Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Anabela Mota Ribeiro

Noé Sendas

30.11.14

Noé Sendas nasceu em Bruxelas em 1972. Vive entre Berlim, Madrid (e, menos, Lisboa). Estudou na Escola António Arroio e no Ar.Co, no Royal College of Arts, em Londres e no Art Institute of Chicago. Os seus suportes preferenciais são a fotografia e o vídeo. A releitura (de obras de Beckett ou de Fellini) e a manipulação da imagem servem-lhe para questionar as noções de identidade e autoria. Desde 2009 trabalha a série Crystal Girls, na qual transforma uma imagem de época através de várias técnicas de sabotagem.

Metamorfose é uma palavra que vai bem com ele.

 

Se lhe perguntar quem é a sua família, responde o quê? Pode nomear pessoas, pinturas, lugares, passeios... Acho que estou a pedir que desenhe um pequeno mapa. Bem sei que é um pedido impossível... Mas vimos de algum lugar, e sentimo-nos em casa junto de algumas pessoas.

A minha família? A de carne e osso, a que nasce, envelhece e morre comigo. A das longas paixões e amizades partilhadas. Mas, sim, existem imaginários, obras às quais me adoptei, às quais me moldei e que carrego comigo.

 

Houve um tempo em que percorreu os passos de Samuel Beckett. Que tipo de experiência procurava, mais do que tudo? O que interessa é a busca? E o que é que se encontra?

Não encontrei nada. Ou seja, não encontrei nada que se assemelhasse à experiência de ter lido Molloy. Uma obra que me fulminou. Acho que foi uma tentativa de me recompor dessa mesma leitura. Necessitava de mais tempo com o autor. Primeiro li várias biografias. Numa delas descobri referências aos diários inéditos da sua primeira passagem por Berlim. Fui a Londres ler estes diários, que acabei por copiar à mão, na íntegra, para um pequeno caderno. Depois disso fui dar um passeio por Berlim com o autor, até me sentir preparado para me despedir do Sr. Beckett e seguir outro caminho. Durante esse tempo dei por terminada a série das figuras-esculturas Nameless e comecei a trabalhar a série das figuras-fotografias Crystal Girls.

 

O que é que o faz apaixonar-se por uma imagem (que a seguir manipula)?

Intuitivamente agrupo o meu arquivo de imagens em várias categorias. Sou incapaz de manipular uma imagem que considere perfeita. Ficaria certamente a perder. São intocáveis. Acabo sempre por trabalhar as imagens tortas, por exemplo as que considero que têm excesso de informação.

 

As suas imagens situam-se muitas vezes num lugar habitado pelo silêncio, pelo não-dito. E dizendo algo, as imagens estão longe de dizer (quase) tudo. O que importa é o mistério?, o espaço que fica para o romance?

“Um lugar habitado pelo silêncio…”: curioso, quando trabalho estou geralmente com headphones, oiço Thom Yorke, David Byrne, entre outros (poucos). Oiço em loop, horas sem fim, e salto da cadeira se alguém me interrompe! É na velocidade, na repetição de temas como “Skip Divided” que encontro o meu silêncio. Isto é um faits divers, mas queria chegar a esta letra do Thom York... É possível por aqui um link?

 

Sim.

É http://www.jango.com/music/Thom+Yorke?l=0. Acho que responde ao que me importa no acto de sabotagem de uma imagem.

 

Há uma componente narrativa que foi acentuada nos últimos anos? É uma forma de prolongar a fantasia, o gesto criativo de outros, de se apropriar e efabular por sua conta?

Por um lado, quando um artista começa a ter um corpo de trabalho, inevitavelmente começa a projectar uma narrativa para esse corpo. Daí também os apagamentos que os artistas fazem, por vezes, de fragmentos do seu trajecto. O duelo que existe em cada obra, entre o (ar)riscar e o apagar, acumula-se no corpo de trabalho. Por outro lado, nos trabalhos mais recentes que tenho vindo a desenvolver voltei ao palimpsesto, àquilo que se raspa para escrever de novo, como um método de edição/sabotagem – e aí pode resultar uma eventual narrativa.

 

Como comunica com as diferentes artes, nomeadamente o cinema e a literatura? E a dança? Estou a pensar em muitas imagens onde o corpo é central.

Enquanto fazedor e espectador, tudo depende das minhas limitações criativas, conceptuais. Sei que tenho mais intuição para um objecto fixo. Tenho mais facilidade em apreender e avaliar a edição por sobreposição de planos do que por sequência planos.

 

Pensemos agora na oficina: como é que faz o que faz? Vive há anos fora do seu país, entre Berlim e Madrid. Como é que isso contamina o que faz?

Existem vários conflitos, que considero saudáveis e que por isso vou mantendo. À partida sou sedentário e solitário, mas por vezes tenho urgência em ser arrebatado por estímulos exteriores. Hoje tenho três oficinas: uma em Berlim, outra em Madrid e mantenho a de sempre em Lisboa. Cada vez que abro a porta da minha oficina, estou num contexto, cidade, cultura, grupo de amigos distintos. Necessito dessa desorientação, dessas lufadas de ar fresco que me obrigam a estar mais atento, mais alerta, menos afunilado sobre mim mesmo.

 

Há alguns anos que trabalha com estas fotografias (como é que lhes chama, dentro de si)? Ciclo prolongado? Como é que olha para o que fez antes? O que há em comum entre estes vários elos da cadeia?, o tema da identidade?

Às Crystals Girls? Uma ongoing series. O tema da identidade? Não sei. Sou muito consciente do que é um corpo de trabalho. De alimentá-lo de modo a que este continue com fome, inquieto, vivo. De permitir que este corpo se obstine numa só ideia durante anos, pela necessidade de um apuramento, mas estar sempre atento, muito atento, para travar a fundo e mudar de direcção antes que estrada se esgote. Depois, como em tudo, há as sortes e os azares da vida, e é questão de os optimizar.

 

A última pergunta é sua: quer “perguntar-se” o quê?, quer perguntar o quê (a quem?) Dito de outra maneira: a pergunta é central no seu processo criativo? Quais são as perguntas-motor (se as há)? Dito ainda de outra maneira: apetece-lhe perguntar ou afirmar?, e o quê? Que é que lhe atravessa agora a tola, como um feixe de luz.

Há sempre uma pergunta sem resposta.

 

 

Esta entrevista foi feita por escrito e propositadamente para este blog em Novembro de 2014.

 

 

Pedro Marques Lopes

27.11.14

Pedro Marques Lopes é um reformista que odeia revoluções, e que leva a vidinha com um sorriso. Diz o pior possível do PSD que Pedro Passos Coelho encarna. Pode dizer bem dos sociais-democratas que se chamam socialistas personificados por António Costa. Capitalista, faz comentário político na SIC-Notícias e na TSF, escreve para jornais. Tem um patoá que mistura Chico Buarque, tacos de golfe ou Burke na maior das calmas.

  

“Vivemos na ilusão da mudança, de que um objecto ou uma decisão mude radicalmente a nossa vida”. Isto é uma descrição dos Suaves Portugueses. Parece muito adequada ao dia de hoje, segunda-feira a seguir às primárias do PS.

Pois é.

 

Depois da vitória retumbante de António Costa, sobretudo para a esquerda, há a ideia de que agora é que vai ser.

Vivemos tempos tão desesperados que alimentamos a ilusão de que alguém nos vai salvar. Não concordo que seja só para a esquerda. A vitória do António Costa abre horizontes para outros lados.

 

E, nesse sentido, é um acontecimento nacional.

É um acontecimento nacional, sem dúvida. É nacional porque vai ser um concorrente ao [cargo de] primeiro-ministro. E porque há a expectativa de poder agregar algo que é muito mais abrangente que a esquerda: um grande descontentamento nacional com aquilo que tem sido a governação, com o caminho que está a ser conduzido.

 

Esse descontentamento está muito, também, na direita?

Entra naquilo que convencionámos chamar de centro-direita. Aquilo que está em causa é que o caminho que tínhamos, certo ou errado, foi alterado em termos de composição ideológica e programática e política do país.

 

Está a dizer que este PSD que está no Governo não é o PSD de sempre.

Exactamente. Houve uma quebra, um corte sistémico no partido. Tenho dúvidas se esta direcção representa o eleitorado tradicional do PSD e dos militantes. As máquinas neste momento estão muito “desideologizadas”. Caso as pessoas não se lembrem, o PSD é o partido mais português de Portugal. Foi um partido construído na base da classe média-baixa, da pequena burguesia, do pequeno empresário, do pequeno capital. E do funcionário público, que é algo que agora associamos muito, não sei por que diabo, ao Partido Socialista.

A verdade é que o tecido social que apoia o Partido Socialista e o Partido Social Democrata é similar.

 

Ainda que Costa apanhe hordas de descontentes, na hora da verdade, um social-democrata vai votar num socialista? Existe uma grande diferença entre fenómenos como o do Rui Moreira, que arrebanha descontentes com os partidos, e uma figura como Costa que simboliza, para o bem e para o mal, o partido.

Uma das partes curiosas da campanha do PS foi ver o António José Seguro como um homem do aparelho e o António Costa como um homem de fora do aparelho. É falso. O António Costa, no discurso de vitória, disse que era militante desde os 14 anos. Mas o facto de ser um homem do aparelho não quer dizer que seja um cacique. Os partidos existem e há pessoas, e muito bem, que fazem carreira dentro dos partidos, que pertencem a uma máquina. Agora, os partidos não se podem transformar em máquinas de empregos e de poder, isso é outra história.

