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Anabela Mota Ribeiro

Jorge Silva Melo ("Esta Noite Improvisa-se")

29.09.14

“Esta Noite Improvisa-se” é uma exortação à liberdade. Por vezes interrompida pela contingência. Um carrossel frenético que fenece a duas voltas do fim. O debate de uma questão central na obra do autor italiano: o que é que é da arte, o que é que é da vida?

Uma peça tardia de Pirandello, escrita em Março de 1929.

A primeira pergunta é de um espectador da plateia: “Que é que se passa?”. A segunda intervenção é de outro espectador: “Parece que estão a discutir no palco”. Um outro, das primeiras filas, dá a resposta e introduz a dúvida: “Talvez faça parte do espectáculo”.

O que é do espectáculo, o que não é do espectáculo?

Jorge Silva Melo é um encenador de um texto que é sobre o teatro no teatro. De uma peça que tem dentro outra peça, e portanto outro encenador. Uma peça que parece ter vida própria e por isso extravasa as fronteiras-regras teatrais.

Como se o texto viesse por fora. Como se os personagens se insubordinassem em relações aos seus actores, e estes não soubessem mais onde são uma coisa e onde são outra, e mais outra. Onde é que a Lia Gama é na peça a mãe da Mommina. Onde é que a Lia Gama é na peça a actriz que interpreta a mãe da Mommina. Onde é que a Lia Gama é a mulher que reconhecemos como sendo a Lia Gama e que interpreta estas duas personagens na peça de Pirandello. Até onde é que Silva Melo a deixa estar como Lia. Até onde a quer como uma evocação da sua própria mãe. Até onde lhe pede que seja o que Pirandello permite.

A peça permite quase tudo. A base é a vida de uma família siciliana, com uma mãe gaiteira, um pai debochado, umas filhas que fazem que escapam a umas aves de arribação – uns militares. Há o marido ciumento de uma delas, a mais delicada e talentosa, que morre de tristeza. Há um público que assiste e que não sabe o que pensar daquela barafunda. Há um director desta orquestra desafinada que não consegue impor a ordem. Silva Melo fala de uma “girândola de efeitos que anuncia a ficção da realidade”. Ate ao fim da noite, vive-se nesta ambiguidade. Improvisa-se a partir dela.

 

 

É fácil pensar em si como o Doutor Hinkfuss, o personagem que faz de encenador. Contudo, a personagem central é Mommina, a mais talentosa das filhas da família La Croce. Em que momento da sua vida se identificou com ela?

A Mommina é a personagem com que todas as pessoas que fazem teatro se identificam. Sacrificar a vida e morrer a cantar é um daqueles sonhos que todos têm. O Montaigne dizia: “Que a morte me apanhe semeando flores”. Ou seja, enquanto há vida. Dando vida. Esta foi uma das primeiras peças que li e pensei traduzir. Esta tradução [de Luís Miguel Cintra e Osório Mateus] foi editada por mim em 74, mas foi encomendada em 72; eu tinha 23 anos. Depois não se fez. Mas é esta mesma tradução [revista por JSM e José Maria Vieira Mendes] que está a ser seguida. Neste momento, identifico-me mais com a Mãe.

 

Dona Inácia. Porquê?

Há um momento que me toca particularmente: quando a mãe pede à filha que cante, e diz: “Eu pago por elas. Elas que sejam felizes”. Acho tão bonito… É a mãe da “Belíssima”, do Visconti. Todos os seus sonhos serão realizados – não por ela, que já falhou a vida, embora mantenha um certo panache; mas por aqueles que continuam. A peça tem uma dedicatória muito comovente, a Marta Abba, a amante e actriz principal de Pirandello: “Para que eu não morra”. Este “para que eu não morra” aplicado aos actores é um lema para mim. Se calhar por isso é que fundei os Artistas Unidos. Se calhar por isso é que quero que os Artistas Unidos se dissolvam e reapareçam noutros sítios, e que cada um continue a existir por si próprio. É provavelmente por isto que gosto tanto da peça: por começar numa grande barafunda, e acabar com uma actriz sozinha no palco, quase sem cenário, a contar durante 20 minutos a sua vida. 

 

O universo da peça é felliniano. Mas se pensamos num corpo para Dona Inácia, antes de sabermos que Lia Gama a interpreta, pensamos na “Mama Roma” de Pasolini, ou no “Belíssima” de Visconti. Ambas interpretados por Anna Magnani.

A Lia, que foi vamp, não é só a Anna Magnani. Também é a Magali Noël do “8 ½”, e aquelas italianas que gostam de se aperaltar. Há uma frase do Max Ophüls de que gosto muito: “A frivolidade só é frívola para quem não é frívolo”. O direito a ser frívolo, a gostar de coisas pindéricas, de estolas e quicos, é tão bonito…

 

O que é que gosta nisso?

É querer superar a pobreza da sua pobre vida, de mulher casada, mal casada. Uma mulher que saiu da sua terra, de Nápoles, e vai viver para uma terra mais provinciana do que a sua, a Sicília. Tenta superar [a sua condição] pelo canto das suas filhas. E com uma educação controversa, com a semi-prostituição das filhas.

 

Noutro meio social, poderia ser lido como uma apresentação social, uma preparação para um bom casamento – sem esse estigma da prostituição.

Nesta condição social, que é a pequena burguesia, há uma mistura de: tentar a independência das filhas (pelo canto); uma delas, a Totina, vai ser cantora profissional. E tenta casá-las. Casá-las com as aves de arribação. O que ela faz, porque a vida não lhe corre muito bem, é abrir a casa para os militares passarem lá noites divertidas. Acha que é uma maneira moderna de conviver. Na terra, é mal vista.

 

Estamos na Sicília…

Penso que tem muito que ver com um gosto provinciano do Pirandello: a especulação da má língua. Uma senhora de quem fui amigo, pintora, Titina Maselli, sobrinha da mulher do Pirandello, que vivia no mesmo prédio quando era pequenina, dizia: “Aquilo o que era?, era um homem da Sicília que gostava de estar à esquina a dizer: “Esta é casada com aquele, mas anda a sair com o outro”. Sem consequências. O que ele gosta é de explorar as hipóteses narrativas”. Efabular. Gosta da má língua sem maldade. Gosta das hipóteses romanescas que o real lhe oferece. A Titina dizia que ele era como o boticário da aldeia.

 

Hoje diríamos que tem alma de porteira.

Se fosse numa grande cidade, teria alma de porteira. Antes, seria o da farmácia ou o da mercearia da aldeia.

 

Por falar em exploração das hipóteses romanescas: é um pouco como quando ia com a sua mãe, aos sábado à tarde, ver casas para alugar, só pelo prazer de inventar vidas que ali poderiam ter. “Aqui seria o teu quarto, aqui o sofá…”. 

É tal qual. Na mãe, na Dona Inácia, há muito da minha mãe. A minha mãe era uma pessoa alegre; odiava, por exemplo, ir ao cinema: “Que estupidez, fechar-me numa sala escura onde não conheço ninguém!”. Do que ela gostava era de bailes, encontrar pessoas, dançar, falar com os outros. O meu pai gostava muito de cinema. Visitar casas para alugar é também essa maneira de efabular. O começo do “Détective” do Godard, é isso. Vê-se uma rapariga na porta de uma estação: o que é que ela estará a fazer?, estará à espera do amante?, porque é que volta agora? Essa vontade de efabular é uma coisa que nos faz viver. Não é necessariamente um desejo de encontrar explicações. Eu não quero saber se aqueles são casados…

 

Não lhe interessa a verdade? Um detective ocupa-se da verdade.

O que eu gosto é de levantar hipóteses a partir do real. Se são verdadeiras ou não… Quanto mais engraçadas forem, é do que o Pirandello gostava. A minha mãe, que não era casamenteira como a Dona Inácia, gostava de se divertir. Apreciava o prazer. O meu pai, como muitos homens da época, era sorumbático, trabalhador e carrancudo. Casaram-se nos anos 30 e este era muito o casamento pequeno-burguês do fascismo.

 

Não sei até que momento a sua mãe o acompanhou, e como seguiu o seu percurso no teatro. Como deu autonomamente, sem ela, vida às personagens do teatro, às histórias.

A minha mãe achava muita graça às coisas que eu fazia. O meu pai também. O meu pai morreu mais cedo; tinha acabado de estrear os “Tambores na Noite” do Brecht. A minha mãe morreu estava eu a preparar o filme “Agosto”. Não viram as personagens que inventei para eles (de certa maneira) no “António, um Rapaz de Lisboa”, ou aqui. Mas há traços de que só me poderia lembrar [a partir da minha mãe]. A estola. O quico da Lia. A vontade de ir à ópera a mostrar-se quando entra. São coisas que herdei da minha família ou dos amigos dos meus pais. Também muito na leitura de um escritor que está injustamente esquecido, o Rodrigues Miguéis.

 

Mas esse ambiente era o seu? Percebe-se o fascínio em diversos momentos dos seus filmes e das suas escolhas. Mas a par disso há uma sofisticação intelectual e cultural. E a sua família não coincide com isso que descreve.

Pois não, era mais sofisticada. Mas não me vejo a montar peças passadas na alta burguesia. Não sei porquê. Gosto da vitalidade das personagens da pequeno-burguesia que tentam sobreviver mesmo desajustadas do seu local. Gosto mais da vitalidade da Claudia Cardinale do que da decadência, inteligentíssima, do Burt Lancaster, n’ “O Leopardo”. [risos]

 

Não acontece com a Claudia Cardinale, mas acontece na “Belíssima” e também em “Esta Noite Improvisa-se”: um certo grotesco. A sua opção é fazer o espectador sentir não o grotesco, mas comiseração…

Pelas pessoas. Pirandello chamou ao conjunto das suas peças “Máscaras Nuas”. O que é uma máscara nua senão uma aproximação do grotesco? Se há coisa que detesto é um espectáculo em que se desprezam as personagens. Sempre peço aos meus actores: “Vocês são o advogado de defesa da vossa personagem”. O Eduardo De Filippo tem uma coisa genial: “O actor é o confessor da personagem, conhece todos os seus defeitos, perdoa-lhes, conhece-o intimamente e é o seu guia espiritual”. O grotesco é [o advogado de] acusação da personagem. Já que as pessoas estão juntas uma noite, que olhemos uns para os outros com amor.

 

Também é capaz dessa impiedade…

Sim, gosto da crueldade e do Billy Wilder. Mas o Billy Wilder não despreza as personagens.

 

É corrosivo, pelo humor. E pela mão dele, conseguimos sentir simpatia pelos canalhas.

É disso que gosto. É mau para a sociedade. Mas a Shirley MacLaine é sempre perdoável.

 

O seu teatro é humanista – é o que está a dizer?

Gostava de fosse cálido. Mesmo quando há acusação. O [Harold] Pinter também me ensinou isso. Há aquele personagem horrível que interpretei, que é um torturador, um homem desprezível. Ele próprio, Pinter, interpretou aquela personagem. O teatro e o cinema devem permitir-nos ver aquilo que uma acusação não deixa ver.

 

Ainda que o seu encontro com a peça tenha sido há anos, se a pusesse em cena com 23 anos o resultado seria diferente do que agora podemos ver no D.Maria.

Muito diferente. O que é possível agora é a rapidez. Esta peça costuma demorar três horas, três horas e 20. [A minha] sem cortes nenhuns, não demora mais do que uma hora e 50. Foi uma coisa que adquiri na vida, e também por fazer cinema. O domínio do tempo. Por outro lado, a minha ideia é que toda a primeira parte até ao monólogo final da Mommina deve ser um carrossel, uma valsa vertiginosa.

 

Para conseguir isso, pensou no Max Ophüls? Uma das ideias centrais no cinema deste autor é a de Movimento, e também a dança. Não por acaso, é “o cineasta vienense”.

Claro. Pensei logo na “Lola Montès”. Queria que se adensasse e que fosse strindberguiana nas duas cenas finais. Como no princípio do “Le Plaisir”: é uma valsa, uma valsa, uma valsa, e depois vê-se a máscara da morte. Gosto destas peças que mudam de estilo.

 

Estávamos a falar do que teria feito se tivesse pegado na peça aos 23 anos.

Nunca teria percebido na época que o Fellini só era possível nesta cultura. (Eu teria feito uma encenação mais viscontiana – ou seja, nobre, lenta, respeitando os códigos teatrais). Descobri-o há dois anos num espectáculo que vi em Itália, e que era mau, de um encenador muito bom, o Federico Tiezzi. Tinha uma ideia engraçada: ele achava que “Os Gigantes da Montanha” era a origem de “Julieta dos Espíritos” do Fellini. Eia pá, nunca me tinha lembrado desta! E realmente, quer o “8 ½” quer o “Amarcord” só eram possíveis numa cultura onde esta destruição da narrativa já tivesse sido possível.

 

Pirandello destrói a narrativa e integra o caos. Dá-se a espantosa coincidência de…

Ter nascido numa terra chamada Caos! Ao pé de um vulcão.

 

Esse lado vulcânico de Pirandello, faz pairar sobre a peça a permanente ameaça da erupção. Esta família La Croce tem uma mãe que é de Nápoles e um pai siciliano. Tudo se passa entre o Vesúvio e o Etna.

Entre vulcões. Essa ameaça está na mais bonita encenação de Pirandello que vi, que alguma vez será feita, a de Klaus Michael  Grüber, em 80. A ideia para as “Seis Personagens” era que elas eram vítimas de um tremor de terra. É evidente que a terra treme debaixo dos pés desta gente. A terra, a verdade, a incerteza, e mesmo estas passagens entre uma coisa e outra [o carnaval e o adensamento final] também têm que ver com um tremor de terra. Na peça, uma personagem volta-se para o público e diz: “Não é um incêndio?”; e eu modifiquei e pus: “Não é tremor de terra?”. A imagem era importante, a terra estava a revolver-se. Nada ficava assente.

 

Tudo na vida daquelas personagens estava em convulsão.

Até que tudo assenta. Numa mesquinhez que vai levar à morte da Mommina. Mesquinhez strindberguiana, psicológica, em que o ciúme mata tudo. Depois, descobri que as cenas finais são um resumo do “Otelo”. É um homem que emprenha pelos ouvidos, começam-lhe a dizer que a mulher o atraiçoa e ele não a mata, mas ela deixa-se morrer. A cantar, tal como a Desdémona. O nosso amigo Pirandello fartou-se de roubar citações musicais e dramáticas também ao Verdi – que fez o “Othello”.

 

Esta é uma das últimas peças do Pirandello.

