Luís Marques Mendes
Mendes é uma pessoa normal que adorava ser primeiro-ministro. A propósito dele, não podemos dizer como Flaubert: "A política c'est moi". Mas podemos dizer: "A política c'est ma vie". Nada nela faz sentido sem a política. Sem o partido, sem aquelas pessoas. Sem o poder. Mendes fez da política o livro da sua vida. A sua espessura humana, as fracturas e os desejos, os medos e as fúrias, não aparecem nele. Como escrever então um grande romance? Como revelar em Mendes a densidade de um personagem de romance? Mendes sabe que a sua imagem é politicamente correcta. Que é uma forma eufemística de dizer que não tem carisma. O êxtase, a excentricidade, a emoção não se lhe colam à pele. Mas sabe também que, não provocando esse frémito nas multidões, outras qualidades teria de ter para conquistar um partido, uma nação. O trabalho, a dedicação, a seriedade, a coragem foram então as suas divisas. Mendes fez-se no espaço público como um homem esforçado, determinado.
Começou por ser um jovem com qualidades, que Eurico de Melo puxou para trabalhar consigo. Tinha 18 anos e já muito água tinha corrido debaixo da ponte. Os comícios da JSD, o estar num púlpito, o ter ascendente sobre as gentes da terra. Como o pai, advogado e político. O pai foi também aquilo que os senhores da terra sempre são: dirigentes. Das associações recreativas, desportivas. Os senhores da terra nasceram para mandar. E Luís Marques Mandes não nasceu para ser operário fabril, como acontece às braçadas de filhos que nascem por aqueles lados. Contudo, não era previsível que galgasse tão rapidamente e tão facilmente os degraus desta escada. Na entrevista, ele insiste no "choque" que foi a mudança para Lisboa, no facto de ser membro do governo aos 28 anos. Há nessa repetição uma vaidade inequívoca, mas que nunca chega a assumir ou explicitar. Pelo contrário, o discurso é sempre o de um grande idealismo, entrega a uma causa, um relato de factos que permitem reconstituir a sua vida, mas deixam perceber pouco sobre quem ele é de verdade.
Teve imenso poder durante o cavaquismo. Confessa que não fez o que devia para contrariar a imagem de "moço de recados" do primeiro-ministro. Mas quando muitos lhe vaticinavam a morte política, foi um bom líder parlamentar. E depois líder do partido, em condições extraordinárias e conhecidas. Hoje disputa novamente a liderança do PSD.
Durante uma hora e meia de conversa – um luxo em vésperas de eleições – Mendes teve de mudar a cassete e falar um pouco mais de si e da sua história. Reagiu com alguma surpresa, mas com compostura. Não se referiu a Menezes uma única vez, nem às questões internas do PSD, nem às minudências relativas às eleições que por estes dias têm ocupado os jornais. Foi muito amável, falou com a voz de Luís Marques Mendes – forte e séria. Fumou os cigarros que todos sabem que fuma mas pediu ao fotógrafo para não o registar nesse momento. Antes tinha dado umas quantas entrevistas, e depois iria para a província fazer campanha. Enquanto a política for "sa vie", vamos continuar a saber dele. E "sa vie" é a política. Alguém duvida?
Que pessoa era em Maio de 74, quando o PSD foi fundado? E que vida era a sua?
Primeiro, era um jovem. Hoje já tenho 50 anos. Estava a acabar o liceu, em Guimarães. Nasci em Guimarães, mas vivi em Fafe até em 85 mudar para Lisboa. Era um jovem normal. Dizia aos meus pais e amigos que gostava de ser as duas coisas que acabei por ser: advogado e político. Tirei o curso de Direito, fiz advocacia, poucos anos, mas fiz. E talvez tenha sido influenciado pelo meu pai, que já fazia política antes do 25 de Abril. Acompanhava o Dr. Sá Carneiro, pelos poucos escritos que dele saíam como deputado na Assembleia Nacional.
Fale-me do seu pai.