 

Há o aparelho bom e o aparelho mau?

Claro que sim. Esta história do Novo Banco, do banco bom e do banco mau, corresponde ao que está a acontecer na nossa comunidade. Estamos numa tendência de branco e preto que nunca existiu bem em Portugal. Até nos acusavam de ser sempre meias tintas, suaves.

 

O título do seu livro é “Suaves Portugueses (A vidinha com um sorriso)”.

Suaves Portugueses [era visto] como algo mau. Nunca achei isso mau. Gosto muito de suavidade.

 

Quando começou este maniqueísmo de bons e maus?

Tem poucos anos, esta “futebolização” da política e de muitas outras coisas. Prescindiu-se do estabelecimento de pontes. Agora são estes de um lado e aqueles do outro.

 

Passou a haver um horror ao centrão.

Sim.

 

Sobre o qual nos erguemos nos anos 80 e 90.

Ora bem! Acordos de regime: eles sempre existiram em Portugal entre o PSD e o PS. Alguns queridos, outros menos queridos, mas entendidos.

 

Agora são vistos como um conluio para a negociata.

É verdade. A dimensão da derrota de António José Seguro [é expressiva], porque foi a primeira vez que um discurso populista foi tentado num partido do sistema. Foi um discurso contra os interesses instalados, pela regeneração do sistema político. Foi um discurso que se diz não-político mas que é violentamente político. E não resultou. Isto diz-nos alguma coisa.

Voltando ao banco bom e ao banco mau: a dicotomia “eles e nós”, que já existia com Sócrates, foi potenciada com este Governo. A dada altura, não consigo identificar quando, foi apontado, como algo importante politicamente, que o PSD se transformasse num partido de direita, ou, pelo menos, de um nós contra eles. Vejo alguns semi-ideólogos deste Governo com um discurso que me parece tirado do Tea Party.

 

Está a falar de quem?

Bruno Maçães...

 

Mas isso conta?

Conta. Bruno Maçães, Miguel Morgado, são eles que dão um enquadramento ideológico ao Governo. Pelo menos dão um enquadramento ideológico a Pedro Passos Coelho.

E surgiu a imprensa de tendência. Estou a falar do Observador. É um jornal muito bem feito sob um ponto de vista jornalístico e que tem uma opinião completamente dirigida a um segmento eleitoral, que é reduzido ou quase inexistente.

 

Mas que conta porque mexe com milhões?

Acho que não. É um mito. Os homens de negócios, dos milhões, pensam, pensam muito bem...

 

Não pensam é de um ponto de vista político e ideológico, é isso?

Claro. Ainda bem. Um empresário quer ganhar dinheiro. Eu sou um capitalista, acredito mesmo na capacidade da ambição. Há limites... O greedy is good simboliza uma falta de limites éticos para a actividade empresarial. Mas acredito que o facto de querer ganhar dinheiro com a minha actividade é bom para a comunidade.

Quando digo que não há um suporte ideológico para aquilo que se está a passar, para a governação portuguesa, digo que isto é feito no ar. Não tem uma correspondência com a realidade portuguesa, com os sentimentos das pessoas. A base sólida de votantes corresponde, ainda, a essa “futebolização” da política. Eu voto no PSD porque sim. Eu voto no PS porque é o partido em que sempre votei. É a história do Costa.

 

Uma coisa de clubes, quase. Os meus pais eram PSD, os meus pais eram PS, e eu reproduzo isso.

É quase clubístico. Farto-me de ver pessoas que dizem: “Eu sempre votei PS, eu sempre votei PSD”, no matter what.

 

O voto não é tão errático assim.

Em Portugal, e em muitos países, o voto não é nada errático.

 

Vai haver uma reconfiguração à esquerda depois desta vitória?

A mim, até me dá vontade de rir quando se faz o discurso de que António Costa vai unir a esquerda. António Costa está muito mais próximo do Partido Social Democrata tradicional do que do Bloco de Esquerda ou do Livre ou do Daniel Oliveira. Então do PCP... Vai unir a esquerda, mas que esquerda? Ele é muito mais do centro.

 

Quando as pessoas do centrão mudam a orientação de voto, vão para onde?

As pessoas saem do voto do PSD ou do PS normalmente para a abstenção.

 

A canção de hoje para Costa podia ser, Hoje é o Primeiro Dia (do resto da tua vida)?

Do Sérgio Godinho. Hoje é o primeiro dia do resto da vida dele em muitos sentidos. Tem três ou quatro desafios importantíssimos. O primeiro é mostrar que tem um discurso e uma linha, que tem uma ideia. O que não fez, ainda. Estas eleições foram terríveis nisso. Por um lado, teve esta coisa extraordinária: alguém chegou e bastou ter chegado para ganhar um partido. Simplesmente porque António José Seguro conseguiu dizer tudo mal.

 

Perdurou durante algum tempo a ideia de que Costa, o traidor, tinha aparecido pelas costas com uma faca para desapossar Seguro.

Viu-se o que resultou disso. Esse discurso era tão patético, tão patético... Tornou-se patético dois dias depois de António Costa ter avançado porque passados dois dias começou a aparecer muita gente a apoiar António Costa. Estas eleições provaram que não houve traição nenhuma. Mas António Costa tem que mostrar um caminho. Não pode mais estar calado.

 

Ao mesmo tempo que se afirma como oposição, tem de dizer de que forma é oposição…

Ele vai afirmar-se como oposição. As pessoas estão demasiado chateadas com o Governo. Estão muito expostas a apoiar alguém que diga: “Nós não vamos fazer o que estes senhores estão a fazer”. Quase que basta. Vivemos uma circunstância particular. Os últimos governos não disseram ao que vinham. Limitámo-nos todos a passar cheques em branco aos últimos governos. Há algo que está a acontecer, e se os políticos não percebem, vão ter um desgosto enorme. Não se podem repetir as brincadeiras de três dias antes das eleições se dizer que não se vão cortar salários ou pensões, e passados 15 dias cortá-los.

 

O eleitorado não aguenta mais a quebra de confiança?

Diz-se que são os negócios, que são os escândalos que têm adulterado a relação entre os representados e os representantes; isto tem feito muito mais! Tem sido muito mais grave que os eventuais negócios, a corrupção. Se isto se volta a repetir vamos ter um problema grave, sistémico.

 

Tornemos aos desafios de Costa. Afirmar-se na oposição com um caminho, um discurso definido…

E desistir de um discurso de pisca-pisca. O PS tem sempre esse problema: pisca o olho à direita e pisca o olho à esquerda. Não faz sentido.

 

Costa não vai ao centrão?

Não, ele tem é que ter um discurso. E esse discurso tem que ser o dele.

 

Como é que vai fazer isso se não piscar o olho aos descontentes do PSD?

Não precisa de dizer: “Descontentes do PSD, isto é para vocês. Esquerda, isto é para vocês”. Isso é impossível de fazer. Os projectos políticos falam por si.

É importante que ele apresente um projecto político até para gerar uma boa dicotomia, para que o PSD se consiga reafirmar e buscar aquilo que é a sua génese. O caminho ideológico do PSD hoje ninguém sabe qual é.

 

Pode ser chamado de neoliberal? É normalmente disso que é apelidado.

Não, é um liberalismo de badana, de quem só leu metade do livro. Não consigo ver-lhe uma lógica. Umas vezes interfere demasiado no funcionamento do Estado da economia, outras não. É uma confusão sem nome. Há um traço brutal neste governo: incompetência.

 

É o que vai ficar dele?

Não, infelizmente não é. O que vai ficar é um terramoto social e de mudança de algumas coisas que estavam estabilizadas na nossa comunidade. Mas o que o provocou – ao contrário do que muita gente diz, que é uma ideologia – é sobretudo incompetência.

 

Acha que não sabem o que estão a fazer?

Conheço o discurso: “Estão a acabar com a classe média porque querem”. Acho que não. Acho que não percebem o que estão a fazer. “Olha, isto aconteceu...”, acabar com o pequeno comércio, com os restaurantes, com as obras públicas.

No entanto, essa incompetência convive com algumas pessoas que considero excelentes ministros. Obviamente que olho para Paula Teixeira da Cruz ou Nuno Crato e ainda estou para perceber como é que alguém se lembrou de os levar para ministros. A Paula Teixeira da Cruz é um autêntico fenómeno.

 

É próxima de Passos desde sempre. Do ponto de vista ideológico.

Não é bem verdade. Mas pouco importa. Eu não levava os meus tios para ministros, alguns deles, se fosse primeiro-ministro. Essa proximidade, a mim, diz-me muito pouco. Ela e Nuno Crato (ponho os dois no mesmo barco) são o símbolo de uma coisa que tem prejudicado muito o nosso país: tudo o que está para trás é uma porcaria, vamos fazer tudo de novo.

Percebo isso em Nuno Crato porque vem da extrema-esquerda. Ainda deve ter essa raiz maoista, revolucionária, virada ao contrário. (Subitamente a extrema-esquerda maoista está em todo o lado!) Em Paula Teixeira da Cruz, é só incompetência.

 

Quais são os ministros bons?

Paulo Macedo é um exemplo de competência...

