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Anabela Mota Ribeiro

Emídio Rangel

13.08.14

Excertos de entrevista a Emídio Rangel, publicada no DNa em 1999:

 

 

Sabe qual é a imagem mais recorrente que usam para o definir? «Nós sabemos que o céu é azul e o Emídio Rangel consegue convencer-nos em cinco minutos que, afinal, é encarnado».

Ao contrário do que possa imaginar, não fico nada feliz com o retrato.

 

Devia envaidecer-se dessa capacidade persuasiva, mobiliza as equipas.

Sempre trabalhei com equipas. Dirigi equipas desde muito cedo.

 

É verdade que aos 20 anos já dirigia rádios?

Sim. Dirigi aos 20 anos uma estação com mais de 80 profissionais. E, desse ponto de vista, não acho que tenha mudado muito. Não acredito na lógica da autoridade imposta pelo exercício de um determinado lugar. A autoridade ou respeito ou consideração por quem lidera um grupo tem que resultar da capacidade ou da competência ou das provas que esse líder acaba por dar. Numa televisão, em que ninguém faz nada sozinho, seria uma insensatez percorrer esse caminho. Tenho uma ideia de vida e de grupo que funciona quase numa lógica de clã. A autoridade conquista-se, não se impõe.

 

Nota-se.

Defendo as minhas equipas com unhas e dentes, com todas as minhas forças. Na generalidade das situações, as pessoas aceitam o que digo porque aceitam que está acertado.

 

Portanto concorda que o céu é azul?

Concordo. [risos] E é bonito.

 

Podemos voltar à fase em que tinha 20 anos e se viu a dirigir a maior rádio de Angola? Nessa altura ou mesmo antes, imaginava que teria uma vida gloriosa, heróica? Aventureiro talvez seja um bom epíteto para si.

Gosto da aventura, porque não? No entanto quero dizer-lhe que nunca perdi muito tempo a equacionar as coisas para diante, a fazer projectos a muito longa distância. Fui sempre tentando viver procurando concretizar coisas muito próximas. Vivo muito para o dia seguinte. Gosto do fluir da vida. Já estive em muitas situações em que a vida era assim e no dia seguinte era de outra maneira.

 

Isso obriga a uma relativização muito grande. Foi assim que percebeu o que vale realmente a pena?

Exactamente. Imagine ter a vida estabilizada num país e de repente está tudo em tumulto e há uma guerra que não pára e depois tem de começar tudo de novo, voltar ao zero absoluto.

 

Quando pensa nas vicissitudes da sua vida deve sentir-se orgulhoso. Chegou a Portugal nas condições em que chegou toda a gente vinda do Ultramar e conseguiu dar a volta em pouco tempo. Ao segundo dia estava a vender enciclopédias para sustentar a família.

Não podia deixar de considerar que isso me dá satisfação. Mas não fico expectante, parado a venerar um determinado percurso ou resultado que obtive. Sobretudo quando se vive numa profissão como esta. A comunicação social em geral é extremamente desgastante, mas a televisão talvez seja ainda mais.

 

Via muita televisão em miúdo?

Não, mas estudei muito televisão. Em Angola não havia televisão. Quando vi pela primeira vez já tinha 18 anos. Nessa altura, como hoje, a rádio tem um fascínio especial, tem uma linguagem intimista que me agrada imenso. Sobretudo quando se exercita, quando se está ao microfone.

 

Gosta da sua voz?

Se calhar poucas vezes gostei de me ouvir. Sou muito sensível à voz, que acho um elemento decisivo.

 

A voz revela tudo das pessoas?

Os olhos revelam muito mais.

 

Deve ter vivido histórias que todos os profissionais de rádio vivem: a paixão e a fantasia dos ouvintes, a construção que fazem da pessoa que lhes fala ao microfone. A voz é muito mais fantasista, na imagem está tudo desenhado e desfaz-se o mistério.

Tenho dificuldade em falar dessas coisas.

 

Mas porquê?

É verdade, havia muita gente que me escrevia coisas engraçadas.

 

Meninas?

[risos] Sim.

 

Depois conhecia as suas admiradoras?

