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Do que se falou? Dos resultados eleitorais das europeias, da distância entre políticos e eleitores, de uma Europa não-democrática, da capitulação do ocidente face ao business, de a esquerda estar à nora e sem discurso, da extrema-direita francesa, da hegemonia do discurso neoliberal.
Depois de fazer as psico-histórico-biografias de “Maníacos de Qualidade”, Joana Amaral Dias trabalhou no livro “O Cérebro da Política” temas da Psicologia Política. André Freire reuniu no livro “Austeridade, Democracia e Autoritarismo” crónicas publicadas na imprensa nos últimos anos. Nos anos da crise. Em Portugal, na Europa, no mundo. A psicóloga e o politólogo caracterizam nesta entrevista um quadro agónico, na antevéspera da mudança. Antevéspera? De mudança, de certeza.
Descrédito, desalento e distância. Qual destas palavras identifica melhor a relação que os portugueses têm com a política?
Joana Amaral Dias – Para não sair do “D”, diria desespero. O fosso que se cavou, que ainda está só no começo, e cuja reversibilidade vejo com dificuldades, é desse nível.
André Freire – As três são descritivas do que se está a passar. Talvez pusesse a tónica no descrédito. O resto, o desalento e a distância, vem de as pessoas se sentirem ludibriadas.
Não é um problema de agora. Ainda que agora seja mais agudo.
AF – Não é o descrédito que resulta da falta de competência, dos resultados. Resulta de as pessoas se sentirem enganadas, reiteradamente. Já atingiu os limites da desfaçatez. Passos Coelho diz uma coisa, no outro dia faz outra, com o maior dos desplantes. Isto, sendo recorrente, é difícil de reverter.
Porque é que acha que este grau de desespero, que considera irreversível, está só a começar?
JAD – Olhemos para fenómenos como o da extrema-direita francesa. Os cidadãos franceses não se revêem nas posições racistas, xenófobas, no ódio da Frente Nacional; mesmo assim, votam em [Marine] Le Pen. Estamos a falar de desespero. O desespero de alguém que não acredita nas forças políticas tradicionais e que está disposto a hipotecar os seus valores, a pôr no prego a sua ideologia para manifestar a sua zanga.
As pessoas não têm de si a ideia de que são xenófobas, racistas, mas aquele é o chamado voto de protesto.
JAD – Exacto. A extrema-direita soube cativá-lo, resgatando algumas bandeiras da esquerda: a defesa do trabalho, do Estado Social. Por outro lado, a política é feita por pessoas, seja do lado dos eleitores seja do lado dos candidatos. E as pessoas, quando se sentem encurraladas, podem tomar atitudes irracionais e até contra os seus interesses.
Foi o que aconteceu em França?
JAD – É o que está a acontecer na Europa de uma maneira geral. Uma das variáveis que levaram a esta situação é a indiferenciação progressiva dos partidos políticos tradicionais. O Tratado Orçamental é um bom exemplo. Se cumprirem todos o Tratado Orçamental, são cada vez mais parecidos.
Quem está no poder e ratifica tratados, fica obrigado a um código comum, metas convergentes. Nesse sentido, socialistas e sociais-democratas, para usar a sua expressão, ficam cada vez mais parecidos.
JAD – E o crescimento dos extremos, em vez de fazer com que estas forças [do centro] percebam qual é a postura dos eleitores e comecem a diferenciar-se e a dar respostas alternativas, vai pô-los numa posição ainda mais defensiva. Vai fazer com que se apresentem como um bloco central agravando ainda mais o problema.
Mas a História não fica encafuada em becos sem saída. Há sempre soluções.
JAD – A reversão desta situação vai acabar por acontecer. Até acontecer, vai haver muito desespero e alguma violência.
AF – Embora esteja de acordo com o que diz a Joana, não sei se não há segmentos da população que não partilham de ideias [da extrema-direita]. Os emigrantes estão a roubar o lugar aos locais, os emigrantes usam demasiado os benefícios do Estado-providência e às vezes nem merecem. São as alegações. Os partidos tradicionais abandonaram os grupos mais desfavorecidos e esta Europa. [François] Hollande desacreditou-se porque disse que ia fazer uma coisa e fez outra. Perdeu os eleitores de esquerda e virou à direita com Manuel Valls. Perguntaram à Marine Le Pen, a seguir às eleições autárquicas, se achava que Hollande ia mudar de política; ela respondeu: “Não pode mudar de política. Quem manda nele é a Comissão”. Isto tem uma certa verdade.
É válido para Pedro Passos Coelho, para Mariano Rajoy, é válido para todos? Quem manda é a Comissão?
AF – Há uma margem. Não são completos joguetes na mão da Comissão. Um país como a França podia resistir – não quis. O problema é que as coligações no Parlamento e na Comissão são sempre entre centro-esquerda e centro-direita. Este voto nas forças radicais, à esquerda e à direita, é um protesto contra a falta de alternância, contra este conluio. “Isso é farinha do mesmo saco. Eles vivem na cama, juntos.”
Frases que se ouvem, também, em cada país. Em Portugal é constante o “Eles são todos iguais.”
AF – Agora ganhou o PPE. Se ganhassem os socialistas e os democratas, a solução não seria muito diferente, porque têm que se coligar. Além disso há os tratados, as fórmulas, as regras de ouro. Vote-se em quem se votar, o máximo que se pode fazer é mudar os protagonistas. A política tem que ser esta. Senão os mercados não gostam, a Europa não gosta. Esvaziada a ideologia, tudo fica resumido a substituir indivíduos. E os indivíduos tratam da sua vida, mostram que são mais competentes que os outros.
Não há de facto alternativas?
AF – Não há projectos alternativos possíveis de executar. Ou então diz-se que se vai fazer [diferente] e depois não se consegue.
JAD – A Europa fez uma tentativa, um primeiro ensaio, de se constituir como uma Europa dos povos. O Tratado de Lisboa: inicialmente era para ser referendado; depois um conjunto de cidadão europeus não votou como os donos da Europa gostariam; passou a ser imposto. Isto diz tudo sobre o que é a Europa.
É um modo de dizer: “É uma democracia, mas quem manda sou eu.”
JAD – Não é uma democracia, a Europa é anti-democrática. Isto tem que ser dito com clareza. Falamos do Tratado Orçamental, do Tratado de Lisboa, da forma como está constituído o Parlamento Europeu, a Comissão, o Conselho Europeu, que é o órgão mais importante e que não é eleito: toda a Europa é antidemocrática. Essa é uma das raízes deste problema com que nos defrontamos, o tal fosso entre as pessoas e os agentes políticos.
Os resultados das eleições europeias apontam para uma vitória da direita. Em Portugal, o centro-direita, no poder, sendo perdedor, não foi completamente perdedor. Essa foi a leitura consensual.
JAD – Mesmo nos países que foram sujeitos a programas de intervenção externa, a direita resiste. A Aliança Portugal obteve 27%. Significa que o Partido Social Democrata pode fazer a maior barbaridade que nunca vai descer dos 20%. São aqueles eleitores cuja formação política está enraizada muito precocemente, é fiel. A direita, apesar do descontentamento geral da população, conseguiu transformar os seus valores e os seus princípios numa narrativa. Tal como a extrema-direita. A esquerda tem zero.
Como assim?
JAD – Em 2008 tivemos crise financeira. Teria sido a oportunidade de ouro para a esquerda mostrar com clareza mediana os malefícios do capitalismo selvagem e desregulado.
A narrativa que ficou impregnada no colectivo foi a oposta.
JAD – A direita fez uma narrativa concertada a nível europeu. “A culpa é vossa. Viveram acima das vossas possibilidades”. Mexeram em duas noções básicas do ser humano: a culpa e o medo. Já no Estado Novo de Salazar, nos centros de reeducação dos sem-abrigo, considerados os grandes párias, o que estes deviam aprender, em primeiro lugar, era a culpa e gratidão. Isto não é um discurso político, ideológico, racional. É um discurso emocional e que tem ressonância emocional. Por isso consegue resultados. E esta narrativa continua.
Continua? E passados estes anos de austeridade, continua a surtir efeito?
JAD – Continua. E daqui decorre que temos que fazer sacrifícios e honrar os nossos compromissos. Punição, disciplina, honra. Só depois vem o bottom line desta história: o equilíbrio das contas públicas. Essa, que é de facto uma bandeira da direita, clássica, só vem no fim desta narrativa.
Qual é a narrativa da esquerda sobre esta história?
JAD – Nenhuma. Quem está numa posição constantemente defensiva e emprega a linguagem do adversário ou do inimigo (austeridade, resgate, ajustamento, troika, ajuda externa), está a permitir que o inimigo o controle. Linguagem é pensamento e sentimento. É uma estratégia muito bem construída do ponto de vista comunicacional.
AF – Estou de acordo com a Joana. A construção europeia era uma grande promessa. Mas a visão social-democrata na Europa desapareceu desde Maastricht.
Somos reféns deste quadro há 20, 25 anos. Isto por que estamos a passar é ainda a reorganização da Europa no pós queda do muro?
AF – A ascensão do neo-liberalismo é anterior à queda do muro de Berlim. Começa em 1981, com a Sra. Thatcher e Reagan. Também concordo que a esquerda perdeu uma narrativa, assertividade, passou a usar as palavras do adversário.
JAD – [Passou a usar] a língua oficial do regime de direita.
AF – Ficou colonizada.
No título do seu livro usa palavras-chave desta narrativa. “Austeridade, Democracia, Autoridade”. Todos integrámos palavras como austeridade. Austeridade para corrigir o desacerto. Com ou sem culpas no cartório.
AF – Sim. Mas, no fundo, o equilíbrio das contas públicas é apenas um álibi. Não há correcção nenhuma. Em Portugal, a dívida é muito maior do que era. As crises propiciam a utilização destes mecanismos, o medo, a culpa, a urgência. E depois escondem-se atrás da troika. Devemos lembrar-nos que o Dr. Passos Coelho dizia que queria ir além da troika. O Dr. Jerónimo de Sousa disse que queriam ser mais “troikistas” que a troika. (Expressões geniais. A mensagem passa sempre muito bem.
JAD – Lá está, um bom comunicador. Por isso é que o PCP tem crescido: porque tem uma narrativa.
AF – Não se põe a disparar para todos os lados, e usa os seus termos do debate.) O Partido Socialista entregou os pontos desde logo. Enfiou a carapuça de que aquilo era um programa do Sócrates. Até ao final de 2012, quando começou a divergir, absteve-se na aprovação do Orçamento e tentou demover os seus deputados de pedir fiscalização constitucional. Capitulou.
A grande questão, em Portugal e na Europa, é para onde é que vai a esquerda? É a esquerda que tem que se afirmar e reencontrar?
AF – Tem que construir uma narrativa, uma visão diferente. E ser assertiva, não pode estar à defesa. Tem que ter um discurso e o discurso tem que ser radical (no sentido de mudar as coisas de raiz). Mas não é fácil mudar na questão europeia. Está tudo armadilhado.
Porquê?
AF – Para mudar os tratados é preciso unanimidade. Dentro das famílias políticas há uma grande heterogeneidade interna. É um labirinto. Por isso é que não tenho uma opinião completamente negativa da ascensão da direita radical. Pode agitar!
As eleições têm nem um mês. A extrema-direita cresceu em países como França, Dinamarca, Holanda. Serve para acordar consciências?
AF – Não sei se vai surtir efeito, mas este sistema tem que ser abanado. Há duas hipóteses de resposta da parte dos partidos que têm governado a Europa. Uma é fazer mais do mesmo. Fazer umas maquilhagens, baixar impostos. A outra hipótese passa por uma nova política de alianças, por coligações alternantes.
Qual é a sua leitura?
JAD – Quando temos Estado-nação, globalização e democracia, um destes lados não pode constar. É como aquele pastor que tem que atravessar o rio com o cordeiro, a alface e o lobo. O cordeiro come a alface, o lobo come o cordeiro. Como o pastor só pode atravessar dois elementos de cada vez na jangada, qual é a solução do enigma? A narrativa da extrema-direita pega na questão do Estado-nação, da soberania. A soberania dos países, que tem também a ver com a deficiência da construção europeia, tem sido negligenciada. Por preconceito, e por causa da experiência traumática do nacionalismo no século XX, a esquerda não tem sabido defender o lado positivo do nacionalismo.
Como caracteriza o lado positivo do nacionalismo?
JAD – O nacionalismo tem um lado horribilis que todos conhecemos. Identificar-me consigo ou com o André, porque somos os três portugueses, significa que há a possibilidade de construir um laço de solidariedade e empatia quase automático. Esse nacionalismo positivo é semente de inter-ajuda, união e coesão. A direita radical vai buscá-la.
AF – O nacionalismo ficou colado à direita, mas historicamente isso não corresponde à verdade.
A extrema-direita apropria-se dessa semente e desse discurso. Faz dele um nacionalismo bonzinho?
JAD – Há lobos com pele de cordeiro. Dou como exemplo no meu livro a história d’Os Três Porquinhos. A narrativa da direita diz que fazem a casa de palhinha e madeira porque são uns preguiçosos, imaturos, inúteis na sociedade. A narrativa da esquerda não existe. Mas podia existir dizendo que fazem de madeira porque a madeira é mais ecológica. Mas é o vazio. Todos temos horror ao vazio. A política tem porque os seres humanos têm.
Como é que se dá um murro na mesa?
JAD – O murro na mesa não existe. A narrativa da direita é europeia. Não foi o Pedro Passos Coelho que inventou esta história de vivermos acima das nossas possibilidades. Não houve precipitações, não houve impulso, muito menos murro na mesa. Uma das consequências de a esquerda não ter feito esse trabalho é a sua fragmentação e as suas guerras fratricidas.
Qual é a sua opinião? Acha que há murros na mesa?
AF – Se digo que é preciso dar murros na mesa quero dizer que é preciso quebrar o consenso europeu, que é um consenso de mãos atadas perante a globalização. É preciso impor mínimos fiscais e sociais na Europa. Quando os dez países entraram (os oito pós-comunistas mais Malta e Chipre, em 2004), a Europa aumentou dez países e diminuiu o orçamento comunitário. Começou toda a gente a competir para ter os impostos mais baixos do mundo e os custos do trabalho mais baixos do mundo. A esquerda embarcou toda nisto.
Há um tema que se liga ao nacionalismo: a ideia de que é preciso defender a democracia nacional. Então agora os constituintes do Dr. Passos Coelho são os mercados de capitais? Os constituintes começam por ser os votantes nacionais. Quem é que defende isso? É a extrema-direita, que vem dizer que é preciso impedir que esses senhores – e os bancos – venham mandar em nós.
A Hungria, que tem um governo de direita, tem feito coisas nesse sentido.
AF – Limitaram os movimentos de capitais, limitaram os lucros. É uma espécie de direita antiplutocrática. Os tipos do Banco Central ficaram muito zangados. A via tem que ser esta, tem que haver limitações à globalização. Um país sozinho tem mais dificuldade em fazer isto, a não ser que seja uma autarcia. Continuo a ser um europeísta, embora não me reveja nesta Europa.
A Europa ainda pode voltar a ser essa Europa?
AF – Os meus amigos socialistas falam-me num ideal de Europa que nos pode mover, mas a Europa que vejo não é essa.
JAD – Gostas do arquétipo da Europa. Sobre o triângulo desequilibrado: à globalização responde-se com um governo global. Sou muito radical.
AF – Não abdico do Estado nacional.
JAD – Nem eu.
AF – [Um governo global] é muito impraticável.
JAD – É quase tão impraticável como a Europa [risos]. A Europa é anti-democrática, também, porque as potências emergentes, o Brasil, a China, a colocaram numa posição defensiva. E em vez de ser atacante por via das suas melhores características, passou a ser competitiva nivelando por baixo. É óbvio que é uma utopia, mas não vejo outra solução que não um governo global.
AF – A globalização preocupa-me. Não é só um esquema da direita e uma capitulação da esquerda. Há uma capitulação geopolítica do ocidente perante a ditadura. Nos tempos da Guerra Fria, era um álibi para combater os comunistas. Mas falava-se em direitos humanos e democracia. Hoje há uma contemporização. A China é uma ditadura feroz! A Rússia é o que se vê, mata jornalistas, invade outros países, faz umas eleições para disfarçar. Alguém diz alguma coisa sobre isto? Direitos humanos? É só business! Não temos memória? E não há um património? O que interessa é fazer negócio, a democracia não interessa para nada.
Estou a tentar perceber qual dos dois tem um discurso mais esquerdista.
AF – [risos] Isto não é um discurso esquerdista. É a defesa do liberalismo político, da democracia.
JAD – Se tivesse que resumir tudo isto, diria que a linguagem da direita, que é a linguagem dos negócios, dos mercados, contra o ser humano, é a língua oficial. O risco é que ela passe a ser a língua materna. Neste ponto em que estamos, ou ela passa a ser a língua materna e é impossível de esquecer, ou há de facto alguma coisa e isto muda realmente.
De onde vêm estes políticos em quem queremos votar, que pensam bem, que desarmadilham este mapa dos dispositivos identificados?
AF – Essa é questão para um milhão de dólares!
JAD – Sim. O que sabemos em Psicologia Política é que os que reúnem essas características são líderes centrados na relação, centrados na tarefa, que têm tanto de carismático como de formiguinha. Historicamente vão aparecendo. Jesus Cristo, Gandhi, Martin Luther King, Mandela. Surgem quando há um movimento social organizado. Essa emergência não é a de um homem ou de uma mulher só.