 

Estou a perguntar por aqueles que vão sobreviver, escapar ao fim deste ciclo.

O que quer dizer muito. Jorge Moreira da Silva, Paulo Macedo, António Pires de Lima. Aquela crise de Portas [no Verão do ano passado] ajudou a melhorar um bocadinho o Governo [riso].

 

Custou-nos um bocado caro.

O problema é esse. Custou-nos no bolso e contribuiu muito para a descredibilização e para o desprestígio dos políticos. Aquele irrevogável não se pode fingir [que não aconteceu].

 

Foi muito mais que uma anedota.

Sim.

 

Qual é a canção de Pedro Passos Coelho que começa hoje?

Arriscaria o The End dos Doors, mas acho demasiado violento. O que está por trás da canção é mais violento do que propriamente o fim.

 

Passos vai cair ou não na sequência do caso Tecnoforma? E se se mantiver, em que condições é que se mantém?

Espero que não caia na sequência do Tecnoforma. Espero que o Tecnoforma não inquine o processo político. A pior crise política é a que nos impede de falar sobre política.

 

Neste caso, não falamos de política enquanto falamos de promiscuidade entre negócios e política, e de prestígio, e de moral? Não são questões menores.

Falamos de política na questão ética, na questão dos princípios, não há dúvida. Mas o que era importante discutir neste momento era o que estamos a fazer com a escola pública, com a justiça, com a segurança social, a nossa relação com a Europa. Era muito mais útil ao país discutir isso do que discutir se Passos Coelho tem ou não boa memória, que é o que está em causa.

 

No imediato acha que…

Acho que não vai acontecer nada.

 

Morreu aqui a aparência de homem que carrega os sacos de plástico do supermercado, o das férias na Manta Rota?

Pedro Passos Coelho, nesse aspecto, é profundamente genuíno. Ele é mesmo a pessoa que gosta de ir para a Manta Rota, é mesmo a pessoa que gosta de levar os sacos. O que ele perdeu foi aquela imagem de absoluta confiança [que havia nele], esse lado da seriedade.

 

Ele até podia estar mal acompanhado, mas conseguia passar incólume... era a imagem que havia.

Exactamente. Havia o lado bom e o lado mau. O lado mau era o Relvas, e Passos era o bom. Isso é impossível, duas pessoas tão próximas... Essa deificação de Passos Coelho acabou. É pena ter acabado dessa maneira, mas quem constrói uma imagem de impoluto tem que estar preparado para que qualquer problema polua de uma maneira definitiva a sua imagem.

É um bocadinho português, gostamos de construir homens ideais. Temos pouca capacidade para conviver com as nossas fraquezas. O Costa é um exemplo, agora é o salvador. Ei-lo que vem dos céus!

 

Esperamos um messias desde o D. Sebastião.

E tivemos vários. Tivemos na nossa História tipos extraordinários. Tivemos Infante D. Pedro, o Príncipe Perfeito.

 

Já lá vão uns séculos.

Pois [risos].

 

O Tecnoforma vai ficar para Passos como o BPN ficou para Cavaco, como o Freeport para Sócrates? Não estou a fazer um juízo sobre a culpabilidade ou não culpabilidade destes casos. Estou a perguntar se isto não passa a ser uma pastilha elástica que se cola na sola do sapato e que não sai.

Sem dúvida nenhuma. O drama deste tipo de casos é que estão sempre em aberto. E enquanto estão em carne viva, e estão sempre em carne viva, não podemos discutir mais nada. Isto cria um clima de permanente suspeição, de permanente falta de crença nas pessoas.

Gostava que este caso nunca tivesse acontecido, e tenho que dizer isto: foi Passos Coelho que o provocou.

 

Como assim?

Se Passos Coelho tem dito naquele dia: “Eu, mil contos? Nunca na minha vida!”, toda a gente perceberia. Não ia dizer: “Não me lembro”. Não sabia se estava em exclusividade ou não... Fez uma gestão super inábil. Mas estas histórias das Tecnoformas eram muito dos anos 90. Empresas grandes foram envolvidas, sindicatos. Todos os partidos. Fundos. Formar pasteleiros que nunca iam ser pasteleiros. Queremos esquecer esse passado, mas o passado não é assim um país tão distante. E está a surgir. Finalmente – e isso é que mancha definitivamente – “ele também fez parte desse processo”. Se calhar não fez nada de mal, mas andou lá. Toda a gente fazia, mas ele também fez.

 

Não falámos ainda de uma pessoa que, desde a vitória de Costa, deve estar a afiar as espadas, Rui Rio.

A afiar as espadas, não estará. Há dois processos que estão a decorrer. Há as pessoas do PSD que querem levar Rui Rio a uma candidatura à presidência para que ele nunca seja candidato a presidente do partido.

 

Parêntesis. Durão já está arredado?

Sim, ninguém no seu juízo perfeito pensou em Durão Barroso. Uma vez dirigi-me a um político, um homem muito experiente: “Você acha que Durão Barroso podia ser mesmo candidato a Presidente da República?”. Respondeu-me: “Os políticos de elevada estirpe são todos egocêntricos. Ele olha para si próprio e diz: ‘Já fui primeiro-ministro, já fui presidente da Comissão Europeia, porque diabo é que não podia ser Presidente da República?’”. Aquilo que para nós é óbvio – ele estar associado à pior crise europeia, o ter fugido [para Bruxelas e ter abandonado o cargo de PM] – [não é para ele]. Também sei, da vida, que é muito difícil alguém dizer, mesmo os amigos íntimos, e os políticos não têm amigos íntimos: “Ó, pá, tu és maluco, pá”.

 

Os políticos não têm amigos, têm interesses?

Não, não acho. Na vida do político que quer ser primeiro-ministro ou Presidente da República, [é preciso] estar tão focado nesse objectivo que há inevitavelmente uma instrumentalização de quem está ao lado. É uma tarefa tão gigantesca, que abrange tantas coisas... Se há palavra mal utilizada nos meios políticos é amigo. É a coisa mais conspurcada que há na política. A palavra amigo na política é utilizada para limitar.

 

Para limitar?

Eu nunca diria mal de uma acção do seu Governo ou da sua câmara porque sou seu amigo. Se diz que fez mal, não é minha amiga. São todos amigos.

 

Vamos voltar a Rui Rio. Repare que não disse facas, disse espadas. Afiar espadas.

Nem aventais, não falou em aventais.

 

Costa, Rio... Quais são os poderes, entre eles o maçónico, que neste momento estão numa agitação, a tentar perceber qual é o seu lugar?

São os de sempre. Agora é que António Costa vai ter amigos. Tem uma vantagem, é um homem experiente. Bom, quanto a Rio. Estão a tentar empurrar Rui Rio para a presidência, o PSD quer afastá-lo da corrida à liderança, isso é evidente. Rui Rio e presidência da República são duas coisas que não rimam. Depois há o outro lado do PSD que o quer levar a líder do partido. É muito mais provável a segunda do que a primeira. Mas não tenho a certeza, primeiro, que Rio queira ser líder do PSD, segundo, que lhe estendam uma passadeira para ser líder.

 

Quando se fala da ascensão de Costa à liderança, e de Rio, pelo lado do PSD, fala-se de um entendimento que seria possível. Dizer isto é uma forma de estender as passadeiras.

Isso é verdade. Haver uma estabilização, ou pelo menos um acordo em relação a certas mudanças que têm que ser feitas (entre elas, a justiça), é necessário. Esse acordo seria impossível com Passos Coelho e António José Seguro. E será impossível entre António Costa e Pedro Passos Coelho, impossível! Tem que haver um refrescamento eleitoral, da legitimidade dos líderes. Mas há pessoas no PSD, que ainda têm muito controle sobre o aparelho e os militantes, que não se revêem em Rui Rio.

 

Está a falar de Marques Mendes?

Não, de todo. Marques Mendes, desde que mudou de carreira, e é porta-voz/comentador do Governo, está distante da política, e não regressará. Marques Mendes conta pouco neste momento dentro do PSD. Há uma coisa que é verdade: quem se colou a Pedro Passos Coelho durante estes três anos não tem futuro político próximo dentro do PSD. O PSD vai ser muito cruel com esta herança. E o PSD é mais cruel nas rupturas do que o PS.

(Esta, provavelmente, é a primeira vez que o PS tem um corte profundo. Acabou-se o “segurismo”, mesmo. Se é que existiu.)

 

E Rio?

É possível que surja. Mas Rui Rio, de cada vez que aparece, causa problemas a ele próprio e às pessoas que estão a pensar apoiá-lo.

 

Porquê?

Fico assustado quando o vejo dizer que é preciso deitar tudo abaixo, que está tudo mal.

 

Qual é que é o seu PSD neste momento? É um conservador que tem dito bem dos socialistas nos últimos três anos.

Não há socialistas em Portugal. O PS é um partido social-democrata. Curiosamente quem tem o nome é o PSD, que também é um partido social-democrata. É bom que se saiba.

Há bocado falávamos do centrão do modo negativo como as pessoas falam do centrão... Eu sou um tipo do centrão. A herança do centrão até há pouco tempo foi uma extraordinária herança. Tivemos um período pós-revolucionário curto, e em 1979 já tínhamos um governo de centro-direita.

 

Ainda que os discursos de Sá Carneiro, lidos hoje, pareçam de um esquerdalho.