Rarissimamente. Entra-se num processo de desconstrução do exercício radiofónico se porventura há uma grande ligação entre quem está ao microfone e o público. Ao contrário do que acontece na televisão.

 

Alguma vez ficou apaixonado por uma voz, sem saber se ela era gorda ou magra?

Aconteceu-me muitas vezes ficar apaixonado por vozes de pessoas que cantam bem! Comecei a fazer rádio aos 17 anos. A rádio era na altura o meio de comunicação social por excelência.

 

E porquê a comunicação social?

Não sei. Sempre estive muito voltado nessa direcção. Desde a escola primária, (sempre me envolvi nos jornais da escola, com a escrita).

 

O que é o precipitou no trabalho? A necessidade, a vontade?

Só a vontade. Logo a seguir entrei na Universidade e tive de conciliar uma coisa e outra. Fiz o bacharelato em Angola e a licenciatura cá. Depois ainda fui fazer umas loucuras, umas incursões em Direito, e estive quase até ao final do mestrado em Comunicação Social (vim dirigir a Sic a um semestre de terminar).

 

Posso fazer uma única pergunta pessoal?

Não lhe prometo resposta.

 

Concede que tem um enorme sucesso, pelo menos tem fama disso, junto das mulheres?

Acho que não devo ser juiz em causa própria!

 

Depreendo que sim! A pergunta é: Já lhe aconteceu o contrário, já teve desgostos de amor?

Já. A indiferença destrói-me completamente. [pausa] Estas não são as matérias de que gosto de falar. Mas enfim. Não sei viver as coisas sem inter-acção, sem comunicação.

 

Que idade é que tinha quando o deixaram ou não corresponderam ao seu amor? Deve sentir de maneira diferente consoante as fases da vida.

As situações a que me referi são de degradação de relações, que obrigam a que as pessoas se separem.

 

Trata-se de um desencontro depois de um encontro. Eu perguntava uma coisa diferente. Porque não se imagina que faça a corte a uma mulher que não quer nada consigo.

Também sou tímido!

 

Teve todas as que quis, portanto.

Tenho dificuldade em responder.

 

O pudor fica-lhe bem, é cavalheiresco. É um homem feliz, gosta de si?

Sim, vivo bem na minha pele. Quando por qualquer razão estou mal comigo, procuro resolver rapidamente.

 

Com quem é que desabafa, ou não quer dar de si a imagem de um homem que também sofre?

Não é um problema de imagem. Todas as pessoas têm o seu lado frágil, eu também tenho o meu lado frágil. Mas a vida é por vezes demasiado dura e obriga-nos a criar defesas. No que tem a ver com as minhas zonas frágeis consegui criar algumas defesas, mas sempre muito insuficientes. Suporto muito mal, numa relação de amizade, um amigo que trai outro amigo. Na minha cabeça é impensável, imperdoável, insuportável.

 

Não é capaz de perdoar?

Sou capaz de perdoar, não sou capaz de esquecer. Vivo de forma muito simples, agarrado a um conjunto de valores, não muitos, que marcam a minha vida e a minha postura; têm um carácter quase sagrado, não consigo imaginar que possam ser violados.

 

Essas regras têm a ver com a lealdade?

Lealdade, amizade. Nunca traí um amigo, jamais seria capaz de o fazer, tenho a certeza absoluta (posso não ter em relação a mais nada, mas em relação a isso tenho). É tão estruturante da minha maneira de ser! Mas sou muito tolerante, ao contrário do que pensa.

 

Não sou eu que penso.

São as pessoas que pensam de mim, eu sei. Sabe uma das coisas que me custa terrivelmente?

 

Esta distorção?

Hoje já aprendi a viver um pouco com isso, mas não me conformo. Não sei porquê, mas gostava de perceber: pessoas que nunca falaram comigo, que não me conhecem, formam uma ideia a meu respeito que passa por essa imagem de dureza. Sou o contrário.

 

Quando se é uma figura pública, é-se sempre uma ficção pública. Estava a ouvi-lo falar da amizade e a lembrar qualquer coisa que tinha lido sobre o assunto, «Ele é fiel aos amigos». Parece que toda a gente sabe tudo. Incomoda-lhe ser um homem público?

Incomoda-me. Gosto muito da minha privacidade.

 

Há alguma figura/ficção pública que gostasse de conhecer? No plano internacional, porque no nacional é muito fácil: telefona e manda buscar.

Gosto de conhecer pessoas. Se calhar, gostava de ter falado, off record ou não, com o Clinton. Para lhe dizer que foi completamente estúpido e que jamais deveria ter exposto a sua vida, quaisquer que fossem as consequências. Os valores da honra e da dignidade são tão fortes que gostaria de perguntar a um homem daqueles porque é não disse, «Sobre este assunto não tenho nenhuma declaração a fazer».

 

Não tem nada de que se envergonhe?

Todos temos fraquezas e não quero fazer o papel do príncipe perfeito. Mas acho que não tenho telhados de vidro, com franqueza.

 

A que é que é mais sensível?

Está a falar-me dos valores que não gostaria de ver tocados? Os que se prendem com a minha honra e dignidade.

 

E pessoas? Disse num entrevista antiga que a pessoa que mais admirava era a sua mãe.

É verdade. Marcou muito a minha vida. Encheu-me sempre de mimos. Eu costumo dizer que me alimento de mimos. Por isso me irrita tanto que as pessoas tenham de mim uma imagem dura.

 

É incrível como acaba por ser tão sensível à imagem que os outros têm de si.

É só esse aspecto. Somos todos sensíveis ao que os outros pensam de nós, não vivemos isolados. Já me habituei a viver com alguns inimigos, acho que não tenho muitos. Ultrapassada essa fase em que a minha fragilidade se manifesta, no dia seguinte renasço com mil forças para combater sobretudo essas coisas.

 

Quando esta entrevista sair quem é que lhe vai telefonar para a comentar? A sua mulher, a sua filha, o seu melhor amigo?

Essas pessoas, e também o meu pai. O meu pai liga-me sobretudo quando vê uma qualquer coisa que aparece num jornal sobre o processo não sei o quê. Fica preocupado, é verdade, porque também me encheu de mimos.

 

 

 

 

A primeira parte da entrevista foi essencialmente sobre televisão. Rangel era então o homem forte da SIC.

 

 

Depois das eleições, quando for redefinida a tutela da RTP, se o convite lhe fosse renovado, até porque o lugar está em aberto, e lhe fosse dada a tal carta branca, repensaria a sua posição? Ficar na Sic neste momento implica gerir uma fórmula de sucesso e decidir se vai pôr no ar programas que estão na 5ª, 6ª série. Muito pouco criativo para um homem com a sua ambição.

Gosto de desafios, gosto da vida marcada por um permanente exercício de criatividade. Mas a Sic, ao contrário do que pensa, é um projecto inacabado. Acredito que a plataforma que a Sic estabeleceu potencia um conjunto tão diversificado de iniciativas na área do audiovisual que é apaixonante imaginar o que está pela frente: projectos que passam pela internet, pelos canais temáticos. A Sic é extraordinariamente desafiadora.

 

Ainda na RTP, não seria socialmente apetecível nem para si nem para ninguém ser o algoz que despede 1500 funcionários.

Há certamente um campo enorme de soluções.

 

Sabia o que fazer com a RTP? Há quem pense que se trata de um esboço kafkiano sem resolução possível.

A RTP tem solução, como é óbvio. O problema essencial da RTP é uma dependência do poder político, que a asfixia e dificulta quer uma gestão equilibrada quer um exercício despido das utilizações que o poder político sempre faz.

 

E poder económico. Ainda nessa entrevista fez acusações muito graves dizendo que havia situações de corrupção na RTP.

Não é exacto. O que disse foi que, ao longo de muitos anos, fui lendo nos jornais notícias que davam conta de situações que não eram claras.

 

Foi abusivamente que fizeram manchete com a sua declaração, «Houve corrupção em direcções da RTP»?

Não sou responsável pelos títulos que os jornais fazem.

 

O título era retirado da entrevista.

Aquele título não foi retirado da minha entrevista. Aquele título excede completamente o que disse na entrevista.

 

Tenho a entrevista comigo. Importa-se de confirmar o que disse e o que não disse?

«Houve corrupção em direcções da RTP»; e o que disse foi que havia fumos de corrupção, e notícias que davam conta de irregularidades e situações pouco claras. Continuo a pensar que a RTP tem obviamente solução, mas parece-me essencial desde logo dar sinal do caminho que se quer percorrer. E o sinal de mudança na RTP passaria pela clarificação destas situações.    

 

O mais interessante, ainda do plano hipotético, seria se o Emídio Rangel fosse para a RTP combater o Emídio Rangel que deixou na Sic. Acha que seria imprescindível à Sic? E que evolução teria a Sic sem a sua tutela, confrontada consigo numa outra estação? Presumo que a programação não seria tão diferente, se afinal já testou aqui a fórmula do sucesso.

As coisas são diferentes. As pessoas são todas, sem excepção, substituíveis. Não é uma falsa modéstia. É a experiência profissional que me leva a dizer isto com muita serenidade. É preciso ter sempre bons quadros, pessoas competentes. Mas com mais ou menos dificuldade é sempre possível substituir as pessoas.

 

Olhe para a míngua de directores de canal que temos neste momento! O espectro é diminuto. Se nos perguntarmos quem poderia substituir Maria Elisa na RTP nem ocorre nenhum nome suficientemente forte e consensual.

Eu criei a TSF, na totalidade. No dia em que tive de sair, e saí com a aquiescência dos meus companheiros de aventura, tinha a certeza que a TSF jamais morreria. Aqui também seria inteiramente possível. A questão que me colocou transcende um pouco isto. Não era uma situação em que gostasse de me ver envolvido.

 

Não gostava de sair para acicatar os filhos, é isso? Esta imagem dos filhos não é tão extemporânea quanto isso.

Até é adequada. Para mim seria angustiante. Estas coisas saem também das entranhas.

 

Sendo obstinado como é, tenho a convicção que se aceitasse um desafio com essas características, era um pouco o seu nome e a sua honra. Manifesta sempre vontade de levar os desafios até ao fim.

Levo sempre os meus desafios até ao fim. Também não tenho por hábito abandonar os projectos numa fase crítica. Mas sinto-me bem onde estou.

 

Ganha assim tão bem?

Ganho bem. [riso] Não me peça que lhe apresente a minha folha de salários.

 

Podem aparecer contra propostas. De certeza que o dinheiro não é tudo.

Garantidamente não é. As questões essenciais não passam pelo dinheiro. Mas a partir de uma determinada fase esse factor não é desprezível. Quando vim para a Sic as questões que coloquei ao Dr. Balsemão prendiam-se com condições de trabalho, não discuti sequer os meus salários. E achei sempre que teríamos um quadro enquanto a Sic não fosse uma empresa sólida e lucrativa e outro quadro depois de ter atingido essa plataforma.

 

Tem fama de pagar muito mal. Conheço uma situação flagrante de um programa que está no prime-time com 20% de audiência cujo apresentador recebe um terço do cachet que outros auferem na RTP, sendo que estão também em prime-time mas com apenas 2% de audiência. A Sic tem lucros.

Elevados. Os projectos para poderem ter continuidade, estabilidade, exigem que haja lucros, em muitas circunstâncias lucros substanciais, para poderem progredir. É mais sensato e gratificante para as pessoas que aqui trabalham sentirem que os projectos avançam porque geraram riqueza.

 

Sentem-se um bocadinho mais tocados se a riqueza também chegar aos seus bolsos.

Sem dúvida. As empresas de comunicação social são empresas de pessoas. O principal património destas empresas não são as máquinas, por mais sofisticadas que sejam.

 

Justamente por isso, não teme que as suas estrelas vão embora para ganharem três vezes mais?

Não concluí o meu raciocínio. Acho que tem consistência aquilo que vou dizer, até porque conheço outras experiências e tenho muitos contactos desse ponto de vista. É preciso que em Portugal se não repita a experiência espanhola. Em Espanha, quando apareceram as televisões privadas, nasceu uma competição feroz entre as várias estações, toda a gente perdeu a cabeça; os custos de produção subiram a níveis tão altos que em determinada altura todas as estações estavam com elevadíssimos défices. O resultado foi tão simplesmente este: houve gente que em dois anos, não mais, ganhou verbas impensáveis para a realidade do mercado espanhol e passado três anos ficou sem emprego.

 

Que eu saiba, nenhum dos televisivos portugueses enriqueceu em dois anos.

Isto para dizer que é preciso ser prudente. Sem prejuízo do princípio que referi (segundo o qual as pessoas, sendo o património mais valioso das empresas de comunicação, devem ser beneficiadas), acho absolutamente necessário não perder de vista que uma gestão equilibrada, contida, permite que a estação possa ter chegado a este lugar. A estabilidade do emprego é, do meu ponto de vista, marcante.

 

Para os convencer a ficar diz coisas como, «Para que vais para lá, (referindo-se à TVI), aqui tens tudo!»

Não.

 

Diz, diz.

Costumo dizer outra coisa. As pessoas têm direito a tudo, a escolherem os caminhos que entendem, e até a cometerem erros. Sempre que me colocam questões dessa natureza, forneço informação que ajude à reflexão sobre essas matérias.

 

Como está bom de ver, viciada, porque se trata da sua informação.

Porquê viciada? As pessoas sabem que é a minha. Ficam entregues a si próprias com a responsabilidade de decidirem qual é o seu caminho. Bato-me ferozmente para que os profissionais da Sic sejam os mais bem pagas da televisão portuguesa.

 

Sabe que não corresponde à verdade.

Está mal informada. 

 

Voltamos ao mesmo. Porque as pessoas a quem me referia há pouco, e a propósito da precariedade do trabalho, nem sequer são pessoas dos quadros da Sic. Têm um contrato por 13 programas e a seguir não têm qualquer garantia sobre o que lhes vai acontecer. Quer dizer que ficam completamente nas suas mãos e ainda por cima mal pagas, o que é espantoso.

Tem uma imagem terrível de mim! [risos]

 

Não tenho. Traçaram-me o quadro de uma pessoa extremamente persuasiva e quase sibilina na maneira como se insinua a quem quer a trabalhar consigo. 

É um puro exagero. Sou uma pessoa de convicções. Quando estou convencido de uma coisa, explicito com muita clareza o meu pensamento e digo as coisas que sinto e penso, sempre, a quem quer que seja. Admito que possa ter interpretações perversas, como essa. Podia adoptar uma atitude distanciada, mas não faz parte do meu carácter. Sou emotivo, funciono com os nervos mas também com o coração. Às vezes, a forma como exprimo os meus pontos de vista, leva as pessoas a acharem que é uma..., qual foi a expressão que usou?, talvez uma apurada capacidade persuasiva..., não quero falar da sibilina, porque essa magoa.

 

Não foi intencional.

[gargalhada] As portas do meu gabinete estão abertas. É preciso partir do princípio que quando conversamos cada um põe os seus argumentos na mesa. É uma regra. Falo com toda a gente, toda a gente tem a possibilidade de dizer o que pensa sobre as coisas todas.

 

Interessa-lhe saber, deveras?

Interessa-me bastante. Gosto que as pessoas coloquem na mesa as coisas todas e o façam com a mesma frontalidade... Quando estou convencido de uma coisa não atraiçoo, nem engano ninguém. Nunca estou nas coisas com um pé dentro e outro fora, em regimes de ambiguidade. Se não pusesse esta intensidade, e ponho-a em relação às coisas mais insignificantes até às mais complexas, seria uma hipocrisia. E eu odeio os hipócritas.

 

As relações de poder estão muitas vezes viciadas pelo argumento da subalternidade.

Comigo na Sic, não há uma lógica de subalternidade; sentir-me-ia completamente defraudado! A esmagadora maioria das pessoas chegam aqui e dizem com clareza o que pensam e o que sentem.

 

Não acha que é temido?

Não.

 

É um homem muito poderoso, um dos homens mais poderosos do país.

Não diga isso. Não é verdade, e se lhe pedisse para sustentar essa tese não encontraria forma.

 

Encontro. Não vou voltar à esgotada máxima de que é capaz de vender um presidente porque já se cansou de explicar nas entrevistas que se usou a frase descontextualizadamente. Mas quando olhamos para a forma como o Vale e Azevedo foi eleito, para os spots que passavam na Sic exortando a uma ida à Luz e dando vivas ao Benfica, e apesar de refutar o poder que a televisão tem junto das pessoas, penso, ao contrário, que a Sic tem muito claramente a noção da influência fortíssima que tem na vida das pessoas.

Tem, é verdade.

 

O senhor é só a pessoa que comanda tudo isso. Donde, é um homem muito poderoso. Há milhões de pessoas que vêm aquilo que decide que elas devem ver.

É um argumento reversível. Como a minha preocupação é a de pretender que as pessoas vejam também aquilo que querem ver, também me submeto. Uma das vertentes do meu trabalho é de permanentemente saber quem tenho pela frente, quais são os nossos alvos: lêem ou não lêem, o que fazem, quais são os seus hábitos.

 

A democraticidade total do gosto pode ter efeitos muito perversos. Se quiserem ver o Ratinho, ou o Jerry Springer, ou outros a matarem-se em directo, também poderíamos partir do princípio que quem quer vê, quem não quer não vê. Inteiramente verdade. As pessoas procuram a televisão, como procuram o teatro ou o cinema ou um jornal, com um determinado objectivo. E se aquilo o satisfaz, fica a ver, a ler, em função do que é o seu gosto e que resulta de valores que não dominamos, nem podemos dominar e ainda bem que não dominamos.

 

Então para esta democraticidade total do gosto há limites?

Claro que há limites.

 

Concorda que há programas abjectos?

Não defendo nunca, em nenhuma circunstância, o exercício de censura. Mesmo quando estamos a falar de programas sinistros como o do Ratinho. Mas se uma estação decidir pôr no ar um programa daquela natureza, tem o direito de o transmitir. Não aceito nunca a intervenção do Estado em matéria de conteúdo comunicacional. Logo veremos como os públicos reagem em relação a isso.

 

Temos visto que reagem bem, que gostam.

Em relação aos que foram transmitidos, os resultados foram desastrosos.

 

Se não se importa, falamos da TVI mais tarde. Não acha que alguém a comer larvas é o princípio da abjecção?

Admito sempre que neste ou naquele programa se possam cometer erros. A Sic não é uma organização perfeita ou preparada por pessoas perfeitas. Faça o balanço da Sic; veja os erros que a Sic cometeu, sem dúvida, mas ponha do outro lado tudo o que a Sic fez na área da informação, do entretenimento, do cinema, da ficção. E quando olhar para isso tudo, há-de concluir que esta equipa de profissionais, somos 300 e tantos, fez alguma coisa pela televisão, honra os valores da profissão na televisão e honra os valores da cultura.

 

O episódio das larvas é só uma face muito visível de programas que foram muito contestados.

Foram contestados sem nenhuma fundamentação.

 

Oh.

Desculpe lá, é verdade.

 

Era capaz de inverter as proposições e de participar ou ver participar uma pessoa da sua família num desses programas?

Se as pessoas não se sentem violentadas... Porque aqui ninguém engana ninguém.

 

E nós vemos na cara delas como precisam dos 100 ou 200 contos. Além do folclore de chegarem à terra e toda a gente os ter visto na televisão.

Não acredite nisso. Defendo que as pessoas comuns devem chegar à televisão e devem ser objecto de notícia. As coisas que acontecem nas suas vidas e nas suas terras devem ser tratadas com o mesmo respeito com que se trata uma visita ministerial. É uma formulação antiga, que rejeito também, de que à televisão só têm acesso as elites.

 

Nesse aspecto, concordo absolutamente consigo. Mas o senhor sabe que estou a falar de uma outra coisa: de alguém que é violentado publicamente a troco de 200 contos.

É uma visão profundamente elitista. E sabe porquê? Porque se parte do princípio que aquela pessoa é inválida, incapaz de pensar e decidir por si própria ou de ter sentido crítico. Tudo o que aprendi diz-me com uma enorme segurança que as pessoas actuam com uma liberdade de pensamento, de movimento, de gosto, e que ninguém as consegue segurar se por acaso se sentem violentadas, como espectadores ou como protagonistas.

 

Olhe o que aconteceu com a massa do Futebol Clube do Porto quando percebeu que a Sic estava demasiado ligada ao Benfica.

