Henrique Neto
Preparem-se que o combate vai começar. Na primeira parte da entrevista folheia páginas e personagens dos vários romances da sua vida (quem diz que são vários romances é ele). Na segunda parte, é um tirocínio impiedoso, em que cada frase parece ter José Sócrates na mira. Porquê este pó (a expressão foi minha)?
Henrique Neto vive numa casa no coração do Chiado (uma geografia que bate certo com a da sua infância). Manhã cedo. Abre a porta, olha para o relógio, pergunta: “Você é pontual?”.
Não está habituado à pontualidade (entre jornalistas, pelo menos). Durante a entrevista chegou pelo correio um livro de crónicas – de um antagonista de Sócrates, claro – que é suposto apresentar.
É casado pela segunda vez, tem três filhos e quatro netos. Fez o curso industrial e o comercial quando não tinha dinheiro para ir para o liceu. Estudou Gestão na Universidade de Navarra quando a vida era outra e havia dinheiro para tudo.
Preparem-se. Ele tem uma postura física que não é a de um homem de 74 anos. E tem um discurso de um homem com dinheiro (apesar de dizer que não) e uma situação de independência que lhe permitem dizer quase tudo. Quase?
As pessoas têm a ideia de que é o homem da Marinha Grande, o self made man, uma voz crítica do PS nos anos mais recentes. Podemos decompor estes vários elementos?, para perceber a pessoa que hoje é.
Conto-lhe a minha história, tem a sua graça. Nasci em Lisboa, acidentalmente, no Beco do Carrasco, Poço dos Negros, numa sobreloja de uma fábrica de vidros que ali existia, “As Gaivotas”. Tinha uma tia que vivia na sobreloja esquerda, com uma filha. Nasci do lado direito, num quarto da casa do chefe da polícia da esquadra da Boavista. O meu pai, que era operário vidreiro, quando fez tropa foi para a polícia, para a esquadra da Boavista. A minha mãe veio com ele e alugaram um quarto. O meu pai era muito irrequieto, teve as mais diversas profissões. Era um autodidacta, lia muito, apesar de ter só a quarta classe. Estive por ali até aos três, quatro anos. Depois o meu pai deixou a polícia, voltou a ser operário vidreiro, e fui para a Marinha Grande.
Porque é que o seu pai era tão irrequieto?
Era assim. Emigrou para a Alemanha como operário vidreiro com 65 anos e trabalhou lá até aos 75. Com a minha mãe sempre foi assim, sempre teve a casa dele e ela a casa dela. Voltei para Lisboa para fazer o final da 3ª classe, com nove anos, e fui viver para o Beco, para casa da minha tia. O meu pai era pobre, vivíamos com dificuldades. A minha prima era funcionária da Bertrand, fazia as compras dos livros, ganhava bem. A minha tia não trabalhava, as duas tinham uma vida pacata. Fiz a 4ª classe, e o 1º e 2º ano da escola industrial, na Fonseca de Benevides. Quando acabei, voltei para a Marinha Grande. Nunca ninguém na família pôs a hipótese de eu ir para o liceu – coisa interessante. Era natural que fosse trabalhar.
Não pensaram no liceu, nem sequer a sua prima que fazia compras para a Bertrand, que tinha acesso aos livros, porque não havia de todo essa possibilidade económica, ou porque se achou que o facto de estar em Lisboa já era uma maneira de ter uma educação diferente daquela que teria na Marinha Grande?
Penso que era mais por acharem que não tínhamos recursos para fazer uma carreira universitária. Não me lembro de ter achado aquilo estranho, escolhi e ponto final. Com 13 anos, fui trabalhar e estudar à noite. Fui fazer um curso industrial, que já não era de mecânica, era de pintor de vidros. Como tinha um grande à vontade em mecânica, consegui convencer os professores a fazer um curso de mecânica onde havia um curso de pintores de vidros [riso]! Lembro-me que arranjei uma chumaceira, um motor de bicicleta italiana, desmontei, levei e desenhámos aquilo. Tirei o quinto ano de mecânica num curso que não era de mecânica. Os miúdos todos fizeram esse percurso: o curso de mecânica que nos era útil à vida, que estava a nascer na Marinha, com a indústria de moldes.
O que é que perseguia nesses anos, e o fazia sugerir isso aos professores? Era o desejo de aprender, era o desejo de sair da cepa torta?
Era um bocado o desejo de subir na vida. Comecei a trabalhar numa fundição e deram-me cinco escudos por semana. Achei uma exploração, só lá trabalhei duas semanas. E não gostava, trabalhar com areia não tinha nada a ver com mecânica. Fui trabalhar com um tio que tinha uma caixotaria (fazia caixotes de madeira que eram fornecidos às fábricas para meterem o vidro, para a exportação). Dos 14 aos 16 trabalhava a pregar os caixotes, e depois levava-os à fábrica num carro de burro. Fiquei célebre na Marinha Grande porque ia ao lado do burro, a andar, e a ler! Lia toneladas de livros. A história da Bertrand tem que ver com isso.
Os livros chegavam por via da sua prima ou das bibliotecas itinerantes?