De facto, temos um sistema partidário estranho. Temos dois partidos próximos. Pergunte a Mário Soares se não tinha uma brutal admiração por Sá Carneiro... claro que tinha.

 

O que é que deixou de funcionar? Como é que se rasgou essa extraordinária herança?

Até ao ano 2000 estávamos a fazer um caminho de aproximação à Europa vertiginoso. Depois aconteceu o Euro.

 

E depois a crise na Europa.

Sim.

 

Para voltar ao PSD no qual se revê...

Gostava que o Partido Social Democrata tivesse muito mais cuidado no seu recrutamento político. Gostava que se regenerasse na perspectiva de aparecer menos pessoas que, se não fossem deputados, ou não fosse o partido, dificilmente arranjariam emprego nas obras.

 

Está a levantar o problema da qualidade da classe política, e do clientelismo.

Acredito em políticos profissionais. Mas acredito em políticos profissionais que, se não forem políticos, podem ter outra profissão. Que podem sair. O problema é quando se está tão limitado nas decisões que não se tem outra alternativa.

 

Gostava de falar dos 40 anos do 25 de Abril e pegar numa frase que usou no seu livro: “Uma tal sensação de tudo ser possível”. Isto leva-nos ao princípio da entrevista, à ideia de que alguém, de alguma decisão tornar tudo possível, mudar tudo.

Sei que é um tema recorrente no meu imaginário.

 

Esta tristeza, este desencanto que se sente na sociedade portuguesa…

Somos muito dados à tristeza e à melancolia.

 

Estamos especialmente desejosos de “um objecto ou uma decisão mude radicalmente a nossa vida”?

Sim. Se calhar, o género humano, ambiciona esse toque de Midas. Se permanecermos nessa ilusão, nunca mais vamos mudar o nosso destino. Acredito que são pequenos passos que nos conduzem à melhoria da qualidade de vida.

 

Usa recorrentemente a palavra comunidade. Porquê essa e não sociedade? Uma das coisas que falham em Portugal é justamente o sentido de comunidade.

Utilizo-a muito. Temos um grande problema de défice de participação na comunidade. Basta pensar numa assembleia de condóminos, numa reunião de pais. Basta pensar na maneira como nos organizamos para fazer seja o que for. Os bons e os maus perturbam a construção de pontes, perturbam a capacidade de comunicarmos uns com os outros. Isso é vital para a comunidade.

 

Começamos a amadurecer quando esperamos menos os messias e acreditamos mais em pequenos gestos e no nosso comprometimento?

Não. Quanto mais avançamos na idade, mais falamos dos messias, que normalmente são os velhos. Discurso típico: “Os políticos antigamente é que eram bons”. Não é preciso ler muitos livros de História para saber que à antiga não era muito bom. E que os políticos antigos também não eram extraordinários. Mais carne e osso e menos deuses, se faz favor. Até por uma questão de identificação. (Passos Coelho conseguiu uma coisa interessante, uma imagem que se identificava com os valores médios da nossa comunidade).

 

Então o caminho faz-se em pequenas passos? São esses os movimentos, e não os grandes cataclismos?

São as pequenas reformas, as pequenas mudanças. Não sou revolucionário. Odeio revoluções! A revolução estraga mais do que constrói. Acredito nas reformas. Toda a gente agora odeia o termo reformas estruturais: eu acho que se devem fazer reformas estruturais. Se calhar não no sítio onde foram feitas, se é que foram feitas, mas isso é outra questão. Sou um reformador, não sou um revolucionário. Se me posso identificar ideologicamente, é por aí.

 

 Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014

Ler Eugénio, Ramos Rosa e Sophia

26.11.14
O próximo Ler no Chiado é sobre Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner e Ramos Rosa, a pretexto da reedição da obra destes poetas.  

Com Fernando Pinto do Amaral, Inês Fonseca Santos e José Mário Silva, poetas que são também professor universitário, jornalista e crítico literário. 

Dia 4 de Dezembro, às 18.30, na Bertrand do Chiado.

Eu modero.

Apareçam!

Ler no Chiado é uma iniciativa da revista Ler e da Bertrand na primeira quinta feira de cada mês. 

Rui Tavares (2012)

25.11.14

Vamos lá trocar umas ideias sobre a Europa. E esquecer a politicazinha nacional, a disputa interpartidária, os anúncios pe-cu-li-a-res (estamos do domínio da descrição e do eufemismo) de Vítor Gaspar, a face opaca mas prestes a escangalhar-se de Passos Coelho, a face igualmente opaca mas com-sorte-ainda-lá-vou de António José Seguro. Vamos lá trocar umas ideias sobre quem manda realmente em nós (excluindo os bancos, que mandam pouco, mas ainda mandam, e o poder político, que manda bastante, por mais que isto seja um protectorado da troika). Vamos lá falar de Merkel e de muito antes de Merkel, da Comunidade do Carvão e do Aço, da cortina que divide a Europa, da eventual ruína do projecto desenhado sobre os escombros da Segunda Guerra. De um continente que está a dar errado. De soluções para um futuro incerto.

O eurodeputado e historiador Rui Tavares lança um livro em que disseca um mapa, uma utopia, os momentos em que os caminhos de bifurcaram, uma encruzilhada, “A Ironia do Projecto Europeu”. 

 

 

Qual foi a pior coisa que aconteceu ao projecto europeu?

Foi ter sido construído com base no medo dos políticos em relação aos cidadãos; como se o projecto europeu precisasse de uma linguagem que é sempre ínvia, oblíqua. O governo não se chama governo – chama-se Comissão. À lei europeia não se chama lei – chama-se directiva. Foi sempre fugindo ao seu verdadeiro objecto, estruturalmente.

 

Tem correcção?

A certa altura já vai num desvio demasiado grande para se corrigir com pequenos passos. O bloco orçamental é perigoso porque reforça uma dinâmica segundo a qual, para o Euro ter que viver, a União Europeia tem que morrer.

 

O que parece um contra-senso quando olhamos para o projecto inicial.

Sim, é um contra-senso porque o Euro era suposto amarrar a União Europeia de uma vez por todas.

 

Uma vez que não existe federalismo, uma vez que não existe uma Constituição, uma vez que não existe uma união fiscal, o grande cimento é o Euro.

A ideia do Euro era resolver a rivalidade franco-alemã, impedir que ela voltasse à superfície. Esse era o grande objectivo da União Europeia, no início, com [a criação da Comunidade do] Carvão e do Aço. O que Mitterrand tentou fazer no início dos anos 90, quando percebeu que era inevitável a reunificação alemã, foi que o peso de uma nova Alemanha não afastasse a Alemanha do projecto europeu, mas que a amarrasse através da moeda única.

Não era um projecto alemão. Era um projecto no qual a Alemanha entrou quase sob chantagem dos outros países. Depois fez aquilo que as pessoas fazem quando fazem uma coisa contrariadas: “Ai é?, então vai ser feito à minha maneira. Vai ser o marco para todos”. Acabou por produzir um acender dessas tensões.

 

O projecto europeu deixou de ser a resolução da tensão entre os dois pólos mais poderosos deste mapa para passar a ser entre a Alemanha e os outros. Mas os outros parecem não ser suficientemente poderosos para competir com a Alemanha.

Continuo a achar que a batalha decisiva, que, ou é resolvida ou acaba com o Euro, é entre a França e a Alemanha. Não é entre a Alemanha e o sul. A Comunidade Europeia começou no início dos anos 50 com a ideia de resolver esse problema, que tinha sido o problema da Europa desde meados do século XIX (em 1870, em 1914, até à Segunda Guerra Mundial). Foi-se firmando nos estadistas franco-alemães, e nos países que estavam no meio (Holanda, Bélgica, Luxemburgo e norte da Itália), a ideia de que resolver o problema da Europa era resolver a secular rivalidade franco-alemã.

 

E a Inglaterra?

Os ingleses também tinham interesse em resolver essa rivalidade, mas era um problema do continente, dentro do qual não estariam. Quando Churchill faz o discurso dos Estados Unidos da Europa não era pensando que a Inglaterra, que ainda tinha o seu império, estivesse dentro dos Estados Unidos da Europa.

A questão é que em 60 anos se foram dando uma série de pequenos passos que já nos levaram muito longe. Para dar um exemplo, Estrasburgo, uma das capitais simbólicas da União, escolhida precisamente porque é a cidade que mais vezes mudou de mãos entre franceses e alemães, hoje em dia não diz nada a romenos, a portugueses, a polacos. Um deputado maltês é bem capaz de ter que apanhar um avião para a Tunísia para depois apanhar um avião para Estrasburgo, tendo que sair da União para poder ir para uma das capitais da União.

 

A evolução da Europa foi tal que o que serviu em 1950 já não serve agora?

As respostas da Declaração Schuman são boas respostas dadas naquele momento histórico, mas já não servem para este. “A Europa terá que ser feita por realizações concretas, que criem solidariedades de facto”. Isto é que era o mais importante na resposta dele, não era a concretização específica entre a França e a Alemanha, o carvão e o aço.

 

Porquê?

O que está por trás disso é que a solidariedade se consegue através de realizações concretas, criando mecanismos em que toda a gente está melhor. Isso perdeu-se pelo caminho.

 

Eram precisos esses dois elementos, o da concretização e o da solidariedade. Hoje quando pensamos no projecto europeu e em Bruxelas, pensamos numa teia tecnocrata, imensa, impenetrável, num labirinto do qual não se sai para a realidade concreta, ainda que o que dali sai produza realidades concretas.

