Manuel Pinho
Pinho, à secretária, no reflexo da fotografia berbere. No andar de cima, emoldurado com flores e um jornal russo de Daniel Blaufuks. Em frente, novamente no gabinete, Pinho junta-se àqueles que seguem a história do altar de Pérgamo. A primeira vez que fui àquele gabinete, ele interrogou-me: «Diga lá onde é que foi tirada esta fotografia? Olhe que já duas pessoas adivinharam: o Dr. Rui Vilar e a Professora Teodora Cardoso”. Mas nessa altura eu ainda não tinha ido a Berlim nem ao Pergamonmuseum, e envergonhei-me da minha ignorância. Agora, ele replica o movimento de um dos visitantes, e junta-se ao quadro como se não soubesse que está a ser observado.
Mas a imagem cardeal desta entrevista é «Fear/No Fear», de Robert Frank. Frank é uma figura iconoclasta, um eremita, central no panorama das artes plásticas, que Pinho conheceu em Nova Iorque porque lhe telefonou a convidá-lo para almoçar. Porque é que Frank foi almoçar com Pinho? Quem era Pinho para Robert Frank? Era um amigo de um amigo. Pouco importava a Frank que Pinho estivesse a meses de ser ministro da Economia, que tivesse ganho fortunas no mundo da finança, e mesmo que na sua colecção particular entrassem peças de Man Ray ou Cindy Sherman. Manuel Pinho, aquele português que lhe telefonou porque passeava perto, entrou no universo exclusivíssimo de Frank porque era o amigo do amigo – o amigo telefonou de permeio, bem entendido.
Se conto esta história, é porque me interessa interrogar o que é o homem para lá dos cargos que ocupa. Ao almoço, com Frank, falaram de coisas tão prosaicas quanto o fazer a barba e o gosto das ervilhas! Na entrevista, que se estendeu pela hora de almoço, Pinho não atribuiu às questões prosaicas a importância que elas têm. E se diz que é Escorpião com ascendente em Escorpião (nova ignorância da minha parte, que nem sei a que mês corresponde este signo), surpreende-me mais que ele o saiba e o diga, do que o que isso significa: que não gosta de perder nem a feijões.
É um homem que é ministro porque, diz, era o tempo certo para o ser. Ele já tinha sido outras coisas, em fases bem delimitadas na sua história. A própria fotografia, paixão assolapada desta fase, acompanha o projecto amoroso que vive com Alexandra Fonseca. Pinho manifesta repetidas vezes um amor e uma admiração pela mulher – a “magnífica colecção” que ela constrói para o BES, a referência à exposição de Candida Höffer no CCB comissariada por Alexandra, a proximidade da relação com Ricardo Salgado que, além do mais, se faz por via da mulher.
Alexandra encarna um novo período da sua vida em que ele quer fazer coisas novas e em que é feliz. A fotografia que está sobre o móvel, do casamento de ambos, é expressão disso. Há outras fotografias com os filhos, ou com Lula, ou com outras figuras da cena internacional. Mas a que melhor apresenta este novo Manuel Pinho é aquela em que surge abraçado a José Sócrates (não posso jurar que estejam abraçados, mas é assim que a guardo). É um homem radiante! E quando a aponta diz, «Olhe para mim, não pareço um puto?». Tem a leveza que não teve quando era uma criança. Uma criança com cara de adulto. Porque é que ele foi assim? A seguir se explica.
Foi uma conversa de duas horas, de cigarros sucessivos, e uma disponibilidade rara num ministro. Ainda que tenha tentado convencer-me absolutamente da sua dimensão política, e que tenha insistido numa ideia que talvez seja a nuclear da sua vida: resultados. Mas, puto esperto, sabe que me impressiono menos com isso do que com confissões inauditas: e conta, por fim, nada a despropósito, que teve um acidente que quase o matou, e que, por isso, a vida como ela é é para si uma benesse.
