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Anabela Mota Ribeiro

António Gentil Martins

24.09.14

Este homem é um homem que queria fazer obra. Operar, que é aquilo que faz, significa exactamente fazer obra. A cirurgia é uma boa tradução do que quis para a vida: a certeza de obra feita, com princípio, meio, fim. Partes distintas em que se reconhece uma diferença e uma participação. Uma mão.

É extensa a obra deste homem. Realizou mais de dez mil operações. Algumas, as mais afamadas, dão conta da separação de gémeos siameses, seis separações com nove sobreviventes. As crianças: aprendeu a resgatá-las para a vida, ou, simplesmente, a resgatá-las para a uma vida mais confortável (a saúde é o primeiro dos confortos, para crianças e adultos), em Inglaterra. De onde veio já homem feito. Casou-se logo depois e teve oito filhos. Nenhum deles é médico. Tem pena. Até porque pensa que seriam bons médicos, os três que gostariam de ser médicos e não puderam ser.

Percebe-se o quanto lamenta, pelo menos intimamente, quando se lê a primeira página do seu curriculum. Nele consta uma sumária genealogia de família. Filho de António Augusto da Silva Martins, cirurgião, neto de Francisco Soares Branco Gentil, fundador do Instituto Português de Oncologia, irmão de, bisneto de, sobrinho-neto de.

Mas no parágrafo do meio, ainda antes de se dizer descendente de (excepção para o pai e mãe, primeiras referências), diz-se católico. Tem a sua importância, como lerão.

António Gentil Martins nasceu em Lisboa em 1930. 

  

Éramos três: o meu irmão mais velho, a minha irmã no meio, e eu, mais novo. O meu pai morreu quando eu tinha três meses. A minha mãe serviu de pai e mãe para nós todos, e deu-nos o nosso pai como exemplo, estimulando uma veneração enorme por ele.

 

Era uma forma de o ter presente?

Sim. Mas o meu pai foi de facto uma pessoa excepcional, que valia a pena copiar. Tentar ser como ele, foi sempre o meu objectivo. Impressionava-me que amigos, falando dele, chorassem. De saudade, de amizade, de pena de ele ter falecido. Egas Moniz dizia que o meu pai era o homem melhor que tinha conhecido na vida inteira. 

 

A experiência da veneração, ao mesmo tempo, não agudizava a saudade, a ausência?

Não poderei dizer que tinha muita saudade do meu pai. A minha mãe cobriu todo o apoio moral, psicológico, afectivo que eu podia ambicionar. Ela era uma médica frustrada. O meu avô achava que a Medicina não era profissão para mulheres. Então, como as irmãs, aprendeu a bordar, pintura, línguas, piano, cozinha. Sabia fazer tudo o que uma boa dona de casa do princípio do século deveria saber. Acabou por casar com um médico, ter dois filhos médicos, uma filha enfermeira.

 

Era uma espécie de sina para si, ser médico?

Não. Estava hesitante entre a Engenharia e a Medicina. Queria qualquer coisa em que tivesse que fazer coisas.

 

Fazer com as mãos?

Fazer. Sobretudo com as mãos. Mas fazer. Por exemplo, a profissão de advogado, (que respeito muito), não me dava a sensação de fazer coisas.

 

Não tem operosidade? O que faz é operar.

Operar é fazer obra. Os médicos de medicina geral curam a pneumonia através de comprimidos, eu também trato doentes com comprimidos. Só que isso não me dá a sensação de actuação que me dá o executar uma cirurgia. A cirurgia começa-se, acaba-se, tem-se a noção que se fez.

 

O que o fez, então, decidir-se a ser médico?

Com 10, 11 anos, ia de eléctrico de casa ao Largo do Rato e depois subia a Pedro Álvares Cabral até ao Liceu Pedro Nunes. E assisti a um desastre de automóvel. Um senhor tinha sido atropelado e estava a esvair-se em sangue no chão. Senti que queria ajudar, «E agora o que é que faço?, mas eu não sei fazer nada!, estou aqui um inútil». Foi nesse dia que decidi que ia ser médico.

 

Guarda isso com um recorte muito preciso.

Aquilo é que marcou a minha decisão. Não foi pelo facto de o meu pai ter sido médico, o meu avô ter sido médico; tinha a tradição familiar.

 

Nessa ideia de copiar o ser pai...