A União Europeia, já escrevia um federalista de esquerda, um euro-comunista italiano chamado Altiero Spinelli, está dividida em duas partes. Uma é a Europa dos funcionários, a Comissão, toda a gente ali à volta em Bruxelas; e outra que é a Europa dos governos. E nenhuma destas Europas é aliada dos cidadãos europeus. Às vezes, tacticamente, uma parece ser, ou a outra parece ser, mas na verdade ambas têm uma lógica divergente. Uma tem uma lógica procedimental, que é a dos funcionários; o funcionário tem o seu livro de instruções, se chegar ao fim do dia e tiver cumprido com as instruções todas, está safo.

 

Preenche um quadriculado. Como é que não se rompe a aridez evidente que está nessa quadrícula?

Porque é uma Europa de funcionários feita por gente cuja vivência e sobrevivência, todos os meses, depende de cumprir com a quadrícula.

Do outro lado, na Europa dos governos, afirmou-se a ideia de que o governo é, e deve ser, uma máquina de dar más notícias aos cidadãos – “Vamos ter que cortar, vamos ter que fazer sacrifícios”.

 

A contenção não é nova. Pelo contrário.

Sim. É uma coisa que a curto prazo pode funcionar, e historicamente já houve momentos em que os governantes tiveram que dizer: “Isto vai ser sangue, suor e lágrimas”. Mas os governos e os políticos não podem pensar que governar para as pessoas ficarem piores, governar para a austeridade, é uma coisa que se possa fazer em democracia. Daí que alguns deles comecem a namorar com ideias de suspender a democracia ou ter governos tecnocráticos.

Se nos virarmos para outras grandes esferas regionais no mundo (o Brasil, a China, a Índia, mas em particular o Brasil), a ideia é que se governa para que as pessoas fiquem melhor. O governo brasileiro é, como já foram os governos europeus a seguir à guerra, uma máquina de dar boas notícias: “Vamos fazer universidades federais para os vossos filhos poderem estudar, para saírem do ciclo de pobreza”.

 

Entretanto descobriram-se poços de petróleo. Os bens energéticos mudaram completamente o posicionamento do Brasil no mundo.

Não, não é isso. O Brasil nunca foi pobre em recursos naturais. No entanto tinha uma elite que achava que se devia governar, em primeiro lugar, para ela, e que pobre era pobre. Lula dizia a certa altura: “Governar é simples: trate-se primeiro daqueles que precisam mais”, e o resto vem por arrasto. Isto é o grande petróleo. Quando começou a crise em 2008, Lula fez algo que os europeus e americanos se esqueceram de fazer. Foi dizer: “Continuem com os vossos planos de estudo, de família, de casa. O governo vai ser um baluarte e tentar aguentar a travessia durante esta borrasca”.

 

É uma forma de dar futuro.

Dizer uma coisa destas entre os governantes do hemisfério norte, hoje em dia, é quase uma blasfémia. A Europa esqueceu-se de como escrever o segundo capítulo do crescimento que teve no pós-guerra, tal como nos Estados Unidos se esqueceram de escrever o segundo capítulo do New Deal. Já podíamos, durante os anos 80 e 90, ter pensado como fazer para escrever a sequela dos grandes sucessos da Europa (da social-democracia escandinava, da Frente Popular Francesa, dos 30 anos gloriosos de crescimento, do estado social europeu). Temos capacidades realistas para o fazer.

 

Acha que, sobretudo a Europa, não soube lidar com o cataclismo de 1989, com aquilo que foi o desmoronamento de um mundo e uma recomposição obrigatória depois da queda do Muro do Berlim?

É mais irónico do que isso. A Europa não soube lidar com o milagre de 1989. Não é um cataclismo, é uma coisa maravilhosa. Havia uma Cortina de Ferro a dividir a Europa, havia uma cidade, Berlim, dividida ao meio, e nada do que os europeus pudessem fazer ia resolver isso. Só podia ser resolvido em Moscovo ou em Washington, ou nos dois lugares. Em 1989 Berlim foi reunificada, e agora, curiosamente, é em Berlim que as soluções para a Europa estão. Há uma nova Cortina de Ferro na Europa, que é a que divide a Europa endividada da Europa do crescimento, e os europeus, que podem finalmente decidir o seu destino, não sabem para onde é que hão-de ir.

 

Esse desequilíbrio, essa desigualdade entre os dois lados da cortina são sustentáveis?

A Zona Euro está equilibrada, se tomada como um todo. É no interior da Zona Euro e no interior da União Europeia que há desequilíbrios, como há em qualquer outra unidade regional. Alguém alguma vez pretendeu que os Estados Unidos, o Canadá ou o Brasil fossem equilibrados entre si? Não podem ser. Mas o que é poucas vezes dito é que os desequilíbrios já mudaram ao longo da história. Já houve regiões que eram principalmente regiões que recebiam e que hoje são regiões que dão.

 

Isso pode acontecer na Europa? Ou o norte, protestante, poupado e produtivo, vai ser sempre o que tem dinheiro para emprestar ao sul, presuntivamente negligente, gastador e improdutivo?

Não há nenhuma razão para que o sul da Europa esteja condenado a ser subdesenvolvido em relação ao norte da Europa. A União Europeia é uma unidade regional com 500 milhões de cidadãos, maior do que os Estados Unidos, maior do que o Brasil. É verdade que é menor do que a Índia ou a China. Tem uma população mais educada do que qualquer destes dois blocos, e provavelmente mais do que os Estados Unidos. É, ex aequo com os Estados Unidos, a maior economia do mundo. É um continente que tem Londres, Paris, Berlim. Mas se desaparecessem as capitais europeias e ficássemos só com Milão, Hamburgo, Manchester, Barcelona, estaríamos mal? Este continente não é um continente que possa dar errado. É um continente que estão a fazer dar errado.

 

Retomo a pergunta inicial, mas declino-a de outra maneira: Merkel foi a pior coisa que aconteceu ao projecto europeu? O pior que aconteceu, e que faz que ele dê errado, foi a falta de desígnio, a falta de liderança, os interesses particulares que se impuseram aos do colectivo?

A Europa deixou-se prender uma situação em que os estados já não podem e a federação ainda não pode.

 

“A federação ainda não pode”?

A Europa, na verdade, já é uma federação. O que Durão Barroso anunciou – que queria fazer da Europa uma federação de estados-nações – é muito fácil, porque é o que a Europa é neste momento. Mas uma federação tem duas pernas, a do Estado e a dos cidadãos; a parte dos cidadãos está por completar. Como os cidadãos não legitimam nenhum poder político executivo (escolhido pelos 500 milhões), o pior que aconteceu à Europa não foi Merkel ou Sarkozy: foi não haver ninguém em Bruxelas que lhes dissesse: “Têm que pensar nos interesses da Alemanha ou da França. Mas eu fui eleito pelos 500 milhões [de europeus], e vou pensar nos 500 milhões”.

Para voltar ao exemplo brasileiro: foi a mesma coisa que Lula fez quando os cariocas acharam que o petróleo do pré-sal era deles. “Ok, está ao largo do Rio de Janeiro, mas eu tenho problemas para resolver que vão desde Roraima ao Rio Grande do Sul”. Isso, não temos na Europa.

 

O presidente da Comissão poderia dizer isso, fazer esse papel?

Não. Porque este presidente da Comissão foi escolhido por Merkel e Sarkozy, por pares, pelos estados mais poderosos, e está sempre numa posição de dependência em relação a eles. O que é preciso é cortar esta posição de dependência – para que haja uma democracia europeia que não seja um clube de democracias. Se não puder haver democracia europeia não teremos solução para a crise. Quem achar que a democracia está limitada às fronteiras do estado-nação, deve defender que reentreguemos o poder ao estado-nação, que desfaçamos as coisas em que já estamos amarrados uns aos outros (como o Euro), para finalmente o estado-nação resolver os seus problemas. O pior que aconteceu à Europa foi não haver esse contraponto dos cidadãos.

 

Foi isso que nos deixou sem instrumentos para lidar com a situação?

Se não for uma democracia europeia, a Europa tem três hipóteses. A de ser um cartel de estados, a de tornar-se num super estado antidemocrático e a do regresso aos nacionalismos enclausurados.

 

Qual é a mais plausível?

A Europa está a tornar-se nestas três coisas ao mesmo tempo. Está a tornar-se um cartel de Estados porque a Alemanha e a França, e alguns aliados, têm a última palavra sobre tudo, e às vezes têm a primeira palavra. Está a tornar-se um super estado antidemocrático, por exemplo, ao nível da investigação antiterrorista, da vigilância dos cidadãos (os aviões que apanham, as transferências bancárias que fazem, daqui a pouco as comunicações que fazem...). E estamos a assistir aos nacionalismos enclausurados em países como a Hungria, a Roménia, a Holanda. Tudo o que de mau podia acontecer está a acontecer agora e em simultâneo.

 

Há dois aspectos de que não falámos. Por um lado, uma falta de horizonte, uma desesperança que parece contradizer a essência da Europa. Por outro lado, e associado a isto, grassa uma desconfiança dos cidadãos em relação aos políticos, às soluções que estes possam trazer.