Depois da entrevista ainda falámos das outras peças espalhadas pelos corredores: Monica Vitti desenhada a diamantes por Vic Muniz, ou a nadadora francesa de touca azul que se converteu ao islamismo e que quis proibir a republicação da sua imagem. De repente, percebeu que já era muito tarde, e reduziu a sua sessão de fotografia a uma coisa sumária.
Há na sua vida ciclos muito definidos, que dizem respeito a diferentes geografias.
Vivi três anos em França, no começo dos anos 80. Mas não foi nada de radicalmente diferente. Nos Estados Unidos, a dimensão, a forma directa como as pessoas se tratam, a forma de estar no quotidiano é radicalmente diferente.
Em que circunstâncias foi para os Estados Unidos? Quis mudar de vida?
Acabei o doutoramento em 83. Em 84 dividia-me entre um centro em que trabalhava em França e a Universidade Católica, onde dava aulas. Um dia houve uma missão de recrutamento do Fundo Monetário Internacional. Entrevistaram-me em Paris e no próprio dia ofereceram-me a possibilidade de ir. Era uma mudança fantástica em termos profissionais e materiais. O FMI estava a ajudar Portugal nessa altura e havia toda uma fantasia ligada à instituição. Isto foi em Abril, e em Setembro já lá estava. Não hesitei um segundo.
Que vida foi ter?
Eu já era casado e tinha três filhos pequeninos. Fui sozinho, e depois foi a minha família. Mais recentemente estive em Nova Iorque seis meses. Quis fazer uma sabática, uma paragem a meio da vida para olhar para determinadas questões sob outro ângulo. Surgiu a hipótese de ir para uma universidade muito boa: NYU, em Washington Square, uma zona de grande “movida”.
Comecei por aqui porque me interessam os pontos de viragem na vida das pessoas. Mas, antes de tudo, é preciso saber o que perseguem. Estudou no Liceu Francês, cuja cultura, romanticamente, ainda se associa às letras e ao pensamento, e menos à finança.
Quando entrei para a escola, a cultura francesa era a cultura estrangeira dominante. O Liceu Francês era uma instituição com muito prestígio. Eu julguei toda a vida que ia ser um professor. E de repente surge esta possibilidade [FMI] que me abriu outros horizontes. Durante esses quatro anos dei várias voltas ao mundo, conheci dezenas de países. Eu vinha da academia, estava habituado a trabalhar sozinho, e fui confrontado com a necessidade de trabalhar em equipa, de cumprir prazos. O FMI e a sociedade americana são muito orientados para os resultados. Isso alterou totalmente a minha forma de estar, persegue-me até ao presente.
O seu ritmo era alucinante. Mas nos Estados Unidos trabalhar fora de horas tem uma conotação negativa. Em última instância significa, que aquela pessoa não sabe organizar o seu tempo.
É verdade.Ou então que põe em primeiro lugar o trabalho relativamente ao cuidado de si próprio ou da família – o que não é bem visto.
Essa dimensão familiar e pessoal, é em si tão ou mais importante do que o trabalho?
É muito importante. Na posição em que estou não tenho grande controlo sobre a minha agenda...
Sobre a sua vida...
É a regra do jogo. Mas eu sabia para o que vinha.
Estamos a abreviar muito, e queria que me falasse desse tempo em que foi formado no Colégio Francês.
O Liceu Francês, no final dos anos 50, era culturalmente mais aberto. Não era um espaço de enorme liberdade, mas era um espaço de maior liberdade. Os meus pais são pessoas da classe média, culta, politicamente de centro-esquerda. O meu pai era médico, (ginecologista). Tenho uma irmã psicóloga, que, ao contrário de mim, fez todos os estudos em França depois do Liceu.
Havia uma grande diferença quando se dava com os meninos que frequentavam a escola oficial?
Os meus amigos eram os meus vizinhos e os meus colegas de Liceu. Morava na Avenida de Roma. Ainda me lembro dos canaviais na Avenida Estados Unidos da América! Ia para o pátio jogar futebol com o meu grande amigo da altura, o Ricardo Sá Fernandes. Mas o Liceu Francês não era visto como uma escola elitista em termos sociais. O Professor Barata Moura, o Eduardo Ferro Rodrigues, a Ana Bola: durante algum tempo usámos o mesmo autocarro. Tive uma boa formação de base porque eu era bom aluno. Sempre fui bom aluno.
