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Anabela Mota Ribeiro

João Ferreira do Amaral

29.10.14

João Ferreira do Amaral é um economista que pensa como o matemático que é. Ou seja, com um discurso arrumado, sequencial, articulado. É um professor que fala a partir da sua secretária, onde se amontoam pilhas de livros e papéis. Parecem de equilíbrio periclitante. Só parecem. Usa da ironia. É contundente. Deixou de ser uma voz no deserto a dizer Porque Devemos Sair do Euro. No seu livro mais recente, sai Em Defesa da Independência Nacional.

 

Olhemos para a Europa como quem olha para uma família. Uma família em que há irmãos bem sucedidos e outros pobretanas. É desta articulação e a partir deste mapa que podemos compreender a singularidade de Portugal e o momento que o país atravessa?

A comparação com a família é bastante forçada. A Europa não é uma família de Estados, nem pouco mais ou menos. Na Europa não se vê – e desde o Tratado de Maastricht em 1992 – suficiente autonomia para os irmãos perseguirem aquilo que lhes dá mais êxito em termos de futuro. Numa família, em princípio, os irmãos são autónomos. Uns têm êxito, outros não têm, mas resulta da sua própria liberdade de escolha. Hoje criou-se um sistema de regras que prejudica o futuro de muitos Estados. Esse é o problema dramático da Europa.

 

Por que é que não somos uma família? Apesar desta estrutura ser heteróclita, desconjuntada, desafinada neste momento, se olharmos para a História europeia e mundial, existe uma coisa que se chama património identitário europeu. Isso pode dar-nos a ilusão de que somos uma família.

Diz bem, uma ilusão. Numa família cada membro considera que a família é algo que muitas vezes se sobrepõe aos interesses individuais. Numa família as pessoas estão dispostas a sacrificarem-se em benefício da família no seu conjunto. Entre Estados não é assim. Um português não aceita ser sacrificado para a Europa ficar melhor. Como um alemão ou um dinamarquês não aceitam. É um erro grave pensar que existe um grau de solidariedade na Europa. Não existe.

 

É por causa da falta da solidariedade, em primeira instância, que não nos considera uma grande família.

Exacto. O facto de haver proximidade cultural – de que gosto de ser herdeiro – não implica que tenha que haver, do ponto de vista político, esta concepção de família, esta solução [institucional]. Existem ao mesmo tempo histórias nacionais muito longas, que não podem ser apagadas em benefício de uma entidade mítica – uma Europa que apareceria descida do céu.

 

Primeiro grande equívoco: forçar esse sentimento de pertença e identidade comum?

É um grande equívoco. Isto tem tradução política na tentativa de criar um super Estado europeu. Que não se consegue criar. É perigoso e pode levar a Europa a becos sem saída.

 

Perigoso, becos sem saída... Pode explicar melhor?

O caso típico é a moeda única. Era fundamentalmente um projecto político para forçar a criação de um super Estado europeu. É perigosíssimo. Tirou a muitos dos Estados o instrumento fundamental para poderem singrar. Criou ao mesmo tempo tensões na Europa, que estamos hoje a sofrer, e que não se apresentam de fácil resolução.

 

As vozes que mais recorrentemente se ouvem, que são a favor e confiam no projecto europeu, apontam o modo como ele foi erguido, nomeadamente o Euro. A sua voz é mais radical.

O Euro foi muito mal concebido, isso é consensual. Mas vou para além disso. O Euro é um projecto que exige a existência de um Estado europeu. O Euro não pode ser um factor de criação de um estado europeu (como se pretendeu). Quanto muito, se houvesse um Estado europeu, então poder-se-ia ter criado o Euro.

 

Para que um Estado europeu tivesse viabilidade seria preciso, pelo menos, um sistema fiscal comum, uma Constituição europeia, outros cimentos?

Mas esses cimentos não existem. Nada existe quando os povos não aceitam. A construção europeia foi chumbada em dois referendos. Se tivesse havido mais, em mais teria sido chumbada. A lealdade que os povos têm é ao seu próprio Estado, não é a uma Europa que não sabem o que é. É um absurdo tentar assentar instituições europeias, que mexem em aspectos essenciais da autonomia de um Estado, num vazio.