Só tentei copiar o meu pai numa coisa, além de tentar, como ele, ser uma pessoa correcta, honesta: foi no desporto. O meu pai foi o maior atleta português de todos os tempos. Foi campeão e recordista de Portugal do lançamento do peso, do disco, do dardo, do salto em altura e em comprimento. Foi campeão de Portugal, recordista e mestre atirador em todas as armas que havia na altura. Foi três vezes olímpico em tiro. Foi uma vez olímpico em lançamento do disco. Ganhou o campeonato do mundo de espingarda de guerra de pé na Holanda, em 28. E morreu com 38 anos, senão, estou convencido que teria feito muito mais.

 

Posso perguntar como morreu?

Foi um acidente na carreira de tiro. Onde era extraordinariamente cuidadoso. Foi o único acidente que houve em Portugal em cem anos. E curiosamente a minha mãe deixou-me atirar ao alvo, onde o meu pai morreu. Nunca me deixou caçar, «Caçar, não, o teu pai dizia sempre que era muito perigoso; se fores cuidadoso, no tiro ao alvo, não há perigo».

 

É extraordinário que tenha praticado o tiro ao alvo. Tão a sério que até foi olímpico.

Aí, tentei imitá-lo. Um amigo dele ajudou-me a começar, ensinou-me. Depois fiz vários desportos, gostava de fazer desportos em geral. Mas nunca cheguei nem aos calcanhares do meu pai. Fui uma vez aos Jogos Olímpicos, e já foi muito bom.

 

Como foi a sua participação nos Jogos Olímpicos de Roma?

Fui seleccionado para o tiro de pistola automática. A vivência em Roma foi extraordinária. Acabei por estar um mês, depois de pouco mais de uma semana de trabalho – as minhas provas foram logo no princípio dos Jogos – , e num ambiente de camaradagem excepcional. Permitiu-me ver Roma, espectáculos no Fórum Romano, visitar o Museu do Vaticano e as igrejas fabulosas que lá têm. E estava lá um brasileiro, campeão de triplo salto, que fez o «Orfeu Negro» e tocava lindamente guitarra.

 

Lembra-se do nome dele?

Edmar Ferreira da Silva. À noite, tocava e cantava para a gente, engraçadíssimo. Por outro lado, o contacto que tínhamos com os ídolos do desporto, de todas as modalidades..., admirávamo-los muito e depois estávamos ali, lado a lado, a conversar.

 

Portanto, vai para o tiro com o desejo de imitar o seu pai.

Em casa tínhamos as armas todas que o meu pai tinha utilizado, as medalhas que tinha ganho. Olhe, aquele cavalo que ali está, é o prémio de um concurso que ganhou em Itália. O que está aqui à entrada, é o prémio do campeonato do mundo de espingarda de guerra. Eu era miúdo, via as armas e entusiasmava-me um bocado.

 

Não consigo compreender completamente como é que o incidente trágico da sua morte não o afastou do tiro.

Tinha sido uma coisa tão extraordinária que não havia razão para pensar que acontecesse outra vez. (Nunca mais houve um acidente). E a minha mãe foi, de facto, excepcional.

 

A sua mãe trabalhava?

Depois empregou-se, não teve outra hipótese. Foi redactora do Boletim da Junta Nacional da Cortiça. Fazia traduções. O meu pai não estava a pensar que ia morrer aos 38 anos, não tinha feito seguros, não tinha projectado a sua vida para uma morte inesperada. A minha mãe, de repente, viu-se pendurada. Tive isenção de propinas durante o curso, justamente porque a minha mãe ganhava pouco para nós três. A pouco e pouco, lá fomos singrando e vencendo. Ela era um exemplo de luta, de honestidade.

 

Nasceu e viveu onde?

Nasci na Lapa. Depois da morte do meu pai mudámo-nos para a António Augusto Aguiar. Até à ida para Inglaterra, vivi sempre aí.

 

Viveu em Inglaterra três anos e meio, e durante esse período não chegou a vir cá.

Só queria concentrar-me e aproveitar o máximo que conseguisse. Queria chegar a Portugal e dizer assim: «Eu não preciso de pedir nada a ninguém, já sei o suficiente para estar independente».

 

Porquê esse sentimento tão vincado?

Sempre gostei de não depender de coisa nenhuma. Dependemos todos uns dos outros, como é evidente... Mas quero que seja no menor grau possível.

 

Porquê?