Porque é que teve especial brio nisso?
Por brio, exactamente, essa é que é a palavra. Não me passava pela cabeça ser mau aluno. Não era o melhor da turma, mas era dos melhores ou o melhor na altura dos exames. O que possivelmente quer dizer é que, quando me concentro muito num objectivo, tenho brio.
É uma matriz de competição, essa.
Não sei. Se calhar é inato. E depois, eu sou Escorpião com ascendente Escorpião.
O que é que isso quer dizer?
Que não gosto de perder nem a feijões!
E com a sua irmã, havia competição? Para um Escorpião que não gosta de perder nem a feijões, perder a exclusividade da atenção dos pais com uma irmã mais nova, e menina...
Não, sempre fui muito bem tratado pelos meus pais. Sempre me deram a importância que eu acho que deviam dar.
Este tópico é importante. Pode ser uma leitura demasiado psicologista, mas a auto-estima das pessoas está quase sempre enraizada na infância e no modelo de relação com os pais. Se sentiram que foram desejados, amados, reforçados, orientados, que expectativa havia em relação a eles. No caminho das pessoas há muito uma procura de coincidência com esse modelo original.
Creio que é uma grande verdade. Numa fase da vida funcionamos muito em função do que achamos que esperam de nós. O avô materno, dizia o Dr. Alberto Martins no outro dia, porventura com algum exagero, teria dado um grande candidato da oposição nas eleições do General Humberto Delgado. Era um médico cirurgião muito conhecido no norte, há hospitais e ruas com o nome dele: Manuel Gomes de Almeida. Era uma personalidade muito forte. Sempre tive a noção de que era preciso corresponder à imagem que os meus pais e o meu avô tinham de mim.
O seu avô foi importante para si, enquanto referência?
Enquanto modelo, foi importante. Conheci o meu avô tarde, com dez anos, por causa de problemas familiares que então existiam. Não sei o que eles [o pai e o avô] desejaram! Como não sou dado a angústias existenciais, executei. Não sou, não: sou muito focado e dado a objectivos.
O que revelam as fotografias desse tempo?
Há uma coisa perturbadora: parecia uma criança grande. Hoje em dia tenho um ar mais leve. Eu era uma criança com cara de adulto.
Uma das linhas da sua vida, que pelos vistos vem da infância, é o desejo de ser bom naquilo que é e faz. Para corresponder aos desejos do pai e do avô, ou porque, pragmático, executa. Mas penso que não aceitaria ser da segunda linha, ser medíocre.
Não me deixaria confortável ter um objectivo e depois não ser sério a cumpri-lo. Mas importante do que ser o primeiro, o segundo ou o terceiro, é estabelecermos os nossos objectivos.
Foi assim tão inflexível na educação dos seus filhos?
Não, não fui. Uma pessoa nunca faz... Pode ser que seja educação, mas [em mim] é também inato. Está nos meus genes ser sério em relação aos objectivos. Nem tudo se consegue alcançar, mas é muito importante saber que fizemos tudo o que era possível.
O que conta é o esforço?
E a seriedade e a integridade no método usado para chegar lá.
Li uma notícia que dava conta de um estudo feito no INSEAD. Tentaram saber o que tinha acontecido aos candidatos não-seleccionados. E concluía-se que a maior parte tinha igualmente carreiras muito bem sucedidas. Donde, o que mais importava era o desejo de pertencer e o esforço depositado nisso.
Exactamente. Não me surpreende esse resultado. A vida é para ser feita com alguma leveza, mas não de um modo diletante. Ligo isso a outra coisa: nos Estados Unidos, nos anos 80, nunca senti essa competição. Senti regras muito bem definidas.
Então e a trapaça? A trapaça que aparece tanto na literatura, nos filmes, nas conversas.