 

Qual é o vazio?

É a inexistência de um povo europeu e de uma nacionalidade europeia.

 

Na sua opinião, tudo está mal, desde o princípio?

Não. Sou muito admirador do projecto de integração europeia até à moeda única. A partir de Maastricht, tudo foi desaparecendo, até chegar a estes dois últimos remates, o Tratado de Lisboa e o Tratado Orçamental, que criou uma camisa-de-forças impossível para os estados endividados.

                                                                                                                                    

Vamos à Comunidade do Carvão e do Aço e ao Tratado do Eliseu. Vamos pensar no que era um projecto eminentemente prático, porque era preciso reconstruir a Europa depois da Segunda Guerra. Porém, havia um ideal que o insuflava.

Esse ideal, sou a favor dele: é criar condições para a paz na Europa. Essa foi a genialidade dos pais fundadores. Essa paz seria garantida pelo prosseguimento dos interesses comuns da área económica. Daí o carvão e o aço, duas matérias-primas essenciais para a guerra. A seguir, a integração económica. Isso não põe em causa a autonomia de cada Estado. Quando se entra na moeda, está a pôr-se em causa a autonomia de cada Estado.

A moeda é um factor essencial, não só pelo instrumento em si próprio, mas também condiciona as opções orçamentais. E o orçamento e a direcção das finanças públicas é algo que nasceu com a democracia e é fundamental.

 

Indo a esta crise, se tivéssemos moeda própria e capacidade de gerir a inflação, seria outra coisa.

Seria. A nossa economia não estaria desequilibrada como esteve quando sucedeu a crise. Ela tornou-se muito mais grave por esse facto. Ter moeda própria ter-nos-ia evitado um enorme endividamento da economia no seu conjunto – não do Estado –, que existia à data da crise.

 

Mas não contámos durante muito tempo com o dinheiro da Europa?

Contámos. Infelizmente em Portugal gostamos muito de contar com o dinheiro dos outros. A nossa estratégia europeia foi quase sempre uma estratégia de maximização dos fundos estruturais. Não tivemos muitos outros objectivos. Uma estratégia dessas está condenada ao fracasso.

 

Isso é uma espécie de same old story. Se olharmos para séculos passados…

Tivemos o ouro do Brasil. O Brasil era nosso, mas era um recurso exógeno. Tivemos outras épocas em que vivemos à custa do endividamento externo. No liberalismo, as grandes obras públicas levaram a problemas recorrentes de endividamento externo, alguns bastante dramáticos.

A diferença está em que, sem moeda, e como foi o caso, podemos alegremente aumentar o nosso endividamento sem nos apercebermos disso.

 

Alegremente. Gosto do seu advérbio.

Tudo isto era uma festa. O dinheiro era barato, os bancos não tinham dificuldade nenhuma em obter dinheiro nos bancos estrangeiros e depois emprestar internamente. Se tivéssemos moeda própria, rapidamente a nossa moeda se iria desvalorizar e daria sinal de que nos estávamos a endividar demais.

 

O seu ponto é que não poderíamos chegar tão longe como chegámos porque havia sinais de alerta.

Muito antes [do nível de endividamento a que chegámos] teria havido [sinais]. E a desvalorização cambial contribui também para a correcção do problema. Não é meramente anunciar que estamos mal. É, por esse facto, entrar na correcção do problema. A desgraça da Europa é, de facto, a Moeda Única. Não tanto por ser uma moeda europeia mas por ser tendencialmente única. E a desgraça de Portugal foi ter aderido à Moeda Única.

 

Entretanto passaram 20 anos.

Sim, desde que se começou o caminho. A política que tivemos de seguir a partir de 1992, de preparação para a Moeda Única, já era inadequada para nós.