Sei lá. Sempre quis ser independente. Nunca pertenci a nenhum partido político ou organização religiosa. Eu sou católico; às vezes ia às reuniões da JUC, na faculdade, mas nunca fui da JUC. Defendo os valores em que acredito, e nisso sou um bocado intransigente. Nunca quis estar condicionado na minha independência. Cheguei a ser convidado para Secretário de Estado da Saúde, e não quis. Não quis porque os políticos têm de actuar de certa maneira e nem sempre podem dizer o que pensam.

 

Porque é que é tão difícil abandonar o radicalismo das suas posições e dispor-se ao comprometimento com opções consensuais?

Quando estamos convencidos de que determinada coisa está certa, mas que isso é, como hoje se diz, politicamente incorrecto... Eu não me importo de ser politicamente incorrecto. Prefiro não dizer o que as pessoas quereriam ouvir, mas o que julgo que está certo. Mesmo que isso me traga inconvenientes. Esta posição, em política, é muito difícil. Não me sinto bem se não digo, ou não posso dizer, uma coisa que me apetece dizer, uma crítica que me apetece fazer. Então, é difícil estar incluído numa estrutura com determinada orientação.

 

Voltemos atrás, ao momento em que decide ser médico. O seu irmão, mais velho três anos e meio, também quis ser médico.

Se quer que lhe diga, não sei sequer quando é que o meu irmão decidiu ser médico, ou cirurgião.

 

De que é que falavam?

Ah, meu Deus, tenho dificuldade em dizer-lhe. Já não me lembro do que se passava quando tinha 13, 14 anos.

 

Não?

Honestamente não. Tenho uma vaga ideia de factos dispersos, de um amigo ou outro, mas de conversas tidas...

 

Pensava no que era o vosso universo mental, no que sustentava a vossa amizade, no tipo de intimidade que partilhavam.

Quando fomos ambos para Medicina, às vezes ajudava-me, ensinava-se coisas. Era uma coisa que decorria naturalmente. Jogávamos na mesma equipa de vólei, jogávamos ténis, dávamo-nos muito bem, mas pronto. Cada um ia fazendo a sua vida, não havia uma grande proximidade. Como hoje em dia acontece. Convivo muito pouco com amigos que tinha; a vida é de tal modo absorvente que acabamos por perder o contacto social.

 

Essa figura do melhor amigo, nunca a teve?

Diria que o melhor amigo que tive foi a minha mãe. Depois o meu irmão. Depois alguns outros. Sempre preservei a minha intimidade, nunca gostei de me expor ao exterior. Tive bons amigos, e ainda tenho, mas não com uma intimidade muito grande. Como é que hei-de explicar? Penso que nunca tive um melhor amigo. Sou talvez demasiado individualista.

 

O desporto onde mais se destacou, curiosamente, é individual. O que é que lhe agrada mais na pistola? A precisão?

A primeira coisa que me agradou, mais que tudo, foi imitar o meu pai. Depois, agradou-me a precisão. Uma das coisas que mais gostava de fazer era o tiro de velocidade: dar cinco tiros em quatro segundos. Acertar no alvo com rapidez e precisão. 

 

Não tem ideia de si, criança de cinco anos, liberta de expectativas?

De todo. Lembro-me de uma certa agitação quando tinha nove anos e rebentou a Segunda Grande Guerra. De estar no Estoril, de férias na casa de um tio, chegar a notícia e ficar toda a gente excitada por causa disso. Mesmo no liceu, lembro-me de colegas, mas não de factos.

 

Estava a pensar na importância da religião e da fé na sua vida. Esta missão a que se propôs está tingida de carga religiosa?

É possível. Tive uma formação católica. A minha mãe era católica, tive o meu catecismo no Patronato de S. Sebastião da Pedreira. Embebi-me de determinados princípios, da necessidade de dar qualquer coisa aos outros. A nossa vida só tem valor na medida em que for partilhada. Apesar do meu individualismo. Estes princípios eram compatíveis e integráveis na imagem que tinha do meu pai: a necessidade de ser correcto, honesto, lutar _ o velho princípio olímpico: a vitória ou a derrota não é o mais importante, o mais importante é ter lutado honestamente, ter dado o seu melhor. É o que vem expresso nos versos que reli muitas vezes de Kipling, «Se».

 

O que dizem esses versos?

Dizem basicamente que a vida é um engano em muitas coisas. Que a vitória e a derrota não são a parte importante; a parte importante é ter feito aquilo em que se acreditou, ter lutado por uma causa justa. Que o Homem só é verdadeiramente Homem quando se ultrapassa a si mesmo. Perdoar aos outros. Ser derrotado e reerguer-se outra vez.

 

Isso é o Homem transcendendo-se a si.

É. Foi também uma coisa que achei que devia imitar. A minha formação religiosa deu-me a noção de que temos de ter determinada conduta.

 

Teve alguma crise de fé?

Cheguei a pensar ir para padre, independentemente de ser médico. Foi mais ou menos na altura de ir para a faculdade. Depois cheguei à conclusão de que não seria um bom padre. Para ser um bom padre, teria de cumprir rigorosamente tudo, tudo. Por outro lado, gostava de casar e ter filhos.

 

A ideia de constituir família era muito viva em si?

Era, era. Tenho oito filhos, não foi por acaso.

 

Foi por acaso que teve o primeiro só aos 34 anos?

Não. Foi porque não encontrava a pessoa certa.

 

Que idade tinha quando casou?

33. Tive uns namoricos antes de ir para Inglaterra, nada de pesado. Em Inglaterra, durante aquele período, só pensei em Medicina. Quando regressei, um dia fui chamado para operar uma criança cujos pais estavam em África; quem tratava da criança era a tia. Tratei a criança, fui conhecendo a tia, acabei casado com a tia. O meu filho nasceu no ano seguinte.

 

O primeiro de oito, um número quase irreal nos dias que correm. Tem que ver com o facto de ser católico?

Gostar muito de crianças, pode ter ajudado bastante. E ser católico, também contribuiu seguramente. Sou formalmente contra o aborto. É uma vida humana que está ali, não tenho dúvida disso sob o ponto de vista científico. Está na barriga da mãe, às oito semanas o coração bate calmamente.

 

A especialidade que escolheu, a cirurgia pediátrica, pô-lo em contacto com crianças. As suas operações mais afamadas são as de gémeos siameses. Os primeiros siameses de que se fala são os gémeos de Sião. No século XIX as perguntas que corriam eram as seguintes: São um ou dois? Têm uma ou duas almas? Devem ter um ou dois nomes? São naturais ou não? Podem ou não ser separados? Se forem, poderão superar a perda?

Os siameses são sempre duas pessoas distintas. Porque são dois cérebros. Podem estar em parte fusionados fisicamente. Se há dois corações, podem sempre ser separados, sobreviver e viver normalmente. Quando há um coração único, o coração não serve para nenhum; é tão mal formado que não permite a sobrevivência. Aí, não adianta separar. Os siameses são rigorosamente iguais aos gémeos univitelinos em termos mentais. Fisicamente é que podem ser diferentes; uns estão separados e são normalíssimos, e os siameses não.

 

Depois de operados, os siameses podem ter uma vida normal?

Depende do tipo de siameses. É-se condicionado pela própria natureza. É a natureza que diz o que se pode ou não fazer. Se existe uma bexiga que se possa dividir e dar metade a cada um, se existem órgãos que se possam partilhar. Normalmente conseguem ficar com uma qualidade de vida bastante boa.

 

Opôs-se à separação das famosas gémeas inglesas, operadas em Manchester. Todavia, volvidos meses, uma das gémeas sobrevive. 

Mataram uma criança com o pretexto de salvar a outra, que fica com uma qualidade de vida extraordinariamente difícil. Não tinha genitais, não tinha ânus, tinha um coração mal-formado. Esteve meses em cuidados intensivos, que é um sofrimento importante, e a sua sobrevivência é extremamente penosa. Ora, nós temos o direito de morrer em paz. As criancinhas morriam as duas ao fim de dois ou três meses, os pais tinham um grande desgosto como era normal... Os pais nem queriam que se fizesse a separação. Portanto, não há legitimidade, acho eu, para matar uma delas para tentar salvar a outra nestas circunstâncias.

 

De qualquer modo, os siameses são cada vez mais raros.

São abortados na maioria dos países em que há aborto. Parte-se do princípio de que as crianças ficam anormais, o que é mentira. Há uns tempos passou na televisão um programa em que apareceram os sobreviventes que operei, nove siameses. Houve uma que teve de ser operada mais vezes, uma outra que foi operada ao coração; mas há seis que estão impecáveis. Os moçambicanos estão bem.

 

Houve uma mudança de sexo num dos gémeos moçambicanos. Passou-se do masculino ao feminino.

Se só tem um órgão masculino, não pode fazer dois homens. A alternativa é mudar. Mas não sou eu que decido a mudança: é a natureza.

 

O que o senhor tenta fazer é reconhecer e ouvir a natureza?

É mesmo só isso que tenho de fazer. E depois, tecnicamente, resolver. Para dizer que não há qualquer justificação para que os siameses sejam abortados. 

 

Em circunstância alguma, mesmo quando há uma malformação acentuada, aprova o aborto?

Se é corrigível, não. Mas se se diagnostica um anencefálico, um miúdo que não tem cérebro, para mim nem é aborto. É uma interrupção da gravidez de um doente que não tem viabilidade em si próprio e que vai morrer seguramente nos primeiros dias após o nascimento. Aí, não estamos a abortar no sentido de impedir uma vida de continuar, porque ela vai parar. Um indivíduo anencefálico não é indivíduo, não tem aquilo que nos torna humanos.

 

Voltando às questões discutidas no século XIX, a propósito dos siameses de Sião. Têm duas almas?

Se aceitamos que têm dois cérebros, têm duas almas – para quem acredita na alma.

 

Como é que o senhor, que é um homem de fé, mas que conhece o corpo por dentro, configuraria a alma? E onde a alojaria?

A alma para mim não existe materializada. Não acredito que haja um sítio onde esteja localizada, mas só o cérebro pode permitir a existência desse próprio conceito. O conceito de alma só existe enquanto existe um cérebro que pensa. E então, ou se acredita ou não se acredita numa vida futura, e o conceito será um conceito religioso ou não. Pode dizer-se «Quando morrer, morri e acabou, sou pó e mais nada». Ou então dizer «Eu morri, mas há vida futura». Acredito na vida depois da morte e acredito sobretudo que temos obrigação de fazer aqui as coisas de uma certa maneira. O que vier, logo se verá.

 

Já leu a «A Divina Comédia», de Dante?

Não.

 

Ocorreu-me a «A Divina Comédia» por causa da vida depois da morte.

Olhe, eu acredito muito no Purgatório. Tenho muita esperança de para o Inferno não ir, mas no Purgatório estou convencido que vou passar uns tempitos.

 

Pensa nisso assim?

A sério. Será o que for, não me preocupa. Preocupa-me estar em paz com a minha consciência, mais nada. Eu não sei o que é o Purgatório, nem o Céu. Acredito que haverá qualquer coisa que não sei definir, e que, por uma questão de justiça elementar, as pessoas devem ser punidas pelo que fazem de mal e gratificadas pelo que fazem de bem. Em função do que quem julgar entender, se terá mais uma coisa ou outra. Depende da gravidade do que fizemos, da atitude que assumimos. A mesma coisa, pode ser feita com intenções completamente diferentes. Aparentemente é a mesma coisa, e não é.

 

O que muda é a intenção?

É fundamentalmente a intenção. Em relação à eutanásia, por exemplo: se der morfina a um doente que está cheio de dores, e ele morrer por causa da minha injecção, pode ser eutanásia ou não. É eutanásia se quis matá-lo com aquela dose de morfina. Não é se calculei a dose que lhe tirava as dores mas não o matava. É a intenção com que se faz que define se há crime.

 

Concede às pessoas o direito de disporem da sua vida e do seu corpo? De se suicidarem.

Não. Entendo que não temos o direito a esse ponto de dispor da nossa vida. Não aceito nenhum gesto activo e deliberado para terminar com a vida.

 

Dante, que era profundamente cristão, situava os Suicidas no Inferno, (ainda que ponha um suicida, Catão, à porta do Purgatório). Depois do Juízo Final, os Suicidas não poderiam reaver o seu corpo, uma vez que o desprezaram em vida. As suas almas ficariam, então, encerrados em árvores.

Essas figuras filosófico-literárias são muito bonitas. Mas a mim não me dizem nada.

 

Não?

Não.

 

Impera somente o pragmatismo?

A pessoa procedeu bem, é compensada. Como é compensada? Não sei, não estou preocupado. A pessoa procedeu mal, deve ser sancionada. [pausa] Para ser franco, embora seja quase um dogma de fé, não aceito que o Inferno seja definitivo. O Inferno existe, mas não está lá ninguém.

 

Existe enquanto miragem terrífica, para que as pessoas se esforcem por evitá-lo?

Existe enquanto princípio. Eu não sou Deus. Mas não sinto, enquanto julgador, que seria capaz de condenar alguém para a eternidade. Seria capaz de condenar, e o tempo correspondente aos males que fez. Não vejo o Inferno como miragem terrível. Poderá haver pessoas que não façam as coisas com medo do Inferno. Eu faço as coisas, e penso que a Igreja Católica me ajudou nisso, porque acho que as devo fazer de certa maneira.