O que é anormal é não termos tido a clareza de espírito de perceber que a Europa tem vias de saída da crise. Não nos esqueçamos que se se perder a Europa perde-se um património da humanidade. Um património para o qual os países em desenvolvimento ainda olham como paradigma de bem-estar social, de igualdade, de mobilidade social, que funcionava, e que agora funciona menos. Há uma série de soluções que podem e devem ser utilizadas, e que permitiriam à Europa dar o salto em frente.

 

Que soluções?

Não precisamos de alterar tratados. Se os alterarmos, muito bem, mas não quero que os cidadãos europeus estejam dependentes de uma alteração feita por autorização dos governos – logo, do governo alemão. Podemos escrever um pacto democrático para a União, assinado por 200 pessoas, duas mil, dois milhões, exigindo três coisas muito simples: que nunca mais um presidente da Comissão seja eleito sem ter sido candidato. Que os candidatos à Comissão Europeia vão aos 27 países e façam em 27 universidades debates apresentando os seus programas. Temos que conhecer o candidato e um programa prévio. As pessoas têm que ter uma escolha (expansão ou austeridade?). Até podem escolher austeridade – eu não concordarei – mas tem que haver uma linha programática bem definida. E que o Parlamento Europeu não aceite nenhuma nomeação.

 

São soluções políticas. Mas há outras dimensões em jogo.

Do lado da resolução da crise económica e social é necessário fazer uma coisa que não é exactamente um plano Marshall para o sul, é uma Tennessee Valley Authority para o Sul.

 

Como é que se dá essa especial atenção aos que estão em condições mais frágeis? Na Europa existe uma atitude punitiva e moralista em relação a esses, que se endividaram, e que por isso estão nessa situação de dificuldade.

Cabe-nos, no sul, pensar num modelo de desenvolvimento para os nossos países. Há dez anos que não se fala num modelo de desenvolvimento para Portugal. Um modelo que expliquemos aos nossos concidadãos europeus e que tenha aquela coisa muito simples que faz funcionar isto tudo: que nos beneficie a nós e a eles. Tem que ser um modelo centrado em exportação de energia para o norte, que é dependente de energia (energias alternativas, energia solar) e centrado na sociedade do conhecimento. A União deve fazer o equivalente a universidades federais. Não haveria Silicone Valley sem Berkeley e Stanford. Devemos fazer universidades em Atenas, em Lisboa, em Córdova, em Nápoles, e esses devem ser os embriões dos futuros Silicon Valley europeus. Mas, como são da União, são universidades onde também estudam os estónios, os alemães, os finlandeses. São para todos. Essas pessoas, umas ficam e fazem as suas empresas aqui, outras voltam às suas terras e fazem uma rede entre novos empreendedores de elevadíssimo potencial.

 

Está a falar de uma forma mais alargada do programa Erasmus.

Sim. É um potencial enorme, tão grande quanto o potencial do mercado único, que se está a desaproveitar se deixarmos que o projecto europeu colapse antes de essa geração tomar as rédeas. Um modelo de desenvolvimento para o sul é resolver o nosso problema do Mediterrâneo Sul, do mundo árabe e do norte de África. Diz-se sempre que o sul é uma periferia; só é uma periferia se não virmos o que está do outro lado.

 

E se o centro for a Alemanha.

O sul da Europa nunca foi periferia nenhuma por estar no Mediterrâneo. Foi o centro da economia e o centro do mundo durante muito tempo. Só que neste momento estamos numa fronteira entre o Mediterrâneo norte e o sul. Se se relaxar um bocadinho essa fronteira, haverá mais troca de pessoas e de mercadorias. E nós já não somos a periferia. Somos o centro de outra coisa que tem o tipo de assimetrias connosco que nós temos com o norte.

 

Deixe-me voltar à simplicidade de Schuman, e insistir no descrédito em relação aos políticos. Precisamos na Europa, em Portugal, de outra coisa que não o patoá de que estamos todos um pouco fartos. Precisamos de um discurso simples, que tenha uma expressão concreta...

A simplicidade é uma coisa ao mesmo tempo boa e perigosa. Em época de crise, as pessoas procuram simplicidade; e, ou se oferece simplicidade inteligente, cooperação, paz, a resolução de conflitos através do diálogo; ou as pessoas acabam por optar por uma simplicidade estúpida. Foi o que aconteceu nos anos 30. Mas numa crise com esta complexidade, a simplicidade é uma necessidade no discurso político. E não iremos lá com transparência.

 

Como assim?

De que me serve a transparência em relação a um produto financeiro cujo prospecto tem 14 mil páginas e que nunca conseguirei entender? De que me serve a transparência quando o Google Office Book tem uma política de privacidade que demora uma hora a ler, que eu não entendo, e se, para pôr o Google em tribunal, eu precisaria de milhões e de uma equipa de advogados enorme?

 

É preciso que a informação, além de transparente, seja mais sucinta?

Não, é preciso que obedeça a uma linha directora que seja expressa em princípios e ideais partilhados por todos – como tinha o Iluminismo: liberdade, igualdade, fraternidade. Nada disto é complicado. Dizerem-nos que é complicado é uma medida da falta de coragem dos políticos.

 

Tem um discurso optimista, quer em relação ao projecto europeu, quer em relação ao Euro, quando hoje se discute a reversibilidade do Euro?

Tenho um discurso muito pessimista num determinado sentido. Já aconteceu, várias vezes, as soluções que estavam em cima da mesa serem melhores do que aquelas que acabaram por ser aplicadas. Durante a paz de Versailles, Keynes, então funcionário do governo britânico, escreveu, logo em 1919, que aquilo ia levar a uma nova guerra. Era uma paz mal feita.

Aquelas pessoas do passado, que não eram estúpidas, que não eram mais estúpidas do que nós, também se sentaram em cimeiras intermináveis a resolver coisas, e não foram capazes de optar por soluções melhores. Foram-se deixando arrastar por egoísmos, ganâncias, políticas de vista curta. A certa altura estávamos num beco em que a guerra era inevitável, ou em que a divisão da Europa era inevitável, ou em que o colapso da Sociedade das Nações era inevitável. E já não havia nada a fazer, já se tinha atingido o ponto de não retorno.

 

É a sua visão de historiador que o faz ser pessimista?

A grande pergunta por responder numa crise destas é: há progresso moral e político na sociedade ou não há? Se houver, devíamos ser capazes de ultrapassar isto de forma simples. Se não houver, se cometemos os mesmos erros do passado, ou se acharmos que somos mais espertos do que as pessoas do passado e que não precisamos de aprender com os erros que cometeram, aí é muito mau.

 

Qual seria o preço a pagar pelo falhanço?

O preço a pagar por não resolvermos esta crise é elevado demais. Mas para resolvermos esta crise é preciso um novo discurso político. É preciso, e aqui falo enquanto pessoa de esquerda, que a esquerda europeia entenda que está a brincar com coisas muito sérias, e que a Europa já pagou demasiadas vezes pelo maniqueísmo interno da sua esquerda. A direita europeia está esgotada. Não sabe para onde levar este continente.

 

Mesmo que a maior parte dos partidos neste momento no poder seja de direita.

Na direita europeia ficariam muito aliviados se vissem a esquerda com o mínimo de ideias acerca do que fazer à Europa. Alguns estão na direita pelo poder, por interesse, por oportunismo, para ficarem com os últimos despojos da nossa República (em Portugal). Mas muitos sabem que as suas ideias não estão a dar certo. Sabem que os bons exemplos de saída deste tipo de crise – por cima – são a social-democracia escandinava, são o New Deal rooseveltiano; sabem que, mesmo nos países que tiveram governos conservadores, como a Inglaterra, foram conservadores muito especiais, que empregaram políticas socialistas, social-democratas, de investimento no sector público.

 

Então, o problema está também, e muito, na esquerda.

Muita gente respiraria de alívio na Europa, à esquerda, no centro e na direita, se a esquerda se apresentasse com vontade política de ultrapassar as suas estúpidas querelas e fazer qualquer coisa de patriótico e de bom pela humanidade. Na Islândia fizeram-no.

A Islândia foi o país mais atingido pela crise. Os bancos valiam muitas vezes mais que o PIB, e as suas opções são reduzidas por ser uma ilha, por estar localizada onde está. A esquerda islandesa, os socialistas, que eram mais neo-liberais que os nossos, foram os obreiros da desregulação. Tiraram a Islândia de uma tradição social-democrata escandinava e atiraram-na para um capitalismo selvagem anglo-americano. Apesar de ter este cadastro terrível, a esquerda islandesa juntou-se, governou e conseguiu salvar a Islândia da crise com reduzidas perdas no seu estado social e até com invenção e reforço em algumas áreas. Viraram-se para o FMI e disseram: “Meus senhores, podem apanhar o avião de regresso a casa. Adeusinho”.

 

Em quanto tempo?

Em dois, três anos.

 

E isso porque quiseram que assim fosse?

Também porque quiseram. E também porque não estavam dentro do Euro e não tinham a camisa-de-forças do Euro. Mas pergunto a qualquer português o que é melhor: se é ter um sistema político que oferece saídas ou ter um sistema político como o grego? Vejo que em Portugal há muita gente que quer ter um sistema político-partidário como o grego, em que ninguém fala com ninguém, ninguém faz governo com ninguém, e toda a gente está a vigiar o vizinho do lado para ver se lhe chama traidor.

 

Há um culpado, um principal culpado? Os governos de direita dizem que a crise é obra dos governos de esquerda.