Foi escrita há 80 anos. Eu tenho 60. É muito raro dirigir peças de velhos. Mesmo quando dirigi Shakespeare ou Brecht, foram obras de juventude. Gosto da imprecisão das obras dos jovens. De não dominarem ainda o material. Também gosto das últimas… Se calhar chegou à altura de me interessar pelas últimas, quando os autores se estão nas tintas para a ordem. Já podem, como aqui, ser tão livres. Começou a minha altura de fazer últimas peças.

 

Quer isso dizer que se sente a envelhecer?

É evidente.

 

Não estou a dizer que está a envelhecer. Estou a perguntar se se sente a envelhecer.

Estou. Estes dez anos senti-me envelhecer, e este ano, envelheci muito. Comecei a pensar: “Estou há um ano sem fazer nada. Isto não pode ser, não tenho Companhia, está tudo a desaparecer. Porque é que não estão a ser aproveitados estes meus anos? Apesar de tudo, tenho coisas para dizer ou para fazer”. Não posso partir para o estrangeiro.

 

Viveu anos no estrangeiro.

Não posso partir porque já estou velho e a minha irmã também. Sinto a velhice e as responsabilidades que não sentia há dez anos. A minha irmã tem 72 anos, está diminuída, e somos as únicas pessoas da família. Não posso pegar nas malas e ir para Paris ou Berlim como fui tantas vezes. Se o ano que eu tive o ano passado tivesse acontecido há dez anos, não estaria cá. Agora, não. Vai ser aqui que vou morrer. Vai ser aqui que vou ter que me organizar. Esta espera pelas obras d’ A Capital, que se eterniza (até à chegada ao poder do Santana Lopes, brevemente!), tem sido muito desgastante. Não sei onde vou parar. Fiz uma peça com um título danado: “Onde vamos morar?”… [risos] A dedicatória da peça já é o lema. Enquanto, até agora, eu gostava de estar na origem de muitas coisas, agora já estou egoisticamente a pensar: “Para que eu não morra”.   

 

Nos anos que antecederam a fundação dos Artistas Unidos, esteve em casa, parado e deprimido. Foi o mesmo “para que eu não morra” que o fez fundar a Companhia?

Não pensava muito nisso. Pensava que eu era preciso para que aquelas pessoas encontrassem algumas bases. E queria tornar útil a aprendizagem privilegiada que tive pelo mundo fora. A ideia era: quero ser útil, quero ser útil, quero ser útil. Consegui. Agora é uma coisa mais centrada em mim, e como é que hei-de fazer para não morrer sem ter só uma estátua no Cemitério dos Prazeres.

 

Voltemos às influências do cinema. “O Anjo Azul” foi inspirador, de certa maneira? Na peça, o pai apaixona-se por uma corista. Como o professor do “Anjo Azul”. E ambos têm, em descrédito, e provocando a ruína dos que estão à volta, um chapéu igual. Na verdade é um par de cornos.

Creio que esta cena da humilhação do Pai é copiada do “Anjo Azul”. São ambos de 29, na Alemanha – onde o Pirandello estava.

 

Marlene Dietricht como uma encarnação do pecado, da tentação?

Tentação. Da decadência. E antes do filme, havia o livro do Heinrich Mann que ele leu de certeza. Há outra suspeita que tenho: a cena do candeeiro [na peça], quando o homem fala com o candeeiro na rua pensando que está a falar com as estrelas, é igualzinha à cena d’ “A Canção de Lisboa”, com Vasco Santana, bêbedo, a falar com o candeeiro. Ora, Cottinelli Telmo, realizador d’ “A Canção de Lisboa” foi quem fez a cenografia do espectáculo “Sonho, mas talvez não”, que teve estreia mundial aqui no D.Maria em 31. Foi o Pirandello que falou com o Cottinelli Telmo em alguma altura? Pode ser uma graça da época. Ou pode haver uma outra fonte comum.

 

Nesta peça fala-se do teatro dentro do teatro. E do que é a arte. Além das definições do que é o teatro, surgem perguntas como: “A arte deve ser vida?”

Isso é o grande tema do Pirandello. E por isso ele diz: “Para que eu não morra”. Ele é escritor, começa a interessar-se por teatro, dirige uma companhia; nessa companhia, conhece as contingências que uma obra fixada num texto vive – esquecimento dos actores, imprecisão dos actores, tempo de ensaios. E a obra altera-se, a obra vive. O que ele não quer é estátua.

 

A nostalgia já não é uma palavra essencial do seu léxico. Houve uma altura em que a sua vida era indissociável daquele verso do Ruy Belo: “Triste é no Outono descobrir que era o Verão a única estação”. Já não é um tema seu.

Não, não é. Na escrita, é. Agora, gosto mais da vida. A escrita é sempre nostálgica – o tempo da escrita é sempre posterior ao acontecimento, mesmo quando se fala do futuro. O teatro é durante, acontece ali, e tenho pouca paciência para ser nostálgico ou meditativo.

 

N’ “A Viagem da Itália”, Goethe equipara a Sicília e Nápoles. Escreve que lhe faltam os órgãos certos para falar de Nápoles. O que ali se passa, não pode ser dito/vertido através das palavras. Esta abordagem de Goethe cruza com o que está na peça de Pirandello: como falar desta matéria que é viva?

Tem toda a razão. Nunca fui a Nápoles, mas fui muito a Palermo. Adoro o lado arruinado e grandioso de Palermo, surpreendente, comovente, exaltante. Essa ideia – não tenho órgãos para falar disso – é também o que o Pirandello sente. Qual é a forma para falar desta realidade? Na peça, a forma rebenta. Começa como uma peça coral e muda-a, transforma-se numa peça de câmara para dois personagens. O que torna esta peça num desperdício total! Usa música ao vivo dois minutos e depois já não é precisa. Exige 40 actores que não são precisos a partir de meia hora do fim do espectáculo. Exige actores muito treinados que sabem canto, mas só os usa durante cinco minutos. Esse desperdício é uma ideia de velho. Já não é preciso poupar.

 

No longo e comovente monólogo final, Mommina é uma voz estiolada. Na discussão que mantém que o marido, diz: “Pensar ainda pode depender da vontade; o sonhar (se eu sonhasse) seria sem querer”. A personagem estabelece um confronto entre pensar e sonhar.

É. A peça anterior de Pirandello chama-se “Sonho, mas talvez não”. É sobre o ciúme que um homem tem dos sonhos da mulher. Claro que tudo isto tem que ver com o Freud, que está a ser descoberto. Como o Strindberg que está a ser muito representado na altura. Pessoa [escreve]: “O que em mim sente está pensando”. O teatro estava muito longe, mas imagino-o divertidíssimo com esta peça.

 

Uma parte dele estaria neste marido patologicamente ciumento?

Sim. Pirandello era casado com uma senhora que enlouqueceu e apaixonou-se perdidamente pela Marta Abba. Quando esteve em Lisboa, escrevia-lhe todos os dias [em papel de carta] do Hotel Avenida. “Espero, quando chegar a Paris, ter uma carta tua”, “A Amélia Rey Colaço é uma grande actriz mas o resto da produção é fraca”.

 

É ciumento?

De certeza. Embora não seja ciumento em relação a uma pessoa, sou ciumento de muita gente. Na peça, o ciúme é uma manifestação de vida. Que conduz à morte, que conduz ao assassínio. “Não sou eu que quero ser ciumento, mas sou ciumento”. Isso é a vida.

 

Comove-se, ainda, até às lágrimas? Comove-se com a cena final, quando Mommina morre de verdade e as suas filhas pensam que ela está a representar?

Tenho chorado. Tenho poupado a Sílvia Filipe [actriz que interpreta Mommina], que adoro, a fazer esta cena. Numa semana, ensaiámos duas vezes essa cena. E nunca ensaiei a cena a seguir à morte; só vou ensaiá-lo quatro dias antes da estreia [a entrevista é feita uma semana antes da estreia]. Apetece-me que os actores tenham os papéis na mão, que não saibam o texto de cor, e que se sinta uma desorientação, depois do momento de verdade – que é afinal a máxima mentira: ela morre em cena (o que é a máxima mentira: não pode morrer), mas que é a maior verdade. Apetecia-me que a peça se esfrangalhasse depois disso.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2009.

 

António Gentil Martins

24.09.14

Este homem é um homem que queria fazer obra. Operar, que é aquilo que faz, significa exactamente fazer obra. A cirurgia é uma boa tradução do que quis para a vida: a certeza de obra feita, com princípio, meio, fim. Partes distintas em que se reconhece uma diferença e uma participação. Uma mão.

É extensa a obra deste homem. Realizou mais de dez mil operações. Algumas, as mais afamadas, dão conta da separação de gémeos siameses, seis separações com nove sobreviventes. As crianças: aprendeu a resgatá-las para a vida, ou, simplesmente, a resgatá-las para a uma vida mais confortável (a saúde é o primeiro dos confortos, para crianças e adultos), em Inglaterra. De onde veio já homem feito. Casou-se logo depois e teve oito filhos. Nenhum deles é médico. Tem pena. Até porque pensa que seriam bons médicos, os três que gostariam de ser médicos e não puderam ser.

Percebe-se o quanto lamenta, pelo menos intimamente, quando se lê a primeira página do seu curriculum. Nele consta uma sumária genealogia de família. Filho de António Augusto da Silva Martins, cirurgião, neto de Francisco Soares Branco Gentil, fundador do Instituto Português de Oncologia, irmão de, bisneto de, sobrinho-neto de.

Mas no parágrafo do meio, ainda antes de se dizer descendente de (excepção para o pai e mãe, primeiras referências), diz-se católico. Tem a sua importância, como lerão.

António Gentil Martins nasceu em Lisboa em 1930. 

  

Éramos três: o meu irmão mais velho, a minha irmã no meio, e eu, mais novo. O meu pai morreu quando eu tinha três meses. A minha mãe serviu de pai e mãe para nós todos, e deu-nos o nosso pai como exemplo, estimulando uma veneração enorme por ele.

 

Era uma forma de o ter presente?

Sim. Mas o meu pai foi de facto uma pessoa excepcional, que valia a pena copiar. Tentar ser como ele, foi sempre o meu objectivo. Impressionava-me que amigos, falando dele, chorassem. De saudade, de amizade, de pena de ele ter falecido. Egas Moniz dizia que o meu pai era o homem melhor que tinha conhecido na vida inteira. 

 

A experiência da veneração, ao mesmo tempo, não agudizava a saudade, a ausência?

Não poderei dizer que tinha muita saudade do meu pai. A minha mãe cobriu todo o apoio moral, psicológico, afectivo que eu podia ambicionar. Ela era uma médica frustrada. O meu avô achava que a Medicina não era profissão para mulheres. Então, como as irmãs, aprendeu a bordar, pintura, línguas, piano, cozinha. Sabia fazer tudo o que uma boa dona de casa do princípio do século deveria saber. Acabou por casar com um médico, ter dois filhos médicos, uma filha enfermeira.

 

Era uma espécie de sina para si, ser médico?

Não. Estava hesitante entre a Engenharia e a Medicina. Queria qualquer coisa em que tivesse que fazer coisas.

 

Fazer com as mãos?

Fazer. Sobretudo com as mãos. Mas fazer. Por exemplo, a profissão de advogado, (que respeito muito), não me dava a sensação de fazer coisas.

 

Não tem operosidade? O que faz é operar.

Operar é fazer obra. Os médicos de medicina geral curam a pneumonia através de comprimidos, eu também trato doentes com comprimidos. Só que isso não me dá a sensação de actuação que me dá o executar uma cirurgia. A cirurgia começa-se, acaba-se, tem-se a noção que se fez.

 

O que o fez, então, decidir-se a ser médico?

Com 10, 11 anos, ia de eléctrico de casa ao Largo do Rato e depois subia a Pedro Álvares Cabral até ao Liceu Pedro Nunes. E assisti a um desastre de automóvel. Um senhor tinha sido atropelado e estava a esvair-se em sangue no chão. Senti que queria ajudar, «E agora o que é que faço?, mas eu não sei fazer nada!, estou aqui um inútil». Foi nesse dia que decidi que ia ser médico.

 

Guarda isso com um recorte muito preciso.

Aquilo é que marcou a minha decisão. Não foi pelo facto de o meu pai ter sido médico, o meu avô ter sido médico; tinha a tradição familiar.

 

Nessa ideia de copiar o ser pai...

Só tentei copiar o meu pai numa coisa, além de tentar, como ele, ser uma pessoa correcta, honesta: foi no desporto. O meu pai foi o maior atleta português de todos os tempos. Foi campeão e recordista de Portugal do lançamento do peso, do disco, do dardo, do salto em altura e em comprimento. Foi campeão de Portugal, recordista e mestre atirador em todas as armas que havia na altura. Foi três vezes olímpico em tiro. Foi uma vez olímpico em lançamento do disco. Ganhou o campeonato do mundo de espingarda de guerra de pé na Holanda, em 28. E morreu com 38 anos, senão, estou convencido que teria feito muito mais.

 

Posso perguntar como morreu?

Foi um acidente na carreira de tiro. Onde era extraordinariamente cuidadoso. Foi o único acidente que houve em Portugal em cem anos. E curiosamente a minha mãe deixou-me atirar ao alvo, onde o meu pai morreu. Nunca me deixou caçar, «Caçar, não, o teu pai dizia sempre que era muito perigoso; se fores cuidadoso, no tiro ao alvo, não há perigo».

 

É extraordinário que tenha praticado o tiro ao alvo. Tão a sério que até foi olímpico.

Aí, tentei imitá-lo. Um amigo dele ajudou-me a começar, ensinou-me. Depois fiz vários desportos, gostava de fazer desportos em geral. Mas nunca cheguei nem aos calcanhares do meu pai. Fui uma vez aos Jogos Olímpicos, e já foi muito bom.

 

Como foi a sua participação nos Jogos Olímpicos de Roma?

Fui seleccionado para o tiro de pistola automática. A vivência em Roma foi extraordinária. Acabei por estar um mês, depois de pouco mais de uma semana de trabalho – as minhas provas foram logo no princípio dos Jogos – , e num ambiente de camaradagem excepcional. Permitiu-me ver Roma, espectáculos no Fórum Romano, visitar o Museu do Vaticano e as igrejas fabulosas que lá têm. E estava lá um brasileiro, campeão de triplo salto, que fez o «Orfeu Negro» e tocava lindamente guitarra.

 

Lembra-se do nome dele?

Edmar Ferreira da Silva. À noite, tocava e cantava para a gente, engraçadíssimo. Por outro lado, o contacto que tínhamos com os ídolos do desporto, de todas as modalidades..., admirávamo-los muito e depois estávamos ali, lado a lado, a conversar.

 

Portanto, vai para o tiro com o desejo de imitar o seu pai.