É uma pessoa extraordinária. Embora a minha mãe não seja menos. Não queria fazer discriminações porque adoro os dois. Mas até aos 18 anos, fui muito mais ligado ao meu pai. E mais parecido com o meu pai. Hoje é um bocadinho diferente. O meu pai é introvertido, culto, um homem de carácter, excelente profissional, muito sereno e tranquilo; é muito difícil encontrá-lo a dar um murro na mesa. Exerce uma autoridade natural. Eu ia com o meu pai ao café com dez, 11, 12 anos. Quando comecei a minha vida política, já conhecia o país de lés-a-lés, graças ao futebol e ao meu pai – foi dirigente desportivo muitos anos, lá no clube da terra.
Em regiões assim recônditas, os médicos e os advogados tinham um estatuto especial. O menino que ia à escola como todos os outros, tinha noção desse ascendente? E havia uma predestinação? Seria estranho que o filho do senhor doutor não tirasse um curso superior, ou tivesse uma vida de assalariado.
Fiz uma vida normalíssima. Não me sentia inferiorizado perante os meus colegas, como não sentia nenhum tipo de ascendente. Mesmo enquanto vivia com os meus pais, sempre fiz aquilo que queria. Estudei, naturalmente, mas divertia-me e tinha os meus hobbies.
O que é divertir-se e ter hobbies?
As duas coisas que me divertiam mais eram fazer desporto e namorar...
Com que idade começou a namorar?
Julgo que pelos 16, 17 anos. Participava muito nas festas. Não tanto em discotecas, como hoje em dia, mas festas em casas particulares. Quando vou para a faculdade – estamos a falar do fim de 75, princípio de 76 – tive um convite para um cargo ligado à política: fui secretário do Governador Civil de Braga. Tinha eu 18 anos. O meu pai foi redondamente contra. Achava que era impossível tirar o curso de Direito, ainda por cima em Coimbra, e ao mesmo tempo trabalhar. Fui um estudante-trabalhador (ainda que não no sentido tradicional da necessidade).
Porque é que esse convite foi irrecusável?
Porque eu já tinha o gosto da política. Estive nas manifestações pós-25 de Abril. Ajudei a sanear o reitor do Liceu de Guimarães, embora hoje até seja um grande amigo meu. Mas tinha também o gosto de tirar o curso. Queria provar a mim mesmo, para além de provar ao meu pai, que conseguia fazer as duas coisas e sair-me bem.
O seu pai teve alguma participação nesse convite, ainda que fosse contra? O facto de o convidarem passava por ser o filho do seu pai?
O Governador Civil, o engenheiro Eurico de Melo, foi a pessoa que me convidou. Em 74, 75 participava em muitas iniciativas políticas, sobretudo implantação do partido, sessões de esclarecimento. Eu era ao nível do distrito de Braga a pessoa mais marcante da JSD, portanto falava em comícios. O Engenheiro Eurico de Melo detectou em mim, segundo explicou, qualidades. Queria um jovem para trabalhar com ele e convidou-me para esse lugar.
Viveu a satisfação de, pela primeira vez, uma coisa não ser intermediada pelo seu pai? Nessa identificação fusional, essas dúvidas devem ter batido à porta... Quanto ao seu talento, vocação, herança.
Sabe que o meu pai não concordou inicialmente com a minha vinda para o governo aos 28 anos. Achava que não devia deixar a advocacia, que era muito cedo para fazer um corte radical. Embora gostasse dos conselhos do meu pai, desde muito cedo tomei decisões por mim próprio. Muitas vezes com angústias e com dúvidas.
Duas palavras que tenho dificuldade em associar-lhe: dúvidas e angústias. "Mas onde está a parte passional deste homem?" - penso quando o vejo na televisão.
Não tenho muitas angústias. Dúvidas, tenho muitas. Por exemplo, cortar com uma vida profissional, de meia-dúzia de anos, que apreciava, para vir para a política a tempo inteiro... Ainda por cima sair da província, vir para Lisboa...