 

Se a preparação começa em 1992, e se identificou Maastricht como um ponto em que as coisas começam irremediavelmente a resvalar, isso não coincide com a imagem dos anos 90 em Portugal. Parecia um tempo de tal modo heróico, de prosperidade, com a Expo 98, que custa a acreditar que o ovo da serpente estava lá a ser germinado.

[risos] Pois, para mim nunca foi. Olhando com atenção via-se muito bem o ovo da serpente. O endividamento externo estava a atingir níveis brutais. A partir do ano 2000, até um pouco antes, estávamos com deficit na balança de pagamentos na ordem dos três% do PIB. E estou convencido que, se não tem havido crise financeira geral, teríamos tido a nossa própria crise financeira. Não por causa do Estado, mas por causa da economia no seu conjunto. Muita gente pensou que a Europa acomodaria sempre este nosso desequilíbrio. Mas isso é contar com a tal solidariedade que não existe.

 

Estava a lembrar-me de uma entrevista que Vasco Vieira de Almeida deu ao Jornal de Negócios, em plena crise, em que dizia: “Ou caímos todos ou não cai nenhum”. Falava desse ideal de solidariedade que estava no imaginário colectivo.

Tenho uma visão um pouco mais céptica. Isso não é tanto pelo ideal de solidariedade. É com medo do efeito dominó. Caía um e os outros seriam arrastados, isso é verdade. Claro que a política foi desenvencilhar-se desse risco. Nem sequer estou a criticar os países com mais possibilidades e mais recursos.

 

Não?

Ponho-me na pele deles. Vamos supor que Portugal estava bem e tinha dinheiro; se aparecesse alguém a pedir-nos auxílio na Eslovénia, qual era a nossa atitude? Se as pessoas tiverem que pagar mais, o entusiasmo reduz-se rapidamente. Não é um problema dos alemães, é um problema de toda a gente.

 

Aí depende, de facto, de os considerarmos um irmão. E com isto voltamos à história inicial. Se é um irmão estamos dispostos a dar um rim.

Por isso é que acho que não somos irmãos. Um Estado tem a sua autonomia, deve ter boas relações com os outros, mas o modelo família não dá bom resultado. Se as famílias têm solidariedade, muitas vezes também têm zangas das piores. Os Estados devem ser tratados como Estados. As relações entre Estados devem ser de cooperação, de amizade, mas cada um com a sua autonomia. Quando a UE começa a entrar por domínios por onde não devia entrar, que têm a ver com a autonomia de cada Estado, está o caldo entornado.

 

Não engrossa o coro de pessoas que acham que a culpa disto tudo é da Alemanha, da sua memória curta. Que estamos a sentir na pele os efeitos da reunificação, e que esse foi o grande cisma da União Europeia.

Isso da reunificação é verdade. Alterou as relações de poder na Europa. Encaro a Alemanha como tendo a possibilidade de exercer o poder que exerceu. Se fosse alemão teria o mesmo tipo de estratégia.

O Presidente Mitterrand, em França, com medo que a Alemanha, após a reunificação, se virasse para Oeste e se desinteressasse da integração europeia, tentou barrar a Alemanha através da criação de uma moeda única. Os alemães disseram que só a aceitavam se fosse feita de acordo com aquilo que queriam.

 

Tendo o marco como modelo.

O Presidente Mitterrand aceitou, e os outros governos, tirando a Sra. Thatcher, que se pôs logo fora, também. Foi um erro fatal. A partir daí, a Alemanha, que com a reunificação se tornou num Estado claramente superior aos outros, começou a dominar a política monetária. Foi ganhando peso, obrigou a Europa a assinar o Tratado de Lisboa e o Tratado Orçamental. A Alemanha exerceu o poder que estava ao seu alcance. Fê-lo de forma legítima, não invadiu com exércitos. De que é que nos podemos queixar? Demos-lhe a oportunidade para isso.

 

Leu a entrevista que Philippe Legrain, o ex-assessor de Durão Barroso, deu há semanas ao Público? Dizia que está muito mal contada a história do resgate aos países periféricos. Serviu para salvar bancos alemães.

Exacto. A primeira coisa que a solidariedade fez foi afastar o efeito dominó reduzindo a exposição dos bancos alemães às dívidas mais problemáticas. Mas mais uma vez, não critico a Alemanha. Defendeu os seus interesses.

Há um erro muito grande nos europeístas extremistas, que é pensar que se pode criar uma Europa forte com Estados fracos. Não pode. A Europa só será forte se os Estados forem fortes, se tiverem autonomia para perseguir os seus interesses. O que é essencial na Europa é que o prosseguimento desses interesses se faça de uma forma equilibrada, que não haja domínio de uns sobre outros.

 

Os resultados eleitorais recentes, que levam cerca de 120 deputados de extrema-direita e eurocépticos ao Parlamento Europeu, são expressão disso?

A Europa está fraquíssima, em decadência clara, quer do ponto de vista económico, quer social, quer até político. Mas isso não é surpresa. Rompeu-se aqui um equilíbrio que assegurava a grande originalidade do processo de integração europeia.

 

Então, futurologia. Daqui a dez, 20 anos, como é que imagina que vamos olhar para estas eleições que expuseram a fragilidade da Europa?

Não vou fazer futurologia, mas vou dizer quais são os meus receios. Dificilmente a Europa se manterá. A degradação já é tal que é muito difícil a Europa voltar a beneficiar do ambiente de estabilidade. Se não garante a estabilidade, desagrega-se. Esse cenário é cada vez mais provável.

Seria muito mau a União Europeia desagregar-se. É diferente da Zona Euro, que é um cancro. Se ela se desagregar de forma controlada, óptimo.

 

É possível dissociar os dois movimentos?

Claro que sim. A Europa pode funcionar perfeitamente sem moeda única. Ou um grupo de países cria uma moeda comum porque acha que vale a pena.

 

Ainda vai a tempo? É como com os croquetes; uma vez que é carne picada não volta a ser bife inteiro.

Tem havido muitos casos em que o croquete voltou a ser bife inteiro. Muitos países tinham uma moeda comum e quando se desagregaram criaram moedas próprias.

 

Seria preciso garantir o quê, para isso?

Um regime de cooperação monetária a nível europeu. Mesmo assim estou bastante pessimista em relação ao futuro da União Europeia. Entrou-se num caminho que dificilmente é reversível. Pode haver factores-surpresa bem-vindos. Imagine que os juízes europeus se sentam à mesa e dizem: “Temos que fazer uma refundação disto porque já não funciona. Vamos retomar o espírito inicial da Comunidade Económica Europeia”. Se for assim, talvez haja esperança para a Europa. Da forma como as coisas estão, o cenário da desagregação é bastante plausível.

 

A médio prazo?

Sim. Um espaço que aceita que haja 40 ou 50% de desemprego jovem é um espaço sem futuro. Um espaço que aceita que os países devedores sejam protectorados dos países credores é um espaço sem futuro. A Europa transformou-se na antítese do que era a Europa anterior.

 

Como descreveria a Europa anterior?

Era um espaço de progresso, de cooperação em termos de igualdade, com harmonia entre os interesses comuns e os interesses nacionais. Tudo isso se rompeu. A Europa transformou-se – como digo no meu livro – num império pindérico, que nem sequer é império.

 

Temos uma Europa de fancaria?

Sim [risos]. Esta Europa, se se mantiver assim, já é um morto-vivo. É uma Europa de retrocesso, não é uma Europa de progresso. Ou há um grande golpe de rins e se reentra naquilo que foi o melhor da reintegração europeia, ou isto vai ser penoso. E esperemos que não dê origem a violências piores.

 

A relação entre a Alemanha e a Rússia, esses dois grandes blocos desde sempre na Europa, é fundamental para orientar as coisas num sentido ou noutro?

Pode dizer-se isso e o seu contrário, é tudo possível. Essa velha situação de conflito/cooperação (embora na maior parte das vezes tenha sido conflito): não gostava de ver o meu país envolvido nisso.

 

Como assim?

Se a Europa é para ser como tem sido nos últimos anos, impulsionada pelos interesses alemães, e se esses interesses implicam uma atitude de rivalidade em relação à Rússia, preferia que Portugal não estivesse metido nisso. Não temos vantagem nenhuma em metermo-nos em velhas contas a ajustar entre várias regiões do globo. Se a atitude entre a Alemanha e a Rússia for de cooperação e de benefício económico, isso só beneficiará a Europa.

 

Como vê a actuação da União Europeia em relação à Ucrânia?

Foi um desastre. Vimos a União Europeia a apoiar publicamente uma insurreição contra um governo legítimo. Podia ser corrupto ou não, o anterior presidente, mas a verdade é que a União Europeia estava a negociar com ele.

 

Era uma espécie de bomba a retardador. A Crimeia sempre foi russa, há 50 anos é que foi oferecida de presente à Ucrânia.

Poder-se-á dizer que foi a negociação que foi preciso fazer para manter as armas de destruição maciça dentro, para evitar que ficassem dispersas por aí, que [foi isso que] obrigou a essa atribuição da Crimeia à Ucrânia. Poder-se-á dizer que tudo isso não estava estável, mas a solução não era apoiar uma insurreição, ainda por cima de grupos muito duvidosos. Foi um erro gravíssimo da União Europeia.

 

Indo mais ao coração dos seus livros, e dizendo numa formulação provocadora: aquilo não nos atira para um “orgulhosamente sós”?

Não vejo porquê. As pessoas confundem autonomia com “orgulhosamente sós”. É muito português pensar que precisamos sempre de um paizinho, e que se não temos um paizinho ou uma mãezinha estamos sós. Podemos exercer a nossa autonomia, de país que já tem longos séculos de autonomia, cooperando com outros países na gestão de interesses comuns. Por isso fui e sou a favor da participação de Portugal na União Europeia.

Se não fazer parte da União Europeia fosse estar “orgulhosamente sós”, haveria 165 países no mundo “orgulhosamente sós”. Isso é um disparate federalista.

 

Um disparate federalista?

O federalismo é uma teoria perigosa na Europa porque se apoia num mito (o da solidariedade). Tentar forçar uma realidade que não existe é do pior que se pode fazer em política.

 

Gostei de o ouvir dizer “política”. Temos estado a falar de coisas que não são estritamente política. Nos últimos anos, a política tem sido engolida pela economia e pelas finanças. Desapareceu do vocabulário dos líderes europeus.

Claro. Alguns sabem muito bem o que é a política e exercem-na. A Alemanha exerce uma política e tem ideias muito claras sobre os seus objectivos políticos. Depois usa todos os instrumentos que estão ao seu dispor, incluindo os económicos, financeiros e monetários, para isso.

Portugal não é assim porque nunca tivemos uma política decente em relação à Europa. A nossa prioridade foi sempre sacar o mais possível dinheiro comunitário. A enorme leviandade com que cedemos a nossa soberania tornou especialmente antipática para mim a classe política nas suas relações com a Europa. A política, neste contexto, não é nada, mas a culpa é nossa, não é da realidade.

 

Esse retrato que traça é muito pouco simpático para Portugal.

Não, não, para as elites políticas portuguesas. Vistas em perspectiva, as nossas relações com a Europa têm sido vergonhosas. Uma subordinação completa. Sempre com dinheiros de fundos estruturais e um bloqueio da discussão interna, impedindo referendos e debates aprofundados. Admite-se que tenhamos cedido a soberania, nos mais diversos domínios, sem uma única consulta popular?

 

Especifique quais são os domínios em que cedemos a nossa soberania.

O domínio monetário foi o primeiro, que é essencial. O domínio orçamental, ficámos bastante reduzidos. O domínio, muito importante, da unanimidade das decisões na União Europeia, que com o Tratado de Lisboa foi reduzido a quase nada. Isto significa que pelo menos teoricamente podíamos vetar decisões que agora não podemos. O primado do direito comunitário sobre o direito nacional, inclusive a Constituição.

A democracia representativa existe para os nossos representantes exercerem o poder em nosso nome. Não existe para cederem o poder a outros. Quando é assim, tem que haver referendos.

 

Como é que íamos manter a prerrogativa de vetar, de dizer não, se, basicamente, não crescemos desde 1995?

Não crescemos porque em grande parte cedemos a nossa soberania monetária. Porque adoptámos uma moeda que não estava ajustada à nossa estrutura produtiva. Mas o programa de ajustamento financeiro não seria o que foi se tivéssemos a possibilidade de vetar decisões comunitárias.

 

Quando olha para a troika, olha para o FMI, apesar de tudo, como nosso amigo e a Europa como a má da fita?

O grande engano é que essas duas entidades nos estão a fazer um favor. Não estão. Estão a defender os credores. O que é legítimo para o FMI. Já não é legítimo para a Comissão Europeia. A Comissão Europeia tem como objectivo defender os tratados. É inaceitável que a Comissão Europeia tenha defendido coisas que vão contra os tratados. O FMI é uma entidade que vela pela sustentabilidade financeira mundial e nisso tem que [cuidar] que os devedores paguem aos credores.

 

No início deste ano, veio a Portugal uma delegação do Parlamento Europeu fiscalizar a acção da Comissão.

E fez um relatório bastante crítico, e com justiça. Os tratados dizem que a legislação laboral é da competência de cada Estado. Nunca a Comissão Europeia deveria pressionar para alterar legislações laborais. Esta Comissão Europeia foi um desastre do ponto de vista económico.

 

Parêntesis. Se Durão se candidatar à presidência, como tudo indica, pensa que pode ser penalizado pela sua acção enquanto presidente da Comissão?

Penso que sim. É difícil largar esse lastro. Embora a responsabilidade seja mais do comissário para os assuntos económicos e financeiros, o Olli Rhen, Durão Barroso era o presidente da Comissão. Se o presidente não concorda com o que está a ser feito, tem sempre a possibilidade de se demitir e dizer porque é que se demitiu. Ele não fez isso e ficou ligado a estes programas de austeridade, que foram muito nocivos. Não só para Portugal, para a Europa.

 

Se exceptuarmos o Governo, não vejo ninguém de garrafa de champanhe na mão a celebrar a famosa saída limpa da Troika.

Não vai alterar nada de fundamental [a saída formal]. Vamos ficar sujeitos às regras do Tratado Orçamental, que não podemos cumprir.

 

Não podemos cumprir?

Não temos margem para cumprir. O que nos é exigido é impossível de cumprir. Reduzirmos o deficit a quase zero, até é possível, desde que não seja amanhã. Mas reduzir a dívida pública para 60% do PIB em 20 anos é inexequível. Isto põe o país numa situação falsa. Um país nunca se deve comprometer com coisas que não pode cumprir. Segundo o Tratado vamos ter que fazer uma parceria – gosto do nome [risos] – com a Comissão Europeia para ela nos impor um conjunto de políticas económicas durante 20 anos.

 

Ou seja, vamos continuar atados.

Não vamos. Antes disso alguma coisa vai suceder. Ninguém aceita 20 anos de austeridade, que é o que propõe o Tratado Orçamental. Entretanto a Europa ou dá uma grande volta ou desaparece.

 

Um cataclismo?

Não é o mais provável, mas é possível. Se houver uma nova crise financeira mundial, a Europa não tem margem para se ajustar. Não pode subir mais o desemprego, já não pode reduzir mais os rendimentos.

 

2008 pode repetir-se e isso pode desencadear…

... É como uma zona sísmica. Sabemos que há sismos, não sabemos é quando nem com que intensidade. O que sabemos é que haverá uma crise financeira, no prazo de cinco, seis, sete anos. Se for com a intensidade da de 2007, ou até um pouco inferior, a Europa não tem capacidade para se ajustar. Todos os cartuchos foram queimados. Países como Portugal, Grécia, Espanha, França, estão já com a sua capacidade de manobra muito restringida.

 

Não é nada optimista.

