. Esse espírito nunca se perdeu. É uma luta que queremos ter: que a cultura Mota Engil, criada pelo meu pai na Mota e Companhia, perdure no tempo. Chamo gestão profissionalizada à gestão sem interferência dos accionistas, no dia a dia. Apesar de as minhas irmãs e eu estarmos como [administradores] não-executivos, estamos presentes nalgumas tarefas, que têm que ver com a defesa dessa cultura.

 

[telemóvel toca:

“Filha, agora estou a dar uma entrevista. Está tudo bem contigo? Beijinhos.

É a minha filha que está na obra do Douro interior”]

 

 

O gabinete ao lado é da sua irmã mais velha. É quase igual ao seu. Num e noutro são constantes as referências ao seu pai.

Aquele era o meu gabinete no tempo do meu pai, e o do meu pai era este. Foi o momento mais difícil da minha vida. Demorou-me três meses a passar dali para cá.

 

Conte-me como foi.

Ahhhhh… O momento mais difícil da minha vida foi ter de vir para este escritório. [comove-se]

 

Já lá vão 15 anos.

A família vai crescendo, as coisas vão-se compensando. Mas a referência do meu pai é muito forte, ainda. E não é só connosco.

 

Pequeno, lembra-se de ter querido ser como ele? Para já, são muito parecidos fisicamente.

Vivi em Amarante até aos 15 anos. Estudei no Colégio de S. Gonçalo, um belíssimo colégio. O meu pau passava meio ano fora, meio ano em casa. A actividade da Mota e Companhia foi exclusivamente em Angola.

 

Porquê?

Em 1946, com uma diferença de 15 dias, foram fundadas duas empresas. A Construtora do Tâmega e a Mota e Companhia. Os sócios eram os mesmos (com ligeiras alterações). Eram duas famílias, a Mota e a Fonseca. Tinham objectivos diferentes. A Construtora do Tâmega para fazer obras públicas, construção; e a Mota e Companhia para fazer madeiras. Com a criação das duas empresas, a Tâmega ficou a trabalhar em Portugal, a Mota em Angola. A Mota estabeleceu a sua actividade em Angola em 1947, é o registo comercial número dois de Cabinda. A partir de 52 passou a dedicar-se às obras públicas, tendo feito parte de um consórcio que ganhou o concurso do aeroporto de Luanda.   

 

[O pai de António Mota era cunhado de Joaquim da Fonseca. António Mota só revela durante as fotografias que é casado com uma Fonseca; mantém-se, de certo modo, a ligação entre as duas famílias e empresas]

 

Quando é que se expande para Portugal?

Até 1975, a Mota e Companhia só trabalhou em Angola. Nessa altura, começa a desenvolver uma actividade em Portugal e noutros países africanos.

 

Porque é que o seu pai se entendia tão bem com Angola?

As referências a Angola vinham da sua juventude. Marcou-o muito uma Feira, aqui no Porto. Não sei como se chamava exactamente, mas era uma grande exposição sobre África. Vivia em Codeçoso, Celorico de Basto, desenvolvia a sua actividade na Serra do Marão, e na primeira oportunidade quis ir para Angola. Foi, foi criando raízes, as amizades fortificaram. Fomos sempre entendidos como sendo uma empresa angolana, sem problemas com o governo ou com os movimentos de libertação. À data da independência de Angola, fomos dos poucos grupos que ficaram a trabalhar lá.

 

Quando é que tudo começou?

Em 1946. Eu não era ainda nascido. Nasci em 54. Lembro-me das vindas dele e das ausências. Lembro-me de a minha mãe o acompanhar de vez em quando e de nós, os quatro, ficarmos em casa com uma governanta, que ainda hoje é viva. Qualquer um de nós ia a Angola nas férias.

 

Cresceu também a sonhar com Angola?

Cresci. Mas a minha afinidade com Angola fez-se depois de começar a trabalhar. Fui lá em 1977, numa altura difícil. Houve uma desagregação accionista, na altura.

 

Decorrente, ainda, da Revolução?

Decorrente, mais, da questão angolana. Face aos problemas de guerra que existiam, às convulsões, os outros sócios queriam abandonar o mercado angolano. O meu pai, não. E por isso acabou por comprar as quotas dos restantes e ficar dono da Mota e Companhia. Nunca deixámos de trabalhar, mas não era fácil. Era preciso retomar dimensão, não tínhamos actividade em Portugal, internacionalizámos a [actividade] para a Namíbia. Muitos dos quadros foram para o Brasil, vieram para Portugal. Foi preciso reconstituir a empresa e praticamente recomeçar do zero.

 

Entrou nessa altura?

Sim. Acabei de me formar com 23 anos, e depois tive que andar muito depressa [sorriso].

 

Qual era a urgência?

Vamos lá ver assim uma coisa: o meu pai, quando eu nasci, já tinha 40 e tal anos… O meu pai casou tarde. Começou a trabalhar muito cedo. Filho de uma família de agricultores, estudava e trabalhava ao mesmo tempo. Uma irmã dele casou com Joaquim da Fonseca, que tinha uma actividade empresarial na construção e nas minas. O meu pai começou a trabalhar com ele, foi-se desenvolvendo. Depois veio a [Segunda Grande] Guerra. Se calhar não teve tempo para casar… A minha mãe era uma jovem que tinha feito o 10º ano no colégio de Amarante. Casaram. Com uma diferença de idades muito grande: 13 anos.

 

A sua mãe tinha um outro mundo intelectual. Consegue perceber o fascínio dela por ele?

Quem conheceu o meu pai, percebe esse fascínio. Era um homem de pouca formação, tinha apenas a quarta classe. Ganhou uma cultura enorme ao longo da vida. Era afável, aberto, humano.

 

Como é que ele se moldou assim? É preciso pensar no que era Codeçoso, nos anos 40…

Entre as duas Guerras, formou-se muita gente, com pouca instrução mas muita vontade de trabalhar. Com muita força. Fizeram o curso da vida. O meu pai era aquilo a que hoje chamam workaholic: estava permanentemente a trabalhar. Quando ganhou capacidade económica, foi tendo os seus hobbies. O passatempo do meu pai era regressar à agricultura, plantar novas vinhas e mata. Tinha a ambição de dar à mulher e aos filhos o que ele não teve. Isso ficou nos filhos todos.

 

Que era preciso andar depressa, ter ambição?

É. O meu pai dizia que não nos deixava muito dinheiro: deixava-nos muito trabalho. Muito trabalho para fazer. O que as minhas irmãs e eu pensamos é deixar aos nossos filhos (entre nós temos dez) tanto trabalho quanto o pai nos deixou a nós. Que haja desafogo financeiro para as pessoas terem uma vida confortável, mas que, para continuar a ter essa vida desafogada, tenham que trabalhar. Que não seja dinheiro fácil.

 

Ou seja, quer deixar aos seus filhos perspectivas de crescimento.

Isso e trabalho. Estão todos, menos um, formados.

 

Há uma história que me possa contar e que ilustre na perfeição quem era o seu pai?

Conto-lhe o seguinte: fui sempre bom aluno. Desde o primeiro ano, porque estudava, e porque não era burro de todo, estive sempre no quadro de honra. Tinha pouco jeito para desenho e não gostava de francês. Houve um ano em que devo ter-me distraído… e não fiquei no quadro de honra. Fui aprender a escrever à máquina para o escritório, as férias todas.

 

Ainda sabe?

Ainda bato à máquina, sem olhar, e com os dedos todos, desde que [o teclado] seja HCESAR. Isto para dizer que o meu pai era muito exigente. Sabe que é muito difícil falar dele… São saudades. O meu pai criou entre os filhos um espírito de união elevado. Fez a distribuição das posições accionistas entre os filhos. E fê-la desproporcionada. Eu tenho uma quota maior do que qualquer uma das minhas irmãs.

 

Era o sucessor, na cabeça dele.

Era. Mas disse-me isto: “No dia em que as três estiverem contra ti, já perdeste”. Ou seja, para ter um controlo de mais de 50% do núcleo da família, preciso do apoio de uma das minhas irmãs. Números redondos: o meu pai distribuiu 22, 22, 22, 33. Depois fez a compensação às minhas irmãs com outras coisas. Quando o meu pai faleceu, as pessoas mais próximas disseram que nos íamos zangar rapidamente.

 

Os irmãos, entre si, depois do que o seu pai tinha estipulado?

É normal que os irmãos se desentendam.

 

Porque é que é normal? Pela cobiça? Pela ambição?

Acontece muitas vezes. Se for ver, há muitas empresas familiares, e depois um irmão acaba por se sobrepor aos outros. Acaba por comprar [as restantes participações], fica sozinho e leva o negócio para a frente. Aqui não aconteceu isso. Nós os quatro viemos trabalhar para a empresa, como executivos. Tivemos, como todas as famílias, momentos conturbados. Mas quando as coisas corriam mal, não havia discussões. Também disseram que nos íamos desentender quando comprámos a Engil. Não foi. Criámos a Mota Engil, que é o que é, com todos aqui dentro.

 

Ocorreu-lhe que podia ter outro destino, outra vida que não uma vida ligada à empresa?

Eu queria ser polícia! Eram os únicos que não tinham medo aos ladrões. Mas a partir da idade em que comecei a perceber as coisas, dez, 11 anos, quis ser engenheiro.

 

Ser engenheiro para acompanhar o pai?

Ser engenheiro para ser engenheiro. Tenho saudades de estar nas obras. Quando comecei a ter condições para passar fins de semana fora com os meus filhos, a primeira coisa que fiz foi ir ao Alentejo ver uma barragem no concelho do Alandroal – foi a primeira obra que a Mota e Companhia terminou em Portugal. Não é um papel que se mostra, não é uma história que se conta. Mostra-se a realidade, que fica. [pausa] Posso fumar um cigarro?

 

Está na sua casa.

O meu pai era um anti-tabagista. Eu mudei muitas vezes de marca até que decidi fumar Camel. O meu pai ainda era vivo. Chegou ao meu gabinete (eu não fumava à frente dele), estava lá o maço, virou-se para mim e disse: “Agora sim, vês a tua fotografia de todas as vezes que fumas”.

 

A imagem é a de um camelo, claro.

Nunca mais mudei de marca.

 

Tem adoração pelo seu pai.

Vamos lá.

 

Não houve momentos em que se perdeu? Sempre foi atinado?

Vivi em Amarante. Estive num colégio de padres e freiras, onde as minhas irmãs estiveram e saíram. Houve um padre que bateu na minha irmã mais velha e o meu pai bateu no padre! A mim, nunca me bateram. Quando entrei no colégio, as minhas irmãs já tinham saído. Sou o terceiro. Vim viver para o Porto quando as minhas irmãs vieram para a universidade. Com essa governanta. Fiz as loucuras que fazem todos os jovens. Umas loucuras moderadas, nunca fui de muitas extravagâncias. Mas perdi um ano na faculdade. Rédea solta, com algum dinheiro…

 

O seu pai era generoso na mesada?

O meu pai deu-me uma mesada até morrer! Era casado, tinha filhos, e continuava a receber a mesada. Porque sim. Quando acabámos o curso e casámos, estagnou a mesada, a todos, mas deu-no-la até morrer.

 

Consegue perceber porque é que ele fazia isso? Simbolicamente, o que é que estava por trás desse gesto?

Era uma questão de apoio. Era dizer: “Eu ainda existo”. “Eu preciso de vocês e vocês de mim”. Continuávamos a juntar-nos ao fim de semana, passávamos o Natal e a Páscoa com ele, em Amarante.

 

Dá uma mesada aos seus filhos?

Dou. Não estou à espera de morrer tão cedo [riso], mas faço como o meu pai. Estão a começar a trabalhar. A mais velha tem 29 anos, está casada, tem uma filha, é engenheira do ambiente. A segunda é engenheira civil (foi a que me ligou há bocadinho); já correu a empresa toda, inclusive esteve na Polónia sete meses. A terceira é formada em Belas Artes. O rapaz está a começar, acabou agora engenharia civil. 

 

Se posso saber, quanto dá de mesada? Para saber se falamos de uma coisa significativa ou simbólica.

Enquanto estiveram a estudar, cada um tinha uma verba que eu multiplicava todos os anos. Têm mesada desde os dez anos. Quando acabaram o curso, a mesada devia andar pelos 200 euros por mês.

 

Um bocado fona.

É. Mas tinham tudo pago. Depois de se formarem, para que possam ter a sua independência, têm um apoio mais significativo. E não pago mais nada. Não pago consertos de carros, nem seguros, nem gasolinas. Só pago a renda da casa e as viagens para o Porto para virem passar o fim de semana comigo. Todas as outras viagens, pagam eles. Dou-lhe um apoio, mas preferia não dizer de quanto é.

 

E o seu pai, dava-lhe um apoio deste tipo?

Nos anos 80, em média, cada um de nós recebia 20 contos (100 euros) por mês.

 

O que me interessa é saber do valor que dá ao dinheiro e de como se ensina a lidar com o dinheiro.

Os meus filhos tiveram tudo aquilo que deviam ter sem exageros. Estudaram em escolas boas. Fizeram o CLIP [Colégio Luso Internacional do Porto].

 

Pô-los numa escola internacional já a pensar no futuro?

Sim. A mais velha começou por frequentar o colégio da Opus Dei na Porto (o CLIP ainda não existia). Pu-los, sim, num colégio da Opus Dei. Porquê? Era o melhor colégio de que se falava no Porto. Mas retirei-os rapidamente. E retirei-os porque senti que havia alguma pressão… que não fazia sentido. Queria dar-lhes uma formação inglesa, que dominassem bem as línguas. Até porque eu senti essa dificuldade: faltou-me formação internacional, um estágio lá fora.

 

No CLIP, ou mesmo no colégio da Opus Dei, formavam desde cedo uma rede de contactos privilegiada. Apostou nisso, também? Há pouco disse que na reorganização da empresa, em 77, contou com os seus colegas de faculdade. Ou seja, os contactos vêm de trás.

Temos uma empresa muito focada no mercado internacional, e os contactos dos meus filhos têm servido para algumas coisas. Um conjunto de colegas, quer portugueses que foram estudar lá para foram, quer filhos de emigrantes, quer colegas de outras nacionalidades, estão a trabalhar connosco. Conhecem-nos. Eu conheci-os. Gostei deles. Ainda agora no Malawi: está o filho de um emigrante português que conhecemos por ter sido colega do meu filho. Foi dos melhores alunos da faculdade.

 

O que é que mais importa?, a confiança?, saber de onde é que a pessoa vem?

O mais importante é saber das potencialidades, da ambição. Acredito que o sucesso de uma empresa passa por duas coisas: experiência, que tem de continuar a ser usada, que não pode ser retrógrada, que tem de ser ousada; com uma juventude muito ambiciosa.

 

Uma coisa é ir às faculdades e seleccionar os melhores. Outra coisa é seleccionar os que andaram com os seus filhos na escola. Existe um capital de confiança diferente.

Mas é isso que fazemos. Temos protocolos com as universidades, aqui, na Polónia, em África, e os melhores vêm fazer a formação connosco. A partir dessa formação, são seleccionados os melhores, nem todos ficam connosco. Paralelamente, em todas as empresas existem as… vamos chamar-lhes cunhas.

 

É sensível a isso?

Para entrar, sou. Para sair, não. Ou seja, há cunhas nesta casa para entrar – minhas e de outras pessoas. E acho que temos obrigação de fazer isso. Principalmente se são gente cuja família colaborou connosco, se é a gente a quem devemos dar a oportunidade de avançar. Se não forem boas, não há nenhuma cunha que lhes permita ficar cá.

 

Quem tem unhas toca guitarra…

E quem não tem, não toca.

 

Não há complacência com a incompetência, nesta casa?

Não há complacência na promoção da incompetência. Se me disser que há gente que podia ter feito mais do que fez, e que continua aqui a trabalhar, existe. Como existe em todo o lado. Mas promoções são exclusivamente por competência. Basta olhar para os conselhos de administração da Mota Engil: ninguém está lá por relações de amizade com a família.

 

Premeia-se o mérito.

Sim.

 

Que é uma questão delicada quando se trata de uma empresa familiar.

Por isso é que sou [administrador] não-executivo. Já não sou eu que trato disso…

 

É o patrão. Pega no telefone, e resolve. Tão facil quanto isto.

É, se eu quiser. Não quero. Não sou tão velho quanto isso. Quando dei o passo para ser apenas chairman do grupo, fi-lo por vontade própria.

 

Porque é que o fez? Tinha apenas 53 anos quando isso aconteceu. Muitos homens chegam a CEO nessa altura.

Comecei muito cedo. Atingi a vice-presidência executiva deste grupo em 1987. Durante anos com a supervisão do meu pai, vivo. O meu pai esteve operacional até morrer. Cansado, mas muito presente. Apesar de ter 55 anos, tenho já 23 anos de primeiro executivo operacional do grupo. Achei que era preciso incorporar novas ideias. Nós crescemos muito. Diversificámos muito. Era preciso fazer uma remodelação. Corrigir os erros. Era mais difícil, a quem os cometeu, corrigi-los, do que vir alguém de fora fazer isso. Em boa hora o fizemos. Crescemos muito significativamente.

 

Antecipou que poderiam crescer desta maneira, quando escolheu Jorge Coelho?

O Dr. Jorge Coelho teve um papel fundamental em tudo isto. Formalizou a aposta na formação. Pegou na parte internacional e reorganizou-a. Partiu de três pólos estratégicos: Polónia e Europa Central, África (Angola e os outros países), América Latina. Criou condições para que a gestão fosse descentralizada – é lá que está a ser feita, não é feita daqui. Criou esta filosofia: temos de partir destes pólos para o crescimento internacional, e não de Portugal. Portugal é pequeno demais para que a internacionalização parta daqui. Já estamos em 19 ou 20 países. Fizemos a primeira concessão de estradas no México, no Brasil, uma concessão de portos no Peru.

 

Está-me a dizer que tudo se passa mais fora de Portugal do que cá dentro.

Ouça: o crescimento dos últimos dois anos é essencialmente feito fora de Portugal. Em Portugal tivemos um crescimento [idêntico] ao que tínhamos no passado.

 

Há vozes que dizem que o Dr. Jorge Coelho representa, sobretudo, uma rede de contactos políticos no país.

Acho que existe neste momento uma distorção do que é a Mota Engil. A empresa tem, e são números de 2008, cerca 25% do seu negócio fora da área da construção. Na área da construção, que representa 75%, mais de 50% é feito fora do país. Mas na construção, para internacionalizar, é preciso uma montra. Nenhum português vai conseguir fazer uma obra de alta velocidade em nenhum país do mundo se não tiver a experiência de a ter feito já.

 

Faz-se aqui balão de ensaio para depois ganhar concursos lá fora?

Não é balão de ensaio. Portugal precisa de crescer no défice de infra-estruturas que tem. Para sermos o país que é a porta de entrada da Europa, temos de ter bons portos, bons caminhos de ferro, boas auto-estradas. O sector da construção é forte no país, sempre foi. Mas não há internacionalização na construção sem haver uma base sólida nacional.

 

Voltemos à questão que eu levantava: porque é que foi buscar uma peça tão fundamental no xadrez como o Dr. Jorge Coelho?

É um homem que conheci há muitos anos, tem uma capacidade de gestão enorme, é um homem de projectos e que, acreditando num projecto, fará tudo para que ele prossiga; e que tinha uma visão que se enquadrava com a nossa. O crescimento da Mota Engil é anterior ao Dr. Jorge Coelho.

 

É verdade. Mas também é verdade que deu um salto nos últimos dois anos.

Facturámos 1400 milhões em 2007 e 1700 milhões em 2008. Temos vindo a crescer a taxas de dois dígitos. Qual é a filosofia deste grupo e que o Dr. Coelho tem incorporado? Desenvolvemos no passado, depois da fusão da Mota com a Engil, um conceito de diversificação e internacionalização. Diversificámos em Portugal. 

 E internacionalizámos a construção. Qual é a diferença que a gente quer? Replicar o modelo de negócio que temos em Portugal (construção, concessões, ambiente) em todos os mercados onde estamos. É essa a ambição.

 

Não mencionou uma coisa importante: o facto de o Dr. Jorge Coelho ter uma agenda preciosa.

Ah pois.

 

Não sejamos inocentes: foi também por isso que o contratou.

O Dr. Jorge Coelho tem uma agenda importante dentro e fora de Portugal. Em Portugal, desde 1980 até hoje, crescemos enormemente – com “n” governos. Crescemos em Angola – com o governo de Angola. Crescemos no Peru – com “n” governos. Crescemos na Polónia – com “n” governos. Mas nós, Mota Engil, não temos dimensão para ser um grupo internacional.

 

Não têm ou não tinham?

Não temos. Portugal não tem condições para criar um grande grupo internacional. Não só na construção, mas em tudo. Nós temos de crescer para ser um grupo multi-nacional. Temos de ter uma estrutura accionista única e depois ser polacos na Polónia, angolanos em Angola, peruanos no Peru, e ter parceiros em cada um dos sítios. 

 

Quando deixou de ser CEO e convidou o Dr. Jorge Coelho queria dar o salto para que a empresa, no futuro, seja isso que acaba de descrever?

Exactamente.

 

Porque é que não quis encabeçar o processo?

Está a terceira geração a chegar… Muitos deles têm valor para chegar lá. Eu tive a vantagem de ser o filho do patrão, e cheguei lá mais depressa. Mas também tem as suas desvantagens. O filho do patrão tem de provar o dobro. Por isso quis meter um segundo patamar. Para que as decisões e evolução da terceira geração seja mais distante de mim. Quando eu tiver de decidir quem é que vai ficar [à frente do grupo], que já tenha havido uma pré-escolha.

 

Ah, o que não quer é escolher o sucessor…

Quero escolher depois de ter passado uma série de crivos. Penso que muitos vão ter a capacidade de chegar longe.

 

Estávamos a falar do Dr. Jorge Coelho.

Tem influência política? Tem. Mas ouça lá, eu já fui conhecido no país por ser a construtora cor-de-laranja há dez ou 15 anos… Já estou habituado. Temos os nossos objectivos, as nossas taxas de sucesso demonstradas ao longo dos anos, e elas não se alteraram no mercado português com a entrada do Dr. Jorge Coelho. Se estamos mais mediáticos? Ai estamos! Nas últimas eleições, a certa altura falava-se tanto do Dr. Jorge Coelho e da Mota Engil que eu já não percebia bem se estavam a concorrer contra o Eng. José Sócrates, se estavam a concorrer contra o Dr. Jorge Coelho. Não percebi.

 

Sabia que ia ser assim. Contratando uma pessoa como o Dr. Jorge Coelho, sabia que não ia sair das páginas dos jornais.

Ai, sim. Mas na primeira fase foi ciúmes… O Dr. Jorge Coelho não tinha só o nosso convite. Admiro-o muito, há muitos anos. Já perdemos muitas vezes, já ganhámos algumas, e o Dr. Jorge Coelho é um lutador até ao final. Fizemos o convite, ele podia ter optado por outros, e escolheu-nos a nós. Isso enche-nos de orgulho.

 

Porque é que acha que ele escolheu a Mota Engil?

Porque gosta do espírito humano da Mota Engil. Tem uma empatia enorme com a família, comigo, com as minhas irmãs, entende quais são os nossos objectivos – concorda com eles e assume-os como seus. Depois, conquistou a empresa.

 

Gostava de voltar ao tema da sucessão. Tem quatro filhos. Esse tema obceca-o?

Não. Só o velho ditado: “O pai a pé, o filho a cavalo e o neto a pedir”. O que é preciso é que tenham formação, vontade de trabalhar e que depois seja escolhido o melhor.

 

Tem três raparigas e um rapaz, como o seu pai. Vai fazer uma distribuição desigual das acções como o seu pai fez entre si e as suas irmãs?

É praticamente impossível fazer. Hoje são dez [entre os meus filhos e os das minhas irmãs]. O maior accionista desta empresa é o público. Nós temos 60 e poucos por cento.

 

Começou por dizer que ainda era uma empresa familiar. Apesar de ser uma empresa cotada em bolsa.

É uma empresa familiar enquanto houver coesão familiar.

 

Pode acontecer pensar num sobrinho, e não num filho, para lhe suceder se achar que é a pessoa indicada?

Pode. Desapaixonadamente. Neste momento, a pessoa que tem mais responsabilidade neste grupo, na terceira geração, é um sobrinho meu. É certo que os meus filhos são mais novos.

 

Criou os seus filhos para serem ganhadores, potenciais sucessores?

Esse espírito existe, quer nos meus filhos, quer nos meus sobrinhos. Os sobrinhos são primos quase irmãos. Faço férias com a minha irmã Manuela há 20 anos. A minha irmã Paula faz férias com a minha irmã Teresa há muitos anos.

 

É um homem tímido?

Se calhar sou.

 

O seu discurso frequentemente foge de si para a empresa. É um modo de se esconder.

Fui jovem, fiz as minhas loucuras. Quando comecei a trabalhar, comecei a sério. Estive muitos anos sem ter férias. Muitos anos.

 

Nunca duvidou que ia conseguir? A empresa cresceu imenso consigo.

O meu pai construiu uma empresa do zero. Depois teve uma crise brutal, e recuperou a empresa já com 60 e muitos anos, já com o apoio dos filhos. Limitámo-nos a fazer crescer o negócio. Tivemos a ousadia, contra a opinião generalizada, de lançar uma OPA hostil à Engil e conseguir fazer, a seguir, uma fusão. Esse é o grande marco de desenvolvimento da empresa.

 

Também aí, contra a opinião generalizada, avançou. Sem hesitação?

Não tive dúvidas nenhumas. A Mota e a Engil, em 1998, passaram o ano a discutir uma fusão amigável, e tudo ficou pronto nesse sentido. O que é que aconteceu? Quando chegámos à mesa de nomeação das pessoas, não nos entendemos.

 

No fundo, isso é: quem manda?

Pois claro. Tínhamos duas empresas de dimensões similares, e complementares. A Engil estava nos edifícios e nas pontes, e a Mota estava na obra de terraplanagem, estradas e aeroportos. A Engil tinha um mercado virado para a América Latina, e a Mota em Angola e na Europa central. E estávamos nas concessões. Na área do ambiente tínhamos estratégias semelhantes. Fazia todo o sentido. Por questões de poder não foi possível chegar a acordo. A seguir, a Mota procurou alternativas à Engil para fazer o seu crescimento. Um dia percebeu-se que a Engil andava a fazer o mesmo, indo fazer uma associação, por alienação, com parceiros estrangeiros. Fomos à luta.

 

Se tivessem perdido, o que é que teria acontecido?

Tínhamos de regressar ao plano B, que era procurar uma alternativa qualquer. O sucesso da Mota Engil tem muito a ver com a primeira fase. Tudo o que se implementou foi o que se tinha acordado com o anterior accionista na fase de discussão da fusão amigável. Não houve uma aquisição, houve efectivamente uma fusão entre as duas estruturas.

 

É um homem novo.

Sim.

 

Que é que quer fazer?

Continuar a trabalhar. Tenho ainda muito para dar, na minha opinião. Gosto de ter mais tempo para pensar, para falar com as pessoas, dar ideias, transmitir. Dá-me um prazer enorme ir à reuniões de quadros, contar-lhes a história da Mota Engil, as dificuldades e os sucesso. Falamos muito, internamente, das dificuldades e dos erros. Cometemos alguns. Mas agora sou avô…

 

A sua cara ilumina-se quando fala nisso… E tem ali fotografias, e até ecografias emolduradas.

Tenho uma netita… Chama-se Carolina, tem agora nove meses.

 

É um homem muito poderoso. Sente-se poderoso?

Nãaao. Mas sei que tenho capacidade de influência.

 

Isso é por causa do dinheiro que tem? O seu poder deriva do dinheiro que movimenta, dos postos de trabalho que cria, da teia de relações?

O meu poder baseia-se na capacidade que esta empresa tem de fazer coisas boas e novas. Quando nos metemos nas coisas, normalmente elas correm bem. Esse é o poder. Tenho alguma tristeza de viver num país que não reconhece os méritos das empresas. A Mota Engil é capaz de ultrapassar este ano os dois mil milhões [de facturação], temos 17 mil empregados por esse mundo fora, seis mil em Portugal, mil colaboradores portugueses a trabalhar lá fora. Temos uma rentabilidade razoável.  

 

A construção é um negócio muito rentável.

Não, não é! As margens são extremamente pequenas!

 

Porque é que as pessoas têm a ideia contrária?

Não sei porquê. É um negócio bonito, que dá prazer; uma pessoa vê nascer as coisas, vê-as ficarem prontas. Gera cash flow e cria know how para outras áreas. A construção é uma área em que, se a logística não funcionar, tem um insucesso garantido.

 

A logística é determinante. Mas a influência também. Ainda mais tratando-se de obras públicas. O que é que faz que uma obra seja adjudicada a uma empresa e não a outra?

Normalmente, o preço. Em 99% dos casos, ganha a empresa que apresentou o preço mais barato.

 

Vivemos então na ficção de que tudo se passa nos bastidores…

Sabe que não tenho a ideia que os vigaristas tenham vindo todos parar a Portugal, e que ainda por cima tenham vindo todos parar à construção. Em todas as profissões e em todos os países há gente honesta e gente menos honesta. Passa-se na construção como em todos os sectores – do jornalismo à advocacia. Não aceito essa visão de que a construção seja isso. Senão, acabem com ela! Digam! Não terei problema em mudar a sede para outro país qualquer.

 

A Mota Engil ganha muitas obras.

Pois ganha. É a maior construtora do país, tem de ganhar mais do que as outras. Só é a maior porque ganhou no passado mais do que as outras. E porque fez uma fusão. A Mota não era a maior construtora. Atingimos o primeiro lugar porque fomos os únicos que tiveram coragem de fazer uma fusão. 

 

Nesse período, dormiu todas as noites, ou estava inquieto com a possibilidade de a fusão não correr bem?

Vamos lá ver assim uma coisa: durmo bem todas as noites. Durmo é pouco, cinco ou seis horas. Nunca tenho dúvida de que as coisas vão correr bem. Tenho é de perceber como é que chego lá para que as coisas corram bem. Depois, tenho muitos insucessos.

 

O que é que o aborrece mais?

Perder.

 

É perder dinheiro ou é ter falhado?

Ter falhado. Mas nesta casa, todas as vezes em que se perde uma, pergunta-se como é que vamos ganhar a próxima. Os erros não são para ser esquecidos. Por exemplo, na Europa central, se voltasse a fazer, teria ido para menos países, e deixaria estabilizar, em vez de ir para tantos países ao mesmo tempo. Tive insucessos em alguns dos países.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios 

 

 

 

 

Emídio Rangel

13.08.14

Excertos de entrevista a Emídio Rangel, publicada no DNa em 1999:

 

 

Sabe qual é a imagem mais recorrente que usam para o definir? «Nós sabemos que o céu é azul e o Emídio Rangel consegue convencer-nos em cinco minutos que, afinal, é encarnado».

Ao contrário do que possa imaginar, não fico nada feliz com o retrato.

 

Devia envaidecer-se dessa capacidade persuasiva, mobiliza as equipas.

Sempre trabalhei com equipas. Dirigi equipas desde muito cedo.

 

É verdade que aos 20 anos já dirigia rádios?

Sim. Dirigi aos 20 anos uma estação com mais de 80 profissionais. E, desse ponto de vista, não acho que tenha mudado muito. Não acredito na lógica da autoridade imposta pelo exercício de um determinado lugar. A autoridade ou respeito ou consideração por quem lidera um grupo tem que resultar da capacidade ou da competência ou das provas que esse líder acaba por dar. Numa televisão, em que ninguém faz nada sozinho, seria uma insensatez percorrer esse caminho. Tenho uma ideia de vida e de grupo que funciona quase numa lógica de clã. A autoridade conquista-se, não se impõe.

 

Nota-se.

Defendo as minhas equipas com unhas e dentes, com todas as minhas forças. Na generalidade das situações, as pessoas aceitam o que digo porque aceitam que está acertado.

 

Portanto concorda que o céu é azul?

Concordo. [risos] E é bonito.

 

Podemos voltar à fase em que tinha 20 anos e se viu a dirigir a maior rádio de Angola? Nessa altura ou mesmo antes, imaginava que teria uma vida gloriosa, heróica? Aventureiro talvez seja um bom epíteto para si.

Gosto da aventura, porque não? No entanto quero dizer-lhe que nunca perdi muito tempo a equacionar as coisas para diante, a fazer projectos a muito longa distância. Fui sempre tentando viver procurando concretizar coisas muito próximas. Vivo muito para o dia seguinte. Gosto do fluir da vida. Já estive em muitas situações em que a vida era assim e no dia seguinte era de outra maneira.

 

Isso obriga a uma relativização muito grande. Foi assim que percebeu o que vale realmente a pena?

Exactamente. Imagine ter a vida estabilizada num país e de repente está tudo em tumulto e há uma guerra que não pára e depois tem de começar tudo de novo, voltar ao zero absoluto.

 

Quando pensa nas vicissitudes da sua vida deve sentir-se orgulhoso. Chegou a Portugal nas condições em que chegou toda a gente vinda do Ultramar e conseguiu dar a volta em pouco tempo. Ao segundo dia estava a vender enciclopédias para sustentar a família.

Não podia deixar de considerar que isso me dá satisfação. Mas não fico expectante, parado a venerar um determinado percurso ou resultado que obtive. Sobretudo quando se vive numa profissão como esta. A comunicação social em geral é extremamente desgastante, mas a televisão talvez seja ainda mais.

 

Via muita televisão em miúdo?

Não, mas estudei muito televisão. Em Angola não havia televisão. Quando vi pela primeira vez já tinha 18 anos. Nessa altura, como hoje, a rádio tem um fascínio especial, tem uma linguagem intimista que me agrada imenso. Sobretudo quando se exercita, quando se está ao microfone.

 

Gosta da sua voz?

Se calhar poucas vezes gostei de me ouvir. Sou muito sensível à voz, que acho um elemento decisivo.

 

A voz revela tudo das pessoas?

Os olhos revelam muito mais.

 

Deve ter vivido histórias que todos os profissionais de rádio vivem: a paixão e a fantasia dos ouvintes, a construção que fazem da pessoa que lhes fala ao microfone. A voz é muito mais fantasista, na imagem está tudo desenhado e desfaz-se o mistério.

Tenho dificuldade em falar dessas coisas.

 

Mas porquê?

É verdade, havia muita gente que me escrevia coisas engraçadas.

 

Meninas?

[risos] Sim.

 

Depois conhecia as suas admiradoras?

Rarissimamente. Entra-se num processo de desconstrução do exercício radiofónico se porventura há uma grande ligação entre quem está ao microfone e o público. Ao contrário do que acontece na televisão.

 

Alguma vez ficou apaixonado por uma voz, sem saber se ela era gorda ou magra?

Aconteceu-me muitas vezes ficar apaixonado por vozes de pessoas que cantam bem! Comecei a fazer rádio aos 17 anos. A rádio era na altura o meio de comunicação social por excelência.

 

E porquê a comunicação social?

Não sei. Sempre estive muito voltado nessa direcção. Desde a escola primária, (sempre me envolvi nos jornais da escola, com a escrita).

 

O que é o precipitou no trabalho? A necessidade, a vontade?

Só a vontade. Logo a seguir entrei na Universidade e tive de conciliar uma coisa e outra. Fiz o bacharelato em Angola e a licenciatura cá. Depois ainda fui fazer umas loucuras, umas incursões em Direito, e estive quase até ao final do mestrado em Comunicação Social (vim dirigir a Sic a um semestre de terminar).

 

Posso fazer uma única pergunta pessoal?

Não lhe prometo resposta.

 

Concede que tem um enorme sucesso, pelo menos tem fama disso, junto das mulheres?

Acho que não devo ser juiz em causa própria!

 

Depreendo que sim! A pergunta é: Já lhe aconteceu o contrário, já teve desgostos de amor?

Já. A indiferença destrói-me completamente. [pausa] Estas não são as matérias de que gosto de falar. Mas enfim. Não sei viver as coisas sem inter-acção, sem comunicação.

 

Que idade é que tinha quando o deixaram ou não corresponderam ao seu amor? Deve sentir de maneira diferente consoante as fases da vida.

As situações a que me referi são de degradação de relações, que obrigam a que as pessoas se separem.

 

Trata-se de um desencontro depois de um encontro. Eu perguntava uma coisa diferente. Porque não se imagina que faça a corte a uma mulher que não quer nada consigo.

Também sou tímido!

 

Teve todas as que quis, portanto.

Tenho dificuldade em responder.

 

O pudor fica-lhe bem, é cavalheiresco. É um homem feliz, gosta de si?

Sim, vivo bem na minha pele. Quando por qualquer razão estou mal comigo, procuro resolver rapidamente.

 

Com quem é que desabafa, ou não quer dar de si a imagem de um homem que também sofre?

Não é um problema de imagem. Todas as pessoas têm o seu lado frágil, eu também tenho o meu lado frágil. Mas a vida é por vezes demasiado dura e obriga-nos a criar defesas. No que tem a ver com as minhas zonas frágeis consegui criar algumas defesas, mas sempre muito insuficientes. Suporto muito mal, numa relação de amizade, um amigo que trai outro amigo. Na minha cabeça é impensável, imperdoável, insuportável.

 

Não é capaz de perdoar?

Sou capaz de perdoar, não sou capaz de esquecer. Vivo de forma muito simples, agarrado a um conjunto de valores, não muitos, que marcam a minha vida e a minha postura; têm um carácter quase sagrado, não consigo imaginar que possam ser violados.

 

Essas regras têm a ver com a lealdade?

Lealdade, amizade. Nunca traí um amigo, jamais seria capaz de o fazer, tenho a certeza absoluta (posso não ter em relação a mais nada, mas em relação a isso tenho). É tão estruturante da minha maneira de ser! Mas sou muito tolerante, ao contrário do que pensa.

 

Não sou eu que penso.

São as pessoas que pensam de mim, eu sei. Sabe uma das coisas que me custa terrivelmente?

 

Esta distorção?

Hoje já aprendi a viver um pouco com isso, mas não me conformo. Não sei porquê, mas gostava de perceber: pessoas que nunca falaram comigo, que não me conhecem, formam uma ideia a meu respeito que passa por essa imagem de dureza. Sou o contrário.

 

Quando se é uma figura pública, é-se sempre uma ficção pública. Estava a ouvi-lo falar da amizade e a lembrar qualquer coisa que tinha lido sobre o assunto, «Ele é fiel aos amigos». Parece que toda a gente sabe tudo. Incomoda-lhe ser um homem público?

Incomoda-me. Gosto muito da minha privacidade.

 

Há alguma figura/ficção pública que gostasse de conhecer? No plano internacional, porque no nacional é muito fácil: telefona e manda buscar.

Gosto de conhecer pessoas. Se calhar, gostava de ter falado, off record ou não, com o Clinton. Para lhe dizer que foi completamente estúpido e que jamais deveria ter exposto a sua vida, quaisquer que fossem as consequências. Os valores da honra e da dignidade são tão fortes que gostaria de perguntar a um homem daqueles porque é não disse, «Sobre este assunto não tenho nenhuma declaração a fazer».

 

Não tem nada de que se envergonhe?

Todos temos fraquezas e não quero fazer o papel do príncipe perfeito. Mas acho que não tenho telhados de vidro, com franqueza.

 

A que é que é mais sensível?

Está a falar-me dos valores que não gostaria de ver tocados? Os que se prendem com a minha honra e dignidade.

 

E pessoas? Disse num entrevista antiga que a pessoa que mais admirava era a sua mãe.

É verdade. Marcou muito a minha vida. Encheu-me sempre de mimos. Eu costumo dizer que me alimento de mimos. Por isso me irrita tanto que as pessoas tenham de mim uma imagem dura.

 

É incrível como acaba por ser tão sensível à imagem que os outros têm de si.

É só esse aspecto. Somos todos sensíveis ao que os outros pensam de nós, não vivemos isolados. Já me habituei a viver com alguns inimigos, acho que não tenho muitos. Ultrapassada essa fase em que a minha fragilidade se manifesta, no dia seguinte renasço com mil forças para combater sobretudo essas coisas.

 

Quando esta entrevista sair quem é que lhe vai telefonar para a comentar? A sua mulher, a sua filha, o seu melhor amigo?

Essas pessoas, e também o meu pai. O meu pai liga-me sobretudo quando vê uma qualquer coisa que aparece num jornal sobre o processo não sei o quê. Fica preocupado, é verdade, porque também me encheu de mimos.

 

 

 

 

A primeira parte da entrevista foi essencialmente sobre televisão. Rangel era então o homem forte da SIC.

 

 

Depois das eleições, quando for redefinida a tutela da RTP, se o convite lhe fosse renovado, até porque o lugar está em aberto, e lhe fosse dada a tal carta branca, repensaria a sua posição? Ficar na Sic neste momento implica gerir uma fórmula de sucesso e decidir se vai pôr no ar programas que estão na 5ª, 6ª série. Muito pouco criativo para um homem com a sua ambição.

Gosto de desafios, gosto da vida marcada por um permanente exercício de criatividade. Mas a Sic, ao contrário do que pensa, é um projecto inacabado. Acredito que a plataforma que a Sic estabeleceu potencia um conjunto tão diversificado de iniciativas na área do audiovisual que é apaixonante imaginar o que está pela frente: projectos que passam pela internet, pelos canais temáticos. A Sic é extraordinariamente desafiadora.

 

Ainda na RTP, não seria socialmente apetecível nem para si nem para ninguém ser o algoz que despede 1500 funcionários.

Há certamente um campo enorme de soluções.

 

Sabia o que fazer com a RTP? Há quem pense que se trata de um esboço kafkiano sem resolução possível.

A RTP tem solução, como é óbvio. O problema essencial da RTP é uma dependência do poder político, que a asfixia e dificulta quer uma gestão equilibrada quer um exercício despido das utilizações que o poder político sempre faz.

 

E poder económico. Ainda nessa entrevista fez acusações muito graves dizendo que havia situações de corrupção na RTP.

Não é exacto. O que disse foi que, ao longo de muitos anos, fui lendo nos jornais notícias que davam conta de situações que não eram claras.

 

Foi abusivamente que fizeram manchete com a sua declaração, «Houve corrupção em direcções da RTP»?

Não sou responsável pelos títulos que os jornais fazem.

 

O título era retirado da entrevista.

Aquele título não foi retirado da minha entrevista. Aquele título excede completamente o que disse na entrevista.

 

Tenho a entrevista comigo. Importa-se de confirmar o que disse e o que não disse?

«Houve corrupção em direcções da RTP»; e o que disse foi que havia fumos de corrupção, e notícias que davam conta de irregularidades e situações pouco claras. Continuo a pensar que a RTP tem obviamente solução, mas parece-me essencial desde logo dar sinal do caminho que se quer percorrer. E o sinal de mudança na RTP passaria pela clarificação destas situações.    

 

O mais interessante, ainda do plano hipotético, seria se o Emídio Rangel fosse para a RTP combater o Emídio Rangel que deixou na Sic. Acha que seria imprescindível à Sic? E que evolução teria a Sic sem a sua tutela, confrontada consigo numa outra estação? Presumo que a programação não seria tão diferente, se afinal já testou aqui a fórmula do sucesso.

As coisas são diferentes. As pessoas são todas, sem excepção, substituíveis. Não é uma falsa modéstia. É a experiência profissional que me leva a dizer isto com muita serenidade. É preciso ter sempre bons quadros, pessoas competentes. Mas com mais ou menos dificuldade é sempre possível substituir as pessoas.

 

Olhe para a míngua de directores de canal que temos neste momento! O espectro é diminuto. Se nos perguntarmos quem poderia substituir Maria Elisa na RTP nem ocorre nenhum nome suficientemente forte e consensual.

Eu criei a TSF, na totalidade. No dia em que tive de sair, e saí com a aquiescência dos meus companheiros de aventura, tinha a certeza que a TSF jamais morreria. Aqui também seria inteiramente possível. A questão que me colocou transcende um pouco isto. Não era uma situação em que gostasse de me ver envolvido.

 

Não gostava de sair para acicatar os filhos, é isso? Esta imagem dos filhos não é tão extemporânea quanto isso.

Até é adequada. Para mim seria angustiante. Estas coisas saem também das entranhas.

 

Sendo obstinado como é, tenho a convicção que se aceitasse um desafio com essas características, era um pouco o seu nome e a sua honra. Manifesta sempre vontade de levar os desafios até ao fim.

Levo sempre os meus desafios até ao fim. Também não tenho por hábito abandonar os projectos numa fase crítica. Mas sinto-me bem onde estou.

 

Ganha assim tão bem?

Ganho bem. [riso] Não me peça que lhe apresente a minha folha de salários.

 

Podem aparecer contra propostas. De certeza que o dinheiro não é tudo.

Garantidamente não é. As questões essenciais não passam pelo dinheiro. Mas a partir de uma determinada fase esse factor não é desprezível. Quando vim para a Sic as questões que coloquei ao Dr. Balsemão prendiam-se com condições de trabalho, não discuti sequer os meus salários. E achei sempre que teríamos um quadro enquanto a Sic não fosse uma empresa sólida e lucrativa e outro quadro depois de ter atingido essa plataforma.

 

Tem fama de pagar muito mal. Conheço uma situação flagrante de um programa que está no prime-time com 20% de audiência cujo apresentador recebe um terço do cachet que outros auferem na RTP, sendo que estão também em prime-time mas com apenas 2% de audiência. A Sic tem lucros.

Elevados. Os projectos para poderem ter continuidade, estabilidade, exigem que haja lucros, em muitas circunstâncias lucros substanciais, para poderem progredir. É mais sensato e gratificante para as pessoas que aqui trabalham sentirem que os projectos avançam porque geraram riqueza.

 

Sentem-se um bocadinho mais tocados se a riqueza também chegar aos seus bolsos.

Sem dúvida. As empresas de comunicação social são empresas de pessoas. O principal património destas empresas não são as máquinas, por mais sofisticadas que sejam.

 

Justamente por isso, não teme que as suas estrelas vão embora para ganharem três vezes mais?

Não concluí o meu raciocínio. Acho que tem consistência aquilo que vou dizer, até porque conheço outras experiências e tenho muitos contactos desse ponto de vista. É preciso que em Portugal se não repita a experiência espanhola. Em Espanha, quando apareceram as televisões privadas, nasceu uma competição feroz entre as várias estações, toda a gente perdeu a cabeça; os custos de produção subiram a níveis tão altos que em determinada altura todas as estações estavam com elevadíssimos défices. O resultado foi tão simplesmente este: houve gente que em dois anos, não mais, ganhou verbas impensáveis para a realidade do mercado espanhol e passado três anos ficou sem emprego.

 

Que eu saiba, nenhum dos televisivos portugueses enriqueceu em dois anos.

Isto para dizer que é preciso ser prudente. Sem prejuízo do princípio que referi (segundo o qual as pessoas, sendo o património mais valioso das empresas de comunicação, devem ser beneficiadas), acho absolutamente necessário não perder de vista que uma gestão equilibrada, contida, permite que a estação possa ter chegado a este lugar. A estabilidade do emprego é, do meu ponto de vista, marcante.

 

Para os convencer a ficar diz coisas como, «Para que vais para lá, (referindo-se à TVI), aqui tens tudo!»

Não.

 

Diz, diz.

Costumo dizer outra coisa. As pessoas têm direito a tudo, a escolherem os caminhos que entendem, e até a cometerem erros. Sempre que me colocam questões dessa natureza, forneço informação que ajude à reflexão sobre essas matérias.

 

Como está bom de ver, viciada, porque se trata da sua informação.

Porquê viciada? As pessoas sabem que é a minha. Ficam entregues a si próprias com a responsabilidade de decidirem qual é o seu caminho. Bato-me ferozmente para que os profissionais da Sic sejam os mais bem pagas da televisão portuguesa.

 

Sabe que não corresponde à verdade.

Está mal informada. 

 

Voltamos ao mesmo. Porque as pessoas a quem me referia há pouco, e a propósito da precariedade do trabalho, nem sequer são pessoas dos quadros da Sic. Têm um contrato por 13 programas e a seguir não têm qualquer garantia sobre o que lhes vai acontecer. Quer dizer que ficam completamente nas suas mãos e ainda por cima mal pagas, o que é espantoso.

Tem uma imagem terrível de mim! [risos]

 

Não tenho. Traçaram-me o quadro de uma pessoa extremamente persuasiva e quase sibilina na maneira como se insinua a quem quer a trabalhar consigo. 

É um puro exagero. Sou uma pessoa de convicções. Quando estou convencido de uma coisa, explicito com muita clareza o meu pensamento e digo as coisas que sinto e penso, sempre, a quem quer que seja. Admito que possa ter interpretações perversas, como essa. Podia adoptar uma atitude distanciada, mas não faz parte do meu carácter. Sou emotivo, funciono com os nervos mas também com o coração. Às vezes, a forma como exprimo os meus pontos de vista, leva as pessoas a acharem que é uma..., qual foi a expressão que usou?, talvez uma apurada capacidade persuasiva..., não quero falar da sibilina, porque essa magoa.

 

Não foi intencional.

[gargalhada] As portas do meu gabinete estão abertas. É preciso partir do princípio que quando conversamos cada um põe os seus argumentos na mesa. É uma regra. Falo com toda a gente, toda a gente tem a possibilidade de dizer o que pensa sobre as coisas todas.

 

Interessa-lhe saber, deveras?

Interessa-me bastante. Gosto que as pessoas coloquem na mesa as coisas todas e o façam com a mesma frontalidade... Quando estou convencido de uma coisa não atraiçoo, nem engano ninguém. Nunca estou nas coisas com um pé dentro e outro fora, em regimes de ambiguidade. Se não pusesse esta intensidade, e ponho-a em relação às coisas mais insignificantes até às mais complexas, seria uma hipocrisia. E eu odeio os hipócritas.

 

As relações de poder estão muitas vezes viciadas pelo argumento da subalternidade.

Comigo na Sic, não há uma lógica de subalternidade; sentir-me-ia completamente defraudado! A esmagadora maioria das pessoas chegam aqui e dizem com clareza o que pensam e o que sentem.

 

Não acha que é temido?

Não.

 

É um homem muito poderoso, um dos homens mais poderosos do país.

Não diga isso. Não é verdade, e se lhe pedisse para sustentar essa tese não encontraria forma.

 

Encontro. Não vou voltar à esgotada máxima de que é capaz de vender um presidente porque já se cansou de explicar nas entrevistas que se usou a frase descontextualizadamente. Mas quando olhamos para a forma como o Vale e Azevedo foi eleito, para os spots que passavam na Sic exortando a uma ida à Luz e dando vivas ao Benfica, e apesar de refutar o poder que a televisão tem junto das pessoas, penso, ao contrário, que a Sic tem muito claramente a noção da influência fortíssima que tem na vida das pessoas.

Tem, é verdade.

 

O senhor é só a pessoa que comanda tudo isso. Donde, é um homem muito poderoso. Há milhões de pessoas que vêm aquilo que decide que elas devem ver.

É um argumento reversível. Como a minha preocupação é a de pretender que as pessoas vejam também aquilo que querem ver, também me submeto. Uma das vertentes do meu trabalho é de permanentemente saber quem tenho pela frente, quais são os nossos alvos: lêem ou não lêem, o que fazem, quais são os seus hábitos.

 

A democraticidade total do gosto pode ter efeitos muito perversos. Se quiserem ver o Ratinho, ou o Jerry Springer, ou outros a matarem-se em directo, também poderíamos partir do princípio que quem quer vê, quem não quer não vê. Inteiramente verdade. As pessoas procuram a televisão, como procuram o teatro ou o cinema ou um jornal, com um determinado objectivo. E se aquilo o satisfaz, fica a ver, a ler, em função do que é o seu gosto e que resulta de valores que não dominamos, nem podemos dominar e ainda bem que não dominamos.

 

Então para esta democraticidade total do gosto há limites?

Claro que há limites.

 

Concorda que há programas abjectos?

Não defendo nunca, em nenhuma circunstância, o exercício de censura. Mesmo quando estamos a falar de programas sinistros como o do Ratinho. Mas se uma estação decidir pôr no ar um programa daquela natureza, tem o direito de o transmitir. Não aceito nunca a intervenção do Estado em matéria de conteúdo comunicacional. Logo veremos como os públicos reagem em relação a isso.

 

Temos visto que reagem bem, que gostam.

Em relação aos que foram transmitidos, os resultados foram desastrosos.

 

Se não se importa, falamos da TVI mais tarde. Não acha que alguém a comer larvas é o princípio da abjecção?

Admito sempre que neste ou naquele programa se possam cometer erros. A Sic não é uma organização perfeita ou preparada por pessoas perfeitas. Faça o balanço da Sic; veja os erros que a Sic cometeu, sem dúvida, mas ponha do outro lado tudo o que a Sic fez na área da informação, do entretenimento, do cinema, da ficção. E quando olhar para isso tudo, há-de concluir que esta equipa de profissionais, somos 300 e tantos, fez alguma coisa pela televisão, honra os valores da profissão na televisão e honra os valores da cultura.

 

O episódio das larvas é só uma face muito visível de programas que foram muito contestados.

Foram contestados sem nenhuma fundamentação.

 

Oh.

Desculpe lá, é verdade.

 

Era capaz de inverter as proposições e de participar ou ver participar uma pessoa da sua família num desses programas?

Se as pessoas não se sentem violentadas... Porque aqui ninguém engana ninguém.

 

E nós vemos na cara delas como precisam dos 100 ou 200 contos. Além do folclore de chegarem à terra e toda a gente os ter visto na televisão.

Não acredite nisso. Defendo que as pessoas comuns devem chegar à televisão e devem ser objecto de notícia. As coisas que acontecem nas suas vidas e nas suas terras devem ser tratadas com o mesmo respeito com que se trata uma visita ministerial. É uma formulação antiga, que rejeito também, de que à televisão só têm acesso as elites.

 

Nesse aspecto, concordo absolutamente consigo. Mas o senhor sabe que estou a falar de uma outra coisa: de alguém que é violentado publicamente a troco de 200 contos.

É uma visão profundamente elitista. E sabe porquê? Porque se parte do princípio que aquela pessoa é inválida, incapaz de pensar e decidir por si própria ou de ter sentido crítico. Tudo o que aprendi diz-me com uma enorme segurança que as pessoas actuam com uma liberdade de pensamento, de movimento, de gosto, e que ninguém as consegue segurar se por acaso se sentem violentadas, como espectadores ou como protagonistas.

 

Olhe o que aconteceu com a massa do Futebol Clube do Porto quando percebeu que a Sic estava demasiado ligada ao Benfica.

A Sic não perdeu um único espectador no Grande Porto por se ter envolvido numa situação de conflito com o Futebol Clube do Porto.

 

Como sabe vivi no Porto. Assisti a manifestações de adeptos do Futebol Clube do Porto frente às instalações da Sic, gente enfurecida que não tinha o propósito de continuar a ver a Sic. E conheço pessoalmente pessoas que deixaram de ver a sua estação.

Não consigo aceitar uma discussão a partir de uma formulação dessa natureza. O que estou a dizer pode provar-se: é muito fácil pegar nas nossas audiências e verificar que não perdemos expressão e que o Porto sempre respondeu da mesma maneira.

 

Imagino que diga a mesma coisa em relação à TVI. Nas suas entrevistas e declarações recentes diz que a Sic não tem sido beliscada pela investida da TVI. No entanto, tenho aqui uma sondagem em que o quadro da Sic apresenta uma curva levemente descendente e o da TVI, ao contrário, é ascendente.

[risos] Basta olhar para o quadro para perceber que não significa nada. A Sic está a subir. Sabe quanto é que a Sic teve ontem de share? 51, 9%! Estamos a entrar em Setembro e a sua média anual é de 48%. O ano passado a Sic fechou com 48%. Ou seja, tem exactamente o mesmo valor. Continuamos a ter as audiências que sempre tivemos; houve um período em que houve alguma instabilidade e que resultou da circunstância de se ter passado de uma empresa de audiometria para outra. Fora isso, a realidade é inquestionável: a TVI tem uma média de 17 pontos.

 

Concluindo, não está nada apoquentado com a TVI?

Nada. Eu gosto dessa competição.

 

Os novos formatos da TVI são similares aos da SIC. O rumo parece ser o mesmo.

Não é. Não quero diminuir a TVI, e até acho desejável que se equilibre e funcione como um meio bem estruturado, é bom para o país. A pluralidade de órgãos de comunicação social é o oxigénio da democracia. Agora, não comparemos uma coisa e outra. A Sic afirmou-se desde o primeiro dia por uma informação marcadamente profissional, rigorosa, independente.

 

Não foi essa informação que marcou o ponto de viragem nas audiências da Sic, mas sim a aliança com a Globo. As telenovelas não podem ser depreciadas e parecem ser ainda hoje o elemento fulcral à volta do qual gira toda a programação do prime-time.