Havia uma biblioteca no Jardim de Santos. Era uma estante metálica com duas portas de vidro. O meu critério era começar na prateleira de cima até à prateleira de baixo. Quando acabei aquilo passei para o Jardim da Estrela, onde havia uma biblioteca semelhante. Com nove, dez anos, passava ali as tardes. Já no curso industrial e comercial, vinha para a Bertrand. Lembro-me de o Aquilino Ribeiro se vir meter comigo: “O que é que estás a ler?”. Andava sempre por ali, pela Brasileira.
Aprendeu a ler com o seu pai, com a sua prima?
Antes da 1ª classe, fui para a Candidinha, uma professora que ensinava os meninos a ler, aí uns 12. Tinha um quarto pequeno, com uns banquinhos baixinhos; cantava-se, lia-se, aprendia-se.
É interessante a consciência que os seus pais têm de que é preciso que saiba ler cedo. Não era tão comum quanto isso em pessoas pobres e naquele quadro social.
A Marinha Grande tem uma cultura completamente diferente. O meu pai tinha muitos livros, de política, de outros tipos. O meu tio paterno, que viva ao nosso lado, tinha estantes com livros. Quando voltei para Lisboa, foi um choque cultural para mim. Via os operários da Lisnave, das docas, pelas ruas, sentados no chão, todos de fato-macaco, ainda sujos. Mas estes tipos não se lavam? Na Marinha Grande o operário vidreiro (ainda hoje, mas na altura era mais notório) acabava o trabalho, tomava banho na fábrica, vestia-se e saía de fato e gravata. O fato da fábrica ficava na fábrica e ao fim-de-semana limpava-se.
De onde é que isso vem?
Da tradição. A [empresa] Marinha Grande foi fundada pelo Stephens, um inglês. O Marquês de Pombal achou que estávamos a importar vidro da Inglaterra que não se justificava, chamou o Guilherme Stephens e disse-lhe: “Queria que fizesse uma fábrica de vidro aí num sítio qualquer. Escolha”. Escolheu a Marinha Grande porque tinha lenha para queimar. Construíram um palácio, que hoje é o museu do vidro. Fizeram leis; uma delas foi proibir as tabernas. Fizeram um teatro, uma escola profissional, importaram mão-de-obra de Inglaterra, de Veneza e de outros sítios, para ensinar. Diz-se nas crónicas [da época] que foram à Marinha Grande os grandes teatros de Lisboa. No final da monarquia fundou-se o sindicato vidreiro, que teve uma acção muito importante na cultura. Já no meu tempo existia o Sport Operário Marinhense, uma associação de cultura e recreio que durante muitos anos foi dirigida por um grande amigo, o Dr. José Vareda. Com ele aprendi muitas coisas – democracia, nomeadamente. Quer na escola industrial quer na comercial, que fiz depois, não se aprendia inglês; aprendi inglês no Sport Operário Marinhense. O operário da Marinha Grande, na política, até recentemente, não reivindicava se não soubesse dar o exemplo. O meu pai era um doente disso.
Disse que parte do seu esforço tinha que ver com o desejo de subir na vida. Qual era o modelo que o inspirava? É verdade que todo o meio o puxava para cima.
Quando acabei o curso industrial devia ter uns 15 anos e trabalhava já no Aníbal Abrantes. O Aníbal Abrantes tinha uma fabriqueta para fazer moldes, foi para a Marinha para jogar futebol. Toda a gente o conhecia, era uma espécie de Peyroteo. Passava muitas vezes à porta da fábrica, que tinha janelas com umas frestas, ficava horas a ver as máquinas. O meu sonho era trabalhar naquela fábrica.
Porquê?
Eu percebia que o vidro era o passado e que os moldes iam crescer. Não me enganei. Quando acabei o curso industrial ainda pensei ir para o liceu, mas não havia aulas nocturnas, a minha família precisava do meu ordenado. (Chegava a casa e dava o ordenado à minha mãe, ela depois ia-me dando o que achava. Foi assim até me casar).
Antes dos moldes, vamos a alguns personagens com quem se cruzou. Já me disse que tem vários romances na sua vida.
Tive um professor fabuloso na 1ª, 2ª e 3ª classe, o professor Garcia. Tínhamos só escola de manhã mas ele dava aulas todo o dia, por auto-recriação. À tarde, havia um aluno que fazia ditados aos outros e mantinha a disciplina. Se no dia a seguir lhe cheirava que tinha havido bagunça, era estalada forte. Era muito grande, um estalo dele era uma coisa respeitável. Incentivou-nos a pedir à família dois tostões e havia prémios para quem tinha dado menos erros durante a semana. Havia três matulões que levavam o prémio sempre, eu era um deles [riso]. Os outros dois foram da PIDE, mais tarde. Era o “Mercúrio”, porque foi trabalhar para uma drogaria, e o Prazeres, que vivia sozinho com a mãe, o pai tinha desaparecido.
Que expectativas é que os seus pais depositavam em si?
