Francisco Seixas da Costa e Marcello Duarte Mathias
Esta entrevista foi uma maneira de olhar para “os dias e os anos” do projecto europeu (para ir ao encontro de um livro de um dos interlocutores). Foi uma maneira de interrogar Quo Vadis, Europa, nem uma semana depois das eleições europeias.
Marcello Duarte Mathias nasceu em 1938, escreveu, além dos muitos famosos diários, uma preciosa biografia de Camus. Francisco Seixas da Costa nasceu em 1948. Profundo conhecedor das questões europeias, foi, entre outros cargos,
secretário de Estado dos Assuntos Europeus. Tem um blogue seguido sobretudo por políticos, diplomatas, empresários, o Duas ou Três Coisas.
Os dois diplomatas dissecaram problemas, concordaram, discordaram, enunciaram soluções, e olharam para a política interna e o efeito que os resultados eleitorais tem nela. A entrevista aconteceu num hotel de Lisboa, segunda-feira à tarde, antes de António Costa de mostrar “naturalmente disponível” para liderar o PS. Mas quase nada ficou desactualizado. O foco era mais amplo e apontava para o mapa europeu.
A política é a grande derrotada das eleições europeias?
Marcello Duarte Mathias – Não. A política é a grande vencedora das eleições de ontem. O mal da União Europeia (UE), desde que nasceu, um dos grandes defeitos da filosofia do Jean Monet, foi ter entregue a construção comunitária a peritos. Os peritos nunca foram governo desde que a Humanidade é Humanidade. Há demagogos, há profetas, há loucos, há sacerdotes. Hoje somos governados por peritos. O resultado está à vista.
Peritos?
MDM – A tecnocracia, que é uma forma de traduzir em equações matemáticas [a realidade] e esquecer o dado fundamental, que é a dimensão humana, em qualquer situação, tem sido o mal da UE.
Há um outro problema: a UE construiu-se no corroer das atribuições do Estado-nação. Não se pode construir um edifício com as características da UE com base no Estado-nação. A ironia de tudo isto é que passados 50 anos sobre este edifício, que é muitíssimo mais vulnerável do que se julga, volta o Estado-nação, a legitimidade nacional do Estado-nação – que é, a meu ver, insuperável. O Tony Judt fez um livro sobre a Europa no qual diz isto mesmo: o quadro é o do Estado-nação onde as pessoas se sentem em casa.
Vamos analisar alguns desses pontos, por exemplo quando falarmos da vitória das forças extremistas, de esquerda e de direita.
MDM – Todas dizem isto.
Para já, queria ouvir Seixas da Costa sobre as eleições. Retomo a pergunta inicial: a derrotada foi a política? A política foi engolida pela economia, pela crise?
Francisco Seixas da Costa – Tudo o que seja a afirmação da vontade cívica, é uma vitória da política. Uma afirmação dispersa, contraditória, incoerente. Esta incoerência é a prova provada de que não foi possível construir nesta Europa (sobre a qual não tenho a ideia que o Marcello tem) um modelo representativo e legítimo da vontade das populações. A Europa parte de um momento de medo.
Medo no quadro do pós Segunda Guerra.
FSC – Medo da repetição do fenómeno da Segunda Guerra, medo do império ditatorial soviético que se projectava sobre um conjunto de países. Tudo isto acabou por ser um fermento da vontade colectiva de cooperação. Durante muito tempo funcionou de maneira tecnocrática. As coisas mudam a partir de Maastricht. Há uma crise entre as instituições criadas e a legitimidade que estas teriam para gerir um processo colectivo desta dimensão. Há uma contradição entre uma Europa constituída por Estados-nação muito antigos, com uma leitura da sua integração no quadro internacional muito próprio, e um modelo europeu que tende a tornar menos relevantes algumas das dinâmicas nacionais.
Mas esse modelo funcionou, apesar das tensões e contradições.
FSC – Sim. Estava ligado a uma imagem de sucesso.
Era também um tempo de prosperidade.