Em casa tínhamos as armas todas que o meu pai tinha utilizado, as medalhas que tinha ganho. Olhe, aquele cavalo que ali está, é o prémio de um concurso que ganhou em Itália. O que está aqui à entrada, é o prémio do campeonato do mundo de espingarda de guerra. Eu era miúdo, via as armas e entusiasmava-me um bocado.

 

Não consigo compreender completamente como é que o incidente trágico da sua morte não o afastou do tiro.

Tinha sido uma coisa tão extraordinária que não havia razão para pensar que acontecesse outra vez. (Nunca mais houve um acidente). E a minha mãe foi, de facto, excepcional.

 

A sua mãe trabalhava?

Depois empregou-se, não teve outra hipótese. Foi redactora do Boletim da Junta Nacional da Cortiça. Fazia traduções. O meu pai não estava a pensar que ia morrer aos 38 anos, não tinha feito seguros, não tinha projectado a sua vida para uma morte inesperada. A minha mãe, de repente, viu-se pendurada. Tive isenção de propinas durante o curso, justamente porque a minha mãe ganhava pouco para nós três. A pouco e pouco, lá fomos singrando e vencendo. Ela era um exemplo de luta, de honestidade.

 

Nasceu e viveu onde?

Nasci na Lapa. Depois da morte do meu pai mudámo-nos para a António Augusto Aguiar. Até à ida para Inglaterra, vivi sempre aí.

 

Viveu em Inglaterra três anos e meio, e durante esse período não chegou a vir cá.

Só queria concentrar-me e aproveitar o máximo que conseguisse. Queria chegar a Portugal e dizer assim: «Eu não preciso de pedir nada a ninguém, já sei o suficiente para estar independente».

 

Porquê esse sentimento tão vincado?

Sempre gostei de não depender de coisa nenhuma. Dependemos todos uns dos outros, como é evidente... Mas quero que seja no menor grau possível.

 

Porquê?

Sei lá. Sempre quis ser independente. Nunca pertenci a nenhum partido político ou organização religiosa. Eu sou católico; às vezes ia às reuniões da JUC, na faculdade, mas nunca fui da JUC. Defendo os valores em que acredito, e nisso sou um bocado intransigente. Nunca quis estar condicionado na minha independência. Cheguei a ser convidado para Secretário de Estado da Saúde, e não quis. Não quis porque os políticos têm de actuar de certa maneira e nem sempre podem dizer o que pensam.

 

Porque é que é tão difícil abandonar o radicalismo das suas posições e dispor-se ao comprometimento com opções consensuais?

Quando estamos convencidos de que determinada coisa está certa, mas que isso é, como hoje se diz, politicamente incorrecto... Eu não me importo de ser politicamente incorrecto. Prefiro não dizer o que as pessoas quereriam ouvir, mas o que julgo que está certo. Mesmo que isso me traga inconvenientes. Esta posição, em política, é muito difícil. Não me sinto bem se não digo, ou não posso dizer, uma coisa que me apetece dizer, uma crítica que me apetece fazer. Então, é difícil estar incluído numa estrutura com determinada orientação.

 

Voltemos atrás, ao momento em que decide ser médico. O seu irmão, mais velho três anos e meio, também quis ser médico.

Se quer que lhe diga, não sei sequer quando é que o meu irmão decidiu ser médico, ou cirurgião.

 

De que é que falavam?

Ah, meu Deus, tenho dificuldade em dizer-lhe. Já não me lembro do que se passava quando tinha 13, 14 anos.

 

Não?

Honestamente não. Tenho uma vaga ideia de factos dispersos, de um amigo ou outro, mas de conversas tidas...

 

Pensava no que era o vosso universo mental, no que sustentava a vossa amizade, no tipo de intimidade que partilhavam.

Quando fomos ambos para Medicina, às vezes ajudava-me, ensinava-se coisas. Era uma coisa que decorria naturalmente. Jogávamos na mesma equipa de vólei, jogávamos ténis, dávamo-nos muito bem, mas pronto. Cada um ia fazendo a sua vida, não havia uma grande proximidade. Como hoje em dia acontece. Convivo muito pouco com amigos que tinha; a vida é de tal modo absorvente que acabamos por perder o contacto social.

 

Essa figura do melhor amigo, nunca a teve?

Diria que o melhor amigo que tive foi a minha mãe. Depois o meu irmão. Depois alguns outros. Sempre preservei a minha intimidade, nunca gostei de me expor ao exterior. Tive bons amigos, e ainda tenho, mas não com uma intimidade muito grande. Como é que hei-de explicar? Penso que nunca tive um melhor amigo. Sou talvez demasiado individualista.

 

O desporto onde mais se destacou, curiosamente, é individual. O que é que lhe agrada mais na pistola? A precisão?

A primeira coisa que me agradou, mais que tudo, foi imitar o meu pai. Depois, agradou-me a precisão. Uma das coisas que mais gostava de fazer era o tiro de velocidade: dar cinco tiros em quatro segundos. Acertar no alvo com rapidez e precisão. 

 

Não tem ideia de si, criança de cinco anos, liberta de expectativas?

De todo. Lembro-me de uma certa agitação quando tinha nove anos e rebentou a Segunda Grande Guerra. De estar no Estoril, de férias na casa de um tio, chegar a notícia e ficar toda a gente excitada por causa disso. Mesmo no liceu, lembro-me de colegas, mas não de factos.

 

Estava a pensar na importância da religião e da fé na sua vida. Esta missão a que se propôs está tingida de carga religiosa?

É possível. Tive uma formação católica. A minha mãe era católica, tive o meu catecismo no Patronato de S. Sebastião da Pedreira. Embebi-me de determinados princípios, da necessidade de dar qualquer coisa aos outros. A nossa vida só tem valor na medida em que for partilhada. Apesar do meu individualismo. Estes princípios eram compatíveis e integráveis na imagem que tinha do meu pai: a necessidade de ser correcto, honesto, lutar _ o velho princípio olímpico: a vitória ou a derrota não é o mais importante, o mais importante é ter lutado honestamente, ter dado o seu melhor. É o que vem expresso nos versos que reli muitas vezes de Kipling, «Se».

 

O que dizem esses versos?

Dizem basicamente que a vida é um engano em muitas coisas. Que a vitória e a derrota não são a parte importante; a parte importante é ter feito aquilo em que se acreditou, ter lutado por uma causa justa. Que o Homem só é verdadeiramente Homem quando se ultrapassa a si mesmo. Perdoar aos outros. Ser derrotado e reerguer-se outra vez.

 

Isso é o Homem transcendendo-se a si.

É. Foi também uma coisa que achei que devia imitar. A minha formação religiosa deu-me a noção de que temos de ter determinada conduta.

 

Teve alguma crise de fé?

Cheguei a pensar ir para padre, independentemente de ser médico. Foi mais ou menos na altura de ir para a faculdade. Depois cheguei à conclusão de que não seria um bom padre. Para ser um bom padre, teria de cumprir rigorosamente tudo, tudo. Por outro lado, gostava de casar e ter filhos.

 

A ideia de constituir família era muito viva em si?

Era, era. Tenho oito filhos, não foi por acaso.

 

Foi por acaso que teve o primeiro só aos 34 anos?

Não. Foi porque não encontrava a pessoa certa.

 

Que idade tinha quando casou?

33. Tive uns namoricos antes de ir para Inglaterra, nada de pesado. Em Inglaterra, durante aquele período, só pensei em Medicina. Quando regressei, um dia fui chamado para operar uma criança cujos pais estavam em África; quem tratava da criança era a tia. Tratei a criança, fui conhecendo a tia, acabei casado com a tia. O meu filho nasceu no ano seguinte.

 

O primeiro de oito, um número quase irreal nos dias que correm. Tem que ver com o facto de ser católico?

Gostar muito de crianças, pode ter ajudado bastante. E ser católico, também contribuiu seguramente. Sou formalmente contra o aborto. É uma vida humana que está ali, não tenho dúvida disso sob o ponto de vista científico. Está na barriga da mãe, às oito semanas o coração bate calmamente.

 

A especialidade que escolheu, a cirurgia pediátrica, pô-lo em contacto com crianças. As suas operações mais afamadas são as de gémeos siameses. Os primeiros siameses de que se fala são os gémeos de Sião. No século XIX as perguntas que corriam eram as seguintes: São um ou dois? Têm uma ou duas almas? Devem ter um ou dois nomes? São naturais ou não? Podem ou não ser separados? Se forem, poderão superar a perda?

Os siameses são sempre duas pessoas distintas. Porque são dois cérebros. Podem estar em parte fusionados fisicamente. Se há dois corações, podem sempre ser separados, sobreviver e viver normalmente. Quando há um coração único, o coração não serve para nenhum; é tão mal formado que não permite a sobrevivência. Aí, não adianta separar. Os siameses são rigorosamente iguais aos gémeos univitelinos em termos mentais. Fisicamente é que podem ser diferentes; uns estão separados e são normalíssimos, e os siameses não.

 

Depois de operados, os siameses podem ter uma vida normal?

Depende do tipo de siameses. É-se condicionado pela própria natureza. É a natureza que diz o que se pode ou não fazer. Se existe uma bexiga que se possa dividir e dar metade a cada um, se existem órgãos que se possam partilhar. Normalmente conseguem ficar com uma qualidade de vida bastante boa.

 

Opôs-se à separação das famosas gémeas inglesas, operadas em Manchester. Todavia, volvidos meses, uma das gémeas sobrevive. 

Mataram uma criança com o pretexto de salvar a outra, que fica com uma qualidade de vida extraordinariamente difícil. Não tinha genitais, não tinha ânus, tinha um coração mal-formado. Esteve meses em cuidados intensivos, que é um sofrimento importante, e a sua sobrevivência é extremamente penosa. Ora, nós temos o direito de morrer em paz. As criancinhas morriam as duas ao fim de dois ou três meses, os pais tinham um grande desgosto como era normal... Os pais nem queriam que se fizesse a separação. Portanto, não há legitimidade, acho eu, para matar uma delas para tentar salvar a outra nestas circunstâncias.

 

De qualquer modo, os siameses são cada vez mais raros.

São abortados na maioria dos países em que há aborto. Parte-se do princípio de que as crianças ficam anormais, o que é mentira. Há uns tempos passou na televisão um programa em que apareceram os sobreviventes que operei, nove siameses. Houve uma que teve de ser operada mais vezes, uma outra que foi operada ao coração; mas há seis que estão impecáveis. Os moçambicanos estão bem.

 

Houve uma mudança de sexo num dos gémeos moçambicanos. Passou-se do masculino ao feminino.

Se só tem um órgão masculino, não pode fazer dois homens. A alternativa é mudar. Mas não sou eu que decido a mudança: é a natureza.

 

O que o senhor tenta fazer é reconhecer e ouvir a natureza?

É mesmo só isso que tenho de fazer. E depois, tecnicamente, resolver. Para dizer que não há qualquer justificação para que os siameses sejam abortados. 

 

Em circunstância alguma, mesmo quando há uma malformação acentuada, aprova o aborto?

Se é corrigível, não. Mas se se diagnostica um anencefálico, um miúdo que não tem cérebro, para mim nem é aborto. É uma interrupção da gravidez de um doente que não tem viabilidade em si próprio e que vai morrer seguramente nos primeiros dias após o nascimento. Aí, não estamos a abortar no sentido de impedir uma vida de continuar, porque ela vai parar. Um indivíduo anencefálico não é indivíduo, não tem aquilo que nos torna humanos.

 

Voltando às questões discutidas no século XIX, a propósito dos siameses de Sião. Têm duas almas?

Se aceitamos que têm dois cérebros, têm duas almas – para quem acredita na alma.

 

Como é que o senhor, que é um homem de fé, mas que conhece o corpo por dentro, configuraria a alma? E onde a alojaria?

A alma para mim não existe materializada. Não acredito que haja um sítio onde esteja localizada, mas só o cérebro pode permitir a existência desse próprio conceito. O conceito de alma só existe enquanto existe um cérebro que pensa. E então, ou se acredita ou não se acredita numa vida futura, e o conceito será um conceito religioso ou não. Pode dizer-se «Quando morrer, morri e acabou, sou pó e mais nada». Ou então dizer «Eu morri, mas há vida futura». Acredito na vida depois da morte e acredito sobretudo que temos obrigação de fazer aqui as coisas de uma certa maneira. O que vier, logo se verá.

 

Já leu a «A Divina Comédia», de Dante?

Não.

 

Ocorreu-me a «A Divina Comédia» por causa da vida depois da morte.

Olhe, eu acredito muito no Purgatório. Tenho muita esperança de para o Inferno não ir, mas no Purgatório estou convencido que vou passar uns tempitos.

 

Pensa nisso assim?

A sério. Será o que for, não me preocupa. Preocupa-me estar em paz com a minha consciência, mais nada. Eu não sei o que é o Purgatório, nem o Céu. Acredito que haverá qualquer coisa que não sei definir, e que, por uma questão de justiça elementar, as pessoas devem ser punidas pelo que fazem de mal e gratificadas pelo que fazem de bem. Em função do que quem julgar entender, se terá mais uma coisa ou outra. Depende da gravidade do que fizemos, da atitude que assumimos. A mesma coisa, pode ser feita com intenções completamente diferentes. Aparentemente é a mesma coisa, e não é.

 

O que muda é a intenção?

É fundamentalmente a intenção. Em relação à eutanásia, por exemplo: se der morfina a um doente que está cheio de dores, e ele morrer por causa da minha injecção, pode ser eutanásia ou não. É eutanásia se quis matá-lo com aquela dose de morfina. Não é se calculei a dose que lhe tirava as dores mas não o matava. É a intenção com que se faz que define se há crime.

 

Concede às pessoas o direito de disporem da sua vida e do seu corpo? De se suicidarem.

Não. Entendo que não temos o direito a esse ponto de dispor da nossa vida. Não aceito nenhum gesto activo e deliberado para terminar com a vida.

 

Dante, que era profundamente cristão, situava os Suicidas no Inferno, (ainda que ponha um suicida, Catão, à porta do Purgatório). Depois do Juízo Final, os Suicidas não poderiam reaver o seu corpo, uma vez que o desprezaram em vida. As suas almas ficariam, então, encerrados em árvores.

Essas figuras filosófico-literárias são muito bonitas. Mas a mim não me dizem nada.

 

Não?

Não.

 

Impera somente o pragmatismo?

A pessoa procedeu bem, é compensada. Como é compensada? Não sei, não estou preocupado. A pessoa procedeu mal, deve ser sancionada. [pausa] Para ser franco, embora seja quase um dogma de fé, não aceito que o Inferno seja definitivo. O Inferno existe, mas não está lá ninguém.

