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Anabela Mota Ribeiro

António Lobo Antunes (2006)

08.10.14

Falámos dos livros. Do silêncio. Da alegria. Da guerra. Da dificuldade em dizer o amor. Da necessidade de se apropriar do coração dos homens. Falámos da sua nudez, vulnerabilidade, do medo e do desejo. E da fé que tem nos homens. A explicação do mundo de António Lobo Antunes é tão caleidoscópica como a luz da tarde. Nela cabe, agora, a felicidade. Eis o retrato de um homem que a mãe diz ter sido sempre assim. Mas o tempo passou por ele.  

 

Hoje folheei a sua fotobiografia para ver como era em pequeno. A sua expressão, o seu olhar, não mudou muito.

A minha mãe é que diz isso. A minha mãe tem na sala uma fotografia minha com um ano e diz que não mudei. Que esquisito.

 

Pois é. Por isso queria lançar esta questão. As fotografias são um meio privilegiado de sentir a passagem de tempo.

Eu não gosto de fotografias minhas, não gosto de me ver, nunca gostei. Tive sempre uma relação difícil comigo, com o meu corpo, com a minha cara [riso].

 

Está a rir-se porque está a fazer género?

Não, não, é verdade. Vi isso naquele livro das cartas [“D’este viver aqui neste papel descripto”]. Tinha 20 e poucos anos e achava-me feiíssimo. Achava sobretudo que não era parecido comigo, que não tinha aquela cara, que era diferente daquela cara. Olhava para o espelho com uma certa estranheza. Nunca gostei de espelhos. Nem de relógios, não uso relógio.

 

O irreconhecimento passa por onde?

A sensação era sempre a mesma: não sou aquele, não sou este, não tenho fotografias minhas.

 

Nesse sentido, imagino que os livros sejam fotografias suas.

Agora já não. Ao princípio sim. Continuo a achar que os livros deviam ser publicados sem o nome de autores. Havia uma data de problemas que desapareciam. Pelo menos ao nível de competição, inveja, ciúme, tudo isso que nada tem que ver com livros e que eu entendo mal. O Victor Hugo dizia que as obras de arte são como os tigres: não se devoram umas às outras. Descobrir um livro bom é uma alegria tão grande, um autor que a gente não conhece... é uma festa!

 

O sentimento de admiração é uma bênção. Enriquece-nos.

Sinto-me grato por haver pessoas melhores. Mas as que muitas vezes admiro ninguém sabe quem são, a não ser a família delas. Acho que sou humilde. Por exemplo, em relação aos livros: tudo aquilo me escapa. Aquilo é novo e é diferente, mas ainda é muito cedo para se perceber o que é que eu trouxe. O meu medo é sempre o mesmo: desiludir as pessoas que tiveram em mim uma confiança que eu nunca partilhei.

 

Aos 18 anos estava cheio de certezas quanto à literatura e quanto à vida, disse-o. A soberba é própria da juventude.

Havia uma certeza que eu tinha, era que se trabalhasse muito ninguém escrevia como eu. Mas depois fazia coisas muito más. Havia uma distância tão grande entre aquilo que eu sentia e os resultados, que eram tão pobres. Continua a haver.

 

Como se houvesse um desfasamento? Entre aquele que é e aquele que aparece nas fotografias, entre os livros e o que quer que eles sejam.

Estava à espera que falasse nisso. Ainda não é isto, podia ter ido mais longe, podia ter trabalhado mais, podia ter corrigido mais, devia ter reescrito mais. Devia ter só publicado a partir do «Esplendor de Portugal», devia ter lido primeiro o não sei quantos. Ainda eram romances, e não me interessa nada contar histórias. Queria pôr a vida inteira dentro de um livro. Claro que não é possível, mas é a única maneira.

 

Tem falado do desejo de escrever (n)um estado que é “anterior à palavra”. Como se o que vai revelando nos livros, descobrindo com essa mão cega e mágica, fosse desconhecido para si e aflorasse no movimento da escrita. O que será que está antes? Por acaso, havia fotografias em que a sua inocência estava escancarada. 

Isso também depende da maneira como se olha para as fotografias, se é o nosso olhar... É isso que esteve a dizer, sim. Não poderia dizer melhor. Ao mesmo tempo é uma tarefa impossível, é tentar transformar em palavras o que é intraduzível em palavras: emoções, impulsos, os próprios nexos. Gosto de adormecer a ler. E quando estou a adormecer, estou a ler o que não está lá. Depois a gente volta à tona e afinal nada daquilo estava ali escrito. Então, é conseguir esse estado. Consigo-o através do cansaço. As duas, três, primeiras horas são perdidas. É tudo muito lógico-discursivo dentro de mim, os bonecos são quase cartesianos. É tentar furar no coração, do coração. Não sei explicar bem.

 

Explique mais.

Não sei. Só quando se está a escrever é que é isso. Também vivo um pouco assim. Agora é que eu estava bom para nascer.

 

O que é que quer dizer?

Tenho agora alguma virgindade. Virgindade no olhar, uma capacidade de surpresa muito maior do que tinha há dez ou 15 anos. E também o amor. Demorei muito tempo a aprender o que era o amor. Amor, estou a falar em lato sensu. E o entusiasmo. Vivia muito autocentrado, levado pela minha timidez. A existência dos outros foi-me revelada a pouco e pouco. Durante muitos anos era-me difícil conceber relações horizontais com os outros. Começou um pouco na guerra. De repente percebi que havia os outros, que eram iguais a mim e que eu estava entre eles. É muito difícil ser homem. Uma das coisas boas que tenho em ser homem é que não tenho nenhum atrito em me relacionar amorosamente com homens. Esse aparelho [gravador] é horrendo.

 

Mas fala tão baixinho que se o puser longe não capta nada.

Sempre falei muito baixo. Detesto gritos e pessoas que gritam, pessoas veementes. É horrível, porque queremos dizer “gosto de ti” e temos vergonha. Eu tenho vergonha. Fica-se muito despido. Estou a falar de coisas que normalmente não falo.

 

Do quê, exactamente?

Da maneira de viver. A pessoa, a certa altura, começa a perceber que a felicidade é possível. No sentido de não haver mal entendidos entre nós. Entre nós e nós, entre nós e os outros, entre nós e a vida.

 

Porque é que não há mal-entendidos? E como é que se consegue esse entendimento?

Ai, não sou nenhum sábio, vivo por instinto.

 

É uma conquista, esse abandono de uma grelha racional.

Bom, e eu era filho de um anatopatologista. Faz agora dois anos que morreu. Era um homem que quando um dos meus irmãos lhe perguntou o que é que gostaria de ter deixado aos filhos, respondeu “o amor das coisas belas”, seja o que for que isto quer dizer. Acho que ele nunca foi velho. Teve sempre uma capacidade muito grande de se apaixonar, até ao fim da vida. Por um livro, por músicas, por pessoas, mas isso já não me diz respeito, mas espero que sim. A seguir vou deixar de fumar.

 

Bons projectos! Parece de facto mais novo, agora que emagreceu.

Sinto-me leve. Entro no carro, saio do carro, corro, danço, se me apetecer, pulo, não podia fazer nada disso e era uma estupidez. Sem me dar conta, estava a matar-me. Pequei muito contra mim mesmo. Agora pareço o Francisco de Assis, que dizia: “confesso que pequei muito contra o meu próprio corpo”.

 

Falando do S. Francisco, lembrei-me do Santo António, e da sua viagem a Pádua. Quer falar-me dessa viagem?

Não me lembro de nada...

 

Todavia, na fotobiografia elege a viagem como um dos acontecimentos centrais da sua vida.

Claro que sim. Oiça, para uma criança de sete anos... Um homem, como era o meu avô, que me fazia festas, beijava lindamente – é tão difícil uma pessoa que sabe beijar, não é? –, levar-me de carro pela Europa... Portugal, Espanha, França, Suíça, Itália. Foi a pessoa de quem mais gostei até hoje.

 

Ele dedicava-lhe uma atenção exclusiva?

Não sei se dedicava, mas era daquelas pessoas que a fazia sentir-se única. A Anabela está com ela e sente que nada mais existe a não ser a Anabela. Tinha essa capacidade. E era genuína, significava um interesse real pelas pessoas e pelas coisas. Eu era o filho mais velho do filho mais velho dele, tinha o nome dele. Não me pareço nada com ele, que era moreno, bonito, sociável, falador. Eu sou introvertido e tímido e fechado. Não vou a jantares, vejo muito poucas pessoas.

 

A comunicação também se faz no silêncio.

Há pessoas que têm uma estrela na testa, mas são raras. Aquelas pessoas que a gente sente que o nosso corpo vai para elas, sem se dar conta... As palavras são desnecessárias. Uma pessoa de quem eu gosto é aquela com quem estou bem em silêncio. Com o Ernesto Melo Antunes, passávamos horas calados e com a sensação de que tínhamos dito imensas coisas. Dizíamos imensas coisas sem palavras. O Freud dizia que a maneira mais profunda de fazer amor era só com os olhos. Lembra-se de uma entrevista em que o Richard Burton dizia que ele e a Elizabeth Taylor se vinham só de olhar um para o outro? Aquilo parecia-me um exagero, mas é verdade.

 

Essa tirada é tão apoteótica quanto a entrada da Cleópatra em Roma!

Não vi esse filme. Mas vi uma das entrevistas que deram em conjunto, e a maneira como ela olhava para ele...


Há pessoas que têm uma comunicação fusional.

Se calhar, é a única que vale a pena. A gente ou tem ou não tem. É como um berlinde na mão, é como o talento. O amor não é um fim, é um meio, é uma outra forma de falar, é uma maneira de estar mais perto, e mais perto, mais perto.


Fala de África, da guerra, como um nascimento: “Aquilo que eu sou hoje nasceu lá, comecei a ser outro lá”...

No outro dia fui almoçar com eles todos, num almoço de companhia. Os militares falavam em camaradagem_ não é amizade, não é amor... É uma relação tão intensa. Talvez porque vivi com eles as horas mais amargas, mais duras, mais violentas que tive até hoje. Eu não sabia que estava tão ligado a eles. Aquilo era profundamente comovente. Sabe, os soldados tinham 19, 20 anos, os oficiais 23. Não sei se éramos homens, visto agora parece-me que éramos miúdos, e no entanto...

 

Nos seus livros, a marca deixada pela guerra continua a ser central.

Foi muito importante para mim e continua a ser. Eu era um miúdo precoce, fazia coisas estranhas, assustava a minha família. E encontrar iguais, encontrar pessoas... É sempre difícil falar disto, é sempre difícil falar de amor aos outros. Foi em Torres Novas, foi o mês passado. A maior parte vinham do Norte, num autocarro que tinha um cartaz à frente que dizia “Os príncipes do António Lobo Antunes”. Temos tendência a pensar que as pessoas humildes, que não têm aquilo a que chamamos cultura, não são capazes de uma delicadeza tão fidalga; e são. Eles eram príncipes. De coragem. A coragem é apenas uma forma de elegância. Ultimamente fico sempre surpreendido: a maior parte das pessoas são melhores do que eu imaginava. Durante tantos anos fui injusto.

 

Por que é que esteve tão zangado com as pessoas durante anos?

Não era uma questão de zanga, era uma questão de um narcisismo idiota, da assunção de uma superioridade imaginária.

 

A sua superioridade baseava-se em quê? Esse fio narcísico passava por ser o “grande autor”?

Não era o autor de nada, era um miúdo. Baseava-se sobretudo em parvoíce, era um palerma. Estava convencido de que tinha nascido para grandes feitos, que não sabia bem quais eram. Para citar o seu querido Goethe, “a nossa única grandeza possível é não chegar. Não chegar nunca”. Não me apetece nada falar, acho que você percebe sem eu dizer as coisas.

 

Batota. Quer falar de quê então?
Não gosto de falar muito. Quero que justifique o dinheiro que lhe vão pagar, só isso é que me está a preocupar neste momento.

 

Não se preocupe. Eu gostava de saber mais, independentemente do dinheiro que me vão pagar por escrever estas coisas de que estamos a falar.

Eu acho que já sabe, acho que as perguntas acabam por ser redundantes.

 

 

Publicada originalmente na revista Espiral do Tempo em 2006

 

Na sala de espera de um hospital

08.10.14

Passei a manhã [7 Out]  numa sala de espera de um hospital (razões privadas, nada de grave). Passei a manhã a lembrar-me da minha mãe e da minha infância. Do tempo em que vivíamos em Vila Real e íamos ao Porto a um especialista. Da roupa especial que vestíamos para ir ao especialista e ao Porto. Das quatro horas de autocarro pelo Marão antigo. Do mil-folhas que comíamos depois da consulta. Da escada-rolante do Brasília onde eu pedia para andar. 
Os anos 70 foram há uma eternidade. O país era tão outro que custa a crer que tenham passado apenas 40 anos.

As pessoas eram no essencial as mesmas. Havia as administrativas simpáticas que sorriam às pessoas que chamavam pelo primeiro nome depois de dizerem o nome todo. Havia as "cabras" (como a minha mãe lhes chamava) que agitavam o poderzinho de que dispunham e faziam um ar de importante quando lhes fazíamos uma pergunta. Havia os filhos que acompanhavam os pais. Havia os pais sozinhos ("sozinhos como cães", como dizia a minha mãe). Havia uma televisão ligada ao canto.

Havia e há. Vi isso tudo esta manhã. 

O hospital a que fui é privado. Seria muito diferente no público? A degradação do SNS já é preocupante? 
Este post é para repetir o que nunca repetirei as vezes suficientes: defendamos o SNS. Um país só é país se tiver serviços públicos de qualidade acessíveis a todos. Saúde e Educação, para começar.
Enquanto esperava, lia notícias sobre o impensável cenário na educação. Mas o que me impressionou mais foi uma notícia sobre o decréscimo acelerado das prestações sociais. Está no Público, pág.12. Somos mais desiguais. 
Isso dói muito. A vida da pessoa que está ao meu lado é também a minha. Como diria a minha mãe: "Hoje são eles, amanhã somos nós".