A Sic não perdeu um único espectador no Grande Porto por se ter envolvido numa situação de conflito com o Futebol Clube do Porto.

 

Como sabe vivi no Porto. Assisti a manifestações de adeptos do Futebol Clube do Porto frente às instalações da Sic, gente enfurecida que não tinha o propósito de continuar a ver a Sic. E conheço pessoalmente pessoas que deixaram de ver a sua estação.

Não consigo aceitar uma discussão a partir de uma formulação dessa natureza. O que estou a dizer pode provar-se: é muito fácil pegar nas nossas audiências e verificar que não perdemos expressão e que o Porto sempre respondeu da mesma maneira.

 

Imagino que diga a mesma coisa em relação à TVI. Nas suas entrevistas e declarações recentes diz que a Sic não tem sido beliscada pela investida da TVI. No entanto, tenho aqui uma sondagem em que o quadro da Sic apresenta uma curva levemente descendente e o da TVI, ao contrário, é ascendente.

[risos] Basta olhar para o quadro para perceber que não significa nada. A Sic está a subir. Sabe quanto é que a Sic teve ontem de share? 51, 9%! Estamos a entrar em Setembro e a sua média anual é de 48%. O ano passado a Sic fechou com 48%. Ou seja, tem exactamente o mesmo valor. Continuamos a ter as audiências que sempre tivemos; houve um período em que houve alguma instabilidade e que resultou da circunstância de se ter passado de uma empresa de audiometria para outra. Fora isso, a realidade é inquestionável: a TVI tem uma média de 17 pontos.

 

Concluindo, não está nada apoquentado com a TVI?

Nada. Eu gosto dessa competição.

 

Os novos formatos da TVI são similares aos da SIC. O rumo parece ser o mesmo.

Não é. Não quero diminuir a TVI, e até acho desejável que se equilibre e funcione como um meio bem estruturado, é bom para o país. A pluralidade de órgãos de comunicação social é o oxigénio da democracia. Agora, não comparemos uma coisa e outra. A Sic afirmou-se desde o primeiro dia por uma informação marcadamente profissional, rigorosa, independente.

 

Não foi essa informação que marcou o ponto de viragem nas audiências da Sic, mas sim a aliança com a Globo. As telenovelas não podem ser depreciadas e parecem ser ainda hoje o elemento fulcral à volta do qual gira toda a programação do prime-time.

Não é verdade, lamento desiludi-la.

 

Gostava de o ver sem as telenovelas da Globo.

Chegámos praticamente à liderança e a RTP tinha as novelas da Globo. Mais, a RTP tinha o futebol todo.

 

Na primeira fase da Sic, assumiu numa entrevista que seria um suicídio sem as telenovelas.

Não estou a minimizar esse produto, que é importante e interessante. E mais interessante ainda do ponto de vista económico: é mais barato comprar uma novela à Globo do que produzir uma novela aqui. Não acredite que se pegássemos nas novelas da Globo e as puséssemos na TVI, ela passaria a líder.

 

Acredito que com uns bons programas à volta, lá chegaria. 

Quais bons programas? Se me disser que a TVI ou a RTP, escolha a que lhe apetecer, tiver uma boa programação das oito às três da manhã e também lá estiverem as novelas, é evidente que sim. Endeusou-se a novela! Não é um produto milagroso e as pessoas tentam encontrar justificação para os seus fracassos falando da novela. A televisão é uma construção diária que nunca se fará de um só produto. É, por isso, simultaneamente um processo apaixonante e angustiante. O que é de facto decisivo, não é um dia subir e liderar durante uma hora, e depois no dia seguinte estatelar-se completamente. O que é significativo e difícil é manter todos os dias essa passada.

 

A título pessoal é ainda na informação que se realiza?

Eu sou jornalista. Era impensável ficar indiferente à informação para quem criou uma estação de notícias, para quem fez reportagem toda a vida, para quem ganhou... Não devo dizer.

 

Diga.

Ia falar dos prémios que ganhei, mas não vou falar nisso. Mas cada vez mais estas coisas se ligam. A ideia da informação na sua quinta e da programação noutra quinta, quase digladiando-se com o director de informação de um lado e o da programação do outro passou à história. Hoje, a intersecção destas duas realidades está cada vez mais presente, estabelecendo necessariamente as fronteiras de cada uma.

 

Os próximos tempos prometem ser animados: As Legislativas estão à porta e supostamente rediscute-se a tutela da RTP; foi lançado o Canal de Notícias de Lisboa, (que poderá entrar em concorrência directa com um projecto paralelo que está a pensar lançar); a TVI dá mostras de grande combatividade; e há ainda a hipotética candidatura do Dr. Balsemão às Presidenciais que nos faz pensar imediatamente nalguns factores. Por um lado a Sic tem assumido o bastião da independência e da isenção.

E vai continuar.

 

Por outro lado, não acha que será difícil não haver alguma promiscuidade? Recordo o caso do João Carreira Bom que foi despedido do «Expresso» por ter atacado pessoalmente o presidente do jornal. Não poderemos pensar numa contenção na forma como alguns assuntos ligados à candidatura à presidência do Dr. Balsemão vão ser abordados, precisamente porque esta casa é dele?

Não. Não vai haver nem contenção nem uma outra coisa que é tão perversa como essa auto-limitação, que é uma tentativa de ostracismo, (a palavra talvez seja demasiado forte, mas julgo que a dada altura o Dr. Balsemão chegou a ser quase ostracizado no «Expresso»). As duas são falsos exercícios de independência. O maior património da Sic, desse ponto de vista, é a sua independência e a sua distância.

 

Acredita mesmo que será assim tão fácil separar as águas?

Nada é fácil, mas não significa que não seja exequível. Seria completamente insensato que um qualquer director deixasse que a Sic, que ganhou o seu lugar à conta do prestígio da informação que produz, deitasse por terra todas estas coisas. O Dr. Balsemão, não sei se vai ser ou não candidato, é uma questão de natureza pessoal.

 

Mesmo que já tenho assumido o seu apoio.

Por acaso, há aí de novo uma adulteração.

 

Esta sua relação com os jornalistas é mesmo complicada!

Não é com os jornalistas, é com o rigor. O que disse foi isto: até agora não vi aparecer ninguém em melhor posição e que reúna um melhor conjunto de qualidades para o exercício presidencial tal qual ele foi moldado pelo Dr. Soares. Porque se estiver a falar de outro exercício posso achar que o Dr. Balsemão não é a pessoa indicada.

 

Posso perguntar-lhe em quem votou nas últimas presidenciais?

Nas últimas eleições presidenciais... Nas últimas eleições presidenciais, votei em branco.  Não tenho nada contra o Dr. Jorge Sampaio. Acho é que o Presidente da República, num país pequeno como este, que tem dificuldades de movimentação no contexto da União Europeia, que precisa de ser hábil, inteligente, actuante, precisa de uma boa inter-relação com os outros países. Não é uma tarefa que possa ser desenvolvida só pelo governo; o Presidente da República precisa de ser uma pessoa com uma boa capacidade de relacionamento internacional, que tenha gosto por essa função e abra portas por força dessa relação e prestígio. Hoje não podemos ter um Presidente que se fecha no Palácio de Belém e que faz uma ou outra saída esporádica. Em minha opinião, é estrategicamente decisivo para o país que assim aconteça.

 

Podia trazer outras conjecturas ainda a propósito da promiscuidade e demarcação dos campos com a eventual candidatura do Dr. Balsemão à Presidência. Mas a sua inteligência e sagacidade, consensuais mesmo entre os seus adversários, fazem com que consiga burilar todas estas questões e encontrar-lhes uma resposta. Ou, se quiser, não vinha entrevistá-lo na esperança de grandes respostas que não tivessem sido preditas em seis ou sete anos de entrevistas.

O seu raciocínio é preconceituoso. Acredite que na generalidade das situações o que faço é tão simplesmente dizer o que resulta da forma como vejo e analiso e penso as coisas. Isso quase implica o que me irrita no discurso político, essa ideia que está subjacente à sua pergunta: a de que os políticos são hipócritas.

 

Não foi o que eu disse nem está subjacente à minha pergunta.

Eu não faço habilidades: digo o que penso, o que sinto. 

 

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 1999

Emídio Rangel morreu a 13 de Agosto de 2014