É um aspecto extremamente negativo, mas nos mercados financeiros e nos Estados Unidos souberam defender-se melhor do que ninguém, criando regras para que tal não se verifique.
[interrupção para atender o telefone]
... Do Liceu e dos Estados Unidos vamos para?
Já quer acabar essa parte? É que ainda não percebo a sua natureza. E talvez esses pedaços de vida me ajudem. Para compreender porque é hoje ministro da Economia e não psicólogo, como a sua irmã.
Gosto muito de Economia, adoro! No regresso a Portugal, depois dos Estados Unidos, fui convidado para ser Director Geral do Tesouro, no Ministério das Finanças. A seguir fui para um banco onde fui administrador durante dez anos. Nessa altura deixei de ser um economista para passar a ser um gestor.
A entrada no BES foi determinante na sua vida, como foi...
Como foi o doutoramento ou a ida para o FMI ou os três anos que passei no Tesouro. E agora sou ministro da Economia. Era o momento certo, sob múltiplos aspectos.
Porque é que estudou Economia?
Foi um pouco por exclusão de partes. Queria ter sido arquitecto, e não tenho jeito para desenho. Podia ter sido medicina e impressiono-me com as questões de saúde. Engenharia também não, porque não gosto de física nem de química. Podia ter sido Filosofia ou História. Mas não tinham o tipo de saída que eu gostava.
As saídas eram o importante? Procura a excelência e exercer cargos de poder, com uma gratificação social e económica. Parece um traço muito vincado.
Excelência e integridade: é o que devo tentar. Depois, as coisas acontecem naturalmente. As pessoas não devem estar num cargo a pensar no que vai ser o dia seguinte. Uma pessoa deve exercer um cargo como se não tivesse amanhã. Não tenho angústia nenhuma sobre o que vai ser a minha vida amanhã – como nunca tive.
Se amanhã deixasse o ministério, seria fácil encontrar outro desafio que o estimulasse? Corre atrás de quê? A que é que atribui importância?
À importância que atribuo no momento. Ao longo da vida vamos dando importância a aspectos diferentes.
Significa que quando vai para Paris fazer o doutoramento...
Só pensava no doutoramento. Passei anos sem ver o sol! Só estudava. Estudava toda a noite, dormia quando podia. É preciso ser razoavelmente obsessivo para atingir objectivos. O meu objectivo nunca foi ganhar muito dinheiro nem ter cargos que tivessem muito visibilidade e importância. Cumprir o “contrato” com seriedade é que prepara novas oportunidades para o futuro.
Ainda que não perseguisse exactamente o dinheiro e o prestígio, a verdade é que a sua vida esteve sempre ligado a isso. Prestígio ou influência, que são formas de poder. É um homem poderoso, e não é de agora. Ou não se revê nesse retrato?
Possivelmente tenho mais influência e mais poder do que eu próprio me atribuo. Não vivo fascinado com esse aspecto. Essa dimensão do poder – poder produzir mudanças, fazer as coisas acontecerem – é a que dou importância. Fazer acontecer o quê? Temos que ser criteriosos.
Nessa escolha de objectivos está a definição do indivíduo e da sua política.
Por exemplo, no Banco Espírito Santo, era responsável pela área de mercado de capitais. Durante dez anos vivi numa sala de capitais, daquelas que se vêem nos filmes, com muitos operadores e ecrãs. É totalmente virtual. Mas tem um ritmo e tomam-se riscos de uma dimensão esmagadora. Lido com o risco todos os dias, e durante dez anos a minha profissão foi gerir risco – ponto final.
Porque é que acha que lida bem com o risco?
O risco, por natureza, é imprevisível. Mas não é uma aventura sem cabeça, e precisa de ser controlado – com método. É preciso quantificar o risco que se está a assumir, o que se pode ganhar, o que se pode perder.
É como estar sempre à beira do precipício... Na nossa vida, e não só no mercado de capitais, há muitas quedas.