FSC – Havia prosperidade, havia segurança. Agora este modelo não é visto pelos cidadãos como aquele que garante uma resposta aos seus problemas. Passa a ser olhado mais como a causa das suas preocupações e menos como a solução. O que se passou nestas eleições representa isto. Representa outra coisa: havendo 28 opiniões mobilizadas por agendas diferentes, as reacções são diferentes. Não podemos comparar os resultados em França e na Alemanha.
Os países centrais da União Europeu.
FSC – Também não podemos comparar o que se passou na Grécia com o que se passou em Portugal. E há o caso britânico. Há um problema delicado que tem que ver com a legitimidade.
Outro derrotado de domingo: a legitimidade?
FSC – Acho que sim. Os eleitos nacionais, particularmente nos países com menos poder, não são vistos pelos eleitores como suficientemente representativos e com influência no projecto global. Há muita gente que diz: “Tanto me faz”.
MDM – Concordo com o que disse o Francisco. Mas há um aspecto que ele esqueceu ou omitiu. A Europa de Bruxelas é uma ideia, um projecto, uma ambição francesa, a que se juntou a Alemanha depois da Guerra, com a necessidade que a Alemanha tinha de legitimidade internacional.
Numa situação profundamente desigual, os dois países.
MDM – Desigual. A França fazia as honras da casa, a Alemanha era o convidado. Pouco a pouco, ainda no tempo da Alemanha Federal, a situação foi-se alterando. Quem dava cartas era a Alemanha, mas quem aparecia a apresentar [medidas, opções], quem aparecia como dona do processo, era a França. Com a reunificação dá-se uma alteração completa. A França perde os seus atributos, a sua valia. O centro de gravidade muda. A natureza da UE muda. Trouxe um recorte do Le Monde da semana passada que acho extraordinário. “O projecto europeu deixou de ser maioritário em França”.
O sentido desse artigo é aquele que as eleições confirmam, nomeadamente com a vitória de Le Pen.
MDM – A França perdeu a Europa. A Europa era vista pelos franceses (por todos eles, De Gaulle, Giscard d’Estaing, Chirac, Schuman) como um prolongamento da sua influência. A França era a Europa, a Europa era a França. Deixou de ser.
Durante um período ainda se pensou nesta parelha, Paris-Berlim. Hoje em dia, Berlim é o centro.
É quem tem dinheiro.
FSC – A França é um poder em declínio. O último momento desta coreografia do poder franco-alemão (curiosamente a expressão “eixo franco-alemão” só é ouvida em Paris, não é ouvida em Berlim ou Bona) foi o de Sarkozy-Merkel. Apareciam lado a lado. Na realidade, não estavam. Ele estava no bolso dela.
MDM – Esse foi o último tempo em que se disfarçou a realidade.
FSC – Com a queda do Sarkozy, a fragilidade da França no projecto europeu tornou-se mais clara.
E tornou-se mais clara com um líder fraco como é Hollande.
FSC – Os líderes são sempre a emanação do estado das coisas. Hollande é uma emanação da França actual, da importância que a França tem no quadro europeu. Tenho esperança que a França vá readquirir uma certa dinâmica, mas de momento a situação é dramática.
É um país rico em aflição. Um país rico que tem uma taxa de desemprego de 10%.
FSC – Tem uma ambição que não está ao nível das suas capacidades de hoje.
MDM – Schroeder dizia que a França viaja em primeira classe com bilhete de segunda. [riso]
FSC – A Merkel pensa isto mas não diz.
MDM – A inversão [de estatuto entre os dois países] começou com o Tratado de Nice.
FSC – Estive em Nice. Para muitos franceses, foi uma humilhação.
Para que fique claro: é sobretudo o dinheiro que decide este jogo de forças? O Tratado do Eliseu, que sela a amizade da França e da Alemanha, foi assinado em 1963. Tem 50 anos. Parece ontem. Foi erguido sobre a força das ideias, os valores humanistas que nos fazem reconhecer como sendo europeus. Tudo parece esboroado.
MDM – O Tratado do Eliseu era De Gaulle a convidar Adenauer a construir a Europa do futuro. Depois o parlamento alemão introduziu um preâmbulo em que afirmava a sua aliança com Washington. Ou seja, anulou a ideia que estava subjacente [ao tratado].
E então, o que decide por fim o equilíbrio de forças?