Há uma coisa comum entre os nomes que apontou: a humildade. O despojamento. Uma das críticas mais constantes que as pessoas fazem aos políticos é a soberba, a vaidade, o egoísmo.
AF – Acredito que a liderança pode fazer uma diferença, mas isto não é um piloto, tem que ter múltiplas pilotagens. Tem que haver mais pressão de baixo, das pessoas, das organizações, que faça surgir líderes. Não basta ter os líderes certos. É preciso mudar as regras do jogo.
JAD – A questão da soberba dos líderes, acho-a fundamental. Há dois tipos básicos de motivação para o poder. O “poder para” fazer qualquer coisa e o “poder sobre”.
Que líderes tipificam o “poder para” e o “poder sobre”?
JAD – Se falarmos de Gandhi ou de Mandela estamos a falar de “poder para”, se falarmos de líderes como Hitler, Mussolini ou Salazar, estamos a falar de “poder sobre”. O par poder-vulnerabilidade é o par fundante do ser humano. O “poder para” é o poder que tolera as suas partes más, o seu medo, a sua aversão, a sua soberba, e os transforma na empatia com o outro. O “poder sobre” é aquele que pega no medo, na culpa, que não a tolera dentro de si e a projecta no outro, levando ao controlo do outro. Temos assistido a uma escalada do “poder sobre” e a uma retirada do “poder para”. O “poder para” passou a ser ridicularizado.
Como se fosse uma coisa de totós.
JAD – O poder baseado na empatia, no respeito, na comunhão, na compaixão, na solidariedade, é ridicularizado. A proliferação absurda de filmes e séries-catástrofe que invadiu o imaginário popular [é sintomática]. Nestes filmes, há um grupo de sobreviventes que fica isolado e que tem que reaprender a viver em comunidade. Tem que reconstruir um nós.
Em que filmes está a pensar?
JAD – No Walking Dead, no Lost. É isto que a sociedade procura. Quando falamos de crise de identidade, de valores, que está em todos os discursos, falamos de uma sociedade que desaprendeu a viver em conjunto e que procura reencontrar um “poder para”.
Nessas narrativas impõe-se uma aprendizagem depois do cataclismo. No início da conversa estava a falar da irreversibilidade do processo e, talvez, violência...
JAD – Já tivemos ensaios disso. Paris a arder há uns anos, Londres. Vão verificar-se outras formas de violência. Talvez só depois disso possamos reaprender a viver uns com os outros.
Gostava de o ouvir sobre o triângulo que escolheu para título do seu livro: autoridade, democracia e austeridade. Quem come quem?
AF – Este período de austeridade que estamos a viver tem colocado em crise a democracia e os seus valores. Pela liquidação das escolhas. Temos é que prestar contas aos mercados de capitais internacionais e eventualmente à Comissão Europeia, ao BCE e ao FMI. O Presidente da República raramente fala nos eleitores (são uma coisa já remota). O Dr. Passos Coelho diz que temos que pensar nos mercados de capitais.
Há um mandato eleitoral. Este partido e este líder foi mandatado pelos eleitores para governar.
AF – Estas medidas não foram a votos. O que foi a votos foi o que disseram na campanha, os programas que propuseram. O programa da troika já foi revisto, está incaracterizável. Isto é um Governo sem mandato político. Se dizem uma coisa e fazem o contrário é o descrédito total. É como se as eleições não servissem para nada.
JAD – Mas é isso que as pessoas sentem: que as eleições e que a democracia não servem para nada.
E daí o afastamento em relação à política de que começámos por falar.
AF – É isso. Esta austeridade, tal qual está a ser aplicada e vivida, está a comprimir a democracia. E também vem uma parte da Europa, [que nos diz]: “Vocês só podem fazer isto, não podem sair destas baias.” É preciso quebrar o consenso. A nossa democracia está muito doente. Na Grécia correu mal, mas as pessoas reagiram e viraram aquilo ao contrário.
As pessoas em Portugal não vêm para a rua como na Grécia, não incendeiam carros, não partem montras, têm um comportamento mais ordeiro. Somos caracterialmente assim ou temos uma história de medo que ainda se faz sentir?
JAD – Não sei se somos caracterialmente assim. Temos uma história de medo e de opressão longa e recente. Há ainda duas, três gerações que a viveram e que estão vivas, que são eleitores. E depois, se a narrativa da esquerda foi paupérrima de uma forma geral, no caso português foi inexistente. Na Grécia temos o Syriza.
AF – Na Grécia há uma tradução política do descontentamento. O Pasok tem oito%. Tradicionalmente é um partido de 30, 40%. Isso é saudável. Aqui é um marasmo. Sabemos que não confiam nos políticos. Há um mal estar larval que era melhor que fosse exteriorizado e que tivesse uma tradução política.
Como seria essa tradução? Votando num partido equivalente ao Syriza, com um discurso radical? O que se viu foi uma descida do Bloco e uma subida do PC.
AF – As pessoas não vêem como é que o descontentamento se traduz. As esquerdas estão todas sectarizadas. O Partido Comunista teve uma grande vitória, mas aquilo não soma com nada. O Syriza está a dar uma dinâmica de mudança. É isso que não vejo em Portugal.
O livro do André Freire reúne uma selecção de artigos do Público. Nota, desde que começou a escrever, e o arco temporal é relativamente curto, uma diferença no tom?
AF – O meu tom tem aumentado na irritação e assertividade, mas continuo no mesmo sítio. O sistema é que se está a mover. Temos um lastro brutal de atitudes anti-democráticas. Isto não é um problema de esquerda/direita, é um problema de democracia versus outra coisa qualquer. Há várias pessoas decentes à direita que têm feito mais oposição a este governo do que o próprio Partido Socialista. O Pacheco Pereira, a Manuela Ferreira Leite, o António Capucho.
O livro da Joana Amaral Dias trabalha dois vectores, que são constantes na sua vida, mas que nunca tinha trabalhado desta maneira, a psicologia e a política.
JAD – Esta minha linha de pesquisa é antiga. Todos os contributos no sentido de perceber, não só o que está a acontecer mas por que é que está a acontecer, podem ser uma arma cidadã importante. E também [são uma arma] no combate à abstenção, para que as pessoas tenham armas disponíveis para perceber porque é que fazem determinadas escolhas. Ou porque é que não
votam, ou porque é que os actores políticos se comportam de uma determinada maneira.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014
João Ferreira do Amaral é um economista que pensa como o matemático que é. Ou seja, com um discurso arrumado, sequencial, articulado. É um professor que fala a partir da sua secretária, onde se amontoam pilhas de livros e papéis. Parecem de equilíbrio periclitante. Só parecem. Usa da ironia. É contundente. Deixou de ser uma voz no deserto a dizer Porque Devemos Sair do Euro. No seu livro mais recente, sai Em Defesa da Independência Nacional.
Olhemos para a Europa como quem olha para uma família. Uma família em que há irmãos bem sucedidos e outros pobretanas. É desta articulação e a partir deste mapa que podemos compreender a singularidade de Portugal e o momento que o país atravessa?
A comparação com a família é bastante forçada. A Europa não é uma família de Estados, nem pouco mais ou menos. Na Europa não se vê – e desde o Tratado de Maastricht em 1992 – suficiente autonomia para os irmãos perseguirem aquilo que lhes dá mais êxito em termos de futuro. Numa família, em princípio, os irmãos são autónomos. Uns têm êxito, outros não têm, mas resulta da sua própria liberdade de escolha. Hoje criou-se um sistema de regras que prejudica o futuro de muitos Estados. Esse é o problema dramático da Europa.
Por que é que não somos uma família? Apesar desta estrutura ser heteróclita, desconjuntada, desafinada neste momento, se olharmos para a História europeia e mundial, existe uma coisa que se chama património identitário europeu. Isso pode dar-nos a ilusão de que somos uma família.
Diz bem, uma ilusão. Numa família cada membro considera que a família é algo que muitas vezes se sobrepõe aos interesses individuais. Numa família as pessoas estão dispostas a sacrificarem-se em benefício da família no seu conjunto. Entre Estados não é assim. Um português não aceita ser sacrificado para a Europa ficar melhor. Como um alemão ou um dinamarquês não aceitam. É um erro grave pensar que existe um grau de solidariedade na Europa. Não existe.
É por causa da falta da solidariedade, em primeira instância, que não nos considera uma grande família.
Exacto. O facto de haver proximidade cultural – de que gosto de ser herdeiro – não implica que tenha que haver, do ponto de vista político, esta concepção de família, esta solução [institucional]. Existem ao mesmo tempo histórias nacionais muito longas, que não podem ser apagadas em benefício de uma entidade mítica – uma Europa que apareceria descida do céu.
Primeiro grande equívoco: forçar esse sentimento de pertença e identidade comum?
É um grande equívoco. Isto tem tradução política na tentativa de criar um super Estado europeu. Que não se consegue criar. É perigoso e pode levar a Europa a becos sem saída.
Perigoso, becos sem saída... Pode explicar melhor?
O caso típico é a moeda única. Era fundamentalmente um projecto político para forçar a criação de um super Estado europeu. É perigosíssimo. Tirou a muitos dos Estados o instrumento fundamental para poderem singrar. Criou ao mesmo tempo tensões na Europa, que estamos hoje a sofrer, e que não se apresentam de fácil resolução.
As vozes que mais recorrentemente se ouvem, que são a favor e confiam no projecto europeu, apontam o modo como ele foi erguido, nomeadamente o Euro. A sua voz é mais radical.
O Euro foi muito mal concebido, isso é consensual. Mas vou para além disso. O Euro é um projecto que exige a existência de um Estado europeu. O Euro não pode ser um factor de criação de um estado europeu (como se pretendeu). Quanto muito, se houvesse um Estado europeu, então poder-se-ia ter criado o Euro.
Para que um Estado europeu tivesse viabilidade seria preciso, pelo menos, um sistema fiscal comum, uma Constituição europeia, outros cimentos?
Mas esses cimentos não existem. Nada existe quando os povos não aceitam. A construção europeia foi chumbada em dois referendos. Se tivesse havido mais, em mais teria sido chumbada. A lealdade que os povos têm é ao seu próprio Estado, não é a uma Europa que não sabem o que é. É um absurdo tentar assentar instituições europeias, que mexem em aspectos essenciais da autonomia de um Estado, num vazio.
Qual é o vazio?
É a inexistência de um povo europeu e de uma nacionalidade europeia.
Na sua opinião, tudo está mal, desde o princípio?
Não. Sou muito admirador do projecto de integração europeia até à moeda única. A partir de Maastricht, tudo foi desaparecendo, até chegar a estes dois últimos remates, o Tratado de Lisboa e o Tratado Orçamental, que criou uma camisa-de-forças impossível para os estados endividados.
Vamos à Comunidade do Carvão e do Aço e ao Tratado do Eliseu. Vamos pensar no que era um projecto eminentemente prático, porque era preciso reconstruir a Europa depois da Segunda Guerra. Porém, havia um ideal que o insuflava.
Esse ideal, sou a favor dele: é criar condições para a paz na Europa. Essa foi a genialidade dos pais fundadores. Essa paz seria garantida pelo prosseguimento dos interesses comuns da área económica. Daí o carvão e o aço, duas matérias-primas essenciais para a guerra. A seguir, a integração económica. Isso não põe em causa a autonomia de cada Estado. Quando se entra na moeda, está a pôr-se em causa a autonomia de cada Estado.
A moeda é um factor essencial, não só pelo instrumento em si próprio, mas também condiciona as opções orçamentais. E o orçamento e a direcção das finanças públicas é algo que nasceu com a democracia e é fundamental.
Indo a esta crise, se tivéssemos moeda própria e capacidade de gerir a inflação, seria outra coisa.
Seria. A nossa economia não estaria desequilibrada como esteve quando sucedeu a crise. Ela tornou-se muito mais grave por esse facto. Ter moeda própria ter-nos-ia evitado um enorme endividamento da economia no seu conjunto – não do Estado –, que existia à data da crise.
Mas não contámos durante muito tempo com o dinheiro da Europa?
Contámos. Infelizmente em Portugal gostamos muito de contar com o dinheiro dos outros. A nossa estratégia europeia foi quase sempre uma estratégia de maximização dos fundos estruturais. Não tivemos muitos outros objectivos. Uma estratégia dessas está condenada ao fracasso.
Isso é uma espécie de same old story. Se olharmos para séculos passados…
Tivemos o ouro do Brasil. O Brasil era nosso, mas era um recurso exógeno. Tivemos outras épocas em que vivemos à custa do endividamento externo. No liberalismo, as grandes obras públicas levaram a problemas recorrentes de endividamento externo, alguns bastante dramáticos.
A diferença está em que, sem moeda, e como foi o caso, podemos alegremente aumentar o nosso endividamento sem nos apercebermos disso.
Alegremente. Gosto do seu advérbio.
Tudo isto era uma festa. O dinheiro era barato, os bancos não tinham dificuldade nenhuma em obter dinheiro nos bancos estrangeiros e depois emprestar internamente. Se tivéssemos moeda própria, rapidamente a nossa moeda se iria desvalorizar e daria sinal de que nos estávamos a endividar demais.
O seu ponto é que não poderíamos chegar tão longe como chegámos porque havia sinais de alerta.
Muito antes [do nível de endividamento a que chegámos] teria havido [sinais]. E a desvalorização cambial contribui também para a correcção do problema. Não é meramente anunciar que estamos mal. É, por esse facto, entrar na correcção do problema. A desgraça da Europa é, de facto, a Moeda Única. Não tanto por ser uma moeda europeia mas por ser tendencialmente única. E a desgraça de Portugal foi ter aderido à Moeda Única.
Entretanto passaram 20 anos.
Sim, desde que se começou o caminho. A política que tivemos de seguir a partir de 1992, de preparação para a Moeda Única, já era inadequada para nós.
Se a preparação começa em 1992, e se identificou Maastricht como um ponto em que as coisas começam irremediavelmente a resvalar, isso não coincide com a imagem dos anos 90 em Portugal. Parecia um tempo de tal modo heróico, de prosperidade, com a Expo 98, que custa a acreditar que o ovo da serpente estava lá a ser germinado.
[risos] Pois, para mim nunca foi. Olhando com atenção via-se muito bem o ovo da serpente. O endividamento externo estava a atingir níveis brutais. A partir do ano 2000, até um pouco antes, estávamos com deficit na balança de pagamentos na ordem dos três% do PIB. E estou convencido que, se não tem havido crise financeira geral, teríamos tido a nossa própria crise financeira. Não por causa do Estado, mas por causa da economia no seu conjunto. Muita gente pensou que a Europa acomodaria sempre este nosso desequilíbrio. Mas isso é contar com a tal solidariedade que não existe.
Estava a lembrar-me de uma entrevista que Vasco Vieira de Almeida deu ao Jornal de Negócios, em plena crise, em que dizia: “Ou caímos todos ou não cai nenhum”. Falava desse ideal de solidariedade que estava no imaginário colectivo.
Tenho uma visão um pouco mais céptica. Isso não é tanto pelo ideal de solidariedade. É com medo do efeito dominó. Caía um e os outros seriam arrastados, isso é verdade. Claro que a política foi desenvencilhar-se desse risco. Nem sequer estou a criticar os países com mais possibilidades e mais recursos.
Não?
Ponho-me na pele deles. Vamos supor que Portugal estava bem e tinha dinheiro; se aparecesse alguém a pedir-nos auxílio na Eslovénia, qual era a nossa atitude? Se as pessoas tiverem que pagar mais, o entusiasmo reduz-se rapidamente. Não é um problema dos alemães, é um problema de toda a gente.
Aí depende, de facto, de os considerarmos um irmão. E com isto voltamos à história inicial. Se é um irmão estamos dispostos a dar um rim.
Por isso é que acho que não somos irmãos. Um Estado tem a sua autonomia, deve ter boas relações com os outros, mas o modelo família não dá bom resultado. Se as famílias têm solidariedade, muitas vezes também têm zangas das piores. Os Estados devem ser tratados como Estados. As relações entre Estados devem ser de cooperação, de amizade, mas cada um com a sua autonomia. Quando a UE começa a entrar por domínios por onde não devia entrar, que têm a ver com a autonomia de cada Estado, está o caldo entornado.
Não engrossa o coro de pessoas que acham que a culpa disto tudo é da Alemanha, da sua memória curta. Que estamos a sentir na pele os efeitos da reunificação, e que esse foi o grande cisma da União Europeia.
Isso da reunificação é verdade. Alterou as relações de poder na Europa. Encaro a Alemanha como tendo a possibilidade de exercer o poder que exerceu. Se fosse alemão teria o mesmo tipo de estratégia.
O Presidente Mitterrand, em França, com medo que a Alemanha, após a reunificação, se virasse para Oeste e se desinteressasse da integração europeia, tentou barrar a Alemanha através da criação de uma moeda única. Os alemães disseram que só a aceitavam se fosse feita de acordo com aquilo que queriam.
Tendo o marco como modelo.
O Presidente Mitterrand aceitou, e os outros governos, tirando a Sra. Thatcher, que se pôs logo fora, também. Foi um erro fatal. A partir daí, a Alemanha, que com a reunificação se tornou num Estado claramente superior aos outros, começou a dominar a política monetária. Foi ganhando peso, obrigou a Europa a assinar o Tratado de Lisboa e o Tratado Orçamental. A Alemanha exerceu o poder que estava ao seu alcance. Fê-lo de forma legítima, não invadiu com exércitos. De que é que nos podemos queixar? Demos-lhe a oportunidade para isso.
Leu a entrevista que Philippe Legrain, o ex-assessor de Durão Barroso, deu há semanas ao Público? Dizia que está muito mal contada a história do resgate aos países periféricos. Serviu para salvar bancos alemães.
Exacto. A primeira coisa que a solidariedade fez foi afastar o efeito dominó reduzindo a exposição dos bancos alemães às dívidas mais problemáticas. Mas mais uma vez, não critico a Alemanha. Defendeu os seus interesses.
Há um erro muito grande nos europeístas extremistas, que é pensar que se pode criar uma Europa forte com Estados fracos. Não pode. A Europa só será forte se os Estados forem fortes, se tiverem autonomia para perseguir os seus interesses. O que é essencial na Europa é que o prosseguimento desses interesses se faça de uma forma equilibrada, que não haja domínio de uns sobre outros.
Os resultados eleitorais recentes, que levam cerca de 120 deputados de extrema-direita e eurocépticos ao Parlamento Europeu, são expressão disso?
A Europa está fraquíssima, em decadência clara, quer do ponto de vista económico, quer social, quer até político. Mas isso não é surpresa. Rompeu-se aqui um equilíbrio que assegurava a grande originalidade do processo de integração europeia.
Então, futurologia. Daqui a dez, 20 anos, como é que imagina que vamos olhar para estas eleições que expuseram a fragilidade da Europa?
Não vou fazer futurologia, mas vou dizer quais são os meus receios. Dificilmente a Europa se manterá. A degradação já é tal que é muito difícil a Europa voltar a beneficiar do ambiente de estabilidade. Se não garante a estabilidade, desagrega-se. Esse cenário é cada vez mais provável.
Seria muito mau a União Europeia desagregar-se. É diferente da Zona Euro, que é um cancro. Se ela se desagregar de forma controlada, óptimo.
É possível dissociar os dois movimentos?
Claro que sim. A Europa pode funcionar perfeitamente sem moeda única. Ou um grupo de países cria uma moeda comum porque acha que vale a pena.
Ainda vai a tempo? É como com os croquetes; uma vez que é carne picada não volta a ser bife inteiro.
Tem havido muitos casos em que o croquete voltou a ser bife inteiro. Muitos países tinham uma moeda comum e quando se desagregaram criaram moedas próprias.
Seria preciso garantir o quê, para isso?
Um regime de cooperação monetária a nível europeu. Mesmo assim estou bastante pessimista em relação ao futuro da União Europeia. Entrou-se num caminho que dificilmente é reversível. Pode haver factores-surpresa bem-vindos. Imagine que os juízes europeus se sentam à mesa e dizem: “Temos que fazer uma refundação disto porque já não funciona. Vamos retomar o espírito inicial da Comunidade Económica Europeia”. Se for assim, talvez haja esperança para a Europa. Da forma como as coisas estão, o cenário da desagregação é bastante plausível.
A médio prazo?
Sim. Um espaço que aceita que haja 40 ou 50% de desemprego jovem é um espaço sem futuro. Um espaço que aceita que os países devedores sejam protectorados dos países credores é um espaço sem futuro. A Europa transformou-se na antítese do que era a Europa anterior.
Como descreveria a Europa anterior?
Era um espaço de progresso, de cooperação em termos de igualdade, com harmonia entre os interesses comuns e os interesses nacionais. Tudo isso se rompeu. A Europa transformou-se – como digo no meu livro – num império pindérico, que nem sequer é império.
Temos uma Europa de fancaria?
Sim [risos]. Esta Europa, se se mantiver assim, já é um morto-vivo. É uma Europa de retrocesso, não é uma Europa de progresso. Ou há um grande golpe de rins e se reentra naquilo que foi o melhor da reintegração europeia, ou isto vai ser penoso. E esperemos que não dê origem a violências piores.
A relação entre a Alemanha e a Rússia, esses dois grandes blocos desde sempre na Europa, é fundamental para orientar as coisas num sentido ou noutro?
Pode dizer-se isso e o seu contrário, é tudo possível. Essa velha situação de conflito/cooperação (embora na maior parte das vezes tenha sido conflito): não gostava de ver o meu país envolvido nisso.
Como assim?
Se a Europa é para ser como tem sido nos últimos anos, impulsionada pelos interesses alemães, e se esses interesses implicam uma atitude de rivalidade em relação à Rússia, preferia que Portugal não estivesse metido nisso. Não temos vantagem nenhuma em metermo-nos em velhas contas a ajustar entre várias regiões do globo. Se a atitude entre a Alemanha e a Rússia for de cooperação e de benefício económico, isso só beneficiará a Europa.
Como vê a actuação da União Europeia em relação à Ucrânia?
Foi um desastre. Vimos a União Europeia a apoiar publicamente uma insurreição contra um governo legítimo. Podia ser corrupto ou não, o anterior presidente, mas a verdade é que a União Europeia estava a negociar com ele.
Era uma espécie de bomba a retardador. A Crimeia sempre foi russa, há 50 anos é que foi oferecida de presente à Ucrânia.
Poder-se-á dizer que foi a negociação que foi preciso fazer para manter as armas de destruição maciça dentro, para evitar que ficassem dispersas por aí, que [foi isso que] obrigou a essa atribuição da Crimeia à Ucrânia. Poder-se-á dizer que tudo isso não estava estável, mas a solução não era apoiar uma insurreição, ainda por cima de grupos muito duvidosos. Foi um erro gravíssimo da União Europeia.
Indo mais ao coração dos seus livros, e dizendo numa formulação provocadora: aquilo não nos atira para um “orgulhosamente sós”?
Não vejo porquê. As pessoas confundem autonomia com “orgulhosamente sós”. É muito português pensar que precisamos sempre de um paizinho, e que se não temos um paizinho ou uma mãezinha estamos sós. Podemos exercer a nossa autonomia, de país que já tem longos séculos de autonomia, cooperando com outros países na gestão de interesses comuns. Por isso fui e sou a favor da participação de Portugal na União Europeia.
Se não fazer parte da União Europeia fosse estar “orgulhosamente sós”, haveria 165 países no mundo “orgulhosamente sós”. Isso é um disparate federalista.
Um disparate federalista?
O federalismo é uma teoria perigosa na Europa porque se apoia num mito (o da solidariedade). Tentar forçar uma realidade que não existe é do pior que se pode fazer em política.
Gostei de o ouvir dizer “política”. Temos estado a falar de coisas que não são estritamente política. Nos últimos anos, a política tem sido engolida pela economia e pelas finanças. Desapareceu do vocabulário dos líderes europeus.
Claro. Alguns sabem muito bem o que é a política e exercem-na. A Alemanha exerce uma política e tem ideias muito claras sobre os seus objectivos políticos. Depois usa todos os instrumentos que estão ao seu dispor, incluindo os económicos, financeiros e monetários, para isso.
Portugal não é assim porque nunca tivemos uma política decente em relação à Europa. A nossa prioridade foi sempre sacar o mais possível dinheiro comunitário. A enorme leviandade com que cedemos a nossa soberania tornou especialmente antipática para mim a classe política nas suas relações com a Europa. A política, neste contexto, não é nada, mas a culpa é nossa, não é da realidade.
Esse retrato que traça é muito pouco simpático para Portugal.
Não, não, para as elites políticas portuguesas. Vistas em perspectiva, as nossas relações com a Europa têm sido vergonhosas. Uma subordinação completa. Sempre com dinheiros de fundos estruturais e um bloqueio da discussão interna, impedindo referendos e debates aprofundados. Admite-se que tenhamos cedido a soberania, nos mais diversos domínios, sem uma única consulta popular?
Especifique quais são os domínios em que cedemos a nossa soberania.
O domínio monetário foi o primeiro, que é essencial. O domínio orçamental, ficámos bastante reduzidos. O domínio, muito importante, da unanimidade das decisões na União Europeia, que com o Tratado de Lisboa foi reduzido a quase nada. Isto significa que pelo menos teoricamente podíamos vetar decisões que agora não podemos. O primado do direito comunitário sobre o direito nacional, inclusive a Constituição.
A democracia representativa existe para os nossos representantes exercerem o poder em nosso nome. Não existe para cederem o poder a outros. Quando é assim, tem que haver referendos.
Como é que íamos manter a prerrogativa de vetar, de dizer não, se, basicamente, não crescemos desde 1995?
Não crescemos porque em grande parte cedemos a nossa soberania monetária. Porque adoptámos uma moeda que não estava ajustada à nossa estrutura produtiva. Mas o programa de ajustamento financeiro não seria o que foi se tivéssemos a possibilidade de vetar decisões comunitárias.
Quando olha para a troika, olha para o FMI, apesar de tudo, como nosso amigo e a Europa como a má da fita?
O grande engano é que essas duas entidades nos estão a fazer um favor. Não estão. Estão a defender os credores. O que é legítimo para o FMI. Já não é legítimo para a Comissão Europeia. A Comissão Europeia tem como objectivo defender os tratados. É inaceitável que a Comissão Europeia tenha defendido coisas que vão contra os tratados. O FMI é uma entidade que vela pela sustentabilidade financeira mundial e nisso tem que [cuidar] que os devedores paguem aos credores.
No início deste ano, veio a Portugal uma delegação do Parlamento Europeu fiscalizar a acção da Comissão.
E fez um relatório bastante crítico, e com justiça. Os tratados dizem que a legislação laboral é da competência de cada Estado. Nunca a Comissão Europeia deveria pressionar para alterar legislações laborais. Esta Comissão Europeia foi um desastre do ponto de vista económico.
Parêntesis. Se Durão se candidatar à presidência, como tudo indica, pensa que pode ser penalizado pela sua acção enquanto presidente da Comissão?
Penso que sim. É difícil largar esse lastro. Embora a responsabilidade seja mais do comissário para os assuntos económicos e financeiros, o Olli Rhen, Durão Barroso era o presidente da Comissão. Se o presidente não concorda com o que está a ser feito, tem sempre a possibilidade de se demitir e dizer porque é que se demitiu. Ele não fez isso e ficou ligado a estes programas de austeridade, que foram muito nocivos. Não só para Portugal, para a Europa.
Se exceptuarmos o Governo, não vejo ninguém de garrafa de champanhe na mão a celebrar a famosa saída limpa da Troika.
Não vai alterar nada de fundamental [a saída formal]. Vamos ficar sujeitos às regras do Tratado Orçamental, que não podemos cumprir.
Não podemos cumprir?
Não temos margem para cumprir. O que nos é exigido é impossível de cumprir. Reduzirmos o deficit a quase zero, até é possível, desde que não seja amanhã. Mas reduzir a dívida pública para 60% do PIB em 20 anos é inexequível. Isto põe o país numa situação falsa. Um país nunca se deve comprometer com coisas que não pode cumprir. Segundo o Tratado vamos ter que fazer uma parceria – gosto do nome [risos] – com a Comissão Europeia para ela nos impor um conjunto de políticas económicas durante 20 anos.
Ou seja, vamos continuar atados.
Não vamos. Antes disso alguma coisa vai suceder. Ninguém aceita 20 anos de austeridade, que é o que propõe o Tratado Orçamental. Entretanto a Europa ou dá uma grande volta ou desaparece.
Um cataclismo?
Não é o mais provável, mas é possível. Se houver uma nova crise financeira mundial, a Europa não tem margem para se ajustar. Não pode subir mais o desemprego, já não pode reduzir mais os rendimentos.
2008 pode repetir-se e isso pode desencadear…
... É como uma zona sísmica. Sabemos que há sismos, não sabemos é quando nem com que intensidade. O que sabemos é que haverá uma crise financeira, no prazo de cinco, seis, sete anos. Se for com a intensidade da de 2007, ou até um pouco inferior, a Europa não tem capacidade para se ajustar. Todos os cartuchos foram queimados. Países como Portugal, Grécia, Espanha, França, estão já com a sua capacidade de manobra muito restringida.
Não é nada optimista.
Por que é que haveria de ser? Quando vejo um projecto que não tem viabilidade, sou pessimista. Não sou o único. Os europeístas dizem o mesmo. Não vejo capacidade a nível europeu para refundar a Europa em bases equilibradas e seguras. Como é que posso estar optimista?
Esses europeístas não têm títulos como Porque Devemos Sair do Euro, ou Em Defesa da Independência Nacional.
Não têm títulos de nada, não têm solução nenhuma. Têm desejos. Desejos de solidariedade, de acabarem os egoísmos nacionais. Mas isso não é política, é expressão de sentimentos. Políticas é apresentar soluções concretas e realizáveis.
E como vamos viver até lá? Numa frase do Império Romano, “panis et circenses”. O povo, quem vota, precisa de pão e circo.
Circo, vão tê-lo, isso não falta. Vão precisar de mais pão. E isso a Europa não nos vai dar, nem Portugal dentro dessa Europa. O que vem a seguir não sei, mas antes dos 20 anos haverá acontecimentos.
Precisamos de sonho, também. De qualquer coisa que dá um sentido, um horizonte futuro. Onde é que nos agarramos?
É voltar a ter autonomia política, é o sonho. A autonomia política é essencial para o nosso desenvolvimento, não é por qualquer mito serôdio, é porque é a única forma de termos instrumentos para nos desenvolvermos. Senão seremos, na melhor das hipóteses, abastecedores de mão-de-obra para a Europa.
Defende a saída do Euro...
As pessoas têm medo do que acontecerá com a saída. Se fosse possível sair sem problemas, uma enorme maioria aceitaria sair.
Isso seria possível rasgando o papel e dizendo: “Não honramos os nossos compromissos, não pagamos”?
Possível talvez fosse, não era desejável. A saída deve ser negociada e controlada. Não pagar o que devemos só em desespero de causa. Mas temos mais capacidade de pagar o que devemos fora do Euro do que dentro do Euro.
Segunda coisa, que exige o tal consenso dos partidos: o país não aceitar mais cedências de soberania a longo prazo.
Terceira: temos que reconstruir o Estado, começando pela administração pública. A administração pública tem vindo a ser destruída e a debilitar-se e isso é essencial para que o Estado possa ter autonomia de decisão.
O que sugere pressupõe uma confiança nos políticos. Estamos, ao contrário, num período de extremo descrédito em relação à classe política.
Sim, mas se houver políticos com uma agenda deste tipo, ganharão a confiança. O problema dos políticos é que hoje não se distinguem, a não ser nas promessas. Não oiço em Portugal, nos chamados partidos do arco do poder, críticas às instituições comunitárias. Como é que alguém pode ter confiança nesta classe política? As pessoas não são parvas, percebem que políticos assim não têm capacidade nenhuma para que o país tenha vontade própria.
Seria preciso que saíssem de fora dos aparelhos partidários, das jotas.
Talvez, mas há gente boa em todos os partidos. Não é preciso esperar que venha um salvador de outros lados quaisquer. Tenho notado isso, ao discutir as minhas teses com algumas pessoas de partidos.
Essas não aparecem com vozes dissonantes da do partido.
Não, mas um dia poderão aparecer.
Então não importa nada esta crise no PS, o resultado das legislativas daqui a um ano, se nada de estrutural mudar.
Com certeza. Os partidos socialistas estão numa posição muito difícil na Europa. Não é por acaso que grande parte deles está a caminho da irrelevância. Aprovaram um conjunto de coisas que está contra a essência de um partido socialista.
Como é que sente que os seus livros foram recebidos, sobretudo o Porque Devemos Sair do Euro? Inicialmente era uma voz no deserto...
O livro teve um impacto internacional, apesar de não ter sido traduzido.
Como?
Através do Wall Street Journal e de outros órgão de comunicação social. O ambiente nos média começou a mudar. Hoje já se podem pôr em causa as opções europeias, incluindo a protecção da Zona Euro, sem se ser considerado um anormal.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014
Esta entrevista foi uma maneira de olhar para “os dias e os anos” do projecto europeu (para ir ao encontro de um livro de um dos interlocutores). Foi uma maneira de interrogar Quo Vadis, Europa, nem uma semana depois das eleições europeias.
Marcello Duarte Mathias nasceu em 1938, escreveu, além dos muitos famosos diários, uma preciosa biografia de Camus. Francisco Seixas da Costa nasceu em 1948. Profundo conhecedor das questões europeias, foi, entre outros cargos,
secretário de Estado dos Assuntos Europeus. Tem um blogue seguido sobretudo por políticos, diplomatas, empresários, o Duas ou Três Coisas.
Os dois diplomatas dissecaram problemas, concordaram, discordaram, enunciaram soluções, e olharam para a política interna e o efeito que os resultados eleitorais tem nela. A entrevista aconteceu num hotel de Lisboa, segunda-feira à tarde, antes de António Costa de mostrar “naturalmente disponível” para liderar o PS. Mas quase nada ficou desactualizado. O foco era mais amplo e apontava para o mapa europeu.
A política é a grande derrotada das eleições europeias?
Marcello Duarte Mathias – Não. A política é a grande vencedora das eleições de ontem. O mal da União Europeia (UE), desde que nasceu, um dos grandes defeitos da filosofia do Jean Monet, foi ter entregue a construção comunitária a peritos. Os peritos nunca foram governo desde que a Humanidade é Humanidade. Há demagogos, há profetas, há loucos, há sacerdotes. Hoje somos governados por peritos. O resultado está à vista.
Peritos?
MDM – A tecnocracia, que é uma forma de traduzir em equações matemáticas [a realidade] e esquecer o dado fundamental, que é a dimensão humana, em qualquer situação, tem sido o mal da UE.
Há um outro problema: a UE construiu-se no corroer das atribuições do Estado-nação. Não se pode construir um edifício com as características da UE com base no Estado-nação. A ironia de tudo isto é que passados 50 anos sobre este edifício, que é muitíssimo mais vulnerável do que se julga, volta o Estado-nação, a legitimidade nacional do Estado-nação – que é, a meu ver, insuperável. O Tony Judt fez um livro sobre a Europa no qual diz isto mesmo: o quadro é o do Estado-nação onde as pessoas se sentem em casa.
Vamos analisar alguns desses pontos, por exemplo quando falarmos da vitória das forças extremistas, de esquerda e de direita.
MDM – Todas dizem isto.
Para já, queria ouvir Seixas da Costa sobre as eleições. Retomo a pergunta inicial: a derrotada foi a política? A política foi engolida pela economia, pela crise?
Francisco Seixas da Costa – Tudo o que seja a afirmação da vontade cívica, é uma vitória da política. Uma afirmação dispersa, contraditória, incoerente. Esta incoerência é a prova provada de que não foi possível construir nesta Europa (sobre a qual não tenho a ideia que o Marcello tem) um modelo representativo e legítimo da vontade das populações. A Europa parte de um momento de medo.
Medo no quadro do pós Segunda Guerra.
FSC – Medo da repetição do fenómeno da Segunda Guerra, medo do império ditatorial soviético que se projectava sobre um conjunto de países. Tudo isto acabou por ser um fermento da vontade colectiva de cooperação. Durante muito tempo funcionou de maneira tecnocrática. As coisas mudam a partir de Maastricht. Há uma crise entre as instituições criadas e a legitimidade que estas teriam para gerir um processo colectivo desta dimensão. Há uma contradição entre uma Europa constituída por Estados-nação muito antigos, com uma leitura da sua integração no quadro internacional muito próprio, e um modelo europeu que tende a tornar menos relevantes algumas das dinâmicas nacionais.
Mas esse modelo funcionou, apesar das tensões e contradições.
FSC – Sim. Estava ligado a uma imagem de sucesso.
Era também um tempo de prosperidade.
FSC – Havia prosperidade, havia segurança. Agora este modelo não é visto pelos cidadãos como aquele que garante uma resposta aos seus problemas. Passa a ser olhado mais como a causa das suas preocupações e menos como a solução. O que se passou nestas eleições representa isto. Representa outra coisa: havendo 28 opiniões mobilizadas por agendas diferentes, as reacções são diferentes. Não podemos comparar os resultados em França e na Alemanha.
Os países centrais da União Europeu.
FSC – Também não podemos comparar o que se passou na Grécia com o que se passou em Portugal. E há o caso britânico. Há um problema delicado que tem que ver com a legitimidade.
Outro derrotado de domingo: a legitimidade?
FSC – Acho que sim. Os eleitos nacionais, particularmente nos países com menos poder, não são vistos pelos eleitores como suficientemente representativos e com influência no projecto global. Há muita gente que diz: “Tanto me faz”.
MDM – Concordo com o que disse o Francisco. Mas há um aspecto que ele esqueceu ou omitiu. A Europa de Bruxelas é uma ideia, um projecto, uma ambição francesa, a que se juntou a Alemanha depois da Guerra, com a necessidade que a Alemanha tinha de legitimidade internacional.
Numa situação profundamente desigual, os dois países.
MDM – Desigual. A França fazia as honras da casa, a Alemanha era o convidado. Pouco a pouco, ainda no tempo da Alemanha Federal, a situação foi-se alterando. Quem dava cartas era a Alemanha, mas quem aparecia a apresentar [medidas, opções], quem aparecia como dona do processo, era a França. Com a reunificação dá-se uma alteração completa. A França perde os seus atributos, a sua valia. O centro de gravidade muda. A natureza da UE muda. Trouxe um recorte do Le Monde da semana passada que acho extraordinário. “O projecto europeu deixou de ser maioritário em França”.
O sentido desse artigo é aquele que as eleições confirmam, nomeadamente com a vitória de Le Pen.
MDM – A França perdeu a Europa. A Europa era vista pelos franceses (por todos eles, De Gaulle, Giscard d’Estaing, Chirac, Schuman) como um prolongamento da sua influência. A França era a Europa, a Europa era a França. Deixou de ser.
Durante um período ainda se pensou nesta parelha, Paris-Berlim. Hoje em dia, Berlim é o centro.
É quem tem dinheiro.
FSC – A França é um poder em declínio. O último momento desta coreografia do poder franco-alemão (curiosamente a expressão “eixo franco-alemão” só é ouvida em Paris, não é ouvida em Berlim ou Bona) foi o de Sarkozy-Merkel. Apareciam lado a lado. Na realidade, não estavam. Ele estava no bolso dela.
MDM – Esse foi o último tempo em que se disfarçou a realidade.
FSC – Com a queda do Sarkozy, a fragilidade da França no projecto europeu tornou-se mais clara.
E tornou-se mais clara com um líder fraco como é Hollande.
FSC – Os líderes são sempre a emanação do estado das coisas. Hollande é uma emanação da França actual, da importância que a França tem no quadro europeu. Tenho esperança que a França vá readquirir uma certa dinâmica, mas de momento a situação é dramática.
É um país rico em aflição. Um país rico que tem uma taxa de desemprego de 10%.
FSC – Tem uma ambição que não está ao nível das suas capacidades de hoje.
MDM – Schroeder dizia que a França viaja em primeira classe com bilhete de segunda. [riso]
FSC – A Merkel pensa isto mas não diz.
MDM – A inversão [de estatuto entre os dois países] começou com o Tratado de Nice.
FSC – Estive em Nice. Para muitos franceses, foi uma humilhação.
Para que fique claro: é sobretudo o dinheiro que decide este jogo de forças? O Tratado do Eliseu, que sela a amizade da França e da Alemanha, foi assinado em 1963. Tem 50 anos. Parece ontem. Foi erguido sobre a força das ideias, os valores humanistas que nos fazem reconhecer como sendo europeus. Tudo parece esboroado.
MDM – O Tratado do Eliseu era De Gaulle a convidar Adenauer a construir a Europa do futuro. Depois o parlamento alemão introduziu um preâmbulo em que afirmava a sua aliança com Washington. Ou seja, anulou a ideia que estava subjacente [ao tratado].
E então, o que decide por fim o equilíbrio de forças?
FSC – Hoje tem a ver com o bem estar, a segurança. Segurança no quotidiano. Segurança económica. Segurança face ao futuro. Segurança face ao estrangeiro, à diferença. Vivemos no desaparecimento da segurança do amanhã. A sociedade previsível, antiga, desapareceu. Em França, isso está a ter um efeito dramático.
MDM – É um sentimento de orfandade. A Europa, que era o tecto que tinham inventado, deixou de existir. A relação franco-alemã está e estará afectada. A própria nacionalidade já não oferece garantias. Esta orfandade explica o voto não só em França mas em Inglaterra, Dinamarca. A imigração veio acentuar [o sentimento que tinham]. O francês já não está em sua casa quando está no seu país. Daí a Frente Nacional e [os partidos congéneres].
Na Alemanha, a vitória foi de Merkel. Escassa, mas vitória.
MDM – Como a Alemanha dirige este processo, está bem consigo mesma. Em França é um problema de ordem psicológica, histórica e política. Mais: muitas destas franjas de estrangeiros não se querem integrar. É um problema muito difícil de resolver. Marine Le Pen mostrou num debate uma imagem de imigrantes a trepar por arames farpados, em Ceuta. É uma imagem eloquente da desgraça do terceiro mundo e da ânsia que têm de entrar [na Europa].
FSC – A imigração é uma questão que a Europa nunca discutiu verdadeiramente.
Porquê?
FSC – Cada país europeu tem a sua proximidade, geográfica, cultural. Cada país trouxe para a Europa a sua história migratória. E gere-a de maneira diferente. Mas gere-a em conjunto. Schengen acaba por criar uma fronteira à volta de tudo isto, que é um somatório desta diversidade, entre si contraditória.
MDM – O voluntarismo, quando não está assente em alicerces sólidos, torna-se uma esquizofrenia.
Toma-se como igual o que é, sob vários pontos de vista, económico para começar, desigual. Esse é um dos grandes espinhos desta construção europeia? Não se atendeu às histórias diferentes, às velocidades diferentes.
MDM – Sarkozy vem agora explicar que é preciso um novo relacionamento franco-alemão, que é preciso um Schengen novo, e que (voltámos ao que eu dizia, à legitimidade do Estado-nação) é preciso retirar grande parte das atribuições concedidas à Comissão e devolvê-las aos estados membros.
FSC – Posso ser mal interpretado, mas quero dizer isto. O último alargamento teve um efeito de desigualização profundíssimo. Alguma Europa olha para Bruxelas [com desconfiança]. Uma Europa que tem uma gratidão maior a Washington do que a Bruxelas, que percebe que a sua segurança significa NATO/EUA; e não é a um grupo de trabalho em Bruxelas que entrega o seu futuro.
MDM – Também aí [nos sucessivos alargamentos] houve precipitação, excesso de voluntarismo.
FSC – Mas era inevitável. Houve uma janela de oportunidade [resultante da] fragilidade em Moscovo que permitiu fazer os alargamentos.
Teve efeitos sérios no funcionamento da máquina. Que se sentiram de forma aguda, por exemplo, nos anos da crise.
FSC – Sim, estamos a pagá-los. O Marcello apontou a proposta de Sarkozy. É um modelo quase obsceno. A Comissão perde força com o Tratado de Lisboa, o Conselho Europeu ganha espaço. Sarkozy propõe um regresso puro, simples, afirmado ao directório. A meu ver, é altamente preocupante. Independentemente de poder significar um certo respeito pelos Estados-nação, é o fim do projecto europeu.
Voltemos atrás e pensemos não neste projecto europeu, com as suas redefinições e alargamentos, mas naquele que se desenhou nos anos subsequentes à Guerra. Não é esta velha ideia de Europa que está a ruir?
MDM – Há uma fase da construção europeia, que é a fase da segurança, da União Soviética, da divisão da Alemanha, onde as coisas eram mais simples. Era também mais fácil recorrer a esses grandes princípios humanistas. Depois era preciso pôr o ideal europeu na prática. Concretizá-lo. Isso é que muitas vezes choca com a realidade, choca com a ambição dos países e com o peso respectivo dos países.
Qual é o ponto em que estamos, desembocámos onde?
MDM – A uma Europa na mão de eurocratas. Quando a França e os Países Baixos votaram o Tratado Constitucional em 2005, a opinião pública foi chamada a dar uma opinião. Com razão ou sem ela, votou contra. O que é que fez Sarkozy?, o que é que fazem os políticos? Arranjou uma parte gaga e fez votar o tratado no parlamento. Isto vem desvalorizar a democracia, e dá às pessoas um desalento, o sentimento de que isto está na mão de meia dúzia de euroburocratas que decidem tudo. A Europa de Bruxelas tresmalhou-se.
Quando?
MDM – Esse desvio é a unificação alemã.
Antes de se tresmalhar, tinha um belo ideal humanista. E a queda do muro tem 25 anos. Estamos a reajustar-nos em função dessa fractura?
MDM – Sim. É curioso ver que grandes homens, como Mitterrand, que passaram por ser maquiavélicos, inventaram a história do Euro para acorrentar os alemães, e é exactamente o contrário [o que temos]. As condições são impostas pelos alemães.
FSC – Temos de ver como saímos daqui. A minha dúvida é se temos líderes europeus capazes de fazer uma pausa para reflectir.
MDM – [É preciso] uma revolução cultural.
Como é que ela se opera? De onde saem esses líderes que todos querem seguir?
FSC – Tem de haver um acto refundacional. Mas pergunto-me se este sobressalto não terá de sair da sociedade civil, de um grande debate sobre tudo isto. Um debate que permite salvaguardar o essencial e ter um sentido realista. Lembro-me da expressão “socialismo possibilista”...
Socialismo possibilista?
FSC – Existiu no século XIX, utilizava-se essa expressão. Pergunto-me se não deverá haver um europeísmo possibilista. Temos de reflectir sobre aquilo em que podemos estar de acordo e ter uma discussão sobre se a Europa não terá de caminhar por formas de agregação de países que não incluam todos. Isto não é conveniente para Portugal porque somos um país já de si marginal, estrategicamente, economicamente.
Portugal é um dos países mais desiguais e pobres da UE.
FSC – As opções têm de se fazer em função da nossa capacidade de ir a jogo. Mas penso que esta é a única saída para a Europa.
Faz a apologia de uma Europa a duas velocidades ou mesmo com duas naturezas distintas.
MDM – Várias velocidades.
FSC – Já temos isso em relação ao Euro, a Schengen. O problema é saber se o modelo de gestão global é compatível com esta diferenciação. A questão que se põe é: quem é que dirige estes vários processos? Os vários processos podem não ser harmónicos.
MDM – No fundo, são vários pequenos directórios.
FSC – Terá a Comissão Europeia legitimidade para gerir um processo em que não estão todos os países? E qual é o papel do Parlamento Europeu, em que estão todos os países, na legitimação democrática desses processos?
A resposta a muitas destas questões será muito diferente se tivermos à frente da Comissão Jean-Claude Juncker ou Martin Schulz?
MDM – Não creio. O que é capaz é de sair outra solução da cartola da senhora Merkel.
FSC – O próximo presidente da CE pode sair de fora destas duas figuras.
MDM – A Europa, a entidade Europa, perdeu peso nestas eleições. Não sei quem será o futuro presidente da Comissão, qual será o papel do parlamento... Lemos o livro do Vasco Graça Moura (“A Identidade Cultural Europeia”, FFMS) que diz horrores do parlamento. A irrelevância, a inoperância do parlamento... Tem-se a impressão de que isto chegou ao fim.
E qual é a saída? Isto vai acabar como? Como o império austro-húngaro, de forma súbita, ou vai acabar como a União Soviética, desagregando-se? O Francisco tem razão, é preciso refundar. Mas quem é que tem coragem para o fazer? Quem são as pessoas? Voltamos ao mesmo: é a França e a Alemanha?
Precisamos de um momento extremo para impor uma solução? Ou continuar-se-á na agonia à espera de uma solução?
FSC – É mais difícil encontrar uma vontade comum a 28.
MDM – Não sei se os 28 têm assim tanta influência.
FSC – Ah, mas os parlamentos têm de votar. A última chantagem feita sobre a opinião pública foi o Tratado Orçamental, num contexto de crise.
Segundo uma sondagem do ICS divulgada este ano, a Europa deixou de ser olhada como uma coisa benigna. Pedro Magalhães disse em entrevista a este jornal: “Não éramos anti-Europa porque a Europa era uma coisa bestial, de pessoas esclarecidas, que nos mandava dinheiro. Há seis, sete anos, 80% dos portugueses diziam que confiavam muito na Comissão Europeia. Hoje em dia são 20%.” Isto quer dizer qualquer coisa. A abstenção, que é a maior de sempre, ilustra esta distância, também.
MDM – A nossa Marine Le Pen é abstenção.
Foi de cerca de 66%.
FSC – Estamos na média europeia.
MDM – Fizemos muito bem em aderir à CEE. Mas lemos um livro como o do Medeiros Ferreira, “Não há mapa cor de rosa” (Edições 70): é de um pessimismo em relação à posição de Portugal na Europa, ao futuro da Europa... A certa altura conta uma conversa que teve com o Victor Cunha Rego, que lhe diz: “Ó José, se sentires amanhã que vamos pelo mau caminho tens obrigação de levantar a voz e dizê-lo em público”. A impressão que fica (o livro de Medeiros Ferreira e de Graça Moura são dois testamentos) é a de uma total desilusão. E é um grito de alarme.
Devo dizer que sempre me deixou perplexo o desejo de estar no pelotão da frente. Em Schengen, no Euro. Não sei se esta filosofia está certa. Hoje, o sentimento – que nem é de desencanto: é de cólera – em relação à UE resulta disto tudo, de um excesso de voluntarismo e de uma coisa que é, infelizmente, característica desta classe política: um novo-riquismo europeísta.
Como assim?
MDM – A nossa classe política, toda ela, belisca-se. Entrámos na Europa: não acreditámos. Entrámos no clube dos grandes, dos bons. Temos um complexo de inferioridade. E daí a fuga para a frente, o querer ser mais papista do que o Papa.
Concorda?
FSC – Concordo em parte.
MDM – Sou sempre um pouco excessivo, o que é bom! [riso]
FSC – Nós, portugueses, na orfandade em que ficámos depois da perda do império colonial, encontrámos na Europa uma resposta para a democracia e desenvolvimento.
MDM – Uma âncora.
FSC – Não fomos à procura do Tratado de Roma. Isto é, a Europa da segurança, contra o medo. A nossa Europa era um choque de modernidade, de abertura de fronteiras, uma certa prosperidade, no bolso e na paisagem.
Essa imagem durou enquanto houve dinheiro.
FSC – Sim. A Europa era um clube de ricos com meia dúzia de pobres. Agora a Europa é um clube com muitos pobres e poucos ricos e em que os ricos deixaram de ser solidários. Esta Europa abandonou o discurso “caritativo” que fazia parte do seu DNA e passa a reagir em função de interesses imediatos.
Ou seja, a alteração no modo como se vê a Europa tem muito que ver com factores materiais.
FSC – Tem. Nunca fomos uns europeístas convictos na lógica do Monet e do Schuman. E não tínhamos medo de Estaline. Vivíamos num mundo diferente.
Uma boa parte do eleitorado votou em função de questões domésticas, e não especificamente a pensar nos programas políticos dos principais candidatos. Na campanha falou-se mais da Troika do que do projecto europeu. Os resultados foram uma semi-coça ao PS? [Nota: esta entrevista é feita na segunda-feira, antes de António Costa anunciar que vai disputar a liderança do PS]
MDM – Houve dois vencedores: o Partido Comunista e o Marinho e Pinto. Foi o primeiro passo para a sua candidatura à presidência da República. Surgiu um novo personagem na paisagem portuguesa. Tem corpanzil, truculência verbal, uma forma de autenticidade. Suponho que se situa no centro-esquerda. O vencedor aritmeticamente foi o PS. Dada a situação difícil que é a nossa, dada a severidade das medidas que têm vindo a penalizar a população, dada a falta de jeito para comunicar deste Governo, acho notável que o PSD/CDS tenha conseguido um resultado razoável.
Considera o resultado razoável?
FSC – O PSD e CDS obtêm juntos 28%.
MDM – Esperava-se pior.
FSC – Ninguém esperou muito pior do que isto. Isto significa que o PSD terá 21 ou 22% e o CDS 6 ou 7%. É verdade que o voto de protesto não foi capitalizado de uma forma esmagadora (longe disso) pelo PS. Foi dividido pelo PC e pelo Marinho e Pinto. (Conheço bem Marinho e Pinto, foi meu colega de liceu em Vila Real.) Ele representa um mal estar na política portuguesa. Tem um discurso que não é populista.
Não é populista porquê?
FSC – É mais justicialista. De denúncia das questões da justiça, que toda a gente considera um cancro, e da corrupção.
MDM – E não é o [discurso] de um tecnocrata.
Não pode ser olhado como um Beppe Grillo português?
FSC – Não, de maneira nenhuma. O seu discurso não é anti-partidos. Pode pôr em causa dinâmicas do sistema, mas é republicano e democrata. Tem um discurso de centro-esquerda que pode evoluir e agregar mais pessoas. Esta ida para o PE é um degrau. Penso que tem a ambição de ser candidato à presidência da República.
Seixas da Costa é próximo do PS. Considera que estes resultados foram uma semi-coça ao PS?
FSC – O PS não conseguiu capitalizar a seu favor o descontentamento. Que é profundo e está entre os 28% que votaram na coligação e os restantes que se expressaram. Esta é uma discussão que o PS tem de ter consigo próprio, no sentido de perceber o que é que falhou. Estive ligado ao Novo Rumo. Apresentámos um conjunto de medidas que prenunciavam um programa de governo. Manifestamente isso não colheu (espero que ainda) no eleitorado português. O PS tem de pensar porque é que não consegue derrubar esta barreira criada na opinião pública e que nas palavras da senhora Thatcher se chama TINA: There is no alternative.
MDM – [Se nada mudar], nenhum dos partidos [PS e PSD] vai ter maioria absoluta nas legislativas de 2015.
FSC – Tenho muita pena, e vou dizer isto com a liberdade que...
MDM – Você veja lá... Vai ser ministro dos Negócios Estrangeiros, não pode dizer asneira... [riso]
FSC – Não serei.
Ainda se vai arrepender do que acaba de dizer.
FSC – Não. Não estou disponível e não me parece que a situação venha a ocorrer. Queria dizer que este é um momento que exige da sociedade civil que seja ela a avançar com um projecto de consenso. A capacidade de diálogo dos dois partidos não dá grandes esperanças de que seja possível esse consenso.
MDM – O drama português é que não temos sociedade civil. Parece-me evidente que depois das eleições do próximo ano terá de haver um acordo sobre aquilo que é essencial para o país.
A sociedade civil é fraca e cresce o ódio aos partidos. Como se todos os políticos fizessem parte de uma associação pouco recomendável e o exercício de cargos públicos deixasse nódoa.
MDM – Concordo. O drama desta abstenção é saber se ela é resultado conjuntural ou se traduz um sentimento, mais grave e gravoso, de desconfiança ou desapego ao processo democrático. Julgo que há as duas coisas.
Em relação à Europa, podia ter mudado muita coisa ou esperava-se que tudo ficasse mais ou menos na mesma?
MDM – A mensagem na Dinamarca, Inglaterra, França, Holanda, dos flamengos da Bélgica é a de um voto declaradamente anti-europeu. “Nós não queremos esta Europa”.
Vão ser 120 ou 130 deputados a dizer isso.
FSC – Mas esses não têm um denominador comum. Não podemos juntar a extrema-direita com os eurocépticos. Meter tudo no mesmo barco é injusto.
MDM – Por uma razão ou outra, o que dizem é que isto não serve. Descarrilou. Na prática, muda muito pouco. Muda internamente. Muda a influência dos partidos na Grécia, na França.
FSC – É um barómetro do que aí vem.
MDM – É. E torna difícil aos partidos tomar medidas favoráveis à Europa depois de o eleitorado ter reagido desta forma. Os governos ficam um pouco reféns deste acto eleitoral.
Regressou há um ano de Paris, onde foi embaixador. Como vê os resultados em França?
FSC – Fiquei abalado com os resultados. Não é impunemente que o Frente Nacional é o partido mais votado num país com a importância da França. Faz-me pensar nos erros que os partidos mais democráticos cometeram. Preocupa-me a solidariedade europeia se penso no que se passou nestas eleições.
MDM – A grande perdedora é a Europa.
FSC – Isto é um regresso a um certo nacionalismo de interesses. O discurso grandiloquente, de entusiasmo pela Europa...
MDM – ... já não dá.
FSC – É preciso discutir as questões da imigração de forma clara e descomplexada. Olhar para aquilo que preocupou as pessoas, para as inseguranças que levaram a este resultado.
Insistiu na questão da segurança nesta entrevista. Segurança, ou falta dela, para quem olha para o futuro, por exemplo.
FSC – Pensemos num reformado: um contrato privado, tem mais poder (porque está tutelado pelos tribunais) do que um contrato com o Estado.
MDM – Por toda a Europa é assim. Aqui talvez seja pior. Mas não temos um problema que esses países têm e que é o da identidade. Nós, portugueses, temos dificuldade em perceber aquilo que descartamos como sendo um discurso xenófobo, racista, nazi. Em 1957 (helàs, sou muito velho, em 57 já era gente...) cheguei a Inglaterra e vi grandes cartazes que diziam: “Keep Britain white”. É sintomático. E é impensável em Portugal hoje ou há 150 anos ou há 300 anos.
FSC – Felizmente.
MDM – Felizmente. Em 1500, Afonso de Albuquerque dizia aos seus homens para contrair matrimónio com as indígenas. O império britânico faz o contrário séculos depois. O senhor [Nigel] Farage, a senhora Le Pen são também o resultado desta mentalidade. A impressão que têm é que a sua identidade está ameaçada. Nós não temos isso e não percebemos o que nesses países é uma verdadeira angústia.
FSC – A tragédia é que nesses países ligam-se essas questões com as da crise.
Coincidiram muito no que disseram. Escolhi um embaixador de esquerda e um de direita...
MDM – Não há embaixadores de esquerda e de direita. Há embaixadores. Temos uma sensibilidade talvez diferente em relação a algumas coisas.
FSC - Tive 21 ministros dos Negócios Estrangeiros durante toda a minha carreira. Ajuda-nos a criar uma linha comum. Costumo dizer que Portugal não tem política externa: tem uma diplomacia reiterada.
O que é que vos separa, mais do que tudo?
MDM – Eu dou grande importância ao Estado-nação. Não há legitimidade além da do Estado-nação. O que não quer dizer que não se possa cooperar. Portanto sou muito pouco europeísta. O que se passou nas eleições vem confirmar o que penso. Embandeirámos em arco com a Europa, nomeadamente em Portugal. É preciso ver estas coisas com grano salis, é preciso ter grande cepticismo. Também acho que a Europa é uma aventura fantástica. Chegámos a este beco sem saída e não sabemos como dar a voltar, mantendo o essencial sem deitar tudo às urtigas.
O Euro: foi um dos grandes elementos de agregação ou desagregação deste projecto?
MDM – O Euro, atendendo às circunstâncias em que foi feito, foi um desastre. Estamos a pagar esse desastre.
FSC – Fui sempre favorável ao Euro. Não penso que seja aí que os problemas se colocam. Continuo a pensar que o projecto europeu é extremamente positivo e que, apesar dos seus erros, tem uma grande capacidade de regeneração. E é aquele que garante a paz no continente europeu.
Saímos daqui? Como?
FSC – A história mostra que há sempre uma saída. Insisto: não devemos deixar que o nosso futuro assente exclusivamente nos agentes políticos. A sociedade tem que reagir e dar sinais aos partidos para que estes encontrem soluções institucionais.
MDM – Os agentes políticos já mostraram que não são capazes de o fazer. Costumo dizer que o governo ideal é um conjunto de cépticos bem intencionados.
FSC – Mas de bem intencionados está o inferno cheio!
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014
A Troika foi-se embora? Mais ou menos. Durante mais um ano, Albert Jaeger vai continuar em Portugal. Dele o FMI pode dizer: o nosso homem em Lisboa.
É do tipo meticuloso. Daqueles que têm a secretária especialmente arrumada e vêem no desalinho milimétrico uma imensa confusão. Austríaco, foi o economista destacado pela instituição para chefiar a delegação permanente durante o programa de ajustamento. Mudou-se então para Lisboa há três anos, vive a 15 minutos a pé do escritório, passa despercebido na rua.
Propus-lhe uma entrevista em que perguntaria pelo modo como nos vê e pelo modo como decorreu o programa. Há nas respostas, muitas vezes, um tom defensivo; em jeito de introdução, explicou-me que não poderia dizer o que contraria a voz do FMI. Mesmo assim, muito pode ser lido, explicitamente e nas entrelinhas, sobre este período, a teia de relações, a tensão surda, as opções técnicas e políticas.
Três anos depois de ter chegado, o que pensa de Portugal? Compreende alguma coisa do que é este país complexo?
Não diria que compreendo totalmente Portugal. Sou formado em Economia, vejo as questões económicas e sociais como um economista. Mesmo como economista, não consigo compreender muito bem o que está por trás dos problemas económicos e sociais deste país. [risos]
Culturalmente, consegue entender a atmosfera do país, a alma da população?
Creio que tenho uma boa noção da atmosfera; a alma é talvez uma outra coisa. Viver três anos num país dá-nos uma perspectiva dos problemas quotidianos. É a primeira vez que faço uma coisa assim, ir para outro país numa base profissional. Estive na sede do FMI em Washington durante 20 anos. Nunca esperei estar três anos em Portugal.
Porque é que aceitou o desafio?
Era uma coisa profissional. No FMI trabalhava essencialmente com países europeus. Inicialmente, em países avançados como a Alemanha, Luxemburgo, Suíça. Depois trabalhei com a Zona Euro, interagindo com instituições europeias, como a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu. Mais tarde trabalhei com países europeus de leste. Portanto tive que enfrentar problemas completamente diferentes.
Como foi?
Trabalhar em países como a Suíça é uma experiência muito diferente de trabalhar em países como a Sérvia. Quando o programa Português surgiu, pensei que era uma oportunidade para fazer um círculo completo, voltando a focar-me num país avançado da Zona Euro.
Foi um desenvolvimento inesperado. Quando a crise financeira mundial surgiu, em 2008, ninguém esperava que alguns países da Zona Euro fossem precisar de programas de ajustamento.
Sabia que seria difícil.
Já tinha trabalhado em programas difíceis. Não sabia como seria trabalhar com este enquadramento institucional, o da Troika. Isso foi uma novidade para todos. Estava habituado a trabalhar num programa do FMI mais estandardizado.
Várias vozes falaram da pluralidade de vozes que há no seio da Troika. Uma coisa é a voz, ou seja, a agenda, os interesses, do FMI, outra é a voz das instituições europeias. Até houve quem dissesse que o FMI era mais simpático para Portugal do que o BCE ou a Comissão Europeia.
No meu ponto de vista houve muita cooperação entre os membros da Troika, tanto a nível pessoal como a nível institucional. Na verdade, esperava mais dificuldades.
Esperava mais dificuldades na articulação dos diferentes membros da Troika?
Em termos da coordenação dentro da Troika, talvez. Juntam-se três instituições diferentes, que nunca tinham feito isto antes e podem ocorrer sobressaltos. Mas, no fim do dia, todos estavam no mesmo barco. E, pelo bem do país, tem de se fazer o melhor possível dentro das limitações existentes.
Foi também novo ter uma enorme crise na Europa, e não só focada no país onde está a trabalhar. É um enquadramento diferente. Diferentes fogos, com intensidades diferentes, em países diferentes.
Sim. Tivemos sempre que encarar a crise dentro de uma perspectiva multi-dimensional, em contraste com as experiências anteriores (programas aplicados a países individuais).
Voltemos ao início. Se precisasse de explicar o essencial deste país a um amigo, imagine, um colega do FMI, o que é que diria?
A primeira coisa que me vem à cabeça é que as pessoas são muito simpáticas. Ao mesmo tempo, e de certo modo paradoxalmente, os portugueses tendem a confiar pouco nas outras pessoas e também neles mesmos. Não há muita preocupação com eficiência. Tem um lado bom, as pessoas arranjam tempo para falar entre elas. O clima é melhor do que na maioria dos outros países. É muito fácil viajar pela Europa. Há o mar. Não se sente a falta de nada. É difícil não gostar deste país.
É a descrição de um postal ilustrado. É fácil olhar para Portugal como se fosse um postal ilustrado.
Podemos ir para um campo mais profissional. Há razões para o FMI ter tido três programas aqui durante os últimos 40 anos. Existem problemas estruturais não resolvidos.
Desde quando?
Nunca consegui perceber desde quando. Há descrições do século XVII, por exemplo, quando o Conde de Ericeira tentou promover um programa de estímulo às exportações porque o balanço externo corrente era muito deficitário. Quando leio coisas deste tipo, as descrições pareceram-me actuais.
No fim do século XIX, tivemos bancarrota. Durante o século XX, constantes problemas, altos e baixos. Porque é que não conseguimos tirar proveito deste postal que descreveu, e porque é que temos este problema endémico relacionado com a economia?
Antes de vir para aqui, trabalhei em países da região dos Balcãs. Quando cheguei a Portugal, encontrei muitos dos mesmos problemas económicos que vi por lá. Há duas coisas em especial: em primeiro lugar, o papel das exportações no crescimento económico; em segundo lugar, o papel do Estado. Tal como os países dos Balcãs, Portugal tem dificuldades em desenvolver uma economia equilibrada com crescimento baseado no comércio externo.
Nesses países, o sector de exportações é a Cinderela da economia. Tal como no conto de fadas, ele é “maltratado” pelo sector de bens não transaccionáveis e pelo sector público. Consequentemente as exportações não conseguem desenvolver o seu potencial de crescimento.
E em relação ao Estado?
Os cidadãos têm expectativas demasiado elevadas no que toca ao Estado.
Protecção social, emprego?
Sim. Mas também educação, saúde, habitação. As expectativas são muito, muito altas. Simultaneamente, têm muito pouca confiança no Estado.
É uma contradição, esperam muito mas não confiam.
Há um grande fosso entre o que as pessoas esperam e aquilo que o Estado pode oferecer dadas as circunstâncias e os recursos que estes países têm. Isto também perturba a imagem do postal.
Somos politicamente imaturos em Portugal? As pessoas esperam um pater familias que resolve tudo. Os 48 anos de ditadura que tivemos ajudam a perceber como somos política e economicamente?
Deve ter tido uma consequência no que vemos hoje. Contudo, outros países passaram por longos períodos de ditadura, de regimes opressivos e conseguiram ser bem sucedidos economicamente.
Não acha determinante?
Não creio que algo que ocorreu há mais de quatro décadas possa ser definido como a principal causa dos problemas actuais. É possível mudar de atitude ao longo do tempo. (Há 25 anos, Portugal tinha o maior índice de acidentes de trânsito fatais no âmbito da UE. Nos últimos 25 anos, os indicadores melhoraram sensivelmente, em grande parte devido ao melhor comportamento dos automobilistas portugueses.)
O que é então central, na sua opinião?
Trata-se, talvez, de encontrar o equilíbrio certo entre a competição e a cooperação no contexto da economia portuguesa. Os portugueses têm tendência a competir quando deviam cooperar e a cooperar quando deviam competir.
Devemos ter mais competição na economia, sobretudo nos sectores de bens não transaccionáveis. As empresas devem competir umas com as outras. Isso torna-as mais produtivas e eficientes. É também bom para o consumidor porque os preços caem e a qualidade do serviço melhora.
Temos escala para essa competição interna?
Têm. Olhe para o sector dos restaurantes, é um sector onde têm muita competição. Podem ver-se os resultados no turismo. Os turistas ficam sempre impressionados com a boa relação entre o preço e a qualidade.
Precisam de cooperação na hora de lidar com a economia. Um bom exemplo é o papel dos parceiros sociais (sindicatos, associações de empregadores e Governo) na determinação dos salários e das condições de trabalho. Nesta área, Portugal pode aprender com alguns países pequenos da Europa, que usam mecanismos de acordos colectivos de trabalho bastante mais eficientes.
Mencione um país que tenha estado sob uma ditadura e que rapidamente tenha resolvido o problema da competição e os problemas da economia.
Na Europa de leste há alguns exemplos. Talvez a Eslováquia, que estava com muitas dificuldades depois da cisão da Checoslováquia e que conseguiu criar condições para uma economia de rápido crescimento baseada no comércio externo.
O problema dos portugueses é não serem suficientemente disciplinados, organizados. Queremos trabalhar mas não sabemos como. Trabalhamos muitas horas, mas a nossa produtividade é baixa. É assim?
Talvez. Mas estaria a apontar para um problema de coordenação e cooperação, de novo. Estamos sempre a ouvir a história de que os trabalhadores portugueses são muito produtivos quando são geridos por estrangeiros.
Basta olhar para a Autoeuropa, cujo modelo de funcionamento é alemão.
Não vejo porque é que isso não pode ser feito com gestores portugueses e até penso que alguns dos gestores da Autoeuropa são portugueses. De qualquer forma penso que as condições vão melhorar. A população jovem tem agora melhor formação e terá melhor capacidade de gestão.
Apesar de as novas gerações serem instruídas, não somos globalmente um povo especialmente preparado. Volto aos anos de ditadura: no 25 de Abril, 24% da população era iletrada.
É verdade que o ponto de partida não ajuda muito. Mas a questão não é a dos níveis de produtividade mas do potencial de crescimento. Para isto, tem que determinar um equilíbrio entre cooperação e competição. Isto é habitualmente mais fácil de atingir num país pequeno, como se pode ver em muitos países europeus pequenos e bem-sucedidos.
Mais do que a reforma do Estado ou as grandes reformas que foram anunciadas no início do programa de ajustamento, considera que temos que resolver a questão entre competição e cooperação?
É uma forma abstracta de colocar o problema. Na prática têm que se fazer muitas reformas para que o país seja mais competitivo. O programa foi um bom começo, mas o trabalho não está completo. Não é possível reformar um país em três anos. Todos sabem disso. No início de 2011, a situação era muito difícil. Não sei se as pessoas se lembram. Havia o risco de uma crise financeira grave. O programa não pode fazer milagres nesse contexto. O que fez foi dar tempo. Deu três anos para que o sector público e privado ajustassem as suas finanças. E deu três anos para se começarem a fazer reformas estruturais no mercado de trabalho, nos mercados de produtos, na administração pública e no sistema judicial. É um programa de reformas bastante exaustivo. Todas estas reformas foram importantes porque permitiram restaurar a confiança em Portugal. Um dos objectivos do programa era financiar de novo o país no mercado.
E é verdade que voltámos aos mercados.
É fácil dizer que isso não significa nada. Mas há um ano atrás pouca gente esperava que Portugal voltasse aos mercados e começasse a financiar-se sem grande problema. Há também uma recuperação na economia. Não digo que seja uma recuperação fortíssima, mas o desemprego começou a descer. Admito que ainda é alto demais e que há pessoas a deixar o país.
Cem mil pessoas, por ano. É muito.
Há aí também uma oportunidade.
Está a repetir as palavras de Passos Coelho quanto às oportunidades no estrangeiro.
Mas é verdade. Se essas pessoas voltarem a Portugal podem ajudar a moldar muitas coisas na direcção certa.
Acredita que voltam?
Se o país estiver melhor no futuro, serão naturalmente puxadas de volta. A emigração pode ser vista como uma coisa muito negativa. Se essas pessoas voltarem para o país e trouxerem as capacidades que adquiriram quando trabalhavam no estrangeiro, pode ser benéfico. Grande parte dos emigrantes são pessoas jovens, não nos esqueçamos.
Do seu ponto de vista, esses são os pontos positivos do programa?
Não só isto. Atingimos um equilíbrio externo. A maioria da consolidação orçamental foi concluída. A desalavancagem do sector privado iniciou-se. E, como disse, a economia está a começar a crescer.
Silva Peneda disse no início deste ano que a perspectiva de crescimento era de 2,5 e na realidade o número é 0,8.
Creio que o número que temos agora, para 2014, é de um 1%. A taxa de 2.5% para 2014 foi uma previsão feita em 2011. A recuperação foi mais lenta. As razões para isso são em parte explicadas pelo facto de a economia europeia não ter crescido em linha com o que era esperado. Para além disso, os impedimentos ao crescimento foram subestimados no início do programa, como por exemplo os efeitos do alto nível de dívidas do sector empresarial no investimento.
Antes do programa não havia crescimento há dez anos. Temos que avaliar as coisas dentro de um contexto histórico. Vejo como positivo as reformas que foram começadas, algumas delas difíceis.
Como a reforma do Estado.
Essa é claramente uma área onde ainda há muito trabalho por fazer.
Porque sorri quando fala da reforma do Estado?
Porque é uma área especialmente difícil de reformar. É um problema semelhante ao da galinha e do ovo: para reformar precisamos de uma administração pública eficiente, e para ter uma administração pública eficiente precisamos de reformas.
Ter de fazer isto durante uma consolidação orçamental não ajuda. Estamos no começo de uma reforma que pode levar cinco, dez anos de esforço contínuo.
Usou várias vezes a palavra “começar”. Devemos entender o programa de ajustamento como um começo? Acredito que a população esperava mais do que um começo. Em especial quando pensa nos custos da austeridade.
Quando digo “começo”, falo em especial das reformas estruturais, não tanto no ajustamento, na parte financeira do programa. Falo de reformar o país a fundo. Essas coisas levam muito tempo a implementar. No ajustamento as coisas mexeram-se depressa. A balança externa corrente teve um saldo positivo em 2013; a última vez em que isso tinha sido conseguido foi na Segunda Guerra Mundial.
Na questão do ajustamento, foi certamente mais do que um bom começo. Portugal progrediu muito nos últimos três anos, mas ainda existe um longo caminho a percorrer.
O que correu mal?
O programa não foi fácil. As famílias, os trabalhadores e as empresas sofreram dificuldades financeiras severas. No entanto, isto não implica que estas dificuldades tenham sido infligidas pelo programa.
Então?
A principal causa destas dificuldades são políticas erróneas, não apenas provenientes de Portugal, aplicadas antes do programa. Isto não implica que tudo tenha sido perfeito durante o programa. Existem já livros que referem “os erros” da Troika.
Está a pensar no livro do jornalista do Jornal de Negócios Rui Peres Jorge, “Os Dez Erros da Troika em Portugal”.
Eu li o livro. Contém uma boa visão geral do programa. O meu problema principal (no que se refere ao livro) é que todas as dificuldades vividas depois de 2010 aparentam ser atribuídas ao programa.
Recusa a ideia de que o programa foi mal desenhado? É o que muitos reclamam.
Se as pessoas acreditam que os programas podem fazer milagres, então têm razão. Mas os milagres económicos são raros. Não houve crescimento durante dez anos antes do programa, e havia dívidas muito altas tanto no sector público como privado.
Quando as pessoas dizem que o programa foi mal desenhado, mais do que tudo pensam nos custos da austeridade, que foram subestimados quando o programa foi desenhado e os números colocados numa folha de Excel.
Podemos debater qual é que era a velocidade certa para fazer o ajustamento orçamental, mas, mais cedo ou mais tarde, ele tinha que acontecer. Se vamos devagar no início, temos que acelerar depois, e vice-versa. Não há magia. Se as pessoas pensam que podíamos ter evitado a austeridade de todo, estão fora da realidade. Não é realista.
Não?
Como é que isso seria possível? Tinham um défice orçamental de 10% em 2010. Só podemos debater como distribuir a austeridade ao longo do tempo. Há bons argumentos para o fazer de forma rápida no início. E há argumentos contrários. Tem que se conciliar os vários pontos de vista. Foi o que se fez através do programa. A velocidade deste ajustamento acabou por ser um pouco diferente do planeado. E houve mudanças nos objectivos fiscais ao longo do tempo. Como consequência, não estamos onde deveríamos estar. Quer dizer que ainda é preciso fazer ajustamentos orçamentais em 2014 e 2015.
Considera-se, sem grande discussão, que os alvos mais vulneráveis deste programa de austeridade foram os da classe média. Concorda?
Imensas pessoas enfrentaram dificuldades, tanto a nível do mercado de trabalho, como a nível financeiro. Tiveram de ajustar os seus padrões de despesas. Sobre os efeitos do programa na classe média, depende de como se define a classe média.
Professores, médicos, funcionários públicos.
Houve uma tentativa de proteger as partes mais vulneráveis, o que se reflecte na forma como foram desenhados os cortes salariais e pensões públicas. As pessoas abaixo de um determinado limiar não seriam afectadas, e depois, acima desse limiar, os cortes começariam. É uma tentativa de colocar o fardo nas pessoas que melhor o podem suportar.
Há muitas opções de como distribuir o fardo de um programa de ajustamento. Em última instância, isto depende principalmente do Governo, que foi eleito para decidir onde quer pôr o fardo. Não é uma decisão técnica, é uma decisão política.
Há uma paleta de opções e o Governo escolhe a opção que julga mais adequada, mais fazível?
Sim. Têm que conciliar vários objectivos que estão em conflito. E no final é a população que deve manifestar-se sobre as opções do Governo, no contexto do processo eleitoral.
Estou a ouvi-lo e a pensar que o discurso de Passos Coelho, ao defender o programa, não é diferente. Pensei que os seus argumentos pudessem ser diferentes. Ou está a reproduzir o discurso institucional (do FMI, neste caso) porque não pode sair dele?
Há uma diferença [entre o meu discurso e o de Passos]. Há uma parte técnica no programa. Concordamos nos objectivos, podemos discutir qual é o alvo que devemos atingir, qual é a velocidade com que atingimos o alvo. A outra parte é que tipo de medidas vamos tomar – e aí há uma grande componente política. Como técnico posso ou não concordar, mas essa não é a questão. A questão é atingir o objectivo à velocidade acordada.
Conhece o ditado que diz que é melhor ensinar a pescar do que dar a cana de pesca? A sua função, como FMI, é ensinar a usar a cana de pesca?
O FMI ou as outras instituições contribuem com a sua experiência de outros países. Nesse sentido, espero que tenhamos sido úteis no sentido de ensinar a pescar, e não apenas no sentido de proporcionar a ferramenta.
Concordo que há uma séria componente política na decisão. Apesar disso, o FMI está habituado a lidar com a hostilidade da população, é frequentemente responsabilizado pelo que acontece.
Há 20 ou 25 anos havia muito menos transparência no que era acordado. O FMI nem sequer publicava os seus relatórios. Hoje em dia há um processo bastante transparente, está tudo documentado. E ambos os lados podem explicar aos media porque é que estão a fazer isto ou aquilo. Essa é provavelmente a razão pela qual vemos menos hostilidade do que a sua descrição sugere.
As pessoas não culpam a Troika? Culpam mais o Governo ou as instituições políticas?
A maior parte das pessoas entende bastante bem qual é a causa e qual é o efeito, neste caso. Não compram o tipo de história simplificada e politizada de que a Troika veio e as dificuldades começaram. Se estão contentes com tudo o que foi feito ao abrigo do programa? Obviamente que não. Por exemplo, com a TSU, muitas pessoas estavam descontentes.
Explodiram alguns petardos em frente ao vosso edifício na manifestação contra a TSU.
As pessoas podem discordar. A TSU foi retirada.
Concordo, há 25 anos a hostilidade era mais dura. Mas nesta crise, o seu colega conhecido como Mr. Blue Eyes andou escoltado na Grécia.
Na Grécia as coisas foram mais voláteis e mais difíceis sob vários ângulos. Neste caso, Portugal claramente não é a Grécia.
É porque somos mais suaves?
Talvez a cultura política aqui seja menos confrontacional. As pessoas entendem melhor qual foi a causa, percebem por que chegaram à crise.
Também é da nossa natureza? Um alemão costumava dizer-me que Portugal é o único país onde as pessoas fazem uma manifestação e não partem montras, não ateiam fogos por todo o lado.
Essa é uma das vantagens deste consenso básico. O confronto onde se partem vidros não ajuda nada.
Serve para exprimir a raiva.
Sim, mas podemos exprimir a raiva de maneiras diferentes. Há muitos grafittis em Lisboa. É uma forma criativa de exprimir os sentimentos sobre as coisas.
Há uns meses, Christine Lagarde disse que os custos da austeridade em países como Portugal, Grécia e Irlanda eram enormes. Pensei então que alguma coisa ia mudar. Não aconteceu nada. Como é possível entender isto? E como é que recebe isto?
Não é justa a forma como colocou o depoimento de Mme. Lagarde sobre esse assunto. Já discutimos o tópico relativo à velocidade apropriada do ajustamento orçamental. Que tenham que corrigir o défice, que as pessoas tenham que rever os seus hábitos de consumo, ninguém questiona isso. A questão é: estamos a fazê-lo a uma velocidade razoável? E estamos a fazê-lo de forma a minimizar os impactos negativos naqueles que podem proteger-se menos em situações como esta?
O valor da dívida é 127% do PIB, muito mais alto do que era.
Em parte é consequência de abrandar a velocidade de ajustamento orçamental relativamente ao que estava planeado. Se abrandamos, a dívida não diminui conforme o esperado. Em parte é consequência de um crescimento nominal abaixo do previsto.
O economista Félix Ribeiro usou a metáfora de um carro que não tinha combustível nem autorização para circular para descrever a situação de Portugal aquando do resgate. Segundo ele, o que a Troika fez foi dar-nos de volta a licença para circular – ou seja, a credibilidade para voltar aos mercados. Também disse que se não resolvemos alguns problemas estruturais mais cedo ou mais tarde vamos estar na mesma situação: sem gasolina e sem licença.
Parece razoável, é consistente com o que eu disse. No início do programa tinham dois problemas: um é que era preciso equilibrar as contas para recuperar credibilidade; o outro é que era preciso fazer reformas para evitar voltar a esta situação de desequilíbrio que levou ao programa. O que ele disse foi que, se só ajustarem as contas e fizerem um ajustamento pontual, as coisas ficam como estavam antes do programa. [A metáfora de Félix Ribeiro] é uma boa forma de descrever o desafio.
Como foi, globalmente, a relação entre a Troika e o Governo?
Às vezes cria-se a impressão de que o Governo está a trabalhar para a Troika. Não é justo nem correcto. Em geral, o Governo foi um negociador difícil.
Mesmo com Vítor Gaspar, que agora trabalha para o FMI?
Sim. Ele tinha por objectivo o interesse do seu país. De facto, às vezes, o Governo sentia que a Troika era inflexível, que não era sensível às suas limitações. Por outro lado, a Troika achava que o Governo era demasiado rápido a declarar vitória e a dizer que as coisas estavam a funcionar. Tentei perceber porque é que os dois lados viam realidades diferentes.
A percepção externa da vossa relação também é diferente.
Talvez. É difícil fazer as coisas que se tem que fazer. Temos perspectivas e níveis de tolerância diferentes. É como numa situação médica: quando não se tem a certeza do que o paciente tem, fazem-se testes adicionais. Somos adversos a dizer que o paciente está bom – queremos ter a certeza disso. A Troika queria ter a certeza de que o programa funcionava.
Nunca diz FMI, diz sempre Troika. Quer dizer, fala de um colectivo e não da instituição para que trabalha.
Neste contexto foi sempre um jogo de equipa. Não eram três jogadores diferentes com três visões diferentes. Tínhamos que ter uma visão comum.
É uma posição elegante, mas sabemos que as três partes têm diferentes perspectivas acerca da crise, do ajustamento, da relação com as diferentes partes.
Está a falar de potenciais desacordos ou divergências dentro da Troika. A questão aqui não é essa. A dada altura, a Troika tem que chegar a uma posição comum com o Governo.
Então, faz o seu trabalho de casa articulando os diferentes pontos de vista antes das reuniões que tem com o Governo.
Assumo que fazem o mesmo do lado português. Têm que chegar a uma posição comum [antes de se sentarem à mesa de negociações]. Na nossa instituição o processo é igual, temos que convergir para uma posição comum antes de sairmos para um país.
Conte-me sobre o trabalho do dia-a-dia.
Chego às nove horas. Sou o primeiro a chegar.
Às nove? Em Washington provavelmente começava às oito.
Sim. Dependia do trânsito.
Vem a pé?
Sim, é uma caminhada de dez, 15 minutos. Os dias de trabalho variam muito dependendo das missões, dependendo do assunto do dia. A maior parte do trabalho que fazemos é rotineiro. Recolher informação, monitorizar o que se passa na economia, informar a nossa equipa, preparar apresentações.
Trabalha até às seis da tarde?
Depende. Normalmente saio às seis e meia.
Almoça uma sandes?
Alguma coisa rápida. Excepto se ao almoço me encontro com alguém. Há muitas padarias aqui, posso comprar uma sandes e despachar-me rápido.
Tem amigos portugueses ou as suas relações são acima de tudo profissionais?
Não, conheço muitos portugueses. Acho que é importante conhecer pessoas aqui, não apenas de forma superficial. Ouvi-las falar de como vêem as coisas a um nível mais pessoal.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014
Girar: andar à roda ou em giro. Andar sem rumo certo. Fazer circular.
Estas são algumas das acepções de um dos verbos mais usados por Sérgio Godinho em Vidadupla.
Podia recorrer a uma definição do autor, não usada para Girar, mas certeira: “A vida é viver a vida neste círculo”.