Quando uma pessoa cai, levanta-se. O mundo não é feito para quem passa a vida a olhar para trás e a lamentar-se. Levanta-se, tenta seguir em frente. É isso que faz a diferença entre as pessoas.
Todas as pessoas são recuperáveis? Podemos reerguer-nos de todas as quedas?
Creio que sim. Depende da força interior.
Coincidimos na festa de um artista plástico. Eu pensei, a dada altura, quantas pessoas lidavam consigo com uma especial deferência pelo facto de ser ministro. Quantas pessoas deixarão de a ter quando deixar de ser ministro e o poder diminuir. É uma questão que levanta a si mesmo com frequência?
É uma questão que levantei muito quando fui director do Tesouro e quando estive no Fundo Monetário Internacional. Muito novo na vida estive em situações em que era alvo de deferências. E sendo eu um bocadinho desconfiado, sempre pensei: «Estão a tratar-me assim porque estou nesta posição». Aos 40 anos eu era administrador de um dos maiores bancos que existem no país. Aos 35 anos, [estava] no Tesouro. Aos 29 anos, tinha muitas deferências quando andava pelo mundo fora. Quando vou na rua não me dou conta que as pessoas me conhecem.
Quando é que dá conta que as pessoas cumprimentam o “senhor ministro”?
No outro dia estava a passear com a minha mulher nas docas [em Lisboa] e veio uma criança perguntar: «Ouve lá, tu és o ministro da Economia?», «Sou!». Pronto.
Quando se encontrou com o Robert Frank, ainda não era o ministro da Economia. Mas com o Frank, era igual...
Exactamente. Mas nessa festa a que se refere estava um grupo de coleccionadores de San Francisco. Tinham-me sentado ao lado de um coleccionador e banqueiro de investimento chamado Paul Pelozi. A mulher dele tinha actividade política nos Estados Unidos – ainda que eu não a conhecesse.
Olhavam para si como um político, um coleccionador, ou alguém do mundo da finança?
Já lá vou. Depois do jantar viemos aqui [ministério] e estivemos a ver a fotografia do Robert Frank. Ele disse: “Que interessante, haver em Portugal um político que se interessa por estas questões”. A conversa foi muito agradável, mas sinceramente esqueci o senhor. Há poucas semanas houve eleições nos Estados Unidos, que os democratas ganharam; e quem é a presidente da Câmara dos Representantes? Ou seja, a terceira pessoa da hierarquia dos Estados Unidos? Nancy Pelozi. Isto é a prova de que as pessoas podem cruzar-se em muitas circunstâncias.
O que fez a seguir?
Mandei-lhe um email a felicitá-lo.
Sublinhou o facto de o sr. Pelozi ter dito que era interessante um político interessar-se por estas coisas. Gosta que olhem para si como um político?
Devem olhar [como um político]. A ideia dos políticos e tecnocratas independentes é uma ideia muito própria a Portugal. A pessoa não deve estar na política por sacrifício. Está porque quer. Durante a nossa conversa, fui ao telefone falar com o ministro espanhol da Economia; ele é médico, depois foi presidente da câmara de Barcelona e agora exerce o lugar político de ministro da Indústria. Um político deve tomar decisões políticas e não decisões técnicas.
Sente que tem alguma vantagem por ser um economista e ter o percurso que tem para a tomada de decisões políticas?
Os meus congéneres europeus olham para mim como alguém que tem mais experiência prática neste domínio, e quando falo do meu percurso a reacção é positiva. Mas o meu percurso seria pouco possível no país deles. Nos seis meses anteriores a esta nova fase da minha vida, dediquei-me completamente à política.
Porque é que quis ser político e ministro? Ganha, pelo menos, dez vezes menos do que ganhava antes.
Era o momento certo. Tinha acabado de fazer 50 anos. Podia ter sido mais cedo. Mas se fosse mais cedo, não teria a mesma independência. Mais tarde, não teria o mesmo ânimo e energia. Outra explicação é que não sucede muitas vezes poder participar num projecto a cinco anos (são quatro anos e dez meses de legislatura por razões particulares) e com maioria absoluta. E é um projecto liderado por uma pessoa que admiro imenso.