FSC – Hoje tem a ver com o bem estar, a segurança. Segurança no quotidiano. Segurança económica. Segurança face ao futuro. Segurança face ao estrangeiro, à diferença. Vivemos no desaparecimento da segurança do amanhã. A sociedade previsível, antiga, desapareceu. Em França, isso está a ter um efeito dramático.
MDM – É um sentimento de orfandade. A Europa, que era o tecto que tinham inventado, deixou de existir. A relação franco-alemã está e estará afectada. A própria nacionalidade já não oferece garantias. Esta orfandade explica o voto não só em França mas em Inglaterra, Dinamarca. A imigração veio acentuar [o sentimento que tinham]. O francês já não está em sua casa quando está no seu país. Daí a Frente Nacional e [os partidos congéneres].
Na Alemanha, a vitória foi de Merkel. Escassa, mas vitória.
MDM – Como a Alemanha dirige este processo, está bem consigo mesma. Em França é um problema de ordem psicológica, histórica e política. Mais: muitas destas franjas de estrangeiros não se querem integrar. É um problema muito difícil de resolver. Marine Le Pen mostrou num debate uma imagem de imigrantes a trepar por arames farpados, em Ceuta. É uma imagem eloquente da desgraça do terceiro mundo e da ânsia que têm de entrar [na Europa].
FSC – A imigração é uma questão que a Europa nunca discutiu verdadeiramente.
Porquê?
FSC – Cada país europeu tem a sua proximidade, geográfica, cultural. Cada país trouxe para a Europa a sua história migratória. E gere-a de maneira diferente. Mas gere-a em conjunto. Schengen acaba por criar uma fronteira à volta de tudo isto, que é um somatório desta diversidade, entre si contraditória.
MDM – O voluntarismo, quando não está assente em alicerces sólidos, torna-se uma esquizofrenia.
Toma-se como igual o que é, sob vários pontos de vista, económico para começar, desigual. Esse é um dos grandes espinhos desta construção europeia? Não se atendeu às histórias diferentes, às velocidades diferentes.
MDM – Sarkozy vem agora explicar que é preciso um novo relacionamento franco-alemão, que é preciso um Schengen novo, e que (voltámos ao que eu dizia, à legitimidade do Estado-nação) é preciso retirar grande parte das atribuições concedidas à Comissão e devolvê-las aos estados membros.
FSC – Posso ser mal interpretado, mas quero dizer isto. O último alargamento teve um efeito de desigualização profundíssimo. Alguma Europa olha para Bruxelas [com desconfiança]. Uma Europa que tem uma gratidão maior a Washington do que a Bruxelas, que percebe que a sua segurança significa NATO/EUA; e não é a um grupo de trabalho em Bruxelas que entrega o seu futuro.
MDM – Também aí [nos sucessivos alargamentos] houve precipitação, excesso de voluntarismo.
FSC – Mas era inevitável. Houve uma janela de oportunidade [resultante da] fragilidade em Moscovo que permitiu fazer os alargamentos.
Teve efeitos sérios no funcionamento da máquina. Que se sentiram de forma aguda, por exemplo, nos anos da crise.
FSC – Sim, estamos a pagá-los. O Marcello apontou a proposta de Sarkozy. É um modelo quase obsceno. A Comissão perde força com o Tratado de Lisboa, o Conselho Europeu ganha espaço. Sarkozy propõe um regresso puro, simples, afirmado ao directório. A meu ver, é altamente preocupante. Independentemente de poder significar um certo respeito pelos Estados-nação, é o fim do projecto europeu.
Voltemos atrás e pensemos não neste projecto europeu, com as suas redefinições e alargamentos, mas naquele que se desenhou nos anos subsequentes à Guerra. Não é esta velha ideia de Europa que está a ruir?
MDM – Há uma fase da construção europeia, que é a fase da segurança, da União Soviética, da divisão da Alemanha, onde as coisas eram mais simples. Era também mais fácil recorrer a esses grandes princípios humanistas. Depois era preciso pôr o ideal europeu na prática. Concretizá-lo. Isso é que muitas vezes choca com a realidade, choca com a ambição dos países e com o peso respectivo dos países.
Qual é o ponto em que estamos, desembocámos onde?
MDM – A uma Europa na mão de eurocratas. Quando a França e os Países Baixos votaram o Tratado Constitucional em 2005, a opinião pública foi chamada a dar uma opinião. Com razão ou sem ela, votou contra. O que é que fez Sarkozy?, o que é que fazem os políticos? Arranjou uma parte gaga e fez votar o tratado no parlamento. Isto vem desvalorizar a democracia, e dá às pessoas um desalento, o sentimento de que isto está na mão de meia dúzia de euroburocratas que decidem tudo. A Europa de Bruxelas tresmalhou-se.
Quando?
MDM – Esse desvio é a unificação alemã.
Antes de se tresmalhar, tinha um belo ideal humanista. E a queda do muro tem 25 anos. Estamos a reajustar-nos em função dessa fractura?
MDM – Sim. É curioso ver que grandes homens, como Mitterrand, que passaram por ser maquiavélicos, inventaram a história do Euro para acorrentar os alemães, e é exactamente o contrário [o que temos]. As condições são impostas pelos alemães.
FSC – Temos de ver como saímos daqui. A minha dúvida é se temos líderes europeus capazes de fazer uma pausa para reflectir.
MDM – [É preciso] uma revolução cultural.
Como é que ela se opera? De onde saem esses líderes que todos querem seguir?
FSC – Tem de haver um acto refundacional. Mas pergunto-me se este sobressalto não terá de sair da sociedade civil, de um grande debate sobre tudo isto. Um debate que permite salvaguardar o essencial e ter um sentido realista. Lembro-me da expressão “socialismo possibilista”...
Socialismo possibilista?
FSC – Existiu no século XIX, utilizava-se essa expressão. Pergunto-me se não deverá haver um europeísmo possibilista. Temos de reflectir sobre aquilo em que podemos estar de acordo e ter uma discussão sobre se a Europa não terá de caminhar por formas de agregação de países que não incluam todos. Isto não é conveniente para Portugal porque somos um país já de si marginal, estrategicamente, economicamente.
Portugal é um dos países mais desiguais e pobres da UE.
FSC – As opções têm de se fazer em função da nossa capacidade de ir a jogo. Mas penso que esta é a única saída para a Europa.
Faz a apologia de uma Europa a duas velocidades ou mesmo com duas naturezas distintas.
MDM – Várias velocidades.
FSC – Já temos isso em relação ao Euro, a Schengen. O problema é saber se o modelo de gestão global é compatível com esta diferenciação. A questão que se põe é: quem é que dirige estes vários processos? Os vários processos podem não ser harmónicos.
MDM – No fundo, são vários pequenos directórios.
FSC – Terá a Comissão Europeia legitimidade para gerir um processo em que não estão todos os países? E qual é o papel do Parlamento Europeu, em que estão todos os países, na legitimação democrática desses processos?
A resposta a muitas destas questões será muito diferente se tivermos à frente da Comissão Jean-Claude Juncker ou Martin Schulz?
MDM – Não creio. O que é capaz é de sair outra solução da cartola da senhora Merkel.
FSC – O próximo presidente da CE pode sair de fora destas duas figuras.
MDM – A Europa, a entidade Europa, perdeu peso nestas eleições. Não sei quem será o futuro presidente da Comissão, qual será o papel do parlamento... Lemos o livro do Vasco Graça Moura (“A Identidade Cultural Europeia”, FFMS) que diz horrores do parlamento. A irrelevância, a inoperância do parlamento... Tem-se a impressão de que isto chegou ao fim.
E qual é a saída? Isto vai acabar como? Como o império austro-húngaro, de forma súbita, ou vai acabar como a União Soviética, desagregando-se? O Francisco tem razão, é preciso refundar. Mas quem é que tem coragem para o fazer? Quem são as pessoas? Voltamos ao mesmo: é a França e a Alemanha?
Precisamos de um momento extremo para impor uma solução? Ou continuar-se-á na agonia à espera de uma solução?
FSC – É mais difícil encontrar uma vontade comum a 28.
MDM – Não sei se os 28 têm assim tanta influência.
FSC – Ah, mas os parlamentos têm de votar. A última chantagem feita sobre a opinião pública foi o Tratado Orçamental, num contexto de crise.
Segundo uma sondagem do ICS divulgada este ano, a Europa deixou de ser olhada como uma coisa benigna. Pedro Magalhães disse em entrevista a este jornal: “Não éramos anti-Europa porque a Europa era uma coisa bestial, de pessoas esclarecidas, que nos mandava dinheiro. Há seis, sete anos, 80% dos portugueses diziam que confiavam muito na Comissão Europeia. Hoje em dia são 20%.” Isto quer dizer qualquer coisa. A abstenção, que é a maior de sempre, ilustra esta distância, também.
MDM – A nossa Marine Le Pen é abstenção.
Foi de cerca de 66%.
FSC – Estamos na média europeia.
MDM – Fizemos muito bem em aderir à CEE. Mas lemos um livro como o do Medeiros Ferreira, “Não há mapa cor de rosa” (Edições 70): é de um pessimismo em relação à posição de Portugal na Europa, ao futuro da Europa... A certa altura conta uma conversa que teve com o Victor Cunha Rego, que lhe diz: “Ó José, se sentires amanhã que vamos pelo mau caminho tens obrigação de levantar a voz e dizê-lo em público”. A impressão que fica (o livro de Medeiros Ferreira e de Graça Moura são dois testamentos) é a de uma total desilusão. E é um grito de alarme.
Devo dizer que sempre me deixou perplexo o desejo de estar no pelotão da frente. Em Schengen, no Euro. Não sei se esta filosofia está certa. Hoje, o sentimento – que nem é de desencanto: é de cólera – em relação à UE resulta disto tudo, de um excesso de voluntarismo e de uma coisa que é, infelizmente, característica desta classe política: um novo-riquismo europeísta.
Como assim?
MDM – A nossa classe política, toda ela, belisca-se. Entrámos na Europa: não acreditámos. Entrámos no clube dos grandes, dos bons. Temos um complexo de inferioridade. E daí a fuga para a frente, o querer ser mais papista do que o Papa.
Concorda?
FSC – Concordo em parte.
MDM – Sou sempre um pouco excessivo, o que é bom! [riso]
FSC – Nós, portugueses, na orfandade em que ficámos depois da perda do império colonial, encontrámos na Europa uma resposta para a democracia e desenvolvimento.
MDM – Uma âncora.
FSC – Não fomos à procura do Tratado de Roma. Isto é, a Europa da segurança, contra o medo. A nossa Europa era um choque de modernidade, de abertura de fronteiras, uma certa prosperidade, no bolso e na paisagem.
Essa imagem durou enquanto houve dinheiro.
FSC – Sim. A Europa era um clube de ricos com meia dúzia de pobres. Agora a Europa é um clube com muitos pobres e poucos ricos e em que os ricos deixaram de ser solidários. Esta Europa abandonou o discurso “caritativo” que fazia parte do seu DNA e passa a reagir em função de interesses imediatos.
Ou seja, a alteração no modo como se vê a Europa tem muito que ver com factores materiais.
FSC – Tem. Nunca fomos uns europeístas convictos na lógica do Monet e do Schuman. E não tínhamos medo de Estaline. Vivíamos num mundo diferente.
Uma boa parte do eleitorado votou em função de questões domésticas, e não especificamente a pensar nos programas políticos dos principais candidatos. Na campanha falou-se mais da Troika do que do projecto europeu. Os resultados foram uma semi-coça ao PS? [Nota: esta entrevista é feita na segunda-feira, antes de António Costa anunciar que vai disputar a liderança do PS]
MDM – Houve dois vencedores: o Partido Comunista e o Marinho e Pinto. Foi o primeiro passo para a sua candidatura à presidência da República. Surgiu um novo personagem na paisagem portuguesa. Tem corpanzil, truculência verbal, uma forma de autenticidade. Suponho que se situa no centro-esquerda. O vencedor aritmeticamente foi o PS. Dada a situação difícil que é a nossa, dada a severidade das medidas que têm vindo a penalizar a população, dada a falta de jeito para comunicar deste Governo, acho notável que o PSD/CDS tenha conseguido um resultado razoável.