 

Existe enquanto miragem terrífica, para que as pessoas se esforcem por evitá-lo?

Existe enquanto princípio. Eu não sou Deus. Mas não sinto, enquanto julgador, que seria capaz de condenar alguém para a eternidade. Seria capaz de condenar, e o tempo correspondente aos males que fez. Não vejo o Inferno como miragem terrível. Poderá haver pessoas que não façam as coisas com medo do Inferno. Eu faço as coisas, e penso que a Igreja Católica me ajudou nisso, porque acho que as devo fazer de certa maneira.

 

Foi por isso, porque queria dar-se aos outros, ajudar os outros, que pensou ser padre?

Pensei que era uma profissão que era útil às pessoas. Dedicar-se aos outros sem querer nada em troca. Sentia isso como uma coisa nobre. Depois, como lhe disse, achei que não tinha estofo para ser um padre exemplar, e que gostaria de casar e ter filhos.

 

Acha incompatível a família com o sacerdócio?

Não diria cem por cento incompatível, mas espantosamente difícil. «Não podes servir a dois senhores». Mais: a única coisa que critico a mim próprio, e muito, foi o tempo que dei à Ordem dos Médicos em prejuízo da minha família. Tentei servir a Ordem e a Família, quem pagou as favas foi a família e a minha mulher. Praticamente durante dez anos, não existi em casa, existi para a Ordem dos Médicos. De todas as coisas que fiz até hoje, arrependo-me de muito poucas, para ser sincero. Arrependo-me, e não arrependo. Porque o que dei à Ordem, dei com o maior empenho.

 

Deu também pela volúpia do poder?

Dei mais por causa dos doentes que por causa dos médicos, embora tivesse de ser um defensor dos médicos. Tinha um conceito que ainda tenho: só com médicos protegidos, se protegem os doentes. A principal razão por que fui para a Ordem, foi porque queria um sistema que tratasse os doentes convenientemente. Não foi para defender corporativamente os meus colegas.

 

De que outras coisas se arrepende?

[silêncio] É estúpido, mas de que me arrependa mesmo, não me estou a lembrar assim de nada... Com certeza que hei-de ter coisas.

 

Que tipo de pai foi?

Não sei, é difícil dizer. Fui um pai ausente durante um período grande. Tenho procurado ajudá-los no que posso. Não digo que seja um pai muito presente. Passo o dia todo fora. Sou um pai preocupado mas pouco presente, definiria assim.

 

Os seus filhos concordam consigo no que toca às questões fundamentais?

Julgo que sim. Tenho uma filha em Inglaterra que tem seis crianças, uma que está cá que tem quatro. Há uma certa sintonia.

 

Imagine que tinha um filho que não era católico; seria um desgosto?

Eles é que têm de decidir por eles. Prefiro que todos sejam, preferia que todos cumprissem. Mas se calhar, também não cumpro suficientemente bem.

 

Não cumpre? O seu percurso é tão regular, parece não haver espaço para o devaneio.

Uma coisa é devaneio, outra coisa é cumprimento integral. Posso não me desviar, mas posso não cumprir integralmente. Por exemplo, como é que você interpreta faltar à missa um domingo? Você é católica?

 

Não tenho qualquer convicção religiosa.

Regras, em princípio, são para se cumprir, não é verdade? Se a pessoa aceita que a missa tem valor, então, tem obrigação de cumprir essa regra. Se não cumpre, não está a actuar da melhor maneira. Não está a desviar-se, mas não está a fazer o que devia fazer.

 

A sua obstinação vence o peso de qualquer sacrifício?

Mais ou menos. Não gosto de fazer coisas a meio.

 

Em que é que pensa quando está a operar?

Penso só naquilo que estou a fazer. Como é que vou resolver bem aquela situação. Costumo gostar de ter uma música clássica, assim ao longe. Ou então silêncio.

 

É um asceta?

Não. Também me divirto, gosto de coisas. Em todo o caso, tenho noção da responsabilidade e do dever que temos para com a humanidade. Para com os outros. Adoro flores, tenho pena que durem tão poucochinho.

 

Se pudesse operar as flores, elas duravam mais tempo.

Duravam mais tempo, não é? Gosto imenso de operar. Gosto sobretudo de ver o efeito do que fiz.

 

As suas mãos são particularmente grandes num homem da sua estatura.

Os dedos fininhos e grandes são óptimos para a cirurgia.

 

Gosta das suas mãos?

São boas, são úteis.

 

Refiro-me a outra coisa: gosta de observá-las e pensar nas histórias que têm, no que já fez com elas?

Confesso que nunca pensei. Uma vez fiz uma fotografia das mãos, por graça, imitando uma do meu pai, antiga, quando ele tinha 20 anos.

 

Sente que o seu pai se orgulharia de si?

Penso que sim. Globalmente, sim. Pelo menos não ficaria triste, não acharia que o desmereci. Tenho os meus defeitos, mas tenho coisas válidas. Sobretudo uma coisa válida: ter trabalhado bastante toda a vida. Isso dignifica qualquer pessoa.

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2002

 

 

 

 

José Manuel Félix Ribeiro

23.09.14

José Manuel Félix Ribeiro tem boa fama. É discreto e ao mesmo tempo desarvorado. Diz coisas com o cru de quem pensa alto e não tem medo de dizer o que pensa. No livro A Economia de uma Nação Rebelde faz diagnósticos, aponta soluções. Lê-se na contracapa: “Não temos de ser um protectorado germânico nem uma feitoria chinesa”.

Economista, fez carreira na Administração Pública. Os grandes eixos do seu discurso não são a dívida ou a despesa. São o crescimento ou essa palavra perdida que se chama estratégia.

Nasceu em 1948. Quando cheguei ao local da entrevista, estava a ler o Financial Times. Traz uma pasta como os professores de um mundo antigo.

 

 

O título do seu livro, A Economia de uma Nação Rebelde, aponta para uma natureza que não se deixa domar. Estuda as razões porque não crescemos, porque somos um país endividado. Porque é que não nos deixamos domar?

Não sei. O que sei é que ao longo da história surpreendemos em vários momentos pela solução que encontramos para as nossas desgraças. O que tentei com este livro foi dizer que Portugal está numa daquelas alturas em que tem que mostrar o que vale. Para isso, só se pode inspirar nos momentos em que foi rebelde.

 

Rebelde?

Rebeldia é uma expressão pouco usada. As pessoas são normalmente revoltadas ou descontentes. Ser rebelde supõe auto-estima. As circunstâncias são tão asfixiantes que temos que virar a mesa.

 

Para virar a mesa, é preciso saber porque estamos nesta situação? Compreender para mudar.

Sim, e compreender como é que o mundo está a evoluir. Entre que pingos da chuva podemos navegar.  

 

Não é o famoso desenrascanço português.

Não, não. É uma inteligência estratégica.

 

Escreve que é preciso repensar o que foi fundador nestes 40 anos de democracia. Se respondemos bem em determinados momentos, isso é uma reacção, não é uma estratégia.

Acho que tivemos uma estratégia muito clara e bem concebida quando perdemos o império, derrubámos um regime e nacionalizámos uma economia – não tendo estado numa guerra civil.

 

Está a falar dos três D’s.

Sim. E tivemos três pilares. A Europa (o local de acolhimento que deu uma garantia de que a democracia era protegida pelo exterior)...

 

... a que aspirávamos pertencer.

Sim. Estes 40 anos têm uma matriz pró-europeia enorme. Segundo pilar: o Estado Social, que é uma ideia do prof. Marcello Caetano. Num regime e noutro traduz uma necessidade de encontrar uma legitimidade popular.

 

Seria possível a implementação de um Estado Social num regime não-democrático, com Marcello?

Sim. O seu foi um período de crescimento económico, o que lhe deu folga. O único grande problema era a guerra de África. Terceiro pilar: o municipalismo. Éramos um país de emigração, que praticamente parou, e recebemos 800 mil pessoas, que se integraram, espalhando-se pelo país. O municipalismo, pelas oportunidades que deu, foi fundamental. A reabsorção de uma parte das pessoas que vieram das colónias foi feita no Estado.

 

Não foi notável que em menos de um ano tenhamos recebido tantas pessoas, sem convulsões sociais?

Foi. Fizemos uma transição formidável.

 

O seu ponto: foi também para responder à chegada massiva de retornados...

... que começou a aumentar o Estado. O Estado na autarquia e na administração central. Para lhes dar resposta na educação, na saúde e no emprego. [Nessa fase] tivemos uma estratégia. Ao longo do percurso europeu tivemos também uma estratégia, que foi estar no núcleo duro do processo de integração europeia.

 

Pertencer a uma Europa dos primeiros. Não ser um parente pobre.

É. Na opinião das pessoas, se não tivéssemos feito essa aposta de estar desde o princípio no centro, seríamos uma periferia maior. Espanha teria sempre uma ambição de estar no centro. Espanha é um dos grandes problemas da história portuguesa. Somos o único país da Europa que tem um único vizinho. E o vizinho é quatro vezes maior do que nós. Tem pujança, ambição, coisa que nos falta às vezes. Alinhar com esse vizinho, sem o império, constituiu um desafio importante.

 

Mencionou as nacionalizações. Como foi feita a gestão desse dossier?

Constituíram uma coisa relativamente lateral. Corresponderam a...

 

... a uma deriva socialista, pura e dura?

Sim.

 

Tem noção que quando diz isso a direita fica exultante e a esquerda condena o seu discurso?

Sei. Um dos trabalhos que mais gostei de fazer, em 72/73, feito com a minha primeira mulher, que já faleceu, e um colega,  chamava-se  “Grande Indústria, Banca e Grupos Financeiros, 1953-73 – História da Economia Portuguesa”. Deu-me a percepção de que os grupos económicos no período do Marcello Caetano estavam a fazer uma alteração substancial da maneira de pensar a sua actuação. O Estado já não os podia ajudar tanto, e descobrem que têm de fazer coisas para o exterior. O grupo que lidera isso é o grupo CUF. Champalimaud também tentou. Com Rogério Martins e Marcello houve uma liberalização e uma vaga de investimentos enorme. Esse período (1967-73) é o de um capitalismo – dos grupos – que criava esperança. Foi tudo decapitado.

 

Como não podia deixar de ser?

Acho que não. Não era obrigatório. Até achei que as nacionalizações podiam ser necessárias. Mas depois escrevi: “As pessoas que quiseram as nacionalizações foram conquistar castelos vazios. O que lá estava já não era capital. Era dívida”.

 

Porquê?

Porque todos estes grupos estavam a embarcar em grandes projectos. Isto tem uma consequência: expressa um convívio muito mau da população com os ricos. Coisa péssima. Os ricos são muito úteis.

 

Repito a pergunta: como não podia deixar de ser? Não era inevitável num país tão desigual a convivência difícil entre ricos e pobres?

Não há pobres por haver ricos. Em todas as economias baseadas no controlo sobre a terra, a pobreza é o oposto da riqueza. No capitalismo (que se liberta da terra) a possibilidade de ascender ao capital e à riqueza é muito maior. O que vemos depois do 25 de Abril é que a riqueza se democratiza em torno da terra. Do imobiliário, da corrupção à volta da terra. Mas estes ricos não são muito úteis.

Tivemos três motores a funcionar: um a exportar, outro a investir e outro a aumentar o consumo por causa das remessas dos emigrantes.

 

Qual é o nosso motor neste momento?

Não temos nenhum. Aquele período [marcelista] era um período de ouro se esquecêssemos o quadro político em que ele se enquadrava. A máquina funcionava. Isto terminou sobretudo com a crise do petróleo de 73 (levou tudo uma machadada quando estava a construir-se). Estou a querer dizer que hoje estamos num período deste tipo.

 

Semelhante ao de 73?

Sim. Aquilo que foi possível fazer num período de 35 anos, chegou ao fim. Temos que nos reinventar.

 

Queria ainda falar dos ricos. Qual é o problema dos ricos portugueses? Não têm capital suficiente? São ricos sobre-endividados? São ricos dependentes do Estado?

No final do Antigo Regime alguns dos ricos estavam a fazer uma mudança enorme de agulha. Falo sobretudo do José Manuel de Mello. Estavam pela primeira vez a viver sem o Estado. Apoiados pelo Estado mas a fazer coisas para fora, aliados a suecos, americanos. Estavam num processo de aprendizagem que era bom. O que é que veio a seguir?

 

Saíram no pós-revolução. A maior parte para o Brasil.

Quando voltaram tiveram de comprar aquilo que era deles. Endividaram-se no exterior para comprar. O que nós tivemos [nos anos da democracia] foi uma multidão de novos ricos. Uma multidão de novos ricos!    

 

Com outra expressão. Pequenos, pequenos novos ricos.

Sim. Um rico útil é um rico capaz de telefonar para o Rockefeller e dizer: “Preciso disto”. Um rico útil é um rico que pertence à elite mundial ou europeia, que tem contactos com ela e que é capaz de fazer projectos com ela.

 

Quem são esses ricos em Portugal?

Hoje? Houve uma degradação... E democratizámos a riqueza a um nível baixo, formando um bloco: os bancos, as câmaras, os promotores imobiliários, os construtores civis, as obras públicas.

 

Quando está a falar de multidão de ricos está a falar de quem? Que tipo de vida têm esses?

Pessoas que passaram a ter um nível de vida muito melhor. Acumulam património, mas não acumulam capital. Não reinvestem.

 

Sublinha a diferença entre riqueza e capital, coisa muito esquecida em Portugal. Concorda?

Absolutamente. No fundo, não são aventureiros. Não quero dizer mal dos ricos nem dos pobres. Hoje temos as start-ups vindas das universidades, as PME’s. É um terreno fértil em termos de capacidade empresarial. Mas são muito pequeninos. Tenho um navio e preciso de lhe dar um novo rumo. E não tenho ninguém para dar o golpe de leme.

 

Ninguém: está a pensar num líder político?, num empresário?

Ninguém em termos empresariais. Precisamos de nos relacionar com grupos multinacionais através do Estado. Acho que o Estado tem um papel importante na reconversão da economia, ao contrário da maior parte dos economistas que acham que se pintarmos a casa e tivermos um bom comportamento, vem para cá tudo quanto é desejável. Não vem. Por uma razão simples: o mundo está cheio de sítios para ir.

Formámos uma geração muitíssimo mais qualificada do que alguma vez tivemos. Era fundamental para atrair investimento.

 

Porque é que não se investiu? Porque é que esta geração está a debandar?

Porque a Comissão Europeia não gosta. A CE tem alguma dificuldade em que façamos atracção de grandes projectos de investimento. Acha que temos é de pôr o dinheiro nas PME’s.

 

Quando fala de CE está a falar da Alemanha?

Não sei se é a Alemanha. É a máquina burocrática. Os alemães vieram muito para cá. Temos uma dívida de gratidão, se assim se pode chamar, ao investimento alemão. Auto-Europa, Siemens, Bosch, Continental (pneus).

 

Mas esse grande investimento, alemão, internacional, não é o fulcro da nossa economia.

Temos um peso grande de sectores de actividade, viradas para o mercado interno, que criam muito emprego mas não têm grande produtividade. E não têm capital. Vivem a crédito. Não lhe chamo economia capitalista, mas economia mercantil a crédito. Muito numerosa. A Troika enganou-se quando, ao deixar que houvesse uma contracção do crédito, dizimou uma parte deste tecido. É um tecido que não tem nada que ver com competitividade. São os restaurantes, os cafés.

 

Pequena construção civil e restauração: muito estava alicerçado aqui.

Claro. E no comércio. Quando contraem o crédito, aumentam o IVA, as rendas comerciais, quando fazem tudo ao mesmo tempo... É uma coisa de loucos. É não ter em conta que nós temos uma ecologia. Não se pode pedir a um estrangeiro que compreenda a ecologia desta selva se nós próprios não a conhecemos. Em Washington não têm que saber que há esta ecologia. Convém é que os que estão cá expliquem.

 

Estamos a despedir-nos da Troika. A fachada ficou pintada de fresco, apesar de as cores estarem esmaecidas. Não fomos à bancarrota, mas os números estão longe do esperado.

A Troika teve um papel fundamental. Vamos comparar. Tínhamos um automóvel. A certa altura, o automóvel deixou de ter certificação para circular na estrada.

 

Deixaram de nos emprestar dinheiro lá fora.

É o mesmo que ter um automóvel com uma certa idade, não fomos à vistoria, fomos apanhados pela polícia. O que a Troika veio fazer foi dar-nos outra vez as condições para circular na estrada.

 

Este elemento não é despiciendo: tivemos a esperança de que o carro ia sair novo deste processo.

O carro não saiu nada novo! 

 

O português espera sempre por um momento destes para se refazer, começar de novo, “agora é que nos vamos endireitar”. A ladainha conhecida. O sebastianismo.  

A Troika permitiu que nós, que estávamos proibidos de circular... Não estávamos só proibidos de nos endividar; tínhamos uma chancela tal que os investidores internacionais, se quisessem vir para cá, tinham dúvidas em vir para cá. Portanto nós podemos voltar a circular. É esse o significado de voltar aos mercados. O grande problema está em que o automóvel não foi transformado. As actividades típicas deste automóvel são as mesmas. Temos que fazer uma grande reparação, meter-lhe um motor novo. Isso não tem nada a ver com a Troika.

 

Não tem a ver com o dinheiro que nos emprestam?

Não tem a ver com a Troika. A Troika veio cá para um outro objectivo. A Troika teve três agendas diferentes. A agenda da Comissão Europeia, a agenda do Banco Central Europeu e a agenda do Fundo Monetário Internacional. Gostava de perceber até que ponto essas agendas foram articuladas convenientemente, de início. A CE veio com uma missão: mostrar que era capaz, perante os alemães, de pôr em ordem as contas públicas de um país que tinha ultrapassado os limites. Escondendo que ela, em 2009, tinha estimulado este actor a gastar dinheiro.

 

Tem um capítulo no seu livro em que diz, justamente: “De Bruxelas, autorização para gastar. De Bruxelas, a exigência de poupar.” Passámos rapidamente de uma a outra.

A necessidade de consolidação orçamental era muito importante. A necessidade de resolver a situação do sector empresarial público (que é uma fonte de prejuízo) era muito importante. Mas há aqui um problema: não foi por causa de o Estado ser grande que deixámos de crescer.

 

Pode esmiuçar? Fala-se muito do Estado gordo e da dívida. Fala-se menos de crescimento. 

O problema é que deixámos de crescer. A partir de 92/93 crescemos devagarinho e depois estivemos uma década praticamente parados – num período em que a economia mundial estava muito boa. Podíamos ter aproveitado. Não aconteceu. Fim do Cavaquismo, 94. A maioria que vem a seguir tem de trazer novidade. 

 

O que trouxe Guterres? A paixão pela Educação.

Trouxe mais Estado Social.

 

Não era inevitável que a despesa com o Estado Social aumentasse? Ele ainda não estava consolidado.

Era inevitável. O que quero dizer é que não há uma relação de causalidade entre ter um Estado maior e um crescimento baixo. Simultaneidade não é causalidade.

 

Estabelece-se frequentemente uma associação entre as duas curvas.

Estou a crescer pouco, o Estado está cada vez maior, logo, se reduzir o Estado passo a crescer: é falso! Nós deixámos de crescer por umas razões e aumentámos o Estado por outras. Como não cresço, tenho menos impostos, menos capacidade de financiar o Estado, isto vai aumentando e vou-me endividando.

 

Tudo mudou quando entrámos no Euro.

A dívida só foi possível quando entrámos no Euro. Até então ninguém nos emprestava dinheiro (naquela quantidade). Endividámo-nos para tentar gerir a situação de um Estado grande num país sem crescimento. O que é que estão agora a fazer? Assim: vamos ajustar o Estado e daí, quase com certeza, vai haver crescimento.

 

Falso?

Não estou de acordo com isto. Acho que é um equívoco. 

 

Esse equívoco serve projectos eleitoralistas. As pessoas precisam de encontrar responsáveis pela situação em que se encontram. É fácil misturar os dois planos e dizer: a culpa de não crescermos e do Estado gordo é do Governo anterior. 

Claro. A partir de certa altura, com o endividamento, deixámos de poder circular na estrada, e isso tem que ver com o crescimento e não com a dimensão do Estado. Ou seja, o automóvel deita muito fumo. “Arranjem maneira de não gastar tanta gasolina e não deitar tanto fumo.” Foi o que a gente esteve a fazer. Pode circular outra vez. Vai continuar a andar devagaríssimo.

 

A famosa reforma do Estado, anunciada como uma das obras que fazem a diferença: o que é que pensa sobre o assunto?

Não se pode fazer uma reforma do Estado sem haver um compromisso para décadas. O problema não é o Estado, o problema é que o modelo mudou. Estávamos habituados a que houvesse capitalismo e socialismo. Não conseguimos habituar-nos à ideia de que há várias capitalismos. O capitalismo da Europa continental – o do Euro – é muito diferente do capitalismo anglo-saxónico, onde se democratizou o empreendedorismo. Criou-se uma mitologia na Europa que faz do capitalismo americano uma coisa bárbara.

 

Desenfreado, sem protecção social. A marca negativa é essa.

No capitalismo europeu a protecção social é assegurada pelo Estado ou pela Segurança Social (por um acordo entre patrões e trabalhadores). Deste lado, o mundo empresarial é financiado pelos bancos. O mundo da zona euro é de Estado e bancos. Em certos momentos os bancos vão-se abaixo e o Estado mete dinheiro. A partir de certa altura o Estado tem dívida, baixa o seu rating, e os bancos vêem também o seu rating afectado.

 

Pescadinha de rabo na boca...

No mundo anglo-saxónico, as famílias devem ter património (a casa) e poupança institucional (fundos de pensões, seguros de vida). O Estado intervém supletivamente – herança do Roosevelt – para ajudar as pessoas que não conseguem fazer estas duas coisas. O sistema financeiro americano não está assente nos bancos, está assente no mercado de capitais. “Eu quero acções que me dêem segurança, que me dêem crescimento”. Escolhem. Os bancos, não. São dinossáuricos.

 

Em resumo: falta ao sistema continental o empreendedorismo que é a razão do sucesso e do crescimento do capitalismo anglo-saxónico.

Sim. Isto aqui está tudo pendurado nos bancos. E os bancos cada vez podem correr menos riscos.

 

Não correram enormes riscos? Olhemos para os portugueses e pensemos no quanto se sobre-alavancaram em relação às regras de Basileia, por exemplo.

Correram riscos de outra natureza. O que fizeram foi diferente. “Vou oferecer aos meus depositantes, não o depósito, mas fundos.” Ou seja, captaram depositantes. Hoje só sabem vender casas e crédito ao consumo. Em suma, a Europa não tem futuro com este modelo. O que estamos a tentar é que o BCE salve o parque jurássico para salvar o Euro.  

 

Mario Draghi não tem força em relação a Angela Merkel, que parece ser, verdadeiramente, quem manda?

Note: a Alemanha é isto. Um sistema financeiro continental com um Estado muito grande.

 

Mas cresce muito e o problema não se nota.

Cresce muito agora. Nos anos 90 esteve muito mal.

 

Fomos tergiversando. Mas começámos por falar da reforma do Estado.

Reforma do Estado não é uma palavra correcta. A reforma do modelo capitalista é que é a questão decisiva.

 

Em que sentido?

Posso aumentar a componente privada na protecção social, introduzir competição na oferta de ensino, por exemplo.

 

De certa maneira diz que devíamos ter um sistema híbrido, entre o que os europeus reconhecem como conquista do pós-Segunda Guerra (o Estado Social), e aquilo que no código anglo-saxónico garante a sua sustentabilidade, nomeadamente um regime mais liberal na economia e com espaço para o empreendedorismo.

Sim. E com uma profunda transformação do sistema financeiro.

 

A transformação do sistema financeiro é a pedra de toque que agiliza todo o processo?

Para mim, é. Como só temos bancos e os bancos estão aflitos, isto vai acabar como? Todos os bancos vão mudar de proprietário, ser controlados a partir do estrangeiro.

A mudança do modelo capitalista envolve também o reconhecimento de que o período da mão de obra acabou. Hoje o paradigma é o do capital humano.

 

Como assim?

O capitalismo moderno, na Europa, para sobreviver precisa de pessoas que tenham empenho na sua qualificação e na melhoria de rendimento que resulta dessa qualificação.

 

Porque é que a única maneira de sobrevivermos, na sua opinião?

Para o resto, mão de obra desqualificada e barata, há aos pontapés no mundo inteiro. Eu não quero mão de obra barata para me tornar competitivo, eu quero trabalhadores que acumulam capital humano estimulados pelo mundo empresarial. 

 

Isto é ainda a Europa a redefinir-se/reorganizar-se 25 anos depois da queda do Muro de Berlim?

É. As pessoas não deram conta que a construção europeia é um projecto completamente artificial. Porquê? Nasce de duas coisas: um adversário à porta (é feita num contexto onde a União Soviética existia e tinha um enorme poder militar) e o maior país amputado e derrotado na guerra [Alemanha]. Em 1991 acontecem duas coisas: a União Soviética implode e a Alemanha reunifica-se. Como é possível acreditar que a seguir a isto a Europa vai ser a mesma?

 

Qual foi o salto que a Europa quis dar?

Vamos transformar-nos numa grande potência, todos juntos. A seguir vem o Euro.

 

Faz sentido. O problema é o modo como isso foi implementado.   

Isto tudo é inveja dos americanos. [riso] (Eu gosto muito dos americanos.) A Europa é como aquelas pessoas de idade que dantes jogavam no casino e agora estão sentadas à sombra de uma árvore a jogar à sueca. Têm uma enorme nostalgia do casino.

 

E agora?

A construção europeia actualmente é um conjunto de pessoas que estavam a jogar à sueca e dizem: “Vamos abrir um casino”. Um desastre.

 

A Europa tem a mania das grandezas, é isso?

Veja o que ela fez com a Ucrânia.

 

Vamos de novo centrar-nos em Portugal. Precisamos de um compromisso de décadas para sair do estado em que estamos. Compromisso entre partidos?

É preciso um consenso maioritário. Não se faz reforma do Estado com PS, PSD, CDS. Ou há uma mudança que envolve um conjunto de forças políticas amplo para reformar o modelo de capitalismo (Estado, sistema financeiro, mercado de trabalho, tudo junto) e assumir um compromisso para os próximos 30 anos, ou não há nenhuma reforma do Estado. Pela simples razão de o Tribunal Constitucional, com toda a razão, dizer que não dá.

 

Com toda a razão porque são medidas políticas que violam a Constituição?

Sim. Mas o que estou a dizer é que é preciso mudar a Constituição.

 

O que é que responde àqueles que dizem que vivem num país em que é o TC que governa?

Digo o seguinte: nunca se faz uma mudança de compromisso sob uma intervenção estrangeira. Não consigo fazer um compromisso que apareça como um ditame do estrangeiro. As resistências internas são enormes. Tenho de ter de moto-próprio uma capacidade política para dizer: “Tenho esta proposta, arriscada, que temos de fazer por isto e isto. Vamos chegar a acordo”. Mas não é com o manual de instruções da Troika.

 

Estivemos a cumprir um manual de instruções?

Estivemos. E agora dão-nos outra vez a carta para voltarmos a circular.

 

Acha que em breve vamos voltar a perder gasolina e deitar fumo (para manter a metáfora do automóvel)?

Claro. Não quero transmitir a ideia pessimista de que foi tudo tempo perdido. Não foi. Se não tivessem feito isto, nem carta tínhamos para andar.

 

Esperava mais?

Esperava diferente. Esperava uma coisa mais inteligente.

 

A Troika devia ter-nos obrigado/ podia ter-nos obrigado a fazer diferente, de um modo mais inteligente?

Não. Os elementos europeus da Troika vieram formatar Portugal para que o país continue na União Económica e Monetária sob liderança alemã. Ponto final parágrafo. O FMI veio para pôr Portugal mais competitivo e resolver o problema da balança de pagamentos. Quando começou a haver muito desemprego, teve uma resposta que não acho correcta; foi dizer: “Temos que baixar os salários até que haja emprego”.

 

Discorda, então.

Discordo. A questão é que as diferentes agendas coincidiram no manual de instruções.

 

E foram três choques em simultâneo.

Nós chamámos uma junta médica. Não!, chamámos um hospital e o hospital mandou uma junta médica. Devíamos ter percebido melhor o jogo entre as forças – dentro da Troika. Estamos cegos para isso porque a nossa ideia é a de que os europeus é que são bons. Não percebemos que algumas das coisas absurdas resultaram de imposições europeias.

 

Talvez não estejamos tão incapazes de perceber isso. A diabolização da Alemanha e de Merkel nos anos mais recentes – sempre apontados como os maus da fita – é sintomática. Cresceu um sentimento anti-alemão.

É verdade.

 

Faltam dias para acabar o período Troika. Que balanço faz destes três anos?

Estou contente porque o país voltou a ter carta de condução para andar na estrada europeia e mundial. Resta-nos agora o trabalho de pôr o carro na oficina e pô-lo a andar melhor. Era bom que fizéssemos isso sem precisar de uma Troika.