Mas há um inequívoco fascínio pelo prestígio que o cargo lhe traz. Deixou para trás o prestígio da academia, associado a uma velha ideia de saber. Depois experimentou a autoridade do poder financeiro, a autoridade de ter dinheiro. E agora?
No exacto dia em que o engenheiro Sócrates anunciou a sua candidatura a secretário-geral do partido socialista comecei a trabalhar com ele numa agenda, que se designou Esquerda Moderna. Para inspirar essa agenda. Foi aí que nasceu a ideia do plano tecnológico, de que todas as pessoas ouviram falar. Estava em NY, falávamos todos os dias e ele desafiou-me a ser deputado. «Concorrer como?», «Cabeça de lista pelo distrito de Aveiro». Aveiro é o terceiro distrito, e os cabeças de lista do PSD e do PP eram Dr. Marques Mendes e Dr. Paulo Portas.
Estava a ser catapultado para uma primeira linha política.
Tinha de demonstrar perante o engenheiro Sócrates e sobretudo perante mim mesmo que não ia saltar degraus. Será que consigo? E o PS teve os melhores resultados de sempre em Aveiro.
Não me lembro de uma única imagem sua em campanha eleitoral! Desculpe lá, mas olho para si como um técnico, e não como um político. Pode parecer ofensivo...
Não é nada ofensivo. Estavam sempre a pedir-me para ir a feiras, e não me sinto bem em feiras. Falo com quem quero, como quero e quando quero. E marquei a minha forma de me relacionar com as pessoas. Estive um mês na zona de Aveiro, fui de malinha, instalei-me no hotel de Espinho.
Fez o circuito dos pescadores e das peixeiras?
Evidentemente fui, mas à minha maneira. Fiz um circuito interessante na universidade de Aveiro, em instituições de apoio social. Visitei imensas empresas, fábricas, e foi muito positivo: os patrões viam-me como um deles e os trabalhadores viam que eu era alguém que sabia da situação da economia, em termos gerais, e das empresas, em termos particulares.
Não salta degraus. Mas quando decide ser político, começa por ser ministro. Não acredito que aceitasse ser vereador de uma câmara ou deputado... Sabia que o seu lugar, desde logo, ia ser no topo.
Naturalmente que não ia ser vereador nem secretário de estado, passe a imodéstia. Nessa altura [Julho 2004] as eleições não estavam ganhas. A campanha eleitoral teve momentos extremamente difíceis, foi preciso criar um espírito de união muito grande. E eu queria sentir que tinha a minha pequena contribuição.
O facto de vir do BES, de ser um homem de confiança de Ricardo Salgado, e de haver uma grande proximidade entre os dois não o incomodou? Não sentiu que podia retirar-lhe independência?
Não, nada. Dou-me muito bem com o Dr. Ricardo Salgado, creio que temos uma grande estima um pelo outro, mas sabemos distinguir os lugares que cada um ocupa. Não tenho qualquer relação profissional com o Banco Espírito Santo. Podia ter pedido suspensão das minhas funções para ser ministro, e saí. Mas relacionamo-nos bem, até porque a minha mulher trabalha com ele na construção desta magnífica colecção [de fotografia]. Mas isto acontece com outros banqueiros, empresários, académicos.
No espaço de uma década, Ricardo Salgado e José Sócrates são determinantes no seu percurso. São homens ligados a mudanças estruturais na sua vida.
Tive várias pessoas que me influenciaram. Em primeiro lugar, a minha patroa no Fundo Monetário Internacional.
Patroa? Usa-se? Em português, no feminino, a palavra tem uma conotação popular, jocosa, que não tem no masculino.
Patroa, patroa, que a hierarquia conta. Foi uma senhora muito marcante. Depois, quando estive no Tesouro, o Dr. Eduardo Catroga. Depois, o Dr. Ricardo Salgado. Depois, o engenheiro Sócrates.