Estão prontos? Dou uma primeira volta na girândola, sem fogo se artifício, sem disparos. Sem anunciar propriamente o começo, o primeiro estalido, porque ele já foi, já teve um lugar e um acontecido, quando chamo a atenção para esse momento inaugural. Quer dizer, já estamos sentados no carrossel quando damos pelo carrossel e pela viagem, mais ou menos atónitos pelas luzes que nos acordam e nos dizem que estamos ali, desprevenidos ou seguros, com medo ou com vontade.
O movimento será circular. Avançaremos num passo errático, parecendo que vamos rumo ao futuro, como não pode deixar de ser, e sempre alimentados das esperanças do passado, como não pode deixar de ser.
Avançamos em direcção ao mais íntimos de nós mesmos, apontando para o coração da vida, e sempre falando da morte.
Reparem que não há um espaço, um abismo entre Vida e Dupla. A palavra é inteira. Como não pode deixar de ser. Querendo com isso dizer que contempla o que está para lá dela, nomeadamente os enredos que inventamos para nós mesmos, os começos de vida, as aproximações à morte, as perdas e as ilusões, o que nos faz parar e o que nos dá o ímpeto de avançar. Neste Vidadupla, escrito num movimento contínuo, circular, está a morte, a de letra grande, que é aquela em que podemos pensar por estarmos do lado da vida. Ou seja, não existe morte do lado da morte, simplesmente porque nesse outro lado não existe nada. Pelo menos, não temos notícia de nada.
Desde que li pela primeira vez estes contos – contos ou micro-narrativas ou divagações poéticas ou dissertações filosóficas –, encontro neles a Alice de Lewis Carrol a experimentar uma sensação de estranheza em relação à vida que vê. “Que é isto?”, pergunta ela. Em que lugar estamos? Também penso naquela personagem do filme Rosa Púrpura do Cairo de Woody Allen, que vai para o cinema para afogar a tristeza de uma vida pobre. Essa mulher, que é batida pelo marido e maltratada pelo chefe, alimenta-se de sonhos, e recebe, com naturalidade, uma intromissão da fantasia na sua vida concreta, o galã pelo qual suspira que sai da tela e a leva a jantar. A pergunta que sempre me faço quando vejo o filme e penso nele é: de que lado do ecrã é que estamos? E de que lado queremos estar. Não se trata de tola credulidade, de um romantismo bacoco. Trata-se de uma interrogação muito firme. De que lado da vida é que estamos? E o que é que acontece em nós quando conseguimos uma distância, uma distância que nos permite interrogar as coisas na sua essência, que nos permite perguntar pelo sentido?
Essa dobra, esse lugar que ocupamos ao fazer a pergunta, esse estar fora de órbita que possibilita ver a Terra como um planeta inteiro, é uma sensação rara e preciosa. Tive essa impressão em diferentes momentos deste livro. A de estar “no mapa do mundo”, “procurando o centro do mundo”, entre a “origem” e o “fim”, numa “terra do sempre”, em “rotação”. E, o que é mais espantoso, tive uma sensação de ubiquidade, de estar aí – na interrogação – e de estar naquilo que é interrogado. Numa linha, estive o tempo todo na vida e morte.
E estive com uma pessoa que não quer morrer, e que, por vezes, pareceu-me, diz com ferocidade que não quer morrer. Que quer continuar o movimento. Que quer estar disponível para o milagre do que vem do ecrã e se intromete no concreto das nossas vidas.
Portanto este é um livro em que a morte está por todo o lado. E estranhamente luminoso, mais do que a frase anterior faz supor. Talvez por isso a sua atitude nunca é de derrota ou desistência. Tem mais um tom: ainda não é desta que me apanhas, dirigido à tal senhora que anda com uma gadanha.
Portanto este é um livro de uma vida que contempla sempre o seu fim, a sua face dupla, mas que tem, além disso, os seus fins e os seus começos, as muitas vidas que cabem numa vida. E, em última instância, tem o relato de uma vida, gesto que a absolve, mais não seja, pelo facto de ser narrada. Uma palavra, uma narrativa, uma memória ficam, não passam, deixam uma cicatriz.
Outra imagem poderosa para Vidadupla é a de um espelho. O que é reflectido quando nos olhamos? E se for a vida, aquilo que mostramos, o que é que aparece exactamente? Vida vida. Vidadupla. Vida ao quadrado. Novamente a ubiquidade: o que é mostrado ao espelho, o que está reflectido nele. E depois, como se diz em “Osmose”, “Um espelho é reflectir e depois reflectir sobre isso”. Há ainda a reflexão sobre o que aparece reflectido. São movimentos diversos, dobras sucessivas.
E novamente estamos nós nos dois lugares disponíveis: o da plateia e o da arena. Estamos no centro da acção, executores desse movimento circular, e estamos a assistir a quem vamos sendo, espectadores contentes e descontentes, mais ou menos comprometidos. Dominamos a acção, somos levados na enxurrada. Desdobramo-nos em papéis, em vidas e sobrevidas. Enquanto isso, a vida roda e o tempo muda de lugar. “O tempo rodou num instante nas voltas do meu coração”, como escreve Chico em Roda Viva.
Há um momento no livro em que uma personagem diz entre parêntesis: “Queria falar da minha história de amor, mas está difícil”. Não sei se alguns dos que nos ouvem pensam: queria ouvir falar deste livro mas está difícil. Lamento o desapontamento, mas o que sublinho nele, antes de ir aos enredos, às histórias de amor, às pessoas como nós, é o movimento, o impulso em que a vida é vida. Porque isso nos faz – me faz – viver. O pendor filosófico de Vidadupla, que é tão forte quanto o poético, é um dos seus triunfos. É o pensamento a acontecer, a dúvida, o júbilo, o espanto.
Podia repetir estas palavras – dúvida júbilo espanto – sem vírgulas, sem pausas, num movimento osmótico. É verdade que não estão ligadas por um hífen, e existe um espaço entre elas, onde as escrevo. Mas estão ligadas sabe-se lá por que sortilégio. É um recurso usado por Sérgio Godinho em algumas das ficções deste livro. Por exemplo: soprando gritando estourando.
É um ritmo sincopado, suspirado, ligado entre si, ora acelerado ora lento. É uma coisa que vem da música, uma forma de refrão que atribuímos a um autor, a uma identidade, um modo de fazer que é próprio. Mas esta música é do ficcionista, é menos do escritor de canções. Está aqui.
Quem são estas pessoas em quem Sérgio Godinho se desdobra e nos implica? Eu diria que são pessoas à procura do seu equilíbrio, muitas vezes desfasadas do tempo e de si próprias. O caso mais eloquente é o de um homem falso culpado que tem um álibi de que não precisa e do qual fica refém. Um homem que tropeça nos ardis no dia, e é acusado de atropelar um rapaz. Um homem que tem um jovem amor que “desafinava a chorar”. Impressionou-me muito esta imagem de uma pessoa que desafina a chorar, que parece fora de tom, des-sintonizada da outra pessoa e da música do mundo e cujo lamento não tem lugar ali. Estão a ver? É uma sucessão de equívocos. Porque não se diz que ele não tem razão para chorar; o que se diz é que o choro não é dali ao dizer que chora e desafina ao mesmo tempo.
Esse homem que atropela, ou que pensa que atropela, pergunta-se quem estaria, simbolicamente, no lugar daquele que é atropelado. O que é que morria ali. O conto leva-nos a equacionar o que é a verdade e a mentira, onde começa a culpa, onde acaba a inocência. Mostra, sobretudo, que é muito fina a passagem de um lado a outro lado do biombo. Quase sempre é assim na nossa vida, por mais que julguemos espessas as paredes.
Outro personagem: o carrasco. É nessa ficção que se pode ler: “E por vezes, preparar-me para ouvir o som da alma”. Não quero dizer mais nada sobre este conto, fico-me pelo que o Sérgio faz nestas páginas: ouvir o som da alma. Uma hipótese para este movimento: deitar o ouvido, com cuidado, e procurar o silêncio. Começar por ouvir ruído, ruído, e depois ficar atento, concentrar, focar, para saber o que nesse ruído é essencial, nuclear, o mais íntimo do ser. Essa é a voz que o Sérgio procurou e seguiu.
Há nesta galeria um pré-catastrofista, que prevê a morte de um amigo, submerso no fundo das águas. Há duas operárias que giram as suas vidas, giram as rodas das suas bicicletas, giram o “antes” e o “depois”, o “prólogo” e o “epílogo”; uma delas escreve, contos; e o conto que escreve sobre a outra começa assim: “A injustiça, o tempo cortado, a bicicleta a apanhar ferrugem”. Acho particularmente feliz a associação da ideia de tempo interrompido com a ideia de ferrugem. Sabe-me a vida por viver, a roda que não roda e por isso não é viva.
No último conto há um homem que perde as coordenadas e vai dormir perto da mulher que morreu, que leva uma vida dupla na acepção mais comum da expressão. Tem uma casa e escolhe por casa um lugar inóspito, desabrigado do conforto e que assim dá abrigo ao seu afecto. Uma gare de comboios, lugar de partidas e chegadas. Fica ali encravado, sem conseguir encontrar um trilho, de novo, fica ali até encontrar, de novo, um trilho.
No primeiro, há uma actriz e um lençol puído. Querem ouvir um verso poético? “... sempre na esperança de sentir no meu amor rugoso a pele lisa dos inícios.” O livro está todo aqui: no rugoso e no liso, na turbulência do amor e na planura pós-cataclísmica que permite recomeçar. E recomeçar com esperança. Como disse, este é um livro com a morte a rondar, a rondar, mas de tonalidade mais luminosa que sombria. Há nele uma vontade de viver expressa de diferentes modos.
Deve ser por isso que, com grande liberdade interpretativa, leio no lençol deste primeiro conto uma membrana uterina. É certo que o lençol pode funcionar também como uma mortalha. Mas para mim, esta membrana já puída, que urge rasgar, é aquela que nos separa da vida que há para viver.
Aqui fica o meu primeiro gesto, o rasgo. Agora passo o manípulo da girândola ao autor.
Texto lido na apresentação do livro Vidadupla, na livraria Ler Devagar, a 16 de Outubro de 2014.
«O verdadeiro aristocrata tem consciência de que tem uma história atrás de si e é essa própria consciência da história que tem atrás de si que o faz ter uma consciência igualmente clara de que também tem uma história à sua frente. Respeitar a tradição é saber que se é um elo na cadeia e que tanto conta o que está para trás, como o que está para a frente».
Este é o pensamento de Fernando de Mascarenhas, 12º Marquês de Fronteira, expresso no «Sermão ao meu Sucessor – Notas para uma Ética da Sobrevivência». O sermão escrito e lido na Sala das Batalhas do Palácio de Fronteira em 1994, era dirigido ao futuro 13º Marquês de Fronteira, o seu sobrinho António, (que em breve atingirá a maioridade).
O que é ser um aristocrata? Quem é este aristocrata? Qual é o legado de um nobre que é, antes de mais, um elo numa cadeia?
Fernando de Mascarenhas explicita nas próximas páginas o que o faz ser o que é, o que o faz pensar como pensa.
No sermão lê-se igualmente: «Sê primeiro um homem e, depois, só depois, mas logo depois, um aristocrata».
«Casaram, tiveram muitos filhos e foram felizes para sempre» é o epílogo das histórias da realeza. Teve a noção de ser um filho desejado pelos seus pais?
Não posso dizer que tenha tido essa noção. Os meus pais separaram-se, eu teria dois anos e meio ou três. Vivi com a minha mãe em casa dos meus avós na Rua da Emenda. O meu pai vivia aqui. Via-o três ou quatro vezes por ano. Era uma pessoa com quem fazia muita cerimónia. Que a minha mãe gostava muito de mim, era evidente. Gostava e gosta – ainda está viva. [A noção de ser desejado] foi um problema que nunca se me pôs. O que se me pôs foi o seguinte: o meu avô dizia de brincadeira que eu tinha sido comprado num jardim zoológico ou nos ciganos!
É uma coisa horrível de se dizer a uma criança! Normalmente são os filhos mais velhos que dizem isso aos mais novos por causa dos ciúmes.
É horrível! Eu afinava com aquilo!
O seu avô materno gostava do seu pai?
Tinha onze anos quando o meu pai morreu. Não faço ideia das relações que teriam tido. Fazia gosto na linhagem do neto. Devo dizer que grande parte da minha educação aristocrática vem do meu lado materno. Quando a minha mãe voltou a casar, o meu avô teve um desgosto enorme. Depois deu-se lindamente com o meu padrasto, o arquitecto Frederico George, que era um homem encantador a quem fiquei a dever muito e de quem gostava muitíssimo. Foi muito mais meu pai do que o meu pai. Conheci muito pouco o meu pai. Só no último ano começámos a almoçar juntos de quinze em quinze dias.
Iam almoçar onde?
À Gôndola, sempre. Entretanto o meu pai teve o desastre e morreu.
O que quer dizer para si fazer cerimónia?
O que quer dizer para toda a gente: era uma pessoa com quem não estava à vontade. Não era natural estar com ele.
Com a sua mãe, tinha uma relação de profunda intimidade.
Houve uma altura em que conseguia estar à mesa com a minha mãe e falar com a minha mãe sem mais ninguém perceber o que estávamos a dizer! Há sempre códigos de família, linguagens, expressões; era frequentíssimo meter o francês na conversa. Obviamente quando havia pessoal falava-se em francês – coisas da época e do meio. A cerimónia; tem de ser muito bem doseada, mas é necessária e útil mesmo com pessoas de quem se está muito próximo.
Uma espécie de decoro?
Exactamente. Não temos de nos impingir aos outros, com os nossos problemas, preocupações. Tinha essa tendência. Vivi a adolescência nos anos 60, período de grande efervescência, e lembro-me que em relação ao casamento e às relações advogávamos uma total sinceridade. Que continuo a advogar. Mas reconheço que em termos de eficácia, essa total sinceridade, que é muito bonita e desejável no plano teórico, no plano prático não é tão eficaz quanto isso. As pessoas da geração da minha mãe diziam que uma senhora não devia despir-se em frente do marido e vice-versa. Não é que tenha mudado de opinião, mas reconheço que não é tão disparatado como julgávamos na altura. Uma proximidade excessiva pode ter os seus inconvenientes.
Esbate o mistério?
Esse lado do mistério tem uma certa importância, porque mantém o interesse. O que as senhoras têm de fascinante é exactamente o serem incompreensíveis.
Tem mesmo essa ideia? Observadas do exterior não é possível encontrar a sua conexão íntima?
Tenho, tenho. É um mundo onde há pontos aos quais nunca temos acesso. Uma relação muito previsível, não tem graça nenhuma. Uma relação muito imprevisível, é difícil de viver. Duas vezes me casei, duas vezes me divorciei. Se calhar é falta de jeito da minha parte. Não foi falta de vontade de que as coisas dessem certo. As mulheres parecem compreender-se muito bem umas às outras, e eu também acho os homens de uma simplicidade infantil.
Quando a Maria João Seixas lhe pediu que se definisse, na entrevista que lhe fez para o Público, disse que é um sentimental. Sentimental é tradicionalmente um adjectivo do feminino. Com quem é que aprendeu a ser um sentimental?
Ah, não sei se isso se aprende.
Nem que seja observando.
Nasce-se sentimental e depois aprende-se a deixar de ser. Eu aprendi, aprendi à minha custa e conscientemente. Na minha adolescência dei-me conta de que se não tomasse a minha vida em mãos, facilmente nunca chegaria a ser gente.
O que é que isso quer dizer?
Que aos 18 anos imaginei como possível virar boémio e passar as noites nas casas de fados, bêbedo, a nunca fazer nada na vida. Eu era tão vulnerável a qualquer ligação emocional, ficava tão dependente, que deixava de existir para mim. Percebi que não tinha solidez para viver com esta minha maneira de estar. E comecei intencionalmente a cortar todos os meus afectos, a criar distâncias em relação a tudo, até chegar ao ponto em que apanhei um susto porque já não conseguia sentir nada!
Nessa fase em que se inibiu de amar intensamente as pessoas e as coisas, sentiu-se menos feliz?
O que acontecia na minha adolescência, é que eu era um bocadinho maníaco-depressivo: alternava entre achar que era extraordinário e achar que era uma merda. O que me criava angústia. De maneira que o que me afligiu, quando comecei esse processo, foi não sentir nada. Criou-me angústia estar excessivamente anestesiado e não conseguir voltar atrás. Mas depois consegui e de maneira bastante feliz. O controlo é quase automático. Arranjei um esquema mental e emocional em que as coisas funcionam automaticamente. Posso embarcar numa relação, entregar-me, porque sei que tenho a resistência necessária para voltar a estar de pé.
A não se perder de vista a si mesmo?
A não me perder de vista no outro.
Deixar cair as defesas quer dizer ficar refém dessa pessoa, desse sentimento?
É estar completamente à mercê. É um deixar de estar em mim. Por isso tenho muitas dúvidas sobre a importância do amor no casamento.
O que é o casamento?
O casamento é duas pessoas saberem viver juntas. E é dificílima, a coabitação. São muito sensatas as pessoas que vivem cada uma na sua casa. As relações têm de ser quotidianamente construídas. Não é uma coisa que se põe ali uma semente, um bocadinho de água e pronto. Bem sei que tenho tendência para escolher mulheres difíceis...
São as que dão luta, e são as misteriosas.
Pois é. São as que têm graça! [risos] Se a pessoa está com uma pessoa que é muito fácil, a pessoa torna-se mais egoísta. Se o outro lhe facilita a vida, tem tendência a acomodar-se. Quando somos miúdos, os nosso pais fazem tudo por nós. Enquanto fizerem, não fazemos o esforço de fazer as coisas. Quando dizem: «Agora não faço nada, fazes tu se quiseres», então vamos para a luta e aprendemos. Numa relação a dois é a mesma coisa. Uma relação muito fácil também é destrutiva neste aspecto.
E esvai-se a admiração e a possibilidade de potenciar no outro o seu melhor e o seu pior.
As relações que tive foram extraordinariamente estimulantes: sempre me puseram em questão. É fundamental darmo-nos com pessoas que nos põem em questão. Senão, ficamos numa torre de marfim, que não tem sentido, que não é real.
Ainda nessa entrevista à Maria João Seixas, dizia que como tinha os ecos da relação tempestuosa dos seus pais, prometia a si mesmo nunca tratar as mulheres como o seu pai tratava a sua mãe. Essa promessa infantil permite adivinhá-lo cuidadoso? Que tipo de homem é nas relações amorosas?
Procuro ser uma pessoas atenta, e não só nessas relações. Se eu vir que acende o cigarro, (por sinal, se quiser fumar, esteja à vontade), pego no cinzeiro e chego-o mais para ao pé de si. Não me custa nada. Mas vejo muita gente a quem isto não acontece naturalmente.
Essa atenção, a que podemos chamar delicadeza, é o tipo de coisa que se aprende?
Ter uma base de boa educação, é importante; mas há muita gente que tem este treino e não tem esta atenção, e o contrário também é verdade.
Importa-se de definir boa educação?
A boa educação é estar atento aos outros. Procurar não magoar os outros, (a não ser quando se entende que é absolutamente necessário). Depois há algumas regras que se aprendem e que ajudam a conviver em sociedade. A boa educação é o que permite às pessoas viverem em sociedade. Quem vive sozinho não precisa de ser bem educado.
Mesmo quando está sozinho, dá por si a fazer coisas que já não são puramente instintivas, que já estão polidas?
É capaz de me dar um exemplo?
Se vou na rua, ainda que não conheça as pessoas de lado nenhum, se bocejo, ponho a mão à frente da boca.
Se estiver sozinha, põe? Eu acho que não ponho. Não posso jurar, mas penso que não.
Foram a sua mãe e os seus avós maternos que o educaram. O que é que recorda da sua infância?
Não tenho memória da infância como período áureo da vida, mas também não tenho a ideia da infância, ai que horror! Fiz a instrução primária no Liceu Francês. O meu pai queria que eu fosse para o Colégio Militar. Eu era um menino da mamã, vivia com os avós, e o meu pai teve a percepção de que podia não ser muito saudável um ambiente excessivamente resguardado, que era importante que me confrontasse com a vida real. A minha mãe propôs um conselho de família, e chegou-se a um compromisso: fui para o Liceu.
Foi criado para ser o quê?
O facto de ser o representante de uma casa, e de, com a morte do meu pai, herdar um título, foi uma coisa importante na minha educação. Fui educado para ser o quê? Olhe, para ser gente. Para ser digno dos nomes que tinha, do passado da família. Não num aspecto muito formal; ou, pelo menos, depois soube libertar-me. Era mais uma coisa vista de dentro, como um padrão de comparação; a gente sabe que deve ter um comportamento sério, honesto, honroso, digno. Basicamente é isso.
Há sempre uma expectativa em relação ao futuro dos filhos. Não será por acaso que os filhos têm muitas vezes as profissões dos pais.
Em miúdo quis ser engenheiro de pontes.
Mas porquê, fazia construções com legos?
Não, na altura não havia legos. Pelo menos em Portugal não havia legos.
Deixe-me abrir um parêntesis e perguntar como eram os brinquedos da sua infância.
Ah, tive coisas extraordinárias. O meu padrinho [José Melo e Castro] dava-me presentes estupendos, completamente inesperados. Nos meus anos a minha mãe ofereceu-me,uma vez, uma farmácia fingida, posta num cantinho do quarto: um balcão com uma estante por trás, cheia de frasquinhos com doces e rebuçados, de cores variadas. Uns tempos antes, a minha mãe tinha remodelado o quarto e posto uma mobília verde-turquesa; (deve ter sido por isso que o primeiro carro que tive foi um Volkswagen verde-turquesa!, horrível, horrível, não tem explicação!). Havia nesse quarto uma mesa com duas rodas, e então, o meu primo e eu, virávamos a mesa ao contrário e fazíamos como se estivéssemos num automóvel.
Brincava sobretudo com esse primo, ou com outros meninos?
Havia um grupo, tinha uma série de primos. De manhã estava muito sozinho...; mas havia uma criada que tomava conta de mim, a Carminho. Mais tarde, a Carminho engravidou, e foi um desgosto horrível quando se foi embora. Além disso, a partir dos três anos tinha a Mademoiselle. Aprendi a ler em francês.
A sua mãe brincava consigo?
Viajávamos muito e levava-me à praia, com um grupinho de cinco ou seis meninos. Começámos por ir para a praia da Torre, depois Santo Amaro de Oeiras, depois Carcavelos. Ir a Carcavelos?, era um percurso louco, uma distância enorme! E passávamos muito as férias em grupo na herdade, andávamos a cavalo, fazíamos cabanas na mata.
Foi então uma infância muito solta. Não havia sobre si uma pressão adicional?
Uma pressão muito difusa, não se pode facilmente concretizar; mas havia uma pressão, nitidamente. Aos 14 anos comecei a criar uma certa distância em relação à família do meu pai por causa disso, para poder afirmar-me como eu próprio. Sentia que estavam à espera que fizesse qualquer coisa, que não sabia muito bem o que era. Anos mais tarde, aos 40 ou coisa assim, iniciei o processo inverso. Já tinha afirmado a minha autonomia, já não havia o perigo de quererem influenciar-me, e houve uma reaproximação.
Quando disse que foi educado para ser gente, quer dizer que foi educado para para ter sentimentos nobres. Uma pessoa bem educada e merecedora da história que o antecede.
Estou em contacto com um antropólogo americano que me diz que aos americanos faz muita confusão quando se olham ao espelho e vêem coisas do pai ou do avô; que isso lhes provoca uma crise de identidade. Achei muito curioso porque na minha experiência isto simplesmente não existe. Para mim é perfeitamente natural ter coisas do meu pai ou do meu avô. Apesar de terem passado 250 anos, penso que o facto de os Marqueses de Távora terem sido decapitados, ainda teve influência na minha vida.
Pode concretizar essa ideia?
Não é uma influência directa, é evidente. Por exemplo, [a decapitação dos Távora], que aconteceu quando a Marquesa de Alorna tinha oito anos, possivelmente contribuiu muito para o lado independente que ela tinha. A Marquesa de Alorna é a poetisa Alcipe, avó de Trazimundo e neta dos Távora. O Trazimundo tem consciência de que a sua opção política, (o lado liberal e não o absolutista), tinha a ver com esse facto. O eu ser uma pessoa de Esquerda, de alguma maneira, ainda tem a ver com isso. A minha ideia do que é a relação com o poder, (de que não deve haver excesso de proximidade), tem a ver com o facto de os meus sétimos avós terem sido decapitados.
No «Sermão ao meu Sucessor» fala da distância em relação ao poder. Num sistema monárquico ou republicano, o que move os homens é justamente o desejo de poder.
Sem dúvida que uma convivência muito próxima com o poder tem perigo. O poder não é uma coisa que me interesse muito.
Não é inebriante?
Deve ser. Nunca tive poder suficiente para o achar.
Há sempre os pequenos exercícios...
Claro. Mandar fazer uma coisa e ela ser feita, é útil, é agradável. Mas se o pusermos ao nível de um país, que é quando essas coisas começam a ter significado, eu sei lá o que é melhor para o país! Eu gostava que o país estivesse melhor, que a educação e a saúde tivessem outro nível, que as pessoas fossem atendidas de outra maneira, etc. Agora, como é que isso se consegue? Não tenho a pretensão de saber. Voto, voto sempre, nunca deixei de ir às urnas, às vezes para votar em branco, cada vez com menos convicção, mas não deixo de votar. Governar um país deve ser uma coisa dificílima. E deve dar um trabalho horrível. E um país como o nosso, que não é muito fácil... Não imagino o que seja governar uma coisa como a Rússia!!
Quando é que se descobriu de Esquerda?
Quando olhei a realidade à minha volta e pensei que vivíamos num regime opressivo. O primeiro interesse político que tive, aí pelos 16 anos, foi pela social-democracia nórdica. Estava no sétimo ano do liceu quando foi a primeira grande crise estudantil; depois entrei para a universidade e liguei-me à associação de estudantes.
Não era inusitado ver um nobre partidário da social-democracia?
Se calhar não era muito frequente. E fazer reuniões de oposição cá em casa... Causou um escândalo enorme! Levou a que as pessoas do meu meio me olhassem durante anos com muita desconfiança.
Fazia isso como uma espécie de afronta?
Também. Mas não era essencialmente por isso. Era porque tinha obrigação. Se tinha determinados privilégios, determinadas facilidades, tinha de dar de certa maneira o corpo ao manifesto. Nunca dei muito, não fiz nada de especial, mas fiz as pequenas coisas que estavam ao meu alcance.
O que é a sua mãe achava?
A minha mãe não achava nada bem. Tinha muito a noção do não dar escândalo. Eu percebo; não é uma coisa que me dê prazer, dar escândalo. A pessoa deve ter uma certa discrição. Mas há certas alturas em que temos de afirmar as nossas convicções, e se der escândalo, paciência.
Essa militância derivava do sentimento de justiça, fundamental no modo como considera um título nobiliárquico.
Absolutamente. Se se nasce com certos privilégios, nasce-se também com certas obrigações. Toda a gente sente muito vivamente quando a injustiça é em relação a nós próprios. Alguns têm a capacidade de reflectir sobre isso quando se passa para outros.
Como é que sentiu na pele a injustiça?
São coisas muito miúdas... Lembro-me de um mau exemplo, porque era justíssimo. Devia ter sete ou oito anos e bati a uma criada – era uma criança um bocado arrogante. A minha mãe obrigou-me a pedir desculpa, e fez muitíssimo bem, estou-lhe muito grato. Mas custou-me os olhos da cara. Outra coisa: havia uns gémeos, filhos do cavalista da herdade; a minha mãe obrigou-me a dar-lhes uma bola de futebol. Tinha estimação naquela bola e achei aquilo uma injustiça muito grande; podia ter dado outra, podia ter comprado uma na loja, mas teve de ser aquela.
O dinheiro e o poder normalmente demarcam as classes sociais. Qual a importância do dinheiro na sua vida?
O dinheiro, quando se tem, tem a grande importância de não se ter de pensar nele. Foi essa a grande vantagem de ter nascido com à vontade económico: é não tertido de me preocupar muito com essas coisas. É claro que facilita: a gente tem dinheiro, pode convidar, dar bons presentes. São coisas que tornam a vida agradável, para nós e para os outros. Ter dinheiro e uma posição social de uma maneira geral facilitam as relações. Mas em certos casos dificultam.
No amor, há as clássicas oportunistas, a história mítica do golpe do baú.
Estive sempre consciente, desde pequeno, dessa possibilidade. Não sei se era o facto de estar consciente, e por isso atento, mas nunca tive esse problema. Não tenho a consciência de ter tido pessoas que se aproximaram por motivos interesseiros.
Que coisas conquistou a pulso? Imagino que tenham sido mais saborosas?
Claro que sim. Por exemplo, isso que para mim é importante de procurar não me zangar com as pessoas, de estar sempre disposto a aceitar as pessoas. Mantenho quase todas as minhas relações.
Ainda que tenha sido uma vida de facilidades, parece inquieto.
Acha? Mas isso é porque me está a provocar, e eu, como sou bom espectador, reajo bem a provocações. Já fui angustiado, na adolescência.
A psicanálise, que fez entre os 22 e os 25 anos, foi um processo determinante?
Utilíssimo. A psicanálise ajudou-me a perceber que os outros são um espelho. A grande lição que a vida tem para nos dar é essa: se a gente olhar para os outros, vê-se. E se souber ler, depois ajeita-se.
Porque é que escolheu o seu sobrinho António como seu sucessor?
É aquele que a transição nobre determina.
Tem um afecto particular por ele? O sucessor, normalmente, é o filho. E quando não é o filho, é alguém que se considera como um filho.
Quando nasceu, já sabia que seria o meu sucessor. Não é tê-lo escolhido. É prestar-lhe uma atenção particular por isso. Não tenho uma relação muito próxima, exactamente porque não é meu filho. Gosto muito do António, acho que ele gosta de mim, mas os pais são os pais. Tenho muito pudor em entrar pelas pessoas adentro, sobretudo se a relação não for de igualdade.
Aconteceu não ter filhos ou escolheu não ter filhos?
Aconteceu. Sabia muito novo que provavelmente seria assim. Desde pequeno que tenho um problemo endócrino. Aos 14 anos um médico nos Estados Unidos disse-me que era provável que não tivesse filhos. Foi uma coisa para a qual tive tempo para me preparar.
Mas dolorosa?
Sim. Houve uma altura em que tive muito o sonho de ter um filho. Se a evolução da ciência tivesse estado 30 anos adiantada, era bem capaz de me clonar. Ai sim, sim, fazer um clone. Bem, é preciso ver que sou um leitor de ficção científica...
Um filho não é um clone.
É como se fosse. É melhor ainda: com um clone, como somos nós próprios, fazemos menos cerimónia. Sou um bocadinho narcisista, tenho de confessar que sim... Ah, achava divertidíssimo conhecer e relacionar-me com uma pessoa que fosse igual. Mas mesmo que seja geneticamente igual, nunca é exactamente igual. A educação tem imensa importância. Se esta notícia que saiu agora [relativa ao nascimento de Eva, o primeiro bebé clonado], tivesse sido há 30 anos...
Não acha eticamente reprovável?
Se me disser que vai produzir uma raça de homens todos iguais, que vai produzir centenas, milhares de pessoas iguais com determinadas características, acho horrível, reprovabilíssimo. Ao nível individual, não me choca muito. Não me parece óbvio que essas pessoas não tenham identidade.
Nesse caso, a clonagem seria uma maneira de contornar a dificuldade endócrina que o impossibilitou de ter filhos?
Exacto. Mas seria um desafio extraordinário a pessoa confrontar-se consigo própria...
Há um Fernando Mascarenhas e um Marquês de Fronteira?
É difícil responder em rigor. Se me perguntar se seria o mesmo se não tivesse nascido marquês, não seria com certeza. Penso que teria tido uma vida diferente, teria feito muito mais para me salientar. Porque não tive necessidade. Teria sido muito mais determinado, cedido menos a uma indolência natural. Não sei o que teria feito como estudos, mas no que tivesse sido, teria sido muito melhor do que aquilo que fui.
Não teria ido para Filosofia, curso que apanha uns quantos diletantes...
Teria feito provavelmente outra coisa. Primeiro quis ser, como disse, engenheiro de pontes. E depois... Mas isso é que seria socialmente impensável: gostaria imenso de ter sido bailarino. Também não tinha físico para isso.
Lidou sempre bem com a sua imagem física?
Dentro do possível, penso que lidei bem. Em criança passei muito tempo em médicos e em hospitais, muitos exames, muitas coisas, até aos 14 anos. Tenho um sentido de adaptação muito grande. Consigo adaptar-me muito bem aos locais onde estou e consegui adaptar-me bem à pessoa que sou e ao físico que tenho. Gostaria de ser esbelto, alto, não sei quê... Se tivesse continuado a ser marquês e se, além disso, não tivesse tido os problemas endócrinos que tive, seria insuportável!, vaidosíssimo, um cagão!, uma pessoa absolutamente detestável!
É como se Deus escrevesse direito por linhas tortas?
Exactamente. A humildade é uma coisa que tem de se trabalhar, estudar, procurar. Poucas pessoas haverá que sejam naturalmente humildes. É uma virtude difícil de conseguir. Tenho feito alguns progressos, mas... [risos], estou longe de chegar à perfeição.
Qual acha que é a sua herança?
Nestas coisas das famílias e das nobrezas há dois princípios: o da casa e o da linhagem. O princípio da linhagem é um princípio mais antigo, vem desde os tempos medievais, e não exige grandes coisas: desde que se tenha filhos, a linhagem continua. Em relação ao princípio da casa, que é do século XVI, XVII, para além de manter a casa e alguns bens, é preciso também trazer de tantas em tantas gerações algum lustre à casa. Penso que trouxe algum lustre à casa, e isso faz parte do meu legado. Faço gosto nisso.
Tem uma forte sensação de pertença em relação a esta casa? Sente estranheza quando está muito tempo fora?
Não. Estou sempre muito bem onde estou. Depois do 25 de Abril saí daqui, pensando que não poderia voltar. Fui para Marrocos, depois para Inglaterra. Em Marrocos aluguei uma casinha, estive lá dois meses. Em Londres estive em casa de uma tia, aluguei um quartinho.
Custou-lhe viver com menos mordomias durante esse período?
Não. Foi um período relativamente curto. Em Londres comecei à procura de emprego, fui a uma entrevista na embaixada do Brasil. Tinha algum dinheiro, mas ia ter de começar a ganhar a vida. Gosto de voltar a casa, mas também estou sempre sem angústias fora de casa.
Sabe tomar conta de si?
Sei.
Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2003