Considera o resultado razoável?
FSC – O PSD e CDS obtêm juntos 28%.
MDM – Esperava-se pior.
FSC – Ninguém esperou muito pior do que isto. Isto significa que o PSD terá 21 ou 22% e o CDS 6 ou 7%. É verdade que o voto de protesto não foi capitalizado de uma forma esmagadora (longe disso) pelo PS. Foi dividido pelo PC e pelo Marinho e Pinto. (Conheço bem Marinho e Pinto, foi meu colega de liceu em Vila Real.) Ele representa um mal estar na política portuguesa. Tem um discurso que não é populista.
Não é populista porquê?
FSC – É mais justicialista. De denúncia das questões da justiça, que toda a gente considera um cancro, e da corrupção.
MDM – E não é o [discurso] de um tecnocrata.
Não pode ser olhado como um Beppe Grillo português?
FSC – Não, de maneira nenhuma. O seu discurso não é anti-partidos. Pode pôr em causa dinâmicas do sistema, mas é republicano e democrata. Tem um discurso de centro-esquerda que pode evoluir e agregar mais pessoas. Esta ida para o PE é um degrau. Penso que tem a ambição de ser candidato à presidência da República.
Seixas da Costa é próximo do PS. Considera que estes resultados foram uma semi-coça ao PS?
FSC – O PS não conseguiu capitalizar a seu favor o descontentamento. Que é profundo e está entre os 28% que votaram na coligação e os restantes que se expressaram. Esta é uma discussão que o PS tem de ter consigo próprio, no sentido de perceber o que é que falhou. Estive ligado ao Novo Rumo. Apresentámos um conjunto de medidas que prenunciavam um programa de governo. Manifestamente isso não colheu (espero que ainda) no eleitorado português. O PS tem de pensar porque é que não consegue derrubar esta barreira criada na opinião pública e que nas palavras da senhora Thatcher se chama TINA: There is no alternative.
MDM – [Se nada mudar], nenhum dos partidos [PS e PSD] vai ter maioria absoluta nas legislativas de 2015.
FSC – Tenho muita pena, e vou dizer isto com a liberdade que...
MDM – Você veja lá... Vai ser ministro dos Negócios Estrangeiros, não pode dizer asneira... [riso]
FSC – Não serei.
Ainda se vai arrepender do que acaba de dizer.
FSC – Não. Não estou disponível e não me parece que a situação venha a ocorrer. Queria dizer que este é um momento que exige da sociedade civil que seja ela a avançar com um projecto de consenso. A capacidade de diálogo dos dois partidos não dá grandes esperanças de que seja possível esse consenso.
MDM – O drama português é que não temos sociedade civil. Parece-me evidente que depois das eleições do próximo ano terá de haver um acordo sobre aquilo que é essencial para o país.
A sociedade civil é fraca e cresce o ódio aos partidos. Como se todos os políticos fizessem parte de uma associação pouco recomendável e o exercício de cargos públicos deixasse nódoa.
MDM – Concordo. O drama desta abstenção é saber se ela é resultado conjuntural ou se traduz um sentimento, mais grave e gravoso, de desconfiança ou desapego ao processo democrático. Julgo que há as duas coisas.
Em relação à Europa, podia ter mudado muita coisa ou esperava-se que tudo ficasse mais ou menos na mesma?
MDM – A mensagem na Dinamarca, Inglaterra, França, Holanda, dos flamengos da Bélgica é a de um voto declaradamente anti-europeu. “Nós não queremos esta Europa”.
Vão ser 120 ou 130 deputados a dizer isso.
FSC – Mas esses não têm um denominador comum. Não podemos juntar a extrema-direita com os eurocépticos. Meter tudo no mesmo barco é injusto.
MDM – Por uma razão ou outra, o que dizem é que isto não serve. Descarrilou. Na prática, muda muito pouco. Muda internamente. Muda a influência dos partidos na Grécia, na França.
FSC – É um barómetro do que aí vem.
MDM – É. E torna difícil aos partidos tomar medidas favoráveis à Europa depois de o eleitorado ter reagido desta forma. Os governos ficam um pouco reféns deste acto eleitoral.