 

Sem precisar de novo de uma Troika?

Sim, de novo.

 

Está a dizer que isto pode não ficar por aqui.

Não. O que estou a dizer é que temos de tratar muito bem da relação entre consolidação orçamental, crescimento e política do sistema financeiro. Nos livros que escrevi tento explicar o que é que podemos fazer – no mundo – que nos permita crescer.

 

Porque é que praticamente não falámos de política e da importância das ideias? Estou a perguntar pelo papel da política. Ainda central?, ou ela foi de tal maneira engolida pelos problemas do sector financeiro que parece que saiu do mapa?

Os grandes políticos não se distinguem por ser grandes governantes. Os grandes políticos são aqueles que são capazes de formular uma ideia que mobiliza. As pessoas não se mobilizam para fazer o TGV. O Soares foi um grande político e não se interessava por nada disto [aponta para um desenho onde escreveu TGV].

 

Soares não se preocuparia com o TGV?

Soares falava da Europa, de prosperidade, de justiça social.

 

Trazia com ele um ideário.

Sim. Que no fundo é um conjunto de sonhos e pesadelos. Sonhos que quero realizar, pesadelos que afasto. Nesse sentido, não temos políticos que desbloqueiem este nó. Não temos políticos. Temos gestores. Para construir um novo compromisso para os próximos 30 anos, precisamos de políticos.

 

E precisamos que eles tenham a inteligência de contratar bons gestores.

Sim.

 

Ouço-o falar de 30 anos...

20 anos. Compromisso para o futuro. Se é verdade o que estou a dizer, que estamos num momento semelhante ao de 73, que é o momento do impasse, temos que romper e ter um novo discurso. Um novo ponto de encontro para as gerações mais novas, que têm que ter uma parte do seu imaginário concretizável neste país. Não é com um conjunto de gestores que isso se faz.

 

Quarenta anos depois da revolução, esperava ver o país, as pessoas exangues?

O país não está só exangue. O 25 de Abril trouxe um péssimo Estado e uma sociedade muito melhor.

 

Está a referir-se à máquina administrativa de um Estado péssimo? Sondagens recentes revelam que uma grossa parte da população considera o Estado Social o melhor do que a revolução trouxe.

Os dirigentes do Estado estão sem estratégia. Felizmente que tiveram um manual de instruções. Senão, não faziam a menor ideia do que tinham que fazer.

 

Está a falar de quem?

Sabe tão bem como eu. [riso] Temos de encontrar alguma coisa semelhante à estratégia protagonizada por Soares no passado (Europa, Estado Social). Uma estratégia. Não há-de ser a minha geração...

 

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014 

 

 

Pedro Burmester

21.09.14

Algumas perguntas: o que é preciso para estar entre os 50 melhores pianistas do mundo? O que é preciso sacrificar? Pode-se renegar uma bênção? E importa ser o melhor pianista do mundo? A única resposta aceitável: foi para isto que Pedro Burmester foi treinado, para ser o melhor no que fazia. Acabou o conservatório com 20 valores. Estudou nos Estados Unidos. Tem quatro filhos. O que ele perderia se tivesse apenas escolhido a carreira...

Pedro Burmester tem o mesmo brinco que lhe apontei há 20 anos quando o entrevistei para a Rádio Nova. Disse-me então que o tinha posto nos Estados Unidos, de onde tinha regressado não há muito tempo. O brinco era uma marca iconoclasta. Uma provocação à burguesia portuense de onde Pedro provém. Ali ficou.

Nessa altura, apesar da sua juventude, Pedro Burmester já era o Pedro Burmester. Pianista respeitado, artista de quem se espera um percurso de excepção. De certa maneira, ele sempre foi o Pedro Burmester porque desde criança se esperou tudo dele. Mas depois é a vida. Ao talento soma-se o trabalho, o trabalho, o trabalho. O sentido da humildade. O valor da crítica. Demora a perceber que o elogio não presta para nada. Não presta para nada? Que fez ele com que lhe deram?

Pedro Burmester tem 50 anos. Vai tocar pela primeira vez na Casa da Música, de que foi o primeiro director artístico e de onde saiu incompatibilizado com Rui Rio, então presidente da Câmara do Porto, tema sobre o qual prefere não falar. Decidiu que não tocaria mais na cidade como forma de protesto político. Passaram dez anos. Está nervoso? O público está nervoso? Ele não quer que a vida se meta na música. A música é uma vida própria. Portanto a resposta à pergunta: “Miúfa?” é nem por isso. Não antes. Não durante. Depois logo se vê.   

A entrevista aconteceu na Casa da Música, num sábado à tarde. Antes de chegarmos a uma sala virada para rua, ele apontou um recanto com uma acústica peculiar. Disse: “Era aqui que me refugiava quando precisava de estar em silêncio”. Foi há muito tempo o tempo em que estava do lado da gestão artística. Agora é tempo de palco. E é tempo de olhar para trás e para uma obra de Liszt...

 

 

Quando é que foi criança?

[pequeno riso] Começa logo com uma pergunta difícil. Gosto de não perder [essa criança que há em mim]. Ainda por cima agora, que tenho filhos. Quatro, e uma é pequenina. Quando uma pessoa se depara com uma criança pequenina volta a deparar-se com a criança que foi.

 

Qual é a primeira definição que lhe ocorre para “ser criança”?

Olhar para as coisas com frescura. Olhar com vontade. Aceitar as coisas como elas são. Experimentar. Testar. Fui adulto muito cedo no sentido em que a minha profissão me obrigava à responsabilidade.

 

Quando perguntei quando é que foi criança estava a pensar na responsabilidade de ter uma plateia que não se pode defraudar. Isso aconteceu muito cedo na sua vida.

Lembro-me muito bem da primeira vez que fiz um recital a solo. Tinha 10 anos. Em Braga. Lembro-me da angústia.

 

Angústia anterior ou durante a apresentação?

Anterior. Do durante não me lembro. “Que responsabilidade, estar sozinho no palco a tocar para pessoas”. Foi doloroso esse tempo que antecedeu o primeiro recital – e repete-se sempre. A ansiedade, o desconforto, mantêm-se. O que vamos é sabendo lidar com isso.  

 

Os focos desse desconforto são: será que me vou enganar?, será que vou estar à altura das expectativas? São coisas diferentes.

São esses, mas também: “Não gosto que olhem para mim”. [riso] Numa profissão como a minha é um bocadinho chato. Fui combatendo isso assim: “O que estou a tocar não é só para mim, é também para as pessoas.” Se tiver uma atitude de dádiva, custa-me menos. Essa generosidade que é preciso ter quando se pisa um palco, e que me fez vencer esses medos, só nos últimos anos é que a percebi.

 

Estas pessoas da plateia podiam ser a família, o círculo mais estrito, uma massa anónima?

Podem ser dez ou cem: é igual. Pode ser uma sala grande ou uma sala pequena: é igual. Não é o número.

 

É muito diferente quando toca só para si ou quando toca para outros?

Já não toco para mim. Toquei para mim muitos anos, nos concertos. Ou seja, ouvia aquilo que queria ouvir. Era um processo interior. O público estava lá mas eu tentava fechá-lo. Tentava que não interferisse, ou não senti-lo, sequer.

Quando estou a estudar, estou a trabalhar; não é tocar para mim. Aprendi a tocar para os outros, a ter prazer nisso. Fez-me voltar a pisar os palcos com vontade, com gosto. Há dez, 15 anos, pensava: “Se calhar isto não vai durar muito mais...” A Casa da Música [de que foi director artístico] foi um bom pretexto para me virar para outro lado. Depois a vida dá voltas.

 

Voltemos à infância. Quem é que o fez pianista?

Muita gente. Muitos professores. Muito a minha mãe. Se não fosse a sua paciência e motivação, provavelmente teria desistido algures na infância. Não é fácil, a partir dos sete anos, manter a obrigatoriedade de estudar todos os dias. Temos de fazer escalas e arpejos, uma espécie de ginástica dos instrumentistas. Não é propriamente música, é exercitar a máquina. Eu detestava. A minha mãe sentava-se ao meu lado e lia.

 

Lia?

Basicamente russos. O Tolstói, o Górki, o Dostoiévski. Lia alto enquanto eu fazia escalas. Eu ficava entretido, a mexer os dedos e a ouvir uma história. Essa presença, a motivação inteligente, não me deixaram não levar o piano a sério.

 

A sua mãe tinha o desejo de ter um filho artista?

Teve vários filhos artistas. Nunca o manifestou dessa forma. Mas achava que a arte e todas as expressões artísticas eram fundamentais para a educação. Ler, ver exposições, cinema, ouvir música: faziam parte do dia a dia como comer.

Devo o ser pianista à minha mãe. E à Helena Sá e Costa. Fui aluno dela entre os sete ou oito e 18, duas vezes por semana, todas as semanas, na fase mais importante e mais difícil. (Hoje dou aulas no ensino superior e digo que não sei dar aulas a quem começa.)

 

Como é que Helena Sá e Costa ensinava?

Dirigia sem dirigir. Dava por mim a tocar obras sem perceber como é que tinha chegado ali. O seu plano pedagógico era: cada aluno é um caso.

 

Era afectuosa?

Era. Mas era sempre tudo pela música. A música era uma devoção. Vivia para aquilo. A música, o texto musical, eram sagrados.

 

E os instrumentistas eram apóstolos desses textos sagrados?

Exactamente.

 

Helena Sá e Costa nunca casou nem teve filhos?

Não. Era casada com aquilo [o piano]. Eu gostava muito dela, ela gostava muito de mim, mas era a música que nos juntava.

 

Como era o reforço que ela fazia? Das suas qualidades, das suas conquistas.

Elogiava-me muito. Até achava estranho. No outro dia apanhei uma carta com imensos elogios. Quase corei!, ao reler a carta.

 

Como já passaram muitos anos, pode partilhar o conteúdo?

Essencialmente elogiava o meu carácter, a minha maneira de ser, mais do que as minhas capacidades artísticas. Li a carta e fiquei atrapalhado. Jesus!, não sou digno destes elogios. Portanto ela elogiava-me muito e isso motivava-me. Também aprendi cedo, e com ela, a importância da crítica e da capacidade de nos auto-avaliarmos.

 

Admiração e estima são coisas diferentes. Mas especialmente nos casos de pessoas precoces tendem a confundir-se. Essa confusão pode ser um nó emocional difícil de resolver. “Reforçam-me e elogiam-se porque sou precoce e não defraudo as expectativas?; se estiver parado e calado, gostam de mim da mesma maneira?”

Pois. Pois. Pois. Nunca misturei o lado pessoal com o que fazia. Uma coisa sou eu, outra coisa é aquilo que eu faço. 

 

Também para isso é precisa uma aprendizagem.

Sim. Conto a história de um professor que tive, francês. (Tive muitos professores por períodos curtos, além das aulas com a Helena Sá e Costa.) Só tive uma aula com ele, em Vila Real, na Casa de Mateus. Disse-me que tudo aquilo que eu fazia não valia grande coisa. Eu toquei. No fim perguntou-me: “Esforçaste-te muito para tocar assim? Tiveste que estudar muito, tiveste que pensar muito? Se te puser uma partitura, ao cabo de meia hora és capaz de fazer mais ou menos o mesmo que acabaste de fazer?” Olhava-me com um ar irónico, já sabendo da resposta. “Se não fazes grande esforço e se te sai assim, porque tens talento, que é que queres que te diga? Isso não vale nada.” Era uma aula pública. Muita gente a olhar, pessoas na sala foram chamar outras. “Está a dar forte e feio no Pedro”.

 

A humilhar.

A humilhar. Eu estava roído de raiva. “Mas quem é este tipo que vem dizer isto quando só ouço elogios?” Claro que ele tinha razão. Eu tinha 14, 15 anos. Essa frase bate-me à porta todos os dias. Ou quase. De facto, a facilidade estava cá, está cá. As coisas complicadas quando se começam – junção de mãos, independência de mãos, usar o pedal... são problemas que nunca se me puseram.

 

Como se isso lhe fosse instintivo?

Sim. O meu primeiro professor, com quem só tive meia dúzia de aulas, descreve nas suas memórias a primeira aula que me deu. Antes de aprender a tocar piano aprendi a ler música. Estive dois ou três meses a decifrar o código da música. Quando cheguei à primeira aula e o professor me pôs a partitura à frente eu já sabia que o sol era o sol, o ré era o ré, e onde eram no piano. Toquei do princípio ao fim. Quando acabei, o professor olhou para a minha mãe e disse: “Nunca me apareceu à frente alguém que fizesse isto”. Aquilo pareceu-me evidente. Mas era uma habilidade que não serviria de muito se não fosse desenvolvida. A frase “Isso não vale nada” é verdadeira. A facilidade, a partir de certa altura, tornou-se um obstáculo e não uma vantagem.

 

Por causa dessa facilidade, há um momento em que parece que a máquina funciona sozinha, e por isso não vale nada? Mas há um momento em que começa a existir criação, e arte.

Não acho que exista por aí além na interpretação de obras de outros. A criatividade e a arte estão na obra que eu toco. Não estão em mim.

 

Está a ser modesto.

Não estou, não. Eu não sou o criador.

 

Peguemos numa obra tão conhecida quanto as Variações Goldberg de Bach; tocadas pelo Glenn Gould ou pelo Keith Jarrett são coisas diferentes. Existe uma margem, que não é pequena, de criatividade na interpretação.    

Não. Existe apenas um olhar diferente sobre a mesma coisa. Não se parte de uma folha em branco. O Glenn Gould achava o contrário. Dizia: “A obra está a posar para mim”. Eu acho que não. Não posso comparar-me ao compositor, de maneira nenhuma. Do que você fala não é da criação, é do espaço para a interpretação. Eu leio um texto e posso ler mais coisas naquele texto do que outra pessoa. E isso pode acontecer também com o mesmo texto que revisito anos depois.

Onde acho que podemos tocar esse lado – que chamamos de criativo, artístico ou menos explicável – é no palco. Por mais que estudemos as obras e saibamos o que vamos fazer, há coisas que só acontecem no palco.

 

Explique melhor.

Eu já não sou eu e é a música que me está a levar. (Isto está explicado, tem um nome. Creio que foi António Damásio que falou deste fenómeno.) Nesses momentos sinto que fico perto disso a que chamam criar. Pode ser uma ilusão, provavelmente é. Mas quando uma pessoa sente que capta o espírito da obra – é mesmo isto que o compositor está a dizer – é muito bom.

 

Diz isso e sorri. A sua cara ilumina-se.