Bastantes. A minha mãe era analfabeta. O meu pai lia muito mas estava lá na dele. Se precisasse de alguma coisa e fosse ter com ele, ele fazia; mas eu nunca precisava de nada, nem ia precisar. Portanto, nunca ia ter com ele, e ele nunca vinha ter comigo.
Que acanhamento era esse em relação ao seu pai, a ponto de “nunca precisar de nada”?
A minha mulher diz isso muitas vezes – acho que exagera –, que na nossa família não comunicamos. Se alguém está aflito acode toda a gente, mas cada um resolve a sua vida. Para lhe dar uma ideia: as minhas pegas com a minha mãe – que eram poucas, adorava a minha mãe – eram sempre porque ela comia em pé. As culturas são como são. A minha mãe tinha sido criada de servir, antes de casar, e tinha vindo de um meio rural, da Batalha. O meu avô era um homem terrível. Morreu com 102 anos e era um “Malhadinhas” chapado – não sei se conhece a obra do Aquilino. Um dia matou um homem que lhe fez qualquer coisa no quintal. Conto isto muitas vezes porque é tão português...
Que idade é que tinha quando isso aconteceu?
Tinha sete, oito anos. Ouvi falar na altura. Depois do julgamento, o juiz perguntou se ele tinha alguma coisa a dizer: “Tenho. Não fiz nada, só lhe dei umas verdascaditas com o cabo da enxada”. A palavra é esta. A verdascada é dada com uma coisa fininha. Se ler o “Malhadinhas”, ele fala assim. Aliás, temos um primeiro-ministro que também é assim. Falam, torcem a verdade e a realidade. Claro, isto é uma torcidela muito forte. O juiz parece que lhe disse: “Então uma verdascadita…”. Mandou-o para a cadeia 20 anos, mas ele só lá esteve um ano. Tornou-se jardineiro do chefe da prisão, rapidamente, fazia o vinho.
Sempre tive horror às palavras que dizem coisas demais. As palavras têm que dizer aquilo [que são], não pode haver interpretações na minha cabeça. Detesto escritores [como] o Lobo Antunes, detesto, se aquilo é um escritor. Porque diz o que lhe passa pela mona, lemos páginas e páginas sem saber o que é que ele quer dizer.
Porque é que precisa de palavras concretas?
Talvez como reacção aos “Malhadinhas” deste mundo.
Que distorcem a realidade e o significado das palavras, é isso?
Como comecei a ler muito cedo, comecei a gostar das pessoas que percebia facilmente o que é que queriam. Adorava o António José Saraiva, que era o tipo que dizia mais coisas com menos palavras.
Que impacto é que teve na família, e em si, em termos reputacionais o caso do seu avô?
Nenhum.
Era a cultura do seu tempo?, era um homicídio mas apesar de tudo era uma coisa de honra?
A minha mãe dizia que o meu avô tinha matado a minha avó. Aí nunca foi preso. Ela estava grávida e parece que ele lhe deu um pontapé. A minha mãe dava-se muito mal com ele. Eu dava-me bem, estranhamente. Bem sei que o conheci mais proximamente quando ele estava na fase de velho.
Mais adocicado?
Sim.
Ele falava do que tinha feito, do que tinha sido a vida dele?
Não.
Manteve-se orgulhoso até ao fim ou mostrava arrependimento?
Nunca dei por isso. Lembro-me dele na fase dos 90 anos. A casa era em frente ao Mosteiro da Batalha. Quando tinha 90 anos e começava a chuviscar, agarrava numa garrafa de vinho, num bocado de pão, um bocado de queijo (quase só se alimentava a pão e queijo), e dizia: “Vou ver os desastres”. Fazia-lhe muita confusão porque é que as pessoas tinham desastres naquele sítio; era uma estrada polida, os carros vinham por ali abaixo, ele estava por trás do sobreiro a ver. Dizia que tinha tido dez filhos de duas ninhadas. (São coisas chocantes, mas era assim). Tinha filhos dessa mulher que morreu, depois casou novamente e teve outros cinco. Mas íamos sempre ver o meu avô, no Natal, na Páscoa.
Viveu num mundo onde as relações podiam ser simultaneamente passionais e tensas. Com a sua mãe, com o seu avô, percebeu que era possível viver nessa tensão e não perder a face.
Sim. O meu avô resolvia todos os problemas. Quando esteve preso, “o avô Alfredo…” – Alfredo Palaio, era a alcunha – “rapidamente resolveu o problema”. Empregou-se, ainda estava na prisão, na Junta Autónoma dos Vinhos, primeiro na Batalha e depois em Leiria. Não havia enólogos, pisava-se a uva, cheirava-se e toca a andar; o meu avô especializou-se, era muito respeitado na zona.
Não perdeu o respeito.
Não, não, as pessoas respeitavam muito o Alfredo Palaio. Uma vez, na Marinha, tinha 12, 13 anos, ainda me lembro da situação, do sítio, da casa, estive à bulha com outro miúdo, que me terá dado um estalo. Eu, aparentemente não lhe dei outro; a ponto de alguém, que conhecia o meu avô, me ter dito: “Ai se fosse o teu avô… Não sais ao teu avô, ele matava-o já”. Aquilo humilhou-me brutalmente.
Estávamos naquilo que os seus pais esperavam de si.
Esperavam que tivesse uma profissão. Trabalhei com o burro até aos quase 16 anos. A minha mãe dizia ao meu tio, meu padrinho, que eu queria era ir para o Abrantes. E ele dizia: “Um dia falo ao Abrantes”. O meu padrinho Frutuoso ia muitas vezes ao café Cristal, onde o Abrantes também ia beber café. “Quando tiver lá uma vaga, tenho um sobrinho que queria ir para os moldes”.
Lembro-me de estar a ler e baterem ao vidro da janela à meia-noite, uma hora da manhã; era o meu tio Frutuoso: “Pode mandar o rapaz amanhã para o Abrantes, que ele mete-o lá”. Fiquei encantado, levantei-me de madrugada, vesti-me, quando a minha mãe me veio chamar já estava pronto. Havia pouca gente entre os trabalhadores que tivesse o curso industrial. Trabalhei na oficina nos primeiros meses, nos tornos, na bancada; depois fui para desenhador (uma espécie de escalão mais elevado).
Já não sujava as mãos. Uma enorme diferença.
Fui dos primeiros desenhadores de moldes.
O que é que era fascinante, era perceber como é que as coisas funcionavam?
E também sentia que tinha ideias.
E que conseguia materializar essas ideias nos moldes?
Foi o que aconteceu. Quando fui para desenhador já havia mais dois, nenhum deles tinha o curso industrial. Um era o Carlos Ministro, de uma família de operários a quem chamavam “os ministros” porque tinham opiniões; eram do PC. Era o Carlos Ministro, o Lenine Ministro. Tive pegas com ele mais tarde, na empresa. Lenine era nome próprio, Lenine de Jesus Alexandre.
Era o catolicismo da mãe, o comunismo do pai…
O pai fazia moldes de madeira. Talvez devesse contar, tinha 14, 15 anos e fui para MUD Juvenil [Movimento de Unidade Democrática]. Eu e os outros todos. Éramos para aí 50 miúdos.
Antes disso ia para a Mocidade Portuguesa, não?
Tenho uma fotografia com o barrete da Mocidade Portuguesa. Nunca fui preso; ou melhor, fui preso três ou quatro dias enquanto os meus amigos foram todos presos. No MUD Juvenil fizeram de mim (não contribuí nada para isso) uma espécie de tipografia; deram-me uma máquina de escrever e um stencil, que levei para casa, para grande horror da minha mãe. Tinha-a numa casota, só eu é que tinha a chave. Quando havia distribuição de documentos, papéis, não ia para não ser apanhado. Se fosse apanhado podiam ir a minha casa, como iam a casa dos outros todos. Portanto, até ir para a tropa, tive sempre uma certa protecção por causa de ser o escritor de serviço. Diziam o que queriam, davam-me os textos e eu dactilografava. Não era formalmente do Partido Comunista.
Nunca foi?
Fui, muito mais tarde, em 1966, 67, 68.
Quem eram as figuras que dominavam a cena política da região, nessa altura?
O Dr. José Vareda, também ele um autodidacta. Fez uma coisa que nunca consegui fazer: foi para o liceu. Tinha a vantagem de servir à mesa, (o pai ferrava os cavalos e tinha uma tasca). Ia de bicicleta para Leiria. Tirou o curso de advogado em Coimbra, era um homem com grande importância na política antes do 25 de Abril, e depois também. O outro, Vasco da Gama Fernandes, que foi presidente da Assembleia da República. O Dr. José Vareda, para meu espanto, nunca foi do Partido Comunista. Dizia-me que não era, mas nunca acreditei [riso]. Não era mesmo, era aquilo a que se chama um compagnon de route, um homem que defendia os princípios.
Estamos outra vez nos personagens dos seus romances…
Havia um operário, de cultura fabulosa, ainda é vivo, na miséria, o Joaquim Carreira; nunca abriu a boca [na prisão]. O meu maior amigo, o Luís Manuel Ferreira dos Santos, que era dessa miudagem, era poeta. Deu-me a ler Fernando Pessoa. O Luís não era do Partido Comunista, não era de coisa nenhuma; ajudava, mas a política não era para ele. A PIDE não ia em poesias, foi preso três vezes. “Eu não falo”. Como os que não falavam eram os do Partido Comunista, o Luís era um perigoso comunista!, foi dos que mais levaram, pancada, sono. Na terceira vez, veio de lá e não dizia coisa com coisa, meio tolo.
Que é feito do Luís?
Nessa época acampávamos. Lembro-me de estarmos no parque de campismo de São Pedro de Moel, apareceu um casal, dois professores suíços, com duas filhas (bem giras, por acaso), que perguntaram: “Porque é que vocês não fogem disto?”. O Luís disse: “Eu fugia, se pudesse”. Foram para a Suíça e arranjaram-lhe um emprego. Era contabilista numa empresa na Marinha. Já tínhamos 20 anos. Já tínhamos ido ao estrangeiro, o Dr. Vareda, mais um primo dele, o Luís e eu, a França de carro. Fomos passar os Pirinéus.