A culpa desta crise não é da esquerda. É da desregulação financeira, é do neo-liberalismo, e é também do centro-esquerda.

 

Em Portugal foi assim?

Em Portugal e no mundo. O centro-esquerda deixou-se cooptar por estas ideias, mas a esquerda, globalmente, não. O centro-esquerda foi colonizado, como diz Alfredo Barroso, pelo neo-liberalismo e esqueceu-se das suas raízes.

Não termos saída para a crise, pode e é, também, culpa da esquerda. E não termos saída para a crise pode ser muito mais grave do que termos entrado nela.

 

O que é que aprendeu sobre Portugal desde que vive em Bruxelas?

Aprendi que o nosso sistema político-paridário é pior do que pensava, que oferece menos soluções, que é mais oligárquico.

 

E está auto-manietado?

Há muita gente boa nos partidos, mas os partidos transformaram-se em pequenas oligarquias em competição por nichos de mercado. Fazem a gestão da frustração respectiva. O PS faz a gestão da frustração com o PSD, o Bloco e o PCP fazem a gestão da frustração com o PS. E o CDS faz a gestão da frustração, em parte, com partidos do governo, e em parte com os outros partidos da oposição, porque estão numa posição dupla.

Como dá para o gasto, vão-se mantendo nisto. Não perceberam ainda que a emergência histórica os obriga a afrontar as suas próprias oligarquias internas.

 

Quem é que os pode forçar a fazer diferente?

Os cidadãos. Os cidadãos têm que dizer aos partidos que é inaceitável que a nossa democracia seja incompleta. As pessoas votaram livremente, mas não podem ser eleitas.

 

Vai falar dos círculos uninominais?

Não. Para isso era preciso mudar a lei. Estou numa onda que é: o que for possível fazer… Não porque goste do que está, mas não quero estar a depender de outrem. Quero depender daquilo que eu, como cidadão, posso fazer. Posso dizer: “Podemos votar em quem quisermos”. Mas as pessoas em quem podemos votar foram escolhidas por líderes partidários, no caso do PCP por um colectivo. Não há a possibilidade de se fazer primárias nos partidos, e isso depende, não de se mudar a lei, mas da vontade dos partidos. Para os partidos terem vontade temos que os obrigar. Foi o que aconteceu em Itália (onde já há primárias), foi o que aconteceu em França.

 

No fundo, preconiza que se abra o leque de escolha dos cidadãos. E que ele seja menos controlado pelos partidos.

E [preconizo] a possibilidade de os próprios cidadãos – porque não? – avançarem e dizerem que são capazes de fazer melhor. Melhoraria em muito. Temos uma democracia que está capturada dentro dos partidos, por um modo de pensar que é de uma enorme mesquinhez.

Muita gente nos partidos que vai ler o que acabei de dizer, vai dizer: “Lá está este a querer ser eleito”. Ou: “Lá está este que quer fazer um partido”.

 

A verdade é que está. O Nova Esquerda, que encabeça com outros, é um projecto político.

É alguma vergonha uma pessoa exercer os seus direitos cívicos? É alguma vergonha os cidadãos deste país quererem fazer coisas ou acharem que as podem fazer? Os partidos queixam-se do anti-partidarismo que em grande parte é fomentado por eles.

 

Uma expressão do anti-partidarismo: chegámos à fase em que ter exercido cargos políticos ou estar ligado a um partido é uma nódoa no currículo.

É um estigma associado. Isso quer dizer que 99 porcento das pessoas não querem estar nem lá perto. No um porcento que resta, encontramos pessoas boas; e encontramos pessoas que estão ocupadas em exercer o seu poder “ali” porque “ali” controlam as portas de acesso aos cargos de representação, aos cargos de governação, e aos negócios que são possíveis fazer com os cargos de governação.

 

Vamos sempre dar ao dinheiro.

É o único ascensor social que ainda está na cara que funciona. Hoje em dia não é possível dizer a nenhum português: “Estuda, forma-te bem, fica aqui no país e a tua vida vai correr bem”.

 

O estudo deixou de ser ascensor social, para usar a sua expressão.

Também não é possível dizer: “Faz um café, uma empresa, trabalha no duro, vai correr bem”. Ninguém honestamente pode dizer a um filho, a um irmão, à namorada para fazer isso, porque daqui a cinco ou dez anos aquelas pessoas podem estar na falência. O que é que as pessoas vêem que funciona?

 

Os partidos políticos?

“Não estudes, entra numa jota. Faz os favores ao tipo que estiver a subir, aposta num cavalo dentro do partido. Depois apresenta-te com uma cadeira feita numa universidade, inventam-te mais quatro e dão-te equivalência a 26. Chegas a ministro e estás com a pasta das privatizações”. Este ascensor social funciona muito bem. Não por acaso é o senhor que beneficiou deste ascensor social que vem dizer aos portugueses: “Emigrem”. Ou seja: “Não deixem o meu ascensor social apinhado, isto funciona enquanto for para alguns espertos como eu”.

 

Pode apontar mais uma coisa que tenha percebido acerca de Portugal vivendo fora, e que lhe tenha causado surpresa?

Portugal tem tudo a ganhar em estar na primeira linha da inovação política europeia. Se passamos o tempo todo na discussão mesquinha, caseira, não nos safamos. Uma coisa que me surpreende em relação a Portugal na Europa é o papel decisivo que Portugal pode ter, mesmo sendo pequeno, mesmo estando falido.

 

E, além disso, que não é pouco, mesmo sendo periférico?

Sim. Não há vergonha nenhuma nisto. Uma pessoa endividada que morre numa aldeia não é menos cidadão, e um estado-membro periférico, endividado e pequeno não é menos estado-membro por isso.

Do lado português há uma visão para o Brasil e para os Estados Unidos, que são uma federação, há um país que é um excelente país de acolhimento, e que teria muito a ganhar como país de acolhimento. Estamos a começar a abrir as nossas universidades ao estrangeiro e vemos como somos um pólo de atracção muito fácil. Dizer à Europa que podemos pôr isso a funcionar a favor da Europa no seu todo é uma coisa que está ao nosso alcance.

 

 Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2012

 

Nuno Garoupa

20.11.14

A sua área de investigação é Direito e Economia e Direito Comparado. Pediu uma licença sem vencimento na Universidade de Illinois e assumiu a presidência executiva da Fundação Francisco Manuel dos Santos. É um estrangeirado que olha para o país com espanto e amor (de outro modo, porque regressaria?). No livro “O Governo da Justiça”, editado pela fundação, arrasa o modelo que temos, escreve que o Estado de Direito é deficiente. E não, não pensa que a reforma da justiça esteja feita, apesar das medidas avulsas. O problema é estrutural.

Nota-se bem que Nuno Garoupa é um estrangeirado quando diz coisas contundentes. Tem 43 anos. Resta saber se o país – essa máquina que funciona romba e desafinada – o engole.

 

Porque é que ninguém vai preso em Portugal?

Se olharmos para as estatísticas, há muita gente que vai presa. Dentro da União Europeia somos um dos países que têm maior sobrelotação penitenciária. A apreciação que há da realidade, e que deriva do trabalho dos meios de comunicação, é a de que há impunidade. Temos um problema evidente com crimes de colarinho branco. Mas não é significativamente diferente de outras realidades na União Europeia.

Quem vai preso é por outro tipo de crimes, crimes de colarinho azul.

 

Os problemas da justiça são dois, fundamentalmente. A morosidade, que tem que ver com o governo da justiça, de que fala no ensaio que escreveu para a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS); e a sensação de iniquidade, o sentimento de que os poderosos, os do colarinho branco, ficam impunes.

Tanto o inquérito que o INE fez com a FFMS, sobre a justiça económica, como vários trabalhos do Observatório da Justiça da Universidade de Coimbra, mostram que o cidadão ou a empresa que não têm um contacto directo com a justiça tem muito pior impressão do mundo da justiça do que aqueles que têm contacto directo.

Na última semana toda a gente se preocupou com as prescrições. Um jornal dizia que houve, em 2012, 700 processos-crime que prescreveram. Se pensarmos que estamos a falar de um universo de mais de 100 mil ou 200 mil processos, 700 é um número diminuto. No entanto, a percepção que se criou é de que tudo prescreve em Portugal e que há uma impunidade total.

 

Esses que prescrevem não são uns quaisquer.

Não são uns quaisquer e são os que têm atenção mediática. Podíamos argumentar que, em termos gerais, temos poucas prescrições. Contra-ordenações por multas de trânsito: o melhor seria prescreverem. O Estado, para que a multa de 50 euros seja paga, gasta muito mais do que 50 euros. Claro que com uma multa de um milhão de euros, o raciocínio tem que ser ao contrário: essa não devia prescrever. Esses processos prescrevem pelas razões erradas.

 

O que é prescrever pelas razões erradas? É a ineficiência do serviço?

Não faz sentido que o tempo de prescrição seja um tempo que depende, não só dos operadores judiciários, mas também da vontade das partes. Não faz sentido que os recursos dilatórios possam ser considerados para o tempo de prescrição. Isto é diferente de dizer que as prescrições não fazem sentido e que devíamos acabar com elas.

Que estes abusos ganhem mais atenção mediática, também é normal. Vivemos num mundo mediático. Não podemos é confundir esses casos com o todo. Isto tem consequências, não só na percepção que temos da justiça, como na verborreia legislativa.