É mesmo bom. Bate tudo certo. Ouço, sinto, é aquilo. Nisto há intérpretes que são extraordinários e outros que são bons. Há imensos bons. Extraordinários serão 50.

 

O que é que é preciso para estar nesses 50?

Inteligência. E diligência. Beethoven era fã deste conceito. Uma pessoa diligente é uma pessoa que prossegue um objectivo sem se desviar.

 

Helena Sá e Costa – por falar em prosseguir um objectivo diligentemente.

Sim. É preciso ir até ao fim das coisas. Não desistir. Isto traduz-se em trabalho, trabalho, trabalho. (No outro dia falava com o Siza: “Isto não é mais nada senão trabalho”) Percebo perfeitamente o que diz. Não é com inspiração divina que se chega mais longe.

 

Quando é que decidiu ser pianista? Podia ter sido arquitecto, por exemplo, e não pianista? E nesse caso seria hoje um melómano que teve o piano como paixão. Gostava de saber da compreensão que teve de si mesmo e do que queria fazer.

Nunca tive muito, devo confessar. Ainda hoje, meio a brincar meio a sério, digo aos meus filhos: “O pai ainda não sabe o que vai ser quando for grande”. Ainda não sei bem qual é o meu papel aqui... Não acrescento grande coisa ao mundo. Não sou nada ambicioso em termos de carreira. Claro que tenho de trabalhar para viver, e faço-o com gosto, mas, para esse fim, tanto podia fazer isto como outra coisa qualquer. Fazer o que faço é um privilégio. Não o vejo como obrigação ou profissão.

 

Resposta pífia que não me esclarece nada.

Tem razão. Hum... Quando cheguei aos 18, 19, 20 anos o histórico já era grande. Ou é isto ou é outra coisa? Nunca me fiz esta pergunta. Continuei, apenas.

 

Nem a sua mãe, com a mão de ferro que tinha, lhe disse aos 18 anos, quando acabou o conservatório com 20 valores...

A minha mãe queria que eu fosse o melhor pianista do mundo. Pronto. [riso] Eu não podia fugir disto. Não podia. Não podia.

 

A sua mãe verbalizava de que maneira o desejo de que fosse o melhor pianista do mundo?

“Quero que seja o melhor naquilo que faz. Quero que seja bom naquilo que faz.” Tive outro professor, um russo em Chicago, com quem estudei três anos. Gostava do lado infeliz das coisas. Gostava do que corria mal, do falhar. É um lado interessante. Na última aula que tive disse-me: “Não tens hipótese de fugir.” Era crente e traduziu isto desta forma: “Foste abençoado. Tiveste uma dádiva, não podes escapar”. Não levei muito a sério, mas volta e meia penso nisso. Houve tanta coisa que as pessoas me deram –  porque tenho este talento – que não [o] posso deitar fora.

 

Ao mesmo tempo, foi ficando refém disso?, do que queriam para si.

Sim, mas nós ficamos sempre reféns de alguma coisa. Mais vale ficar refém de qualquer coisa de que se gosta. A outra hipótese era ser pedinte, vagabundo.

 

Pedinte, vagabundo? Que coisa abstrusa lhe ocorre.

Pedinte no sentido filosófico. Como é que se chama o tipo da Grécia Antiga que vivia na rua? Diógenes Laércio. A alternativa a não ser refém de nada era ir por aí e ser como o Diógenes Laércio. É interessante também, mas já não vou a tempo.

 

Acabou o conservatório aos 18 e aos 20 foi para os Estados Unidos. Nesses dois anos, interrogou-se sobre se queria estar entre os 50? E condicionar toda a sua vida a esse projecto. Ou queria manter um comprometimento com a vida?

Pois. Pois. Não fui capaz de o fazer [casar com a música]. Nessa altura até seria capaz. Hoje vejo o que perderia se assim fosse. Se calhar não tinha os filhos que tenho, a mulher que tenho, não tinha este lado que é tão bom. Não me arrependo.

[pequena pausa] Outra história engraçada que me contou um amigo violinista, há muitos anos. Havia na Checoslováquia um violinista sem igual. O meu amigo teve aulas com ele, ouviu-o, perguntou-lhe: “Porque é que você não fez carreira? O que é que está a fazer numa terreola da Checoslováquia, a dar umas aulas? É um dos melhores violinistas do mundo”. “Eu sei. Contento-me só com a ideia.” [riso] Eu também me satisfaço se naquilo que faço for bom. Não preciso de dizer às pessoas: “Oh, que bom que eu sou”. Contento-me com a ideia. Não tenho que ser um dos 50 melhores do mundo.

 

Acha, pelo menos, que está nos 100 melhores do mundo?

Não sei se estou, nem quero estar, não me interessa. Mas acho que amanhã tenho de fazer melhor do que fiz hoje. E tenho que ser diligente.

 

Quando foi para os Estados Unidos, de facto, o que é que queria?

Eu estava a estudar. Estudava muito, muitas horas. Estudei com o Sequeira Costa, que era, e é, um professor extraordinário. Fui para os Estados Unidos porque ele estava lá. Sabia muito, não só de música mas de um outro aspecto que a Helena Sá e Costa pareceu nunca valorizar: um aspecto técnico. “Sei o que quero, mas agora como é que faço a coisa?” Como é que me relaciono com o instrumento de modo a fazer aquilo que quero realmente fazer? Ela dizia: “Tu hás-de lá chegar se sabes o que queres”. É verdade. Talvez demore mais tempo.

Com o Sequeira Costa eram aulas de um pormenor doentio. Deu-me uma grande segurança.

 

Como assim?

Muito do que eu fazia era intuitivo. A partir daí incorporei um processo racional.

 

Posso dizer que Helena Sá e Costa era mais intuitiva e emocional e ele era mais formalista e racional?

Simplificando, sim. Aprendi muito, também, a ouvir. Fui ao festival de Salzburgo uns 12 anos seguidos. Com a minha mãe. Assistia a concertos diariamente. Estava lá o melhor do melhor. O [Maurizio] Pollini, o [Alfred] Brendel. Acabava o concerto, mal chegava ao piano, imitava-os. Aprendi de muita gente.

 

Foi determinante (porque importante foi de certeza) a relação pessoal e o entendimento pessoal com os professores?

Não. É uma coisa muito portuguesa: mistura-se a relação pessoal com a profissional. Houve casos em que não gostei da pessoa, mas isso não contava. Com outros professores, tive uma relação muito próxima. Com a Helena Sá e Costa. Com o professor de Chicago (tinha aulas em casa, três, quatro horas, e depois jantava com ele e a família. Bebíamos uma garrafa de vodka ao jantar. A seguir ia para casa aos esses). Às vezes essa relação [pessoal] deturpa o outro lado [profissional]. Afecta o que o professor me vai ensinar. Pode ser mais tolerante...

 

Como é que foi o choque com a cultura americana? Ia de um meio pequeno como o Porto.

Fui para um meio ainda mais pequeno. O Sequeira Costa ensinava na Universidade de Kansas. Nem sequer era Kansas City, que é uma cidadezita. Fui para uma terra chamada Lawrence onde vivia o William Burroughs.

 

Já tinha lido Burroughs?

Já. Mas só soube que ele tinha vivido em Lawrence mais tarde. 

 

Parêntesis para falar das suas outras formações. Tem um irmão pintor (Gerardo), uma irmã fotógrafa (Rita). Tinha próximo de si outras maneiras de ler o mundo.

Sou o quarto. A minha irmã mais velha morreu há pouco tempo. Tinha trissomia 21. A seguir é o Gerardo, depois o Xano, Alexandre, que é arquitecto. Eu e a Rita. Passava horas a ver o meu irmão Gerardo pintar. Passava horas a vê-lo discutir com o grupo Puzzle em 1975, 76, 77; ao fervor artístico juntava-se o fervor da revolução. Acreditavam que a arte ia mudar o mundo. Tempos fantásticos. Eu tinha 11, 12, 13. E lia muito.

 

Quem é que lhe passava os livros para a mão?

Os meus irmãos mais velhos e a minha mãe. Ouvia muita música que não a clássica. Punk, rock. Sobretudo com o meu irmão mais velho. E tardes a ouvir óperas inteiras de Wagner. Estas coisas exigem tempo. E ter tempo para ter tempo. Não se compadecem com a velocidade das coisas de hoje em dia.

 

Outro luxo: ter tempo para pensar, deglutir, aprender?

Sim, sim. Gostava e gosto de estar sozinho. A não fazer nada. A pensar, só.

Voltando ao Kansas. Era mais aldeia que o Porto. Veio mudança ao mundo porque era outra cultura. Porque tinha muita neve (depois de três meses em que tudo é branco, é terrível). Senti a falta do mar.  

 

Foi a primeira vez que esteve separado da sua mãe? Emocionalmente, o que é que representou?

Assim longamente, sim. Foi pior para ela do que para mim.

 

Era um meio muito competitivo?

Competitivo no sentido “ou mato ou morro”? Não. A competitividade passava-me ao lado. Não dou luta a quem é muito competitivo.

 

Porque é que nunca foi muito competitivo? Porque nasceu rico?

Também. Não tive que batalhar para comer. Pode ser por feitio. Conheço gente rica muito competitiva. No desporto, numa coisa factual – quem corre mais rápido, quem salta mais alto, quem chega mais longe? – gosto da competição.

 

Porque isso se pode medir?

Sim.

 

Quem toca melhor, não se pode medir.

Não. Estou a pensar se me mexo porque alguém me pica... Acho que não.

 

Em todo o caso, foi um aguilhão o professor francês ter dito “O que é que isso vale?”. Não é bem competição...

Mas não anda longe. Foi um aguilhão, sim, sim, sim.

 

Teve um grande peso na sua vida ter nascido numa família burguesa?

Teve certamente. [riso]

 

Há a imagem romântica do artista e grande criador sozinho, proscrito, a passar dificuldades. No século XIX. Estou a perguntar pelo papel da dificuldade na sua vida, que foi, sob muitos aspectos, nomeadamente do ponto de vista material, uma vida facilitada.

Seria melhor se tivesse tido dificuldades?

 

Não é bem isso que procuro saber. Vou dizer assim: o que é que a dificuldade o fez fazer? O que é que teve de provar?

Não dou grande valor aquilo que faço, se calhar, por causa disso. Tive logo a Helena Sá e Costa. Tive logo um piano em casa. Tive logo a sorte de ir para Salzburgo. Ainda bem. Mas não me valorizo por causa disso. Como dizia o outro: “Isso vale alguma coisa? Fizeste algum esforço para [ter] isso?”

 

É terrível ouvi-lo dizer que não se valoriza muito.

Estou numa fase em que não sei responder a isso.

 

Tem 50 anos. Fase boa para uma pessoa se interrogar acerca do que conquistou e do que foi dado.

Sim.

 

Nas fotografias antigas que trouxe consigo, numa estava com a sua mãe, em Salzburgo. Ela trazia um vestido muito elegante. Noutra, com Helena Sá e Costa, tinha uma atitude muito cúmplice. Elas tinham uma boa relação entre si ou competiam?

[riso] As mulheres... Não, não competiam. Gostavam uma da outra. Davam-se bem. Não havia: “O menino é meu”. Até porque o menino não era de nenhuma.

 

O seu pai dizia “o menino o meu” do seguinte modo: coleccionava os seus recortes.

Tinha tudo. O meu pai era alemão e espanhol. Gostava muito que nós, filhos, tivéssemos ido por esta via embora olhasse com desconfiança. A vida de artista era, aparentemente, uma vida mais incerta, insegura, arriscada. Ao mesmo tempo tinha muito orgulho no que fazíamos. Adorava que eu desse concertos, que as pessoas gostassem. Tudo o que era entrevista, programa de concerto, memória do meu trajecto, guardava religiosamente. Graças a ele tenho um arquivo desses anos. A primeira coisa que me perguntava quando vinha dos concertos era: “Trouxe os programas?”

 

A sua mãe perguntava: “Correu bem”?

Sim. E: “As pessoas gostaram?”.

 

Não é o mesmo. Qual é a história do seu pai? Nasceu na Alemanha e veio para cá?

Nasceu cá. Mas com 18 anos foi para a Alemanha fazer a Segunda Guerra, entre 1941 e 45. Esteve em Itália, em França e acabou na Alemanha. Foi uma marca fortíssima, evidentemente, na vida dele.

 

Teve de ir porque era alemão?

Sim. E porque o pai achava que ele devia ir. Quando deu por ela, quando percebeu o que foi defender, foi terrível. Um choque tremendo. “Estive a combater por aqueles energúmenos?” Passou o resto da vida a fazer a psicanálise daqueles anos.

 

Falava disso? 

Falava bastante da guerra, mas da guerra.

 

Do ambiente de trincheiras? Do perigo, do medo da morte?

Sim, histórias de guerra. Não falava de como isso o afectou. Lembro-me de uma história de um bombardeamento em que conseguiu tirar dos escombros um bebé que estava a chorar, protegido pelo corpo da mãe. Um bebé que entregou à Cruz Vermelha. Histórias destas contava quase diariamente.

A minha mãe detestava os alemães. Alguém lhe terá dito: “Ainda hás-de casar com um alemão”. Ela dizia que a guerra tinha feito dele uma pessoa madura, sofrida, interessante. Foi disso que ela gostou nele.

 

Esteve ligado a pessoas de esquerda, apesar da sua educação burguesa e de, habitualmente, as pessoas do seu meio social se posicionarem à direita. A política representa uma dimensão importante na sua vida? Situa-se à esquerda desde quando? Ou trata-se apenas da associação a pessoas de esquerda?

Começou por ser uma associação a pessoas de esquerda, e depois à esquerda porque a esquerda acredita mais no ser humano. A direita tem receio. Acha que o ser humano, por natureza, não é boa coisa. Ou diz que há uns mais fortes e outros mais fracos e paciência, é assim a vida. A direita desconfia da capacidade de bondade das pessoas. Ontem disseram-me uma frase engraçada do [cineasta] Fritz Lang: “Só há pessoas más e pessoas muito más. Às más normalmente chamamos boas”. [riso] O fundamental para mim: criar igualdade de oportunidades. Senão estamos a desperdiçar as pessoas, e isso não é admissível.

 

Isso ao invés do “salve-se quem puder”?

Não consigo conceber o “salve-se quem puder”. Não consigo olhar para as pessoas e pensar: “Tive sorte, tiveste azar”. Isto está à esquerda. Eu estou desse lado. Não estou do lado de nenhum partido. E quando estive, foi por causa de pessoas. Jorge Sampaio.

 

Foi mandatário de Jorge Sampaio.