Só para ver como era?
Para ver os livros, comprar jornais, passear. Fomos a um acampamento no Vercors, uma área da Resistência Francesa, ver os monumentos, o sítio onde as pessoas tinham morrido. Fizemos um mês inteiro. Quando chegámos a polícia caçou-nos tudo quanto a gente trazia na fronteira. O Luís ainda hoje está na Suíça, reformado. Vou lá vê-lo, vem cá ver-me. Escreve livros, faz poesia.
Como é que cresce profissionalmente?
Cedo comecei a ter uma vida economicamente organizada, folgada. Fiz a tropa. Voltei para a empresa como desenhador. Uma vez, com o Lenine, fomos falar com o patrão, que era um homem excepcional, ouvia toda a gente. Foi a época em que começaram a exportar. Os moldes chegavam, não eram iguais aos que estavam no desenho, os clientes começavam a reclamar. “Isto está uma desgraça, o senhor Costa (que era o chefe da produção) não cumpre os desenhos”. O Aníbal Abrantes deu-nos poder para fazer cumprir os desenhos. Quase toda a gente ia comer a casa; eu, durante a hora de almoço, andava por ali, com a bucha, a ver. Sabia tudo o que se passava na produção. Ganhei um certo ascendente pelo facto de saber. Mais tarde, houve um homem que iniciou a exportação portuguesa de moldes, um holandês.
Outro personagem de romance?
Deu um romance e deu um filme. Era um judeu, da Força Aérea, teve um desastre na fase inicial da [Segunda] Guerra. Saiu do hospital, foi recrutado pela CIA para espião, ele e mais meia dúzia. Fizeram espionagem através de uma orquestra. O nome dele era Tony Jongenelen. Foi meu mestre, também. Quando acabou a guerra, o governo americano deu-lhes apoio para organizarem a vida. Todos montaram fábricas de injecção de plástico para fazer instrumentos musicais. O Tony Jongenelen era vendedor de mecanismos de uma empresa Suíça, veio a Portugal e viu o molde de uma televisão com música dentro, um brinquedo, da Aníbal Abrantes. O plástico era a novidade. Disse: “Quanto mais produzíssemos, mais vendíamos. O problema são os moldes, não há quem faça moldes”. Ficou muito rico, o Sr. Tony Jongenelen. Já não era pobre. Fixou-se cá. O Aníbal Abrantes não ganhou muito. Mas deu-me a mim a oportunidade. A determinada altura o Tony Jongenelen teve um ataque cardíaco e decidiu que quem ia à América falar com os clientes era eu.
Que idade tinha quando isso aconteceu?
Tinha 26 anos. A primeira vez nos Estados Unidos, a primeira vez a andar de avião. Nunca tinha feito preços. Arranjei um amigo, desenhador de uma empresa americana, que fazia brinquedos; foi-me dando os preços americanos [riso]. À conta disso, fiz uma encomenda fabulosa que deu muito lucro à empresa.
Quando em 1975 fundou a sua empresa, todo esse caminho já tinha sido desbravado por si, com os diferentes sectores. Como é que deu esse passo?
Muitos dos meus colegas saíram para montar as suas unidades. As fábricas de moldes eram quatro, cinco sócios. Tive vários convites e nunca quis. Costumo dizer, quando me dizem que sou um empresário excepcional: “Fui, à força”. Só fui com o 25 de Abril. Era director-geral da Aníbal Abrantes e era do Partido Comunista, o que causou muitos engulhos. Dei com uns sujeitos na fábrica a fazer fotocópias e fiz uma zaragata. “Aqui na empresa trabalha-se, fazem os papéis lá fora”. O Aníbal Abrantes vendeu a empresa. A administração eram uns meninos ali do Estoril. Começou a haver choques crescentes a seguir ao 25 de Abril. Com um engenheiro da comissão de trabalhadores, quiseram cortar-me o ordenado. Eu tinha uma comissão sobre as vendas, tinha uma situação económica bastante desafogada… “Não há cá cortes”. Fiz umas propostas meio loucas e vim-me embora.
Porque é que antes disso não quis? Porque é que não teve a ambição de trabalhar por conta própria? Ainda por cima com a noção de que dominava as várias áreas.
Por um lado ganhava bem, gostava muito do que fazia. A empresa tinha crescido, era provavelmente a maior empresa de moldes do mundo, tinha cerca de 300 pessoas.
Achava que já tinha, olhando para o seu ponto de partida, mais do que alguma vez tinha sonhado, era isso?
Era. Por outro lado, tinha que começar com uma chafarica pequena. Nunca gostei de dinheiro, nunca valorizei o dinheiro.
Como assim?
Precisamos de dinheiro, para comer, para os livros. Mas mais do que é preciso, para quê? Nunca tive a ambição de ter dinheiro. Ainda hoje não tenho.
A sua ambição era ter o quê?
Era fazer obra. Esta coisa da maior fábrica de moldes do mundo, era uma coisa que dava no olho.
Estava envaidecido por ser o director-geral de uma fábrica que era a maior do mundo e que tinha 300 funcionários.