"Em terra de cegos, quem tem olho é rei". E já era um reizinho naquela terra. Digo-o com ironia: que grande dilaceração, escolher entre essa vida em Fafe ou ser ministro em Lisboa!
Não exageremos.
Exagero? Em dez anos passou de secretário do Governador-Civil a ministro. É evidente que percebeu que podia ir longe.
Com certeza Mas qualquer pessoa responsável começa por duvidar se é capaz. Não me custa nada reconhecer que tenho essas dúvidas. Tenho uma grande confiança em mim mesmo, mas tive de ponderar.
Fale-me agora da sua mãe.
É uma pessoa frenética, de uma alegria fabulosa, faz boas relações com facilidade. Também sou bem-disposto, embora as pessoas achem que sou muito formal. Reconheço que às vezes há um grande desfasamento entre a imagem que passa e aquilo que se é.
Antes de falarmos da sua imagem política, deixe-me sublinhar este aspecto do seu currículo: foi vice-presidente da Câmara de Fafe, em 76. Tinha 19 anos.
Exactamente. E estava no segundo ano de Direito. Faço o curso praticamente só indo a Coimbra fazer exames.
Tudo isso é muito estratégico. Ter insistido no curso superior, apesar de já ter a vida profissional muito bem encaminhada, revela a consciência do seguinte: é diferente ser o Sr. Marques Mendes ou o Dr. Marques Mendes.
Eu queria muito ser advogado e queria muito fazer política. Não era a preocupação de ser doutor. Eu estava na Câmara, um mandato inteiro como vice-presidente e vereador a tempo inteiro, e, muito à portuguesa, os funcionários tratavam-me por "senhor doutor". E dizia invariavelmente: “Doutor hei-de ser, ainda não sou”. Queria mesmo ser advogado, adorei ser advogado.
Isso representa o quê? Resolver coisas, fazer?
O que mais me motiva? O combate. A advocacia tem essa semelhança com a política – o combate.
Gosta de ganhar.
Não, gosto do combate. Seria hipócrita se dissesse que gosto de perder. Sou uma pessoa muito feliz.
É raro ouvir isso.
Sempre fiz aquilo que queria fazer.
A felicidade é sinónimo de poder escolher a vida que se quer ter?
Essa liberdade de escolha é um requisito muito importante para a felicidade. Tomei as decisões que queria tomar. No exercício destas funções, tomei decisões que seriam muito difíceis para a generalidade das pessoas, mas que para mim foram naturais.
Especifique.
Ficou marcada a minha liderança por decisões que tomei há dois anos e pouco nas eleições autárquicas, ao excluir alguns candidatos. As pessoas até podem pensar:“Fê-lo por animosidade pessoal”.
Queria revelar coragem, confesse.
Não é isso. O revelar, já acho um sinal de arrogância, e eu não sou arrogante. Não era para exibir coragem, não. Era porque entendia que aquele era o caminho.
E queria arranjar uma boa bandeira. Daqui a dez anos, quando se pensar na sua liderança, pensa-se em seriedade. O que, especialmente em tempos difíceis, cai muito bem.
Evidentemente que um partido e um político têm que ter causas, bandeiras. Têm é que ser fundadas na convicção, e não podem ser artificiais. Não nego que pus do meu lado a bandeira da credibilidade, da seriedade, a ética, a transparência. Sabia das desvantagens que isso tinha - ia perder algumas eleições.
Enquanto ministro de Cavaco Silva, as pessoas olhavam para si, e vou usar a expressão que então se usava, como o moço de recados do primeiro-ministro.
Tem toda a razão.
Quando puxou para si estas bandeiras, estava a tentar dizer que não é o moço de recados, que pensa pela sua cabeça, que é capaz de tomar decisões difíceis. Foi também o que lhe ocorreu?
Foi, sim senhor. Até vou mais longe do que o que está a dizer: chegou a ser dito que eu só existia, politicamente falando, porque existia Cavaco e Fernando Nogueira, (outra pessoa a quem me atribuíam, o que era verdade, uma relação de grande proximidade pessoal e política). No fim de 95, saiu Cavaco Silva e saiu Fernando Nogueira e muitos vaticinaram a minha morte política. Segunda esta tese de que, na prática, eu era um dependente e não tinha peso específico. Poucos meses a seguir, assumi um cargo de grande relevância – líder parlamentar na Assembleia da República.
É um cargo de grande protagonismo.
Exactamente por isso. Queria provar, não a mim próprio, mas aos outros, que eu tinha existência própria. Quis ser líder parlamentar, e candidatei-me, em grande medida por causa dessa imagem que me estava colada. É uma imagem que não critico a ninguém. Eu achava uma imagem injusta, sobretudo falsa, mas o grande responsável era eu próprio. Não fiz muito para a mudar. Reconheço. Na altura, pouca gente queria aquele lugar - difícil. Foi o período em que muitas figuras conhecidas do chamado cavaquismo abandonaram o poder. Tenho feito sempre a minha vida pelo lado mais difícil. Estudar ao mesmo tempo que trabalhar...
Está bem, está bem.
Essa parte é verdade, é incontornável.
Também é verdade que tem um "background" facilitador.
Qual é?
Por exemplo, uma coisa tão básica quanto não ter de se preocupar com dinheiro. Não pensar na sobrevivência. Isso muda a vida das pessoas.
Antes fosse como você diz. Os meus pais felizmente são vivos, não tenho herança nenhuma. A minha vida financeira, patrimonial, é conhecidíssima. Fiz advocacia durante poucos anos, na província; fora isso, fui deputado, ministro, por um período curto presidente de uma universidade privada. Tudo menos a possibilidade de fazer fortuna.
Não estou a dizer que o objectivo da sua vida tenha sido enriquecer. Parece-me que há uma volúpia do poder, que não passa exactamente pela riqueza ou pela boa vida. Estou a falar da certeza de haver dinheiro, de se poder escolher a vida que se quer ter porque os mínimos estão assegurados.
Não queria entrar muito nisso, mas vou dizer-lhe que quem faz vida política com seriedade não enriquece. Só empobrece. Sem entrar em pormenores, confesso-lhe que essa é uma dificuldade nas minhas decisões – embora não me tenha constrangido. Não sou uma pessoa com uma vida folgada. Não me queixo, nem tenho inveja dos que têm.
Permita-me insistir neste tópico. Permita-se insistir na parte vibrante, na "petite histoire" de um personagem público que dizem ter falta de carisma. Fazer contas ao dinheiro já o aproxima dos romances, dos grandes personagens e dos seus sentimentos. Li dúzias de textos a seu respeito e dei-me conta de que não sabia que homem era ou que vida era a sua.
Quem me conhece pessoalmente sabe que sou, em primeiro lugar, uma pessoa normal. Quem me conhece apenas à distância, sobretudo pela televisão, tem de mim uma imagem formal. E não sou.
A ideia que tenho é a de um aluno brioso. Imagino sempre que gostaria de mostrar o caderno à professora e de ter tudo certo nos exercícios escolares.
Nunca fui propriamente um aluno preocupado com grandes notas.
Não me refiro às notas irrepreensíveis. O que visualizo é um caderno limpo, pelo qual se recebe uma compensação, uma festa na cabeça – um modo de dizer que o menino se portou bem.
Eu tinha a preocupação de fazer as coisas bem feitas, mas estudava o mínimo dos mínimos, para ser franco. Na faculdade foi diferente; talvez tenha tido a noção de que aquilo era a preparação da minha actividade futura.
Tenho de lhe perguntar como é que viveu na adolescência o facto de ser baixinho.
Vivi bem. Na adolescência há sempre a esperança de crescer! Agora vivo bem, até brinco.
É uma maneira ágil de lidar com isso. Pergunto pela adolescência porque a relação com o corpo é especialmente sensível aí. Por causa da descoberta do sexo, também. A altura que se tem interfere na maneira como estamos à frente dos outros.
Nessa altura nem pensava nisso. A questão da estatura começou a ser falada quando me tornei figura pública. Verdadeiramente, só quando vim para o Governo é que comecei a pensar nisso.
Começou a pensar porquê?
Porque as pessoas falavam, comentavam nos jornais.
Quais são os seus complexos, então? E todos temos os nossos.
Não sei. Não sou uma pessoa complexada. Altura, não é, seguramente.
A minha teoria é a de que foi um aluno aplicado (no sentido figurado), que quis fazer boa figura e, dessa maneira, afastar a atenção de qualquer coisa que o infelicitava.
A primeira parte é verdade. A explicação é que já não é totalmente verdadeira.
Porque é que assim? Continuo sem saber quem é! Conte-me com quem é que aprendeu o ditado “Com os de Fafe ninguém fanfa”.
Esse ditado tem piada. Sou exigente comigo próprio. E no plano político tive uma grande escola – o chamado cavaquismo.
O trabalho, a determinação...
O rigor. A tomada de decisão. Seguramente houve excessos, houve defeitos, mas naqueles dez anos houve uma cultura que é positiva.
Cavaco Silva foi um pai putativo, depois da influência imensa do seu pai?
Não, não, não. São personalidades diferentes. Mas que aprendi muito naquele período, isso é indiscutível. Com o Professor Cavaco Silva não era fácil uma pessoa chegar a ministro sem antes provar, por exemplo, como Secretário de Estado. Pessoas como Durão Barroso, Carlos Pimenta, Pedro Santana Lopes, pessoas que já tinham uma carreira política ou académica, não começaram como ministros.
Quando olha para Durão Barroso ou para José Sócrates pergunta-se porque é ainda aqui está? Diz de si para si que não é menos do que eles, mas que um foi para Bruxelas e outro para Primeiro-ministro...
Não tenho nenhum tipo de ciúme e nenhum tipo de inveja.
Estou aqui a provocá-lo, a escarafunchar, e nada!
A escarafunchar porquê? Sou muito feliz no cargo que estou a desempenhar. Sabe porquê? Porque a oposição tem muito de combate. Primeiro-ministro? E porque é que não hei-de ser? A minha vez ainda não chegou, é só em 2009.
Tem essa noção, a de que há uma vez para si, mas que ela ainda não chegou?
Não penso assim. Já fui coisas que não imaginava ser.
O quê?
Líder do partido. Há uns anos não imaginava ser, pelo menos ser tão cedo. Fui durante muito tempo o membro do Governo mais novo. Entre os secretário de Estado que o Professor Cavaco tinha, fui o primeiro a ser ministro, e alguns deles nunca chegaram a ministro.
Fale-me do que é ter poder aos 28 anos. Dê-me um bocadinho de matéria para construir um romance...
O meu primeiro cargo? Secretário de Estado da Comunicação Social. Os seus colegas jornalistas no final adoraram-me. Em matéria de Comunicação Social era um consumidor de jornais, da imprensa, não era nenhum especialista na matéria.
Essa resposta não me interessa nada.
Faça lá a pergunta e dê a resposta, que acho magnífico: facilita-me a vida. Quer saber o que mudou? Passei a ter menos vida privada. Passei a ocupar a maior parte do tempo no gabinete a trabalhar. Ainda hoje sou um noctívago, mas basicamente em casa. Aproveito para estar um bocadinho com a família, nunca é muito tempo. Passo bastante tempo ao telefone, não nego.
A sua voz fica diferente quando fala com a família?
Nunca me chamaram a atenção para isso... Acho que não.
A sua voz coincide absolutamente com a que se conhece da televisão. Estava a tentar perceber se pode ser menos colocada, constante. Estava a perguntar-me se em família, abandonado e descontraído, pode ter umas inflexões na voz que não lhe conhecemos.
Não, não. A grande mudança é que passei a ter menos liberdade de movimentos, ponto final.
Está a dizer que passou a ser mais vigilante em relação a si? Que passou a sentir-se menos à vontade? Como se tivesse a sensação de que a sua vida podia ser devassada. Não pode dar um passo em falso, não suceda no futuro ser apanhado.
Obviamente nestes lugares tem de ser ter mais cuidados. Uma pessoa está mais exposta e, se não quer ser criticado em certos momentos, também não pode dar azo a isso. Se expuser a minha vida privada, não me posso depois queixar que comentam a minha vida privada. Há uma cultura, que também vem do cavaquismo, da forma como se exerce a função.
Um momento de crise pessoal: pode dizer-me qual foi? Um momento daqueles em que se põe tudo em causa.
Acho que não tive.
E lamenta isso?
Não. A decisão de facto difícil, difícil que tive de tomar foi a vinda para o Governo, porque foi uma mudança profundíssima do ponto de vista familiar. A minha mulher trabalhava no Norte e estava a dois meses de ter o nosso primeiro filho. Eu tinha a noção de que ia deixar a minha actividade profissional para sempre. Não tinha, nem de perto nem de longe, um desafogo financeiro. Era quase toda a gente contra mim. A questão coloca-se em 48 horas ou 72 horas.
Gosta da ideia de mudar a vida em meia hora, como na canção da Adriana Calcanhotto?
Não gosto, adoro. Eu tenho prazer em fazer política. Há muita gente que tem prazer e não gosta de o dizer. O Dr. Sá-Carneiro foi politicamente a pessoa que mais me marcou, embora pessoalmente mal o tivesse conhecido; ele dizia: “A política sem o lado sério é uma vergonha, sem o lado lúdico é uma chatice”. Mas a vida não se esgota na política, mesmo para quem tem muitos anos de vida política. Faço tudo isto com enorme desprendimento.
O que é que está a quer dizer?
Normalmente as pessoas gostam de ir para o poder, gostam de ter um cargo. Eu já gostei de sair. Saí duas vezes quando toda a gente me pedia para ficar. Fui líder parlamentar entre 95 e 99, os seus colegas jornalistas tiveram a amabilidade de considerar que fui o melhor líder parlamentar da legislatura. O Dr. Durão Barroso queria muito que eu continuasse a seguir às eleições. E eu disse que queria mudar de vida.
Porque é que precisou de parar?
Por razões financeiras. E porque precisava de arejar a cabeça. Tive alguns convites e resolvi fazer actividade privada. Fui presidente da administração da Universidade Atlântica, uma universidade privada localizada em Oeiras. Fui gestor durante três anos. Eu não queria acabar com a vida política, queria fazer uma paragem. Segundo momento: quando o Dr. Durão Barroso foi para Bruxelas, eu era ministro e até se dizia que era um ministro muito influente no Governo...
Esse risinho de satisfação, não posso deixar de anotá-lo! Riu-se com um contentamento evidente.
Rio-me imenso. Ainda o Dr. Durão Barroso não tinha formalizado a ida para Bruxelas, eu disse logo que não continuaria no governo seguinte, sucedesse o que se sucedesse. Fui a primeira pessoa a dizer isso e saí.
Quem é que fica ao seu lado, se acontecer uma hecatombe na sua vida?
A minha mulher, seguramente. Estive dez anos no poder, no chamado cavaquismo, e passei à oposição. Sei muito bem quem são as pessoas que estão ao nosso lado porque temos poder ou aquelas que o estão com sinceridade, lealdade, independentemente das circunstâncias. Já passei por isso. Tenho muitos e bons amigos. Se vivesse uma hecatombe de natureza pessoal, não tenho dúvidas de que teria amigos a ajudarem-me, daqueles verdadeiros.
Não há nada que o deite abaixo? Os seus filhos. Qualquer coisa que se passe com os seus filhos: deita-o abaixo ou nem por isso?
Felizmente, ao longo dos anos, não tem acontecido nada de dramático. Tenho que abrir aqui um parêntesis: relativamente aos meus filhos, mãe e pai é a minha mulher. Tenho pouco tempo para os meus filhos.
Eles gostariam que fosse menos o Luís Marques Mendes e fosse um bocadinho mais o pai?
Admito que sim. Mas já se habituaram. Custou-nos e agora já estamos adaptados. Não me posso queixar. Acho que sou uma pessoa responsável e que posso ser útil aos outros. Aos 16 anos, na província, não se começa a fazer política a pensar que se vai ser ministro, deputado, secretário de Estado. Pensa-se num certo ideal, há um grande idealismo.
Não acredito. Acho que se pensa o que se vai fazer à vida.
Já antecipava que não ia acreditar em mim, mas é a verdade. Ainda hoje tenho disso.
Não estou a dizer que não tem um ideal. Mas teve cargos importantes a vida toda. Não me diga que foi uma coincidência.
Não quis ter tão cedo. 1985. Acompanhei Cavaco do primeiro ao último dia, quer no partido, quer no Governo. Ele é eleito no congresso, eu sou da comissão política, cai o bloco central, há eleições, que ganha. Mas antes, fez as listas de deputados. Fui o único elemento da comissão política nacional que não quis ser candidato a deputado. Sabe porquê?
Estava a guardar-se para coisinha melhor.
Não, porque a minha opção na altura era continuar a fazer advocacia mais uns anos.
Quando digo que estava a guardar-se para coisinha melhor, estou a fazer de seu pai, que aconselha: “É muito cedo, vais queimar-te, faz uns anos de advocacia e ganha dinheiro”.
É verdade que o meu pai dizia isso. Mas eu próprio também gostaria de ter feito advocacia mais uns anos. Quando Cavaco ganha e me convida para ir para o Governo, recusei duas vezes, só aceitei à terceira. O que eu não pensava era que ele insistisse terceira vez.
Recusou por insegurança, também?
Nenhuma insegurança. O meu projecto de vida não pressupunha fazer um corte tão cedo. É apenas por isso. Aconteceram coisas que não esperava que pudessem acontecer tão cedo. Como agora ser líder do partido. Em circunstâncias normais, se o Dr. Durão Barroso não tivesse ido para Bruxelas, não estaria aqui neste lugar. Depois, tive vontade.
Assume essa ambição.
Assumo que fiz as coisas porque quis. Há uma enorme hipocrisia nas pessoas que vão para o Governo e dizem: “Estou a fazer um grande sacrifício”. A mim nunca me ouviu dizer isto. No momento em que surge uma oportunidade, eu, que acredito em mim próprio, que acredito nas ideias que tenho, que acredito que posso ser útil, que tenho um projecto na cabeça, luto por elas. Posso ganhar ou perder. Fui ao congresso de Viseu e perdi.
Como é que lida com a derrota?
Lido bem.
Essa resposta é vazia.
É quando se aprende mais, quando se perde. Já tive duas derrotas. Fui candidato à câmara da minha terra, em Fafe, em 1982, e não ganhei. A última derrota de que me recordo foi no congresso de Viseu - quase não tinha possibilidades de vitória, mas entendi que devia marcar um pensamento político e um espaço.
O que é que se aprende na derrota? Quem é fiel e não é. Quem está por interesse e quem não está. O que é que valemos, quanto tempo vamos demorar a reerguemo-nos. Que sensação é essa ao entrar em casa e não levar uma taça?
A primeira vez custou-me.
Chorou? Não o imagino a chorar.
Em criança, devo ter chorado. Já adulto, não me lembro. Estou nesta campanha com um enorme desprendimento. Eu quero ganhar, e acho que vou ganhar, mas posso perder. Gosto do risco... Sou visto por quase toda a gente como uma pessoa politicamente correcta. Certo?
Sim.
Mas não sou. O que fiz nas eleições autárquicas não era politicamente correcto. Nunca nenhum líder que me antecedeu, nem Cavaco Silva, tomou decisões daquela natureza. Segundo exemplo: fiz um pacto com o governo no domínio da justiça. Que ainda por cima não foi por proposta do Governo, foi minha. Sabe por que é que gostava de ser Primeiro-ministro?
Porquê?
É que eu gostava mesmo e vou lutar por isso. Farei rupturas que até hoje ninguém fez. A minha opinião é que o país, desde que Cavaco Silva saiu, verdadeiramente não é governado. Há uns remendos. Rupturas, rupturas, houve naqueles dez anos.
Tem-se em altíssima conta, acredita que é capaz de rasgar onde mais ninguém conseguiu...
Tenho. Não é no sentido de exibição nem de arrogância. É no sentido de ter na cabeça um projecto que é diferente e melhor. E tenho condições – a tal coragem que costumam atribuir-me. Por que é que você pensa que sou um admirador de Cavaco Silva? Não é que ele faça o meu género, do ponto de vista pessoal. Somos pessoalmente muito diferentes. Não acho que ele tenha o prazer da política que eu tenho. Mesmo o prazer da vida que eu tenho. Mas, politicamente, fez rupturas de que o país precisava. Acho que consigo fazer outras.
Quer ficar para história, é isso? As fotografias que dominam o álbum do PSD são as de Sá-Carneiro e Cavaco Silva. E não quer ser da segunda linha...
Já não sou segunda linha, há muitos anos. Ser líder da oposição é um cargo que muita gente quis e a que não conseguiu chegar.
Se olharmos para isto tudo daqui a dez anos, os nomes que ficam são os dos protagonistas de grandes mudanças. É nesse sentido que digo que quer ficar para a história.
Quero fazer, mas não é com essa preocupação. Se for Primeiro-Ministro é para fazer rupturas. De resto, tenho-as anunciado. Se reparar, ao longo dos tempos, em todos os cargos que desempenhei, tenho feito isso. Só que normalmente subestimam-me.
Subestimam-no. Tem essa impressão?
Tenho essa certeza. Não fico nem aborrecido nem incomodado, mas tenho essa noção.
Porque é que o subestimam?
Prefiro não comentar. Deixe lá. Isso não.
Está a ver? Sempre que me interessa, foge.
Você foi a única pessoa que me obrigou a falar de coisas de que nunca na vida falei. Subestimam-me como subestimaram o Dr. Sá-Carneiro.
A comparação é sua...
O Dr. Sá-Carneiro foi subestimado, dentro e fora do partido. Era considerado um tacticista, uma pessoa instável, que tinha ideias desfasadas da realidade. Só lhe deram valor quando chegou a Primeiro-Ministro e fez um ano de governação em que mostrou um grande sentido de Estado. O Professor Cavaco Silva, quando ganhou a Figueira da Foz, não se lembra daquela frase do Dr. Mário Soares? "Ai, ele não vai longe, que não tem currículo". E há pessoas dentro do PSD que são sobrevalorizadas.
Há um mito sebastiânico em relação a algumas delas? Para usar uma expressão não muito elegante, "não deram o corpo ao manifesto", não se queimaram, e continuam com essa aura messiânica?
Deixamos essa parte para uma outra entrevista, quando eu deixar estas funções.
E acabamos assim?
Como você quiser.
Descreva-me Londres em 73, quando a visitou.
Gostei imenso. Aquela tranquilidade...
A tranquilidade?! Como assim?
Na altura, era bastante mais tranquila. Não tinha a agitação de Paris ou Nova Iorque.
How's your English?
Fiquei um mês. Fui praticando.
Foi a primeira viagem que fez ao estrangeiro? Exceptuo Vigo e aqueles sítios onde as pessoas do Norte iam comprar caramelos.
Já conhecia Paris, também. Os meus pais tinham o hábito de, nas férias, darmos passeios pela Europa. Gostei imenso de Londres, diverti-me à brava, diverti-me como gente grande.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2007