Com protestos em casa! [riso] Duraram pouco. Era uma casa onde maioritariamente se votava à direita. Depois os meus pais foram muito admiradores de Jorge Sampaio e da maneira como exerceu a presidência.

 

Quando é que cortou o cordão umbilical com os seus pais? Quando é que assumiu as suas posições ideológicas? O que é que representava contrariar a sua mãe que tinha dedicado a vida a fazer de si o melhor pianista do mundo?

A minha mãe não era, de todo, dogmática ou facciosa. Não fechava portas, abria. Eu sabia que por apoiar alguém de esquerda não era expulso de casa ou deserdado (como aconteceu com algumas pessoas, de outras famílias). Ir à festa do Avante tocar também foi um momento interessante. Em 1988, com o Mário Laginha. “Vai tocar à festa do PCP?” Aí acharam menos graça. Era o PCP.

 

A sua família foi expropriada no pós-25 de Abril?

Não. Viveu esse período com receios. O meu pai tinha uma empresa e passou maus bocados, mas os trabalhadores gostavam dele. O meu tio-avô Augusto Abreu, que tinha a agência Abreu, teve que fugir do país. Era um grande coleccionador de arte.

 

Pessoa importante na sua história?

Importante enquanto mecenas. Foi graças a ele que fui para Salzburgo, que tive o meu primeiro piano de cauda.

 

Era um investimento emocional, além de material, no seu sobrinho querido?

Não era sobrinho querido, era sobrinha querida, a minha mãe. O que a minha mãe pedia, ele dava.

 

O dinheiro vinha mais desse tio do que do seu pai?

Sim.

 

Isto veio a propósito da sua participação na festa do Avante.

As resistências foram maiores porque era o PC. Mas nunca houve situações de ruptura. Nunca tive necessidade de cortar o cordão umbilical e dizer: “Agora vou ser eu”. A Agustina dizia: “É muito perigoso ir contra a nossa educação”. Não havia razão para ser contra.

 

O que é que teve de sacrificar?

Nada. Nada que me faça dizer: “Perdi isto”.

 

Um pianista com uma carreira como a sua tem uma vida de atleta de alta competição? É fundamental a disciplina. Não só física como emocional. Como se treina estes dois músculos? Como é que uma pessoa não se vai abaixo?

Vai-se. Vai-se. Até se vai mais abaixo. Porque se mexe sempre com esse lado. As obras que estamos a trabalhar vivem connosco como se fossem pessoas. As obras que vou tocar na Casa da Música estão comigo sempre. Como não preciso de passar muitas horas a fazer exercícios, posso dar-me ao luxo de estar muitas horas com a música.

 

Quando horas passa, em média, por dia, com a música? Partamos do concreto. Quanto tempo exige a preparação de um concerto como este da Casa da Música?

Quantas horas para chegar aqui e tocar isto? Ui. Muitas. A obra de Bach que vou tocar toquei-a há 25 anos e nunca mais a toquei. A de Liszt é nova. A de Ligeti e a de Lopes Graça são novas. Nunca fiz as contas, mas entre 500 a mil horas estão em cima destas obras.

O ideal é estas horas todas serem feitas no ano anterior e no mês anterior não ter de trabalhar muitas horas. Há tempos diferentes; há o da decifração da obra (saber que dedo ponho em cada nota), há o entender, o analisar, o experimentar (toco mais rápido, toco mais lento, o que é que isso implica). A seguir tento esquecer e voltar a ser criança, olhar para a obra fingindo que nada disto existiu. E depois há o tocar sem estar a treinar. Quase simulo o concerto no estúdio, e aí tento dominar a emoção.

 

O que é que acontece se na véspera tiver uma zanga com a sua mulher?

Não mexe nada. Quando vou para aquilo, vou para aquilo. Eu digo que não tenho, mas se calhar tenho essa devoção, essa entrega, que me faz estar só naquilo. Pode cair o mundo ao lado.

 

Não existe de facto correspondência, ou contaminação, entre o seu estado emocional e a maneira como toca?

Não. É a música que define o meu estado emocional naquele momento. Não é o meu estado emocional que define a música. E cada peça tem uma vida própria.

 

Então vai dizer-me que tocar na Casa da Música, pela primeira vez, e tocar no Porto dez anos depois do jejum a que se obrigou, emocionalmente não mexe consigo?

Tento que não esteja lá. O público dará mais importância a isso do que eu. A música não tem culpa dessa história. Claro que para mim também é importante. Mas espero só pensar nisso depois. Senão interfere e vou ficar muito nervoso, assustado.

 

Nas fotografias de criança, ao piano, parece muito compenetrado. Mas nunca assustado. Tem uma cara fechada quando toca. Ao contrário da sua expressão cá fora, muito sorridente e expansiva.

Sim. Estou fechado em mim. Está tudo aqui [aponta para cabeça e ouvido].

 

Brahms escreveu um Requiem para a mãe.

Um Requiem profano. Chama-se Requiem Alemão.

 

Apesar de ser um Requiem, parece uma peça luminosa, e não soturna. Quando a sua mãe morreu...

Os meus pais morreram num [intervalo] de um ano e meio. Depois morreu a minha irmã. Foram perdas importantes nos últimos tempos. A minha mãe, que morreu há um ano, fez confusão e achava que este recital era o ano passado. Achava que ia aguentar não morrer e ouvir-me aqui. Quando percebeu, ficou muito triste. “Ah, é para o ano. Já cá não estou.” Estava doente, na cama. A obra de Liszt que vou tocar ia estudá-la para casa dos meus pais, para ela ouvir. A minha mãe adorava aquela obra.

 

Simbolicamente a sua mãe está na peça de Liszt. Por isso é que a escolheu?

Não. O programa já estava definida antes de ela adoecer e antes de a tocar para ela. É uma obra pouco conhecida, chama-se “Benção de Deus na solidão”. Acompanha-a um poema que fala de um homem que a meio da idade se limpa de tudo e volta a renascer. Sim, ela vai estar nessa obra, quer eu queira, quer não.

 

Chora ao tocar?

Não.

 

Nem em casa, sozinho, a tocar uma peça como essa, com essa carga simbólica?

Raramente. Choro muito raramente. Faz muitas perguntas a que não sei responder.

 

E uma peça que represente a vida e o futuro, ou seja, os seus filhos?

[riso] Não sei associar. Os meus filhos... quero que eles sejam muito felizes.

 

Tocam algum instrumento?

A Júlia toca violoncelo e o Ricardo piano. Tem oito anos.

 

Corajoso.

Pois. Eu só digo mal. “Pai, não quero tocar para ti porque só criticas.” O elogio não serve para nada. O que serve é a crítica. Quando não fazemos mais do que a nossa obrigação, não merecemos elogios.

 

Quer dizer mais alguma coisa? Não falámos de Rui Rio.

Que bom. Não é assunto que mereça ser falado.  

 

 

 

Publicado originalmente no Público em 2013

 

 

Eduardo Stock da Cunha

14.09.14

Eduardo Stock da Cunha sugere que a entrevista seja feita em casa, porque não é na categoria de administrador do Banco Santander que o vou entrevistar. A casa, como ele, é solar, bem comportada. Falámos sobretudo da dimensão familiar, que lhe é essencial. Do que é ter sucesso. Do que seria o falhanço. Da liberdade que cada homem tem para escrever a sua história.

 

Por que é que tem tantos filhos? Não é nada comum as pessoas terem tantos filhos nos dias que correm.

Vou responder pela negação: por que é que não havia de ter tantos? Se tive a possibilidade de os ter... Comecei por ter um casal, e da minha nova fase de vida tenho três filhas. Foi uma evolução na continuidade. Nunca pus em causa o ter ou não ter: era algo natural.

 

Dizia-me que está habituado a famílias numerosas. É um de oito irmãos. É obrigatório perguntar se são católicos...

Eu sou como, presumo, 80% dos portugueses, católico à minha maneira. Os meus pais são católicos praticantes. O meu pai é membro de uma família muito tradicional, é um português daqueles antigos que dá gosto ouvir. A minha mãe viveu quase toda a juventude lá fora, tem um nome pouco comum, judeu-alemão – Stock. É uma pessoa muito viva que trouxe à família algum sal e pimenta.

 

Comecei pelos seus filhos porque um quadro familiar como o seu marca decisivamente.

Nasci numa família privilegiada, a vários níveis.O meu pai ensinou-me desde pequeno que isso nos dá responsabilidade e deveres, e poucos direitos. Há uma vantagem em ser-se o terceiro: estamos relativamente libertos para algumas dessas responsabilidades. Para lhe dar um exemplo, o meu avô chamava-se António, o meu pai chama-se António, o meu irmão mais velho chama-se António; estou convencido de que o meu irmão nunca se questionou a si próprio ou à mulher como se chamaria o filho mais velho.... Adivinhe: António!

 

Que espaço é que há numa família grande para cada um escrever a sua narrativa, desvinculando-se, sem se desvincular, do todo homogéneo?

Há riscos e vantagens nas grandes famílias. Disciplina, solidariedade entre irmãos, o conhecimento que se tem da pessoa que está ao lado – tudo isso é positivo. Não há uma força, que não seja a nossa força interior, que nos obriga a desabrochar e a dar nas vistas. A minha vida foi um pouco diferente da dos meus irmãos: decidi trabalhar enquanto estava a estudar, fui jornalista.

 

O que é que o fez fazer-se à vida, contrariando um conforto instalado? Fazer-se à vida no sentido de procurar o seu espaço.

Como qualquer um dos meus irmãos, acabei o sétimo ano sem chumbos, e fui para Economia [na Católica]. No final do segundo ano descobri que não estava a achar graça ao curso. Mas pensei: são cinco anos, não vou deitar fora quarenta por cento; mas que se danem as notas, vou é tentar fazer alguma coisa! Arranjei um contacto no jornal “A Tarde”, e aquilo começou a correr-me bem. Era jornalista da secção de Economia. Estávamos em 83. Ao fim de um ano e meio, fui convidado para ir para a Rádio Renascença.

 

Antes dessa experiência, já sabia que tinha jeito para números e que gostava de números.

Eu não estava a gostar do que estava a estudar. Mas sabia que aquilo de que gostava tinha a ver com aquele curso.

 

Não estou a vê-lo a dizer ao seu pai que não quer tirar um curso superior e que pretende ser, por exemplo, chefe de cozinha...

Não! Seria uma desgraça – em termos da reacção do meu pai.

 

Falamos de contrariar uma expectativa familiar e social, e mesmo pessoal. É difícil ter essa liberdade?

A liberdade é grande face a duas condições: estar disposto a usar dessa liberdade e a responsabilizar-se pelas consequências dela; e não ofender os seus princípios e valores. Vou dar-lhe um exemplo: eu era casado pela igreja, em 36 netos dos meus avós fui o segundo a separar-se, e o primeiro por iniciativa própria; e casei-me com uma pessoa que trabalhava comigo. Tinha ali todos os ingredientes para ter um problema com a família, um problema comigo próprio e um problema profissional. E quando chegou a altura, não hesitei duas vezes em usar dessa liberdade, assumindo a responsabilidade pelo acto que estava a tomar.

 

Podemos definir falhanço... E sucesso.

O sucesso tem duas vertentes: tem que ser sucesso para os outros, mas tem que ser sucesso para nós. Os outros pode ser uma pessoa, apenas. Sucesso, penso eu, é um estado de espírito, que reflecte o sentimento de que fizemos algo de útil. À sociedade, à nossa família, a alguém. E que reflecte, ao mesmo tempo, reconhecimento da parte desse alguém relativamente a esse acto. Mais importante do que o sucesso, é saber se ele é conjuntural ou se é estrutural. O mundo está cheio de pessoas de sucesso durante quinze dias.

 

Quem é essa pessoa para quem quer ter sucesso?

Ter sucesso é deixarmos uma marca aqui. Alguém que continuou a nossa obra ou o nosso nome. Ou o nosso nome gravado no nome de uma rua. Eu não tenho modelos de sucesso.

 

Como é que os seus filhos vivem o seu sucesso?

Tenho uma grande cumplicidade com a minha filha mais velha, que vai fazer agora 16 anos. Aprendo tanto com ela como ela aprende comigo. Com o meu filho é uma relação diferente. Se lhe perguntar o que é que quer fazer quando for grande, quer ir para a banca. Provavelmente ele acha que o sucesso é irmos este fim-de-semana a Londres ver um jogo de futebol. Um mês antes começou a dizer na escola que ia comigo ver o Chelsea. Isso é visto em termos sociais, dentro do colégio, como um alto sucesso. Ou o pai ter o carro A ou B...

 

O que seria o fracasso para si?

É sentir que algo não correu bem. E que não correu bem porque não dei de mim tudo, tudo, para evitar que tal sucedesse. É algo que consistentemente se desvia dos objectivos que tracei, em termos profissionais, familiares, pessoais. Mesmo profissionalmente, se tiver um azar na minha carreira e durante três anos não conseguir arranjar nada, e o meu nível diminuir, como dizem os espanhóis, “no pasa nada”. Mas se, ao fim de 15 anos, isso se continuar a verificar, algo sucedeu. Se durante quatro anos seguidos não receber bónus, alguma coisa se está a passar.

 

Ter um nome, uma reputação, é o maior dos tesouros?

É um dever muito grande. Logicamente, abre algumas portas. Se for bem utilizado é um activo, se for mal utilizado passou a passivo. Um falhanço de alguém com nome provavelmente tem um impacto maior do que um falhanço de alguém sem nome, que pode voltar a começar a sua vida.

 

Podia recomeçar se lhe acontecesse um desaire sério? Estou a pensar numa coisa desonrosa.

Vários amigos meus disseram, face a alguns acontecimentos nos últimos anos em Portugal, que era possível. Eu tenho sérias dúvidas. Posso cometer um acto desonroso, começar, entrar num negócio e ficar rico. Mas isso não é ter sucesso. Não estamos preparados, como a sociedade americana, para, tomando atitudes menos éticas, podermos recuperar. De certa forma, estou de acordo que assim seja.

 

Penso novamente na sua formação católica e ocorre-me a palavra redenção...

A redenção não é fácil. A redenção faz-se aos 20 anos. Aos 40 anos, quem rouba e é corrupto, tenho dúvidas de que alguma vez deixe de o ser. O que não significa que não pudesse continuar a trabalhar noutra coisa.

 

Falou sobretudo da família, e creio que não foi por saber que eu procurava um retrato alternativo, pessoal. A vida só pode correr-lhe bem?

Na banca usamos uma frase que se deve aplicar à vida de todos nós: “Expect the best and be there for the worst”.

 

 

Publicado originalmente no site da AMBA em 2006

 

 

 

Blog: vida nova

14.09.14

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