Era. Dava gozo, os clientes vinham, achavam aquilo o máximo. Estava mais motivado pela obra da Aníbal Abrantes do que propriamente por ir montar uma empresa.
Foi candidato pela Oposição Democrática em 1969. A partir do episódio que contou, é interessante perceber que não misturava a actividade política com a sua actividade profissional.
Isto reverte à cultura da terra.
Não quis ser um político proeminente, não investiu na carreira política, apesar de ter sido candidato.
Antes de mais nada, os políticos no distrito de Leiria eram dois, Vasco da Gama Fernandes e Dr. José Vareda. O Vareda era muito próximo do PC, o Vasco da Gama era muito próximo da Acção Socialista, que antecipou o Partido Socialista. Mesmo quando não havia campanhas políticas, todas as semanas nos reuníamos no escritório do Vasco da Gama. Ele ficava atrás da sua secretária, um senhor à antiga, discutia-se, livros, política. No 5 de Outubro vinham os velhos, alguns da primeira República, que faziam discursos com voz tremente, que o Vasco da Gama fazia também quando estava na Assembleia da República.
A maçonaria, entrava aí?
Bem dito. Sempre tive um pé à maçonaria muito grande. Não gosto da maçonaria.
Porquê?
Porque vicia o pensamento. A maçonaria é um grupo de amigos que se defendem uns aos outros. Não quer dizer que não tivesse sido importante.
O PC, a que pertenceu, não era um grupo que pode viciar o pensamento?
Na Marinha Grande, o PC era muito mais virgem. Era outra escola.
Quer dizer, foi assediado pela maçonaria, mas não foi.
Nessa altura, não. Fui mais tarde, em Lisboa, com a Natália Correia. Mas sempre disse: “Com a maçonaria não quero nada”. Ainda hoje continuo a dizer que é a coisa pior que pode existir na política. Por alturas de 1968, 69, o distrito de Leiria começou a ser muito importante na política nacional por causa do José Vareda e porque era a partir de Leiria que se faziam as reuniões da Oposição Democrática. Fazíamos reuniões em Fátima, foi lá que conheci o [Mário] Soares, o [Salgado] Zenha, o Jorge Sampaio. Depois o Vareda abriu um escritório em Lisboa e juntava-me muitas vezes aqui com ele, com o Jorge Sampaio, com aquele grupo dos católicos. Passámos também a fazer uma política lisboeta. Consegui conciliar as duas coisas, o que às vezes não era fácil visto que fazia viagens aos Estados Unidos praticamente todos os meses. Conheço os Estados Unidos como as minhas mãos.
Nunca desistiu de uma das partes? Nunca decidiu que ia ganhar dinheiro, mais que tudo, e que a relação com a política ia ser lateral?
Desisti. Quando montei a Iberomoldes, em 1975. Era na altura da comissão política do MDP [Movimento Democrático Português], o Vareda e eu representávamos o distrito de Leiria; lembro-me de uma célebre noite em que se discutiu os SUV’s, Soldados Unidos Venceremos. O PC tinha resolvido apoiar. Reagi contra, o Vareda também, e mais alguns. “Estou disponível para fazer uma revolução. Uma guerra civil, não faço”. Os soldados, no fundo: era dividir o exército, dividir a tropa entre esquerda e direita, coisa muito perigosa. Nessa noite, às três ou quatro da manhã, como aquilo acabou por ser aprovado, disse: “Vou-me embora, não ponho cá mais os pés”. Em casa, acordei a minha mulher: “A minha vida política terminou hoje”. E assim foi.
Foi só um desencanto com a política?
Claro que também havia uma razão [económica]: tinha um ordenado, ganhava bem, deixei de o ter, ia começar uma empresa. Durante uns anos não tive nenhuma actividade. Até que o Jorge Sampaio me veio desencantar quando foi secretário-geral [do PS].
Quando é que se reconcilia com o Partido Socialista? É por via do Soares, do Sampaio?
Do Sampaio. Nunca gostei do Soares, detestava-o. Antes do 25 de Abril, num jantar de homenagem no Carregado, o Soares, e hoje reconheço, com razão, fez um discurso em que cortava com o Partido Comunista e dizia que a política portuguesa não podia ser dominada pela Oposição Democrática inorgânica, que a missão dele era criar um partido. Na minha cabeça, isto era um ataque à unidade!, a nossa obsessão era a unidade.
Não porque Leiria tivesse mais poder político, mas porque organizava bem as coisas, as reuniões passaram a ser feitas ali. Os sítios estavam prontos, o almoço estava feito, funcionava que nem uma máquina. Eu detestava o Soares, que tinha aquela coisa, entra assim [incha o peito], arrogante. E a gente vinha da província aos senhores de Lisboa, para fazer a unidade…
Quando é que passou a gostar do Soares? Tem uma fotografia do Soares na sala.