Regressou há um ano de Paris, onde foi embaixador. Como vê os resultados em França?
FSC – Fiquei abalado com os resultados. Não é impunemente que o Frente Nacional é o partido mais votado num país com a importância da França. Faz-me pensar nos erros que os partidos mais democráticos cometeram. Preocupa-me a solidariedade europeia se penso no que se passou nestas eleições.
MDM – A grande perdedora é a Europa.
FSC – Isto é um regresso a um certo nacionalismo de interesses. O discurso grandiloquente, de entusiasmo pela Europa...
MDM – ... já não dá.
FSC – É preciso discutir as questões da imigração de forma clara e descomplexada. Olhar para aquilo que preocupou as pessoas, para as inseguranças que levaram a este resultado.
Insistiu na questão da segurança nesta entrevista. Segurança, ou falta dela, para quem olha para o futuro, por exemplo.
FSC – Pensemos num reformado: um contrato privado, tem mais poder (porque está tutelado pelos tribunais) do que um contrato com o Estado.
MDM – Por toda a Europa é assim. Aqui talvez seja pior. Mas não temos um problema que esses países têm e que é o da identidade. Nós, portugueses, temos dificuldade em perceber aquilo que descartamos como sendo um discurso xenófobo, racista, nazi. Em 1957 (helàs, sou muito velho, em 57 já era gente...) cheguei a Inglaterra e vi grandes cartazes que diziam: “Keep Britain white”. É sintomático. E é impensável em Portugal hoje ou há 150 anos ou há 300 anos.
FSC – Felizmente.
MDM – Felizmente. Em 1500, Afonso de Albuquerque dizia aos seus homens para contrair matrimónio com as indígenas. O império britânico faz o contrário séculos depois. O senhor [Nigel] Farage, a senhora Le Pen são também o resultado desta mentalidade. A impressão que têm é que a sua identidade está ameaçada. Nós não temos isso e não percebemos o que nesses países é uma verdadeira angústia.
FSC – A tragédia é que nesses países ligam-se essas questões com as da crise.
Coincidiram muito no que disseram. Escolhi um embaixador de esquerda e um de direita...
MDM – Não há embaixadores de esquerda e de direita. Há embaixadores. Temos uma sensibilidade talvez diferente em relação a algumas coisas.
FSC - Tive 21 ministros dos Negócios Estrangeiros durante toda a minha carreira. Ajuda-nos a criar uma linha comum. Costumo dizer que Portugal não tem política externa: tem uma diplomacia reiterada.
O que é que vos separa, mais do que tudo?
MDM – Eu dou grande importância ao Estado-nação. Não há legitimidade além da do Estado-nação. O que não quer dizer que não se possa cooperar. Portanto sou muito pouco europeísta. O que se passou nas eleições vem confirmar o que penso. Embandeirámos em arco com a Europa, nomeadamente em Portugal. É preciso ver estas coisas com grano salis, é preciso ter grande cepticismo. Também acho que a Europa é uma aventura fantástica. Chegámos a este beco sem saída e não sabemos como dar a voltar, mantendo o essencial sem deitar tudo às urtigas.
O Euro: foi um dos grandes elementos de agregação ou desagregação deste projecto?
MDM – O Euro, atendendo às circunstâncias em que foi feito, foi um desastre. Estamos a pagar esse desastre.
FSC – Fui sempre favorável ao Euro. Não penso que seja aí que os problemas se colocam. Continuo a pensar que o projecto europeu é extremamente positivo e que, apesar dos seus erros, tem uma grande capacidade de regeneração. E é aquele que garante a paz no continente europeu.
Saímos daqui? Como?
FSC – A história mostra que há sempre uma saída. Insisto: não devemos deixar que o nosso futuro assente exclusivamente nos agentes políticos. A sociedade tem que reagir e dar sinais aos partidos para que estes encontrem soluções institucionais.
MDM – Os agentes políticos já mostraram que não são capazes de o fazer. Costumo dizer que o governo ideal é um conjunto de cépticos bem intencionados.
FSC – Mas de bem intencionados está o inferno cheio!
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014