Por que é que haveria de ser? Quando vejo um projecto que não tem viabilidade, sou pessimista. Não sou o único. Os europeístas dizem o mesmo. Não vejo capacidade a nível europeu para refundar a Europa em bases equilibradas e seguras. Como é que posso estar optimista?

 

Esses europeístas não têm títulos como Porque Devemos Sair do Euro, ou Em Defesa da Independência Nacional.

Não têm títulos de nada, não têm solução nenhuma. Têm desejos. Desejos de solidariedade, de acabarem os egoísmos nacionais. Mas isso não é política, é expressão de sentimentos. Políticas é apresentar soluções concretas e realizáveis.

 

E como vamos viver até lá? Numa frase do Império Romano, “panis et circenses”. O povo, quem vota, precisa de pão e circo.

Circo, vão tê-lo, isso não falta. Vão precisar de mais pão. E isso a Europa não nos vai dar, nem Portugal dentro dessa Europa. O que vem a seguir não sei, mas antes dos 20 anos haverá acontecimentos.

 

Precisamos de sonho, também. De qualquer coisa que dá um sentido, um horizonte futuro. Onde é que nos agarramos?

É voltar a ter autonomia política, é o sonho. A autonomia política é essencial para o nosso desenvolvimento, não é por qualquer mito serôdio, é porque é a única forma de termos instrumentos para nos desenvolvermos. Senão seremos, na melhor das hipóteses, abastecedores de mão-de-obra para a Europa.

 

Defende a saída do Euro...

As pessoas têm medo do que acontecerá com a saída. Se fosse possível sair sem problemas, uma enorme maioria aceitaria sair.

 

Isso seria possível rasgando o papel e dizendo: “Não honramos os nossos compromissos, não pagamos”?

Possível talvez fosse, não era desejável. A saída deve ser negociada e controlada. Não pagar o que devemos só em desespero de causa. Mas temos mais capacidade de pagar o que devemos fora do Euro do que dentro do Euro.

Segunda coisa, que exige o tal consenso dos partidos: o país não aceitar mais cedências de soberania a longo prazo.

Terceira: temos que reconstruir o Estado, começando pela administração pública. A administração pública tem vindo a ser destruída e a debilitar-se e isso é essencial para que o Estado possa ter autonomia de decisão.

 

O que sugere pressupõe uma confiança nos políticos. Estamos, ao contrário, num período de extremo descrédito em relação à classe política.

Sim, mas se houver políticos com uma agenda deste tipo, ganharão a confiança. O problema dos políticos é que hoje não se distinguem, a não ser nas promessas. Não oiço em Portugal, nos chamados partidos do arco do poder, críticas às instituições comunitárias. Como é que alguém pode ter confiança nesta classe política? As pessoas não são parvas, percebem que políticos assim não têm capacidade nenhuma para que o país tenha vontade própria.

 

Seria preciso que saíssem de fora dos aparelhos partidários, das jotas.

Talvez, mas há gente boa em todos os partidos. Não é preciso esperar que venha um salvador de outros lados quaisquer. Tenho notado isso, ao discutir as minhas teses com algumas pessoas de partidos.

 

Essas não aparecem com vozes dissonantes da do partido.

Não, mas um dia poderão aparecer.

 

Então não importa nada esta crise no PS, o resultado das legislativas daqui a um ano, se nada de estrutural mudar.

Com certeza. Os partidos socialistas estão numa posição muito difícil na Europa. Não é por acaso que grande parte deles está a caminho da irrelevância. Aprovaram um conjunto de coisas que está contra a essência de um partido socialista.

 

Como é que sente que os seus livros foram recebidos, sobretudo o Porque Devemos Sair do Euro? Inicialmente era uma voz no deserto...

O livro teve um impacto internacional, apesar de não ter sido traduzido.

 

Como?

Através do Wall Street Journal e de outros órgão de comunicação social. O ambiente nos média começou a mudar. Hoje já se podem pôr em causa as opções europeias, incluindo a protecção da Zona Euro, sem se ser considerado um anormal.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014