 

Foi por isso, porque queria dar-se aos outros, ajudar os outros, que pensou ser padre?

Pensei que era uma profissão que era útil às pessoas. Dedicar-se aos outros sem querer nada em troca. Sentia isso como uma coisa nobre. Depois, como lhe disse, achei que não tinha estofo para ser um padre exemplar, e que gostaria de casar e ter filhos.

 

Acha incompatível a família com o sacerdócio?

Não diria cem por cento incompatível, mas espantosamente difícil. «Não podes servir a dois senhores». Mais: a única coisa que critico a mim próprio, e muito, foi o tempo que dei à Ordem dos Médicos em prejuízo da minha família. Tentei servir a Ordem e a Família, quem pagou as favas foi a família e a minha mulher. Praticamente durante dez anos, não existi em casa, existi para a Ordem dos Médicos. De todas as coisas que fiz até hoje, arrependo-me de muito poucas, para ser sincero. Arrependo-me, e não arrependo. Porque o que dei à Ordem, dei com o maior empenho.

 

Deu também pela volúpia do poder?

Dei mais por causa dos doentes que por causa dos médicos, embora tivesse de ser um defensor dos médicos. Tinha um conceito que ainda tenho: só com médicos protegidos, se protegem os doentes. A principal razão por que fui para a Ordem, foi porque queria um sistema que tratasse os doentes convenientemente. Não foi para defender corporativamente os meus colegas.

 

De que outras coisas se arrepende?

[silêncio] É estúpido, mas de que me arrependa mesmo, não me estou a lembrar assim de nada... Com certeza que hei-de ter coisas.

 

Que tipo de pai foi?

Não sei, é difícil dizer. Fui um pai ausente durante um período grande. Tenho procurado ajudá-los no que posso. Não digo que seja um pai muito presente. Passo o dia todo fora. Sou um pai preocupado mas pouco presente, definiria assim.

 

Os seus filhos concordam consigo no que toca às questões fundamentais?

Julgo que sim. Tenho uma filha em Inglaterra que tem seis crianças, uma que está cá que tem quatro. Há uma certa sintonia.

 

Imagine que tinha um filho que não era católico; seria um desgosto?

Eles é que têm de decidir por eles. Prefiro que todos sejam, preferia que todos cumprissem. Mas se calhar, também não cumpro suficientemente bem.

 

Não cumpre? O seu percurso é tão regular, parece não haver espaço para o devaneio.

Uma coisa é devaneio, outra coisa é cumprimento integral. Posso não me desviar, mas posso não cumprir integralmente. Por exemplo, como é que você interpreta faltar à missa um domingo? Você é católica?

 

Não tenho qualquer convicção religiosa.

Regras, em princípio, são para se cumprir, não é verdade? Se a pessoa aceita que a missa tem valor, então, tem obrigação de cumprir essa regra. Se não cumpre, não está a actuar da melhor maneira. Não está a desviar-se, mas não está a fazer o que devia fazer.

 

A sua obstinação vence o peso de qualquer sacrifício?

Mais ou menos. Não gosto de fazer coisas a meio.

 

Em que é que pensa quando está a operar?

Penso só naquilo que estou a fazer. Como é que vou resolver bem aquela situação. Costumo gostar de ter uma música clássica, assim ao longe. Ou então silêncio.

 

É um asceta?

Não. Também me divirto, gosto de coisas. Em todo o caso, tenho noção da responsabilidade e do dever que temos para com a humanidade. Para com os outros. Adoro flores, tenho pena que durem tão poucochinho.

 

Se pudesse operar as flores, elas duravam mais tempo.

Duravam mais tempo, não é? Gosto imenso de operar. Gosto sobretudo de ver o efeito do que fiz.

 

As suas mãos são particularmente grandes num homem da sua estatura.

Os dedos fininhos e grandes são óptimos para a cirurgia.

 

Gosta das suas mãos?

São boas, são úteis.

 

Refiro-me a outra coisa: gosta de observá-las e pensar nas histórias que têm, no que já fez com elas?

Confesso que nunca pensei. Uma vez fiz uma fotografia das mãos, por graça, imitando uma do meu pai, antiga, quando ele tinha 20 anos.

 

Sente que o seu pai se orgulharia de si?

Penso que sim. Globalmente, sim. Pelo menos não ficaria triste, não acharia que o desmereci. Tenho os meus defeitos, mas tenho coisas válidas. Sobretudo uma coisa válida: ter trabalhado bastante toda a vida. Isso dignifica qualquer pessoa.

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2002