Não é verdade, lamento desiludi-la.

 

Gostava de o ver sem as telenovelas da Globo.

Chegámos praticamente à liderança e a RTP tinha as novelas da Globo. Mais, a RTP tinha o futebol todo.

 

Na primeira fase da Sic, assumiu numa entrevista que seria um suicídio sem as telenovelas.

Não estou a minimizar esse produto, que é importante e interessante. E mais interessante ainda do ponto de vista económico: é mais barato comprar uma novela à Globo do que produzir uma novela aqui. Não acredite que se pegássemos nas novelas da Globo e as puséssemos na TVI, ela passaria a líder.

 

Acredito que com uns bons programas à volta, lá chegaria. 

Quais bons programas? Se me disser que a TVI ou a RTP, escolha a que lhe apetecer, tiver uma boa programação das oito às três da manhã e também lá estiverem as novelas, é evidente que sim. Endeusou-se a novela! Não é um produto milagroso e as pessoas tentam encontrar justificação para os seus fracassos falando da novela. A televisão é uma construção diária que nunca se fará de um só produto. É, por isso, simultaneamente um processo apaixonante e angustiante. O que é de facto decisivo, não é um dia subir e liderar durante uma hora, e depois no dia seguinte estatelar-se completamente. O que é significativo e difícil é manter todos os dias essa passada.

 

A título pessoal é ainda na informação que se realiza?

Eu sou jornalista. Era impensável ficar indiferente à informação para quem criou uma estação de notícias, para quem fez reportagem toda a vida, para quem ganhou... Não devo dizer.

 

Diga.

Ia falar dos prémios que ganhei, mas não vou falar nisso. Mas cada vez mais estas coisas se ligam. A ideia da informação na sua quinta e da programação noutra quinta, quase digladiando-se com o director de informação de um lado e o da programação do outro passou à história. Hoje, a intersecção destas duas realidades está cada vez mais presente, estabelecendo necessariamente as fronteiras de cada uma.

 

Os próximos tempos prometem ser animados: As Legislativas estão à porta e supostamente rediscute-se a tutela da RTP; foi lançado o Canal de Notícias de Lisboa, (que poderá entrar em concorrência directa com um projecto paralelo que está a pensar lançar); a TVI dá mostras de grande combatividade; e há ainda a hipotética candidatura do Dr. Balsemão às Presidenciais que nos faz pensar imediatamente nalguns factores. Por um lado a Sic tem assumido o bastião da independência e da isenção.

E vai continuar.

 

Por outro lado, não acha que será difícil não haver alguma promiscuidade? Recordo o caso do João Carreira Bom que foi despedido do «Expresso» por ter atacado pessoalmente o presidente do jornal. Não poderemos pensar numa contenção na forma como alguns assuntos ligados à candidatura à presidência do Dr. Balsemão vão ser abordados, precisamente porque esta casa é dele?

Não. Não vai haver nem contenção nem uma outra coisa que é tão perversa como essa auto-limitação, que é uma tentativa de ostracismo, (a palavra talvez seja demasiado forte, mas julgo que a dada altura o Dr. Balsemão chegou a ser quase ostracizado no «Expresso»). As duas são falsos exercícios de independência. O maior património da Sic, desse ponto de vista, é a sua independência e a sua distância.

 

Acredita mesmo que será assim tão fácil separar as águas?

Nada é fácil, mas não significa que não seja exequível. Seria completamente insensato que um qualquer director deixasse que a Sic, que ganhou o seu lugar à conta do prestígio da informação que produz, deitasse por terra todas estas coisas. O Dr. Balsemão, não sei se vai ser ou não candidato, é uma questão de natureza pessoal.

 

Mesmo que já tenho assumido o seu apoio.

Por acaso, há aí de novo uma adulteração.

 

Esta sua relação com os jornalistas é mesmo complicada!

Não é com os jornalistas, é com o rigor. O que disse foi isto: até agora não vi aparecer ninguém em melhor posição e que reúna um melhor conjunto de qualidades para o exercício presidencial tal qual ele foi moldado pelo Dr. Soares. Porque se estiver a falar de outro exercício posso achar que o Dr. Balsemão não é a pessoa indicada.

 

Posso perguntar-lhe em quem votou nas últimas presidenciais?

Nas últimas eleições presidenciais... Nas últimas eleições presidenciais, votei em branco.  Não tenho nada contra o Dr. Jorge Sampaio. Acho é que o Presidente da República, num país pequeno como este, que tem dificuldades de movimentação no contexto da União Europeia, que precisa de ser hábil, inteligente, actuante, precisa de uma boa inter-relação com os outros países. Não é uma tarefa que possa ser desenvolvida só pelo governo; o Presidente da República precisa de ser uma pessoa com uma boa capacidade de relacionamento internacional, que tenha gosto por essa função e abra portas por força dessa relação e prestígio. Hoje não podemos ter um Presidente que se fecha no Palácio de Belém e que faz uma ou outra saída esporádica. Em minha opinião, é estrategicamente decisivo para o país que assim aconteça.

 

Podia trazer outras conjecturas ainda a propósito da promiscuidade e demarcação dos campos com a eventual candidatura do Dr. Balsemão à Presidência. Mas a sua inteligência e sagacidade, consensuais mesmo entre os seus adversários, fazem com que consiga burilar todas estas questões e encontrar-lhes uma resposta. Ou, se quiser, não vinha entrevistá-lo na esperança de grandes respostas que não tivessem sido preditas em seis ou sete anos de entrevistas.

O seu raciocínio é preconceituoso. Acredite que na generalidade das situações o que faço é tão simplesmente dizer o que resulta da forma como vejo e analiso e penso as coisas. Isso quase implica o que me irrita no discurso político, essa ideia que está subjacente à sua pergunta: a de que os políticos são hipócritas.

 

Não foi o que eu disse nem está subjacente à minha pergunta.

Eu não faço habilidades: digo o que penso, o que sinto. 

 

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 1999

Emídio Rangel morreu a 13 de Agosto de 2014

 

 

 

Em modo férias

01.08.14

Este blog entra em modo férias até 1 de Setembro. Ou seja, não vou postar conteúdos novos até lá. 

Este blog vai ter novo grafismo no meio de Setembro. Ou seja, andamos (a equipa do Sapo e eu) a desenhar a melhor forma de (continuar a) disponibilizar o meu arquivo. 

Este blog agradece muito, mas muito, as visitas e leituras e apoio. 

Este blog, ou seja, eu, deseja um bom Verão aos estimados leitores e despede-se com um até breve.

 

ps: muitos conteúdos deste blog vão ser promovidos diariamente e por temas (viagens, fadistas, escritores, banqueiros...) enquanto for Agosto na página www.facebook.com/AMotaRibeiro

 

 

 

Ler "O Último Banqueiro"

01.08.14

Em Setembro, vamos ler "O Último Banqueiro", o livro sobre a ascensão e a queda de Ricardo Salgado, e discutir os mecanismos do poder em Portugal.

O que o sustenta?, o dinheiro?, e que poder resta a Salgado depois da deflagração?, e como foi possível ter tanto poder em Portugal?

Com as jornalistas Maria João Babo e Maria João Gago, autoras do livro, e o sociólogo e comentador político Pedro Adão e Silva. 
Logo na primeira quinta-feira de Setembro, dia 4, às 18.30h, na Bertrand do Chiado.
Eu modero. 
Ler no Chiado é uma iniciativa da revista Ler e da Bertrand. 

Os mais lidos em Julho

01.08.14

As entrevistas mais lidas do meu blog em Julho foram:

 

5º Jacinto Nunes
http://anabelamotaribeiro.blogs.sapo.pt/jacinto-nunes-98826

 

4º Judite de Sousa
http://anabelamotaribeiro.blogs.sapo.pt/76909.html

 

3º Vítor Bento
http://anabelamotaribeiro.blogs.sapo.pt/vitor-bento-88854

 

2º Millôr Fernandes
http://anabelamotaribeiro.blogs.sapo.pt/millor-fernandes-142776

 

1º José Maria Ricciardi
http://anabelamotaribeiro.blogs.sapo.pt/jose-maria-ricciardi-90040

 

Obrigada pelas leituras e visitas. Bom Verão!