Tenho, e de vez em quando janto com ele, agora dou-me bem com ele. [Reconciliei-me] quando o Soares foi presidente da República. Com os presidentes da República não discutimos. Na minha cabeça, um presidente da República está acima dessas coisas, este e os outros todos. Ainda hoje, quando o vejo, chateio-lhe o juízo porque ele anda a sustentar o Sócrates, e a denegrir o seu passado político. Gostei muito do Zenha, apoiei-o quando foi candidato à presidência da República, não apoiei o Soares. Era um homem íntegro, recto, com ele as palavras não queriam dizer outra coisa; o Soares não, diz uma coisa e daí a bocado já é outra coisa.
Porque é que tem pó ao Sócrates?
Uma vez, fui a um debate em Peniche, conhecia o Sócrates de vista. Isto antes do Governo Guterres. Não sabia muito de ambiente, mas tinha lido umas coisas, tinha formado a minha opinião. O Sócrates começou a falar e pensei: “Este gajo não percebe nada disto”. Mas ele falava com aquela propriedade com que ainda hoje fala, sobre aquilo de que não sabe [riso]. Eu, que nunca tinha ouvido o homem falar, pensei: “Este gajo é um aldrabão, é um vendedor de automóveis”. Ainda hoje lhe chamo vendedor de automóveis.
Esse é um dos nomes mais simpáticos que lhe chama, chama-lhe outros piores.
Quando se pôs a hipótese de ele vir a ser secretário-geral do PS, achei uma coisa indescritível. Era a selecção pela falta de qualidade. O PS tem muita gente de qualidade. Sempre achei que o PS entregue a um tipo como o Sócrates só podia dar asneira.
Nos últimos tempos a sua voz é das mais críticas no PS, e o desdém com que fala dele faz-me perguntar se a questão tem uma raiz emocional.
Faço uma explicação: gosto muito de Portugal – se tiver uma paixão é Portugal – e não gosto de ninguém que dê cabo dele. O Sócrates está no topo da pirâmide dos que dão cabo disto. Entre o mal que faz e o bem que faz, com o Sócrates, a relação é desastrada. O Soares também fez muito mal ao país, mas também fez muito bem; se calhar até fez mais bem que mal.
A maneira como se envolve e se empenha cada vez que fala de Sócrates, faz perceber que há ali uma motivação que é epidérmica, que não é uma coisa só racional.
Não. Há caras de que gostamos mais e outras menos, mas não me pesa assim tanto. Para além do facto de que estou convencido de que ele não é sério, também noutros campos. Conheci a vida privada do Sócrates, ele casou com uma moça de Leiria, de quem conheço a família. Sou amigo do pai delas, que foi o meu arquitecto para a casa de São Pedro de Moel. Esta pequena decoração que vê aqui [em casa] foi feita pela cunhada do Sócrates. Às vezes compro umas pinturas que a mãe delas faz. Nunca fui próximo da família, mas tenho boas relações. Não mereciam o Sócrates. Portanto, sei quem é o Sócrates num ambiente familiar. Sei que é um indivíduo que teve uma infância complicada, que é inseguro por força disso, que cobre a sua insegurança com a arrogância e com aquelas crispações. Mas um país não pode sofrer de coisas dessas.
Permite-se dizer todas as coisas que diz acerca de Sócrates porque tem esta idade e porque tem o dinheiro que tem?
Não tenho muito dinheiro.
Há essa ideia, sobretudo depois de ter vendido a sua participação na Iberomoldes.
Quase dei. Não queria morrer empresário. Tenho para ir vivendo, não tenho assim tanto dinheiro. Também não posso ser tão inocente… O problema é que também estava convencido de que a indústria portuguesa vai toda para o galheiro. Com os erros que estamos todos a cometer, só por milagre é que algum sector vai sobreviver. Se estou convencido disso o melhor é não fazer parte do problema, especialmente nesta fase da minha vida. Tenho a minha independência económica.
Não depende.
Sempre fui assim. Escrevi uma carta ao Guterres, que foi publicada, em que lhe disse coisas que digo do Sócrates.
Foi deputado na governação de Guterres.
Era deputado quando escrevi a carta, era da comissão política do Partido Socialista. Foi na fase de Pina Moura e daqueles descalabros todos. Na comissão política, estão publicadas algumas dessas coisas, [sobre] os negócios do Jorge Coelho e do Pina Moura. Depois de ter falado disso tudo em duas ou três reuniões e não ter acontecido nada, escrevi uma carta e mandei ao Guterres. Ele distribuiu a carta. No outro dia veio nos jornais. Era uma carta duríssima. Os problemas eram os mesmos, estávamos a caminhar mal, estávamos a enganar os portugueses, a dizer que a economia estava na maior, quando não era verdade. Na altura já falava com o Medina Carreira e ele já falava comigo.
Está a dizer-me que sempre se permitiu dizer tudo.
Sim. E tinha a empresa. Quando o Pina Moura foi ministro das Finanças, uma senhora das Finanças instalou-se lá na empresa. Nunca contei isto. Encontrava-a no elevador, nunca falei com ela, “bom dia Sra. Dra”. Mas os meus homens contavam-me. Andou à procura, à procura, à procura como uma doida. Esteve lá alguns dois anos. As coisas não são impunes, a gente paga-as neste mundo. Disse o que quis do Pina Moura, da maioria desses gajos; era natural que se defendessem. Os seus colegas jornalistas muitas vezes foram ao Pina Moura com o que eu disse; e ele: “Não comento”. O Guterres também não comentava, e o Sócrates também não comenta. Aliás, quando faço uma intervenção ao pé dele fica histérico, não me pergunte porquê.
Porque é que não quis acabar empresário?
Porque ser empresário hoje é ser herói. Já não tenho idade para ser herói. A economia portuguesa não está assim por acaso.
É o seu projecto de vida. Porque é que não quis continuar a trabalhar nisso que foi a sua vida?
O meu pai mudou de vida várias vezes. Por exemplo, emigrou para trabalhar na Alemanha com quase 70 anos e não foi por estar com fome. Devo ter alguma coisa da irrequietude do meu pai. Por outro lado, trabalhei e descontei para a Segurança Social durante 59 anos, sinto que cumpri a minha obrigação com o país. Fiz coisas interessantes, o grupo Iberomoldes é um grupo empresarial muito estimulante e inovador; mas tudo na vida tem um princípio e deve ter um fim. Éramos dois sócios com 50% cada – o que nem sempre é fácil – e na fase final da sociedade fui confrontado com alguns problemas inesperados que me desagradaram e de que só tomei conhecimento demasiado tarde. Tudo junto, e porventura o facto de já não ser novo, fez-me decidir pela reforma.
Sente-se velho? Tem 74 anos.
Sim. Velho é relativo. Para fazer a vida que quero, não. Para estar lá das oito da manhã à meia-noite, e ter os problemas que uma empresa tem, os clientes…
[a gravação é retomada daí a minutos]
…Tinha na empresa um senhor que o meu sócio quis mandar embora logo no princípio, o que nunca deixei. Um bocado verrinoso, mas com uma visão crítica. Era daquelas pessoas que têm prazer em encontrar coisas mal feitas. Uma pessoa utilíssima numa organização.
É assim em relação a Portugal e ao socratismo? Tem essa veia verrinosa, gosta de apontar o que está mal feito?
Não tinha essa veia verrinosa, mas acho-a útil. Adoro a crítica. O Dr. Vareda ensinava-nos nos livros lá da biblioteca que tínhamos de ser críticos de nós próprios, dos outros, da sociedade, mas com inteligência. E ver os pontos fracos.
Estudei um pouco da história portuguesa, nomeadamente dos Descobrimentos; fizemos erros absurdos. Um dos erros é deixarmo-nos enganar, ou pelos interesses, ou pela burrice. O poder, os interesses e a burrice é explosivo. Descambámos no Sócrates, que tem exactamente estas três qualidades, ou defeitos: autoridade, poder, ignorância. E fala mentira. Somos um país que devia usar a inteligência e o debate para resolver os problemas, e temos dirigentes que utilizam a mentira e evitam o debate.
Apesar da discordância, continua ligado ao PS.
A última comissão política do PS foi feita no dia em que o Sócrates anunciou estas medidas todas. Convocou a comissão política depois de sair da conferência de imprensa, para o mesmo dia, à última da hora, para ninguém ir preparado – primeira questão. Segunda questão, organizou o grupo dos seus fiéis para fazer intervenções umas a seguir às outras, a apoiar, para que não houvesse vozes discordantes. A ideia dele era que o Partido Socialista apoiasse as medidas. Fez medidas tramadas, toda a gente sabe. O mínimo era que o partido as apoiasse. Mas não falou antes. Depois o Almeida Santos fez aquilo que faz sempre: uma pessoa pode-se inscrever primeiro, mas o Almeida Santos só dá a palavra a quem acha. Os que acha que vão dizer o que não quer que digam, só vêm no fim. E no fim: “Isto está tarde, está na hora de jantar”. Isto é uma máfia que ganhou experiência na maçonaria.
O Arq. Fava é maçónico, o Sócrates entrou por essa via, e os outros todos. Até o Procurador-Geral da República. Utiliza-se depois as técnicas da maçonaria – não é a maçonaria – para controlar a sua verdade.
Os sucessivos governos, este em particular, pintam uma imagem cor-de-rosa da economia portuguesa. Isto é enganar as pessoas sistematicamente. Depois aparecem críticos como o Medina Carreira ou eu a chamar a atenção para a realidade do País – chamam-nos miserabilistas! E quando podem exercem pressão nos lugares onde estão esses críticos e se puderem impedir a sua promoção ou acesso aos meios de informação, não hesitam.
Isto era o que se passava antes do 25 de Abril, agora passa-se em liberdade, condicionando as pessoas, e usando o medo que têm de perder o emprego.
José Sócrates, na última Comissão Política do PS, defendeu a necessidade das severas medidas assumidas pelo Governo, mas também disse que era muito difícil cortar na despesa do Estado porque a base de apoio do PS está na administração pública. Disse-o lá, e pediu para isso a compreensão dos presentes. Não tenho nada contra José Sócrates. Se ele se limitasse a ser um vendedor de automóveis, ser-me ia indiferente. Mas ele é o Primeiro Ministro e está a dar cabo do meu País. Não é o único, mas é o mais importante de todos.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2010