 

Verborreia legislativa?

Muita legislação pretende responder a um problema mediático sem ter em conta o impacto que tem no todo.

 

Os que têm dinheiro encontram um modo de escapar entre os pingos da chuva. Contratam bons advogados que sabem que, de recurso em recurso, o processo prescreve. Contratam alguém que os ajuda a fintar as debilidades do sistema.

Esta é a iniquidade.

Não vamos encontrar nenhuma solução que resolva completamente essa iniquidade. Não há soluções mágicas. Há diferentes opções que podem ser mais injustas aqui ou mais injustas ali. Quando foi detido o [Dominique] Strauss-Kahn nos Estados Unidos, [questionava-se] como é que era possível aparecer o senhor algemado, ser tratado daquela maneira, um homem tão importante. Nos Estados Unidos, como o sistema é acusado de ser iníquo, acaba-se por tratar pior o poderoso e o rico para mostrar que [o sistema] não é iníquo.

 

Está a dizer que Strauss-Kahn ou Madoff tiveram processos que correram de uma maneira célere para mostrar à comunidade que o sistema era justo?

Sim. Levá-lo algemado e fazer aquela imagem gráfica é um modo de mostrar que o poderoso é tratado da mesma forma que o pobre. Em Portugal costuma-se falar do caso Madoff porque foi decidido num tempo razoavelmente curto, mas foram investidos recursos para aquele caso ser rápido. Se olharmos para a duração média de casos penais similares nos Estados Unidos é bastante mais elevada.

 

Dou de barato que existe na opinião pública uma percepção diferente daquilo que é a realidade estatística, mas nunca tivemos um Madoff, um Mário Conde (Espanha), um caso como o Mensalão (Brasil). Há alguns casos mediáticos que dão ao cidadão a noção de que a justiça é igual para todos.

Temos alguns casos. Temos o caso do ex-presidente da Câmara de Oeiras [Isaltino Morais]. Há questões jurídicas e questões culturais. Não gostava de as misturar. O caso Madoff aconteceu como aconteceu porque o sistema norte-americano se baseia no princípio da oportunidade. Os procuradores não têm o dever de levar a tribunal todos os processos que têm em mão. Têm a possibilidade de escolher quais são os casos que entendem levar a tribunal. Decorre daqui o mecanismo de negociação, de plea bargain. O que aconteceu com o Madoff é que houve uma negociação entre os seus advogados e o Ministério Público local em que o Madoff se declara culpado de uma série de crimes; em contrapartida tem uma sentença mais reduzida.

 

A negociação evita que o caso se eternize.

Em Portugal rejeitamos esse mecanismo. Temos o princípio de legalidade, pelo qual o procurador tem que levar a tribunal todos os processos em que entenda que há suspeita suficiente para provar a culpabilidade do arguido. E não há plea bargain. A partir daí não vamos ter casos Madoff em seis meses. É impossível. Isto é o elemento jurídico. O elemento cultural é que temos que assumir que Portugal, culturalmente, é um país complacente com o crime de colarinho branco e com a corrupção.

 

Tinha ideia que o cidadão era complacente com a pequena trapaça, mas não com o crime do poderoso. Ninguém delata o senhor do café da esquina que fugiu aos impostos, mas toda a gente fica chocada quando o dono de uma grande empresa escapa ao fisco.

Fica numa primeira reacção. Mas esta é uma sociedade onde presidentes de câmara são reeleitos mesmo depois de se ter demonstrado que houve corrupção. E quantas vezes é que os partidos políticos expulsaram filiados por terem condenações de corrupção? Há logo uma justificação, um enquadramento. Isto não acontece nos países nórdicos, na Alemanha ou no Reino Unido.

 

Nesses países, elas mesmas se demitem quando deflagra a bomba.

[Demitem-se] antes da sanção política. O Sr. Madoff não andou pelas televisões a dar entrevistas nem é convidado para participar em actividades públicas. Em Portugal ninguém é ostracizado. As pessoas continuam a ter a vida social e mediática que tinham, em alguns casos mais até do que tinham.

 

Não acha que isso acontece porque as pessoas, como não confiam no veredicto da justiça, não acreditam que aquela pessoa seja de facto culpada?

Mas podia ser o contrário, porque o grau de exigência provatória que existe no processo penal é muito superior àquilo que é a opinião comum das pessoas. Não temos essa cultura. Nem uma cultura de conflito de interesses. As pessoas estão dois dias num determinado lugar e três dias no lugar oposto e acham que não há conflito de interesse. Ou acumulam lugares que não podem acumular.

 

E isso vai da política…

Vai da política ao mundo empresarial. Na política é mais mediático. Em Portugal há pessoas que acumulam cargos de administradores não-executivos em várias empresas que são concorrentes. Ninguém discutiu como é que um ex-ministro das Finanças, que foi responsável por um programa de ajustamento imposto pelo FMI, é contratado pelo FMI. Ninguém perguntou como é que um ex-ministro, que foi responsável por actividades de colaboração com a OCDE, foi contratado pela OCDE.

 

Essas instituições contrataram Vítor Gaspar e Álvaro Santos Pereira poucos meses depois. Não se observou um período mínimo de nojo. Isto é de parte a parte.

A decisão individual de ser contratado, assim como a instituição que contrata, serão responsáveis pelas decisões que tomam. O que me parece surpreendente é não haver da parte da sociedade uma crítica a essa situação – dizendo que há aqui um conflito de interesses óbvio. Se calhar precisamos de um período de nojo, longo para desaparecer esse potencial conflito de interesses.

 

No fundo está a dizer que as questões éticas são desconsideradas na cultura portuguesa.

Iria mais longe. A noção de ética nesta matéria é completamente diferente da noção de ética anglo-saxónica ou alemã. Em Portugal não há debate ético sobre estas questões.

 

Porquê? Somos muito poucos? Somos todos primos uns dos outros, todos nos conhecemos. Custa-nos criticar de uma maneira firme?

Sim. A crítica em Portugal é sempre tomada como uma crítica pessoal. A crítica nunca é institucional. Mesmo no mundo académico, o que vemos, ao contrário de outras culturas, é o elogio mútuo constante. A crítica é feita nas costas. Temos muita dificuldade em distinguir a crítica substantiva e metódica da crítica pessoal.

Em Portugal temos a sorte de o número de pessoas inteligentes e ilustradas ser à volta de 500 ou mil: são sempre as mesmas nomeadas para todas as funções. Temos umas elites que, por serem pequenas, se fecham e têm muita dificuldade em recrutar fora da esfera das elites.

 

É o corporativismo da elite.

É o nosso corporativismo mais grave. Há 50 anos fazia-se isto. As elites do Estado Novo faziam recrutamento dentro da própria elite. Acontece que a complexidade do Estado e das funções do Estado dentro do Estado Novo era muito diferente da complexidade do mundo de hoje. Isso torna o problema mais visível hoje do que há 50 anos. Quando se diz que Portugal é muito pequenino, não é uma questão de pequenez. A Holanda é muito pequenina, a Bélgica, a Suíça...

 

Apontou países protestantes.

Era onde eu queria chegar. Não é a pequenez, é a pequenez associada a uma questão cultural. Se conversarmos aqui ao lado ou em Itália, a percepção que têm das elites não é muito diferente da nossa, e são países maiores do que o nosso. A vantagem da Itália e da Espanha talvez seja que têm dois centros de produção de elite. Itália tem Roma e Milão, Espanha tem Madrid e a Catalunha. Isso provoca alguma concorrência de elites.

 

Nós já não temos Coimbra e Lisboa. E o Porto…

O Porto nunca conseguiu ser um grande produtor de elites. As elites são produzidas em Lisboa.

 

Mesmo económica? Estou a pensar em Artur Santos Silva, Belmiro de Azevedo, Américo Amorim. É uma elite empresarial importante.

Talvez o poder económico seja menos assimétrico do que o poder político e administrativo, que está concentrado em Lisboa. As próprias elites do norte, para terem algum êxito, acabam por fazer um percurso em Lisboa, ser parte das elites que estão em Lisboa.

 

Como é que nos transformamos numa sociedade meritocrática que fura com este fechamento das elites?

Se pensarmos nas pessoas que foram ministros ou primeiros-ministros nos últimos 30 anos, ninguém vai dizer que escolheu pessoas que não tinham mérito. A questão é se os méritos que são valorizados pelas elites são os méritos de que o país precisa em termos do seu desenvolvimento económico, social e humano. O problema das elites fechadas é que os méritos se avaliam dentro do grupo fechado. Quero promover pessoas que têm mérito mas é indissociável desse próprio mérito o facto de fazerem parte do meu grupo.

 

É um modo de dizer: os meus amigos são muito bons.

Essa é a questão. O que temos que fazer são choques. Teria sido muito interessante – o Governo não quis fazer – copiar o que os ingleses fizeram: decidir que durante o próximo mandato todas as agências de supervisão vão ser por concurso internacional, e que vamos contratar pessoas que não são portuguesas.

 

Também parece a velha cantiga de que vêm os de fora mandar e ensinar-nos como fazer...

Não, o que vêm é romper com os desequilíbrios. Isto não quer dizer que a partir de agora o Governador do Banco de Portugal tinha que ser sempre estrangeiro. Seria bom fazer essa experiência, chegar a outros equilíbrios, porque toda a gente tem fidelidades.

 

Uma decