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Anabela Mota Ribeiro

Beatriz Batarda (2005)

07.09.14

No princípio, ela era “a filha do pintor Eduardo Batarda” e “a prima da Leonor Silveira”. Era ela a pequena raivosa que protagonizava «A Caixa», de Manoel de Oliveira. E era uma flor que exalava uma fragrância de Primavera no Teatro da Cornucópia.

No princípio, ela não pensou que pudesse ser actriz. Estudava design no IADE. Percebeu que já era e quis ser boa. Cortou, então, com a vida de menina de boas famílias, com o conforto burguês de quem faz os estudos no colégio francês, e instalou-se em Londres, em 97, para estudar representação.

Formou-se na prestigiada Guildhall School of Music and Drama, onde se distinguiu como a melhor aluna do curso. Quer isto dizer que conquistou a medalha de ouro numa escola de onde sairam nomes como o Ewan McGregor ou os irmãos Fiennes_ para se ter uma ideia da reputação e exigência da escola.

Mas isto era no princípio. Agora ninguém se lembra de dizer que ela é “ a filha do Batarda”, a “prima da Leonor”. Ela é demasiado inteira e fulgurante para isso. As suas aparições no cinema português são composições inesquecíveis.

Beatriz Batarda é consensualmente a actriz mais talentosa da sua geração. Vive entre Lisboa e Londres. É casada e tem uma filha. Tem 31 anos. Neste momento é possível vê-la nas salas de cinema no filme «Alice». Saiba como se faz uma actriz, como é esta actriz. Que é o mesmo que dizer, esta mulher.

 

No filme «Alice», de Marco Martins, interpreta uma mãe cuja filha desapareceu. Gostava de deter-me numa cena em que exterioriza a dor, a perplexidade, a raiva....

Porque a polícia não vai fazer nada nas 48 horas seguintes. E porque a “minha” filha só tem três anos.

 

O que queria perguntar-lhe era se podia ter desempenhado aquela cena da mesma maneira se não fosse mãe.

Eu ainda não era mãe. Estava grávida, mas não era mãe. Eu senti a cena, a gente sente sempre. Mas quando me revejo, desde que a minha filha nasceu, sinto coisas diferentes. Se calhar faria de outra maneira. Já fiz várias cenas de parto muito antes de ter filhos. E agora fazia de outra maneira, porque já sei que não é nada daquilo que fiz. Eu fiz para o espectáculo. E não é preciso ser assim.

 

Gostava de perceber melhor onde é que um actor se sedimenta, qual é o seu substrato, como é que se constrói.

Há coisas que pedem ao actor para fazer que o actor nunca viveu, que não é. Como por exemplo, eu ainda não tinha um filho. Mas é possível, através da imaginação, que é um momento chave da representação, encontrar paralelos de sentimentos. A separação, que dói de uma forma visceral em todos nós, todos os adultos já a viveram, nem que seja por terem feito a separação dos próprios pais.Portanto, é possível fazer o paralelo de uma separação forçada, uma separação de uma pessoa que nos é visceral, com a qual somos quase simbióticos, como se é com um filho.

 

Aquela cena poderia ser a separação de um filho desaparecido, como de uma mãe ou de uma avó desaparecidas?

Não, isso não, acho que o grau é diferente, apesar de tudo.

 

Agora já percebe que é diferente?

Acho que é diferente. Mas acho que é possível encontrar-se paralelos e depois fazê-los maiores ou mais pequenos. Essa cena foi improvisada. Só fizemos duas takes, porque eu não aguentei mais. Aliás, ninguém aguentou mais. Foram duas takes muito rápidas, completamente verdadeiras e toda a gente ficou bastante perturbada com esse momento. Ficámos todos derreados. Derreados fisicamente e emocionalmente.

 

É incrível como uma cena de um minuto pode deixar-nos exauridos.

Completamente. É uma descarga de adrenalina. Que pode ser a um grau que nos deixa mesmo com dores físicas. Acontece em determinados dias de filmagem. Como por exemplo no «Noite Escura» [filme de João Canijo], no dia em que a Carla [personagem interpretada por Beatriz] é morta, leva os tiros. Fiquei doente. Fisicamente as coisas podem ser muito violentas.

 

«Alice» é um filme muito impressionante. É curioso, porque eu experimentei uma perturbação física nessa cena.

Experimentou a nossa perturbação física. Eu já não tenho consciência nenhuma do que é que as pessoas sentem. A minha relação com o filme não tem nada a ver com a relação do espectador com o filme. E o que é que sentiu?


Senti arrepio e quase uma agonia, que é o que sentimos quando assistimos à dor violenta de alguém de quem gostamos.

Nunca pensei que aquela cena funcionasse. Uma das coisas que ensinam aos actores, e que é uma coisa importante, principalmente em teatro, é a nunca perderem o controlo. Não se deixarem tomar. No fundo, é não terem um ataque de histeria. Se se está a fazer um maluco, tem que se representar um maluco, mas sem ficar descontrolado em cena. Porque isso assusta o público. O espectador fica desconfortável, não consegue perceber se é da história, se é a convenção ou se é aquela pessoa que não está bem. Eu sempre achei que em cinema também tinha que ser assim. Mas provoquei em mim mesma um ataque de histeria.

 

E ficou exausta por isso.

Tive a ressaca de quem tinha tido um ataque de histeria. Dores nos músculos, dores de cabeça, fiquei prostrada no meio do chão. Depois fiquei preocupada a pensar: “Aquilo não vai resultar, vai ser só histeria e as pessoas não vão conseguir empatizar com aquilo”. Está-me a dizer isso e eu acho milagroso. Para já porque contraria as teorias todas.

 

Voltando ao ponto da partida: como é que aquilo que somos se denuncia, emerge naquilo que fazemos. E isto é fundamental? Um actor trabalha com aquilo que é.

Certo.

 

Quanto mais viver, quanto mais transpuser, quanto mais arriscar...

Sim, essa vivência também passa para os papéis. Não há muito tempo, disse a alguém que já não poderia fazer a Julieta do «Romeu e Julieta». Ela na história tem 16 anos, e não é por achar que tenho rugas ou porque estou velha. É porque já não consigo identificar-me com aquela fase de vida. Para além da minha vida pessoal, há a vida das minhas personagens, sobretudo as mais intensas, que se infiltram na minha vida, como a Carla, ou a Maria João [«Peixe Lua», José Álvaro de Morais], ou a Ana [«Quaresma», José Álvaro de Morais], que foram personagens muito fortes. Já são muitas camadas, e a Julieta não tem camada nenhuma, é a sua primeira camada.


Quando é que deixou de poder fazer a Julieta? Quando é que passou a estar numa fase diferente?

Depois de fazer a Carla. Com a Carla, acabou.

 

Todas essas mulheres têm em comum serem desequilibradas emocionalmente. São borderline, não têm recuo, não podem fazer outra coisa senão saltar. É com essas personagens que casa melhor?

É onde sou mais feliz, sim, em termos de criação_ se é possível dizer que um actor cria alguma coisa. O meu maior paradoxo, a minha maior contradição, é precisar que o mundo tenha ordem. Gosto que o sistema funcione, que o governo funcione, que o país funcione, que a minha casa esteja organizada. Gosto de ordem para poder trabalhar em caos. Eu não sou uma pessoa caótica, nem muito extravagante no meu dia a dia. Mas sou muito feliz se, no momento da criação, puder ter personagens dessas.

 

É também aquele caos?

Se calhar sou aquilo por dentro. Mas não posso ser sempre aquilo, porque isso enlouquece-me mesmo. 

 

A sua vida, por fora, continua a parecer-se com a vida que teve sempre. Encaixa num paradigma burguês. Precisa dessa macieza no quotidiano para poder explodir no trabalho?

Não tenho medo de viver. Ou seja, que isso não queira dizer que na minha vida pessoal tenho medo de experimentar ou de me apaixonar. Sei de uma actriz inglesa muito conhecida que faz sempre personagens um bocadinho limite, mas que depois, na vida dela, tem medo de experimentar, tem quase 40 anos e vive com os pais... Isto parece uma conversa de um obsessivo compulsivo... Mas gosto de ordem.

 

Explique melhor isso.

Não era feliz a viver numa comunidade hippie, por exemplo. Gosto do meu espaço, gosto da minha privacidade. Fico frustrada quando é preciso tratar de um documento e é tudo um problema, porque as coisas fecham à uma ou fecham ao meio-dia... Gosto de viver em Inglaterra porque do ponto de vista prático as coisas funcionam.

 

Na criação, o seu ponto de partida é o oposto. Precisa de quê?

Na expressão artística, na expressão dramática de um actor, gosto de partir do remoinho, do caos, da confusão, para descobrir coisas espontâneas, instintivas, viscerais, verdadeiras. Isso é tão difícil de conseguir e tão difícil de gerir sem ficar muito desequilibrado, que, se o resto do mundo não for organizado, então a vida é demasiado cansativa. Tudo o que não é relacionado com o trabalho, preciso que seja simplificado.

 

Se essa parte estiver sob controlo, permite-se explodir muito mais? Porque sabe que há um reduto que é seguro.

Exactamente. Se tivesse que viver em caos permanentemente, ficava doente e perdia a cabeça. Eu preciso de entrar e sair nessa borderline personality.

 

A última vez que falámos demoradamente, há cerca de dois anos, tinha acabado de filmar a Carla. Parecia que estava a construir melhor as suas muralhas, e as portas para entrar e sair.

Estava, como naquele filme do Cassavetes, «A Woman Under Influence» [«Uma mulher sob influência»]. Estava um bocadinho under influence of Carla. O último trabalho intenso que fiz foi a Berenice [peça de teatro de Racine], e já foi há alguns meses. Neste momento, estou pacífica. Mas a vida é um bocadinho irregular.

 

Que vida é que tem agora e que vida é que escolheu ter?

Mais ou menos a mesma. A única diferença é que tenho agora uma família minha. Tenho uma preocupação que já não tem só a ver com o meu próprio umbigo.

 

Isso redefine tudo?

Sim. Não me posso dar ao luxo de entrar em depressão e ficar três dias a curtir uma neura na cama!, porque estou de ressaca de uma personagem ou de uma cena. Que era uma coisa que fazia.

 

De repente, é preciso amamentar a pequena...

De repente é preciso mudar a fralda, dar de comer, ir às compras, coisas práticas que me puxam para a realidade, que não deixam que as personagens tomem conta da minha vida. Neste momento não poderia fazer a «Noite Escura», não aceitaria um papel desses. Talvez daqui a dois ou três anos o pudesse fazer.

 

A sua filha tem um ano e meio.

É uma escolha, a minha escolha. Escolhia não fazer porque escolho a minha filha. Eu podia escolher continuar a viver da mesma maneira, mas sinto que as coisas têm uma fase. Conheceu-me numa fase diferente. Eu sinto-me numa fase de transição. Com a maternidade, depois desses filmes que foram um peso grande...

 

Foram partos, também.

Pois, nos meus vintes. Principalmente estes quatro, que foram mais violentos.

 

«Peixe-lua», «Quaresma», «Noite Escura» e agora «Alice».

A «Costa dos Murmúrios» não foi um filme violento para mim. Foi um filme muito feliz. Mas esses, sinto que foi o fechar de um capítulo. É violento crescer. Tive uma adolescência um bocadinho tardia. É violento passarmos de uma etapa para outra.

 

Pensava que tinha crescido verdadeiramente em Londres, onde estudou. Estava por sua conta.

Sim, Londres também entra nesses anos.  

 

Os seus ciclos são muito longos, é isso que quer dizer? 

Houve um primeiro ciclo, que foi antes de ir para Inglaterra, que tem a ver com uma certa candura e inocência, com a minha experiência na Cornucópia. Depois, houve a transição, o período do curso. E no fim do curso, entrei para outro capítulo que foi o dos vinte, em que fiz esses filmes e trabalhei em Inglaterra. E agora, acho que estou a entrar noutro. Ainda não sei muito bem o que é. Espero não ter perdido a faísca...


A sua decisão era viver entre Portugal e Inglaterra e continuar a trabalhar entre cá e lá. Ter uma família obriga a uma reconfiguração disto?

Para já, escolhi Lisboa. Alterámos a base, que era Londres. Agora a base é Lisboa, onde sou mais feliz. É uma cidade luminosa, (sinto falta disso), e é uma cidade onde me sinto enraizada. Com a maternidade também surgiu a preocupação de pensar no bem-estar da criança. Um bebé em Londres não tem aquilo que um bebé em Portugal tem. Não tem a luz, não tem o espaço, não tem a liberdade, não tem a saúde, não tem a alimentação. Começa-se a pensar nessas coisas muito básicas, mas que são as necessidades. Até uma certa altura, a necessidade máxima foi explodir, dizer que existia: «Estou aqui, sou capaz, faço isto, tomem!». Agora estou mais concentrada noutras coisas.

 

Que coisas?

Na minha família. Estou convencida que isso altera....

 

Ainda agora gracejava: “Espero não ter perdido a faísca”...

Gracejo porque sei que as coisas são as mesmas. Eu sou a mesma pessoa. Sei mesmo. Entretanto, já nesta etapa, fiz a Berenice e não senti problema nenhum. Acho que ainda tenho umas coisas para dar. Mas é preciso parar de vez em quando. Pelo menos desacelerar. Há actores que têm essa facilidade, que conseguem estar sempre no remoinho. Eu preciso de carregar baterias, de reavaliar as coisas.

 

A fase, agora, é Lisboa. Mas não perde Londres de vista. Vai lá fazer castings, contactos, trabalhos...

Ainda este verão estive lá. A trabalhar. Ultimamente tenho feito coisas pequenas. Filmes, televisão. Não é nada de muito interessante. É uma forma de continuar a marcar presença, continuar a relação com o meu agente. Serve para isso e serve também para a minha satisfação pessoal, para alimentar a ilusão de que não estou presa, de que não estou limitada a um mercado.

 

É uma bolsa de respiração?

Sim. É não sentir «não posso sair de Portugal, não sei representar noutra língua, nunca vou conseguir trabalhar noutro sítio que não aqui». Isso dá sanidade, mesmo nas relações profissionais em Portugal. Ter consciência que posso sair, que tenho controlo e poder sobre a minha vida, o meu caminho e as minhas escolhas, permite-me desenvolver relações mais saudáveis com os colegas e com as pessoas do meio. Porque não estou desesperado, não tenho medo de me incompatibilizar ou de não ter trabalho.

 

Em Portugal opta pelo teatro e pelo cinema. Televisão, não?

Evito fazer. Pelo menos não é uma prioridade.

 

Não se deixa deslumbrar pelo dinheiro que a televisão oferece?

Isso é tudo muito relativo. Não sei se televisão oferece assim tanto dinheiro. Não sei qual é o cachet das pessoas, mas não sei se compensa todo o desgaste de imagem que acarreta, juntamente com aquilo que para mim seria um desgaste psicológico muito grande. Não sou uma actriz rápida. Sou uma actriz de endurance. Aguento dois meses a filmar um filme todos os dias, mas não sei se aguento “toma lá um guião de 200 páginas, tens que decorar para amanhã e fazes a take e não repetes e tens três câmaras ao mesmo tempo a filmar”.


É um formato que a agride?

Agride, e não sou capaz de o fazer. Mesmo em Inglaterra, a televisão que tenho feito são sitcoms, séries como a Forsyte Family [fez parte do elenco fixo desta série que passou durante meses na televisão inglesa]. Era um episódio por mês, a rodagem era como se fosse um filme.

 

Fazemos esta entrevista no dia 16 de Setembro de 2005. Consegue imaginar o que será a sua vida a 16 de Setembro de 2006?

É provável não estar em Portugal. É sempre uma hipótese muito provável, mas existe um plano nesse sentido, para o fim do próximo ano.

 

 

Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em 2005