Como é que este homem que se dá com Catroga, Salgado e Sócrates está à mesa com um artista como o Robert Frank?
Não só há várias vidas numa vida, como a vida tem várias dimensões. Há a minha dimensão enquanto ministro da Economia, enquanto marido, enquanto pai, enquanto pessoa que tem uma grande ligação à cultura.
Para que é que serve a cultura?
Não é só o conhecimento técnico que vai levar os portugueses a outro patamar, é também o seu enriquecimento cultural e de abertura para o mundo. A nossa tradição cultural pode ser um cartão de visita no exterior. Foi apresentada a exposição que terá lugar em Washington, «Encompassing the Globe». Não tive dúvida em apoiar este evento, interessa-me muito em termos da promoção da imagem do país.
Não é um interesse inconsequente e desligado...
Ah, não, não é gratuito.
Na sua vida, que lugar ocupa a cultura?
O primeiro ordenado que tive foi para comprar pintura. Comprei um óleo do Noronha da Costa, que veio a estar na retrospectiva no CCB. Portanto, talvez tenha olho. Custou quatro contos, era o meu salário de assistente, durante um mês. Houve uma fase em que a minha vida esteve ligada a pintura moderna e contemporânea portuguesa, e nesta fase nova é a fotografia.
“Nesta nova fase”, para sermos claros, significa neste segundo casamento. Simbolicamente, os interesses por diferentes expressões artísticas separam fases da vida.
É uma questão de disciplina. Dá-me uma grande gratificação ir a exposições, coleccionar, conhecer gente.
Já falei várias vezes do Robert Frank, um dos mais iconoclastas dos artistas que usam a fotografia como suporte preferencial. Mas presumo que há dez anos o Frank fosse para si um artista ignoto, e que o seu trabalho fosse para si incompreensível.
Ignaro, certamente, era! Conto uma história: estava eu a iniciar-me na fotografia e completamente na fase Edward Weston e Cartier Bresson...
Ou seja, os clássicos. Mas é por onde se deve começar.
Sim, e sou muito sistemático. Num domingo fomos ver a exposição do Robert Frank no CCB. E achei aquilo para lá de qualquer classificação! Não me identifiquei nada! O que é que é isto? Mas rapidamente comprei uma série de livros e aprendi.
Foi a sua mulher, a curadora Alexandra Fonseca, que o ensinou, ou cresceram juntos nesta aprendizagem?
Foi em conjunto.
É um projecto amoroso em que descobrem juntos e crescem em domínios que não existiam nas vidas anteriores.
Completamente. Deixe-me dizer que admiro sem limites o trabalho que ela está a fazer. Conheci pessoas muito interessantes, entre elas o Robert Frank. Eu tinha uma grande fascínio pela fotografia que está na capa do catálogo da Tate [Modern, exposição retrospectiva de 2004, comissariada por Vicente Todolí], e que está ali na sala do lado [à esquerda da secretária]. Esta ambiguidade do “Fear/ No Fear” é aquilo que nos marca todos os dias.
A fotografia tem uma máquina de escrever e, numa letra rasurada, pode ler-se “Fear/ No Fear”. Como se cada um fosse o autor da sua narrativa, no modo como lida com esta tensão. É obrigatório perguntar de que é que tem medo.
Não tenho medo de nada em particular.
Não acredito nada nessa resposta! Ainda mais depois de ter dito que o medo é aquilo que nos marca todos os dias! O medo é um crivo essencial. A resposta não pode ser tão evasiva e abstracta.
A vida é a superação entre estes dois pólos. Obviamente há o medo de não atingir os resultados [a que nos propomos]. Mas temos de lutar contra esse medo para estarmos sempre no ponto focal.
A questão, e voltamos à infância, é saber que se cumprir com as regras, as coisas correm bem.
É isso, é. O que não é muito original
Mas nem por isso é fácil.
Pois! Tenho de estar todos os dias a tentar...
Tem medo de falhar como ministro? O que é que sente, (mais do que “o que pensa”), quando lê as críticas? Depois de ter dito “A crise passou”, o Inimigo Público escreveu que já estava a mandar currículos...
Se há coisa que não leio é o Inimigo Público, e não vejo o Contra Informação.
É para se defender? Senão, seria permeável ao que dizem e escrevem sobre si?
É. Estou aqui para colaborar num projecto e fazer coisas em que acredito mesmo. Agradam a uns e não agradam a outros. E este ministério está num epicentro de interesses contraditórios. Não posso agir em função do desejo de agradar às correntes de opinião que se manifestam através da imprensa. A atitude sensata é não dar excessiva importância ao que é veiculado.
É preciso criar armadura?
É. A vida não é para ingénuos. Uma pessoa não pode vir para um cargo destes para ser admirada, amada, ter reconhecimento. Uma pessoa deve vir se acha que tem algo a acrescentar. O julgamento vai ser mais à frente.
Está a dizer que confia no reconhecimento futuro. Que os resultados começam a ser visíveis, ainda que não sejam evidentes para todos. Por isso pode aparecer nas sondagens como um ministro menos popular...
Mas não apareço.
Gosta de ser ministro?
Não se pode fazer nada bem se não se gosta. Eu, agora, gosto de ser ministro deste governo de centro-esquerda. Depois seguir-se-á outra vida.
Maria Cavaco Silva dizia à Visão que também é de centro-esquerda. Presumo que as leituras do que é ser centro-esquerda não coincidam.
Porque é que me considero de centro esquerda? Por exemplo, sou a favor da interrupção voluntária da gravidez. Nunca estive de acordo, apesar de ter enorme estima pelos Estados Unidos, com a intervenção no Iraque. Sinto que ainda falta fazer muito para assegurar às mulheres um estatuto de igualdade relativamente aos homens.
E em relação à economia?
Identifico-me com uma visão que é típica do centro-esquerda. A cultura dominante nos Estados Unidos é muito mais à esquerda do que na Europa. Uma visão de centro-esquerda acredita que o mercado é muito importante, mas insuficiente para resolver todas as questões.
Vamos ao seu léxico essencial. Entram palavras como Fazer, Pragmatismo, Resultados, Investimento. Tudo isto remete para o cerebral. Que lugar ocupa o físico na sua vida?
Quando eu era miúdo, fui um jogador de ténis muito bom, de competição.
Desistiu do ténis porque não podia ser campeão?
Desisti quando tinha 15 anos, e não me julgava com talento para ir muito longe. Depois, sucede que a pessoa com quem jogava pares morreu num acidente de automóvel, e isso deixou-me traumatizado. Mais tarde, eu próprio tive um acidente de automóvel que não me deixa jogar ténis. Sou muito limitado em termos dos desportos a que me posso dedicar. Dedico-me a outras coisas.
O acidente, teve-o já adulto?
Foi a seguir a ter voltado dos Estados Unidos. Estive um ano parado.
O que é que pensou durante esse ano? Era jovem; achou que estava com a vida arrumada?
Há muitas alturas em que se pensa isso, porque estive muitos meses no hospital. Mas depois, penso para a frente! Acho que não tenho duas vidas e que tenho de tirar o máximo partido desta. Quando saí do hospital era suposto não conseguir andar sem bengala durante toda a vida. Tinha 30 e poucos anos. Poder andar e poder praticar alguns desportos, é uma grande benesse. Não posso correr: qual é o problema?, devagar se vai ao longe.
Pode dançar?
Posso e gosto muito de dançar. É um evento maior na vida da gente. Como sempre, é o que nos molda: os nascimentos, encontrar uma pessoa marcante com quem se partilha a vida, as mortes, a visão da morte.
Quando percebeu que sobreviveu ao acidente, perdeu o medo de morrer?
Eu fiquei radiante por estar vivo! Só me apercebi semanas mais tarde – estive muito tempo inconsciente.
Foi então que ganhou leveza?
[risos] E agora estou radiante com a possibilidade de poder fazer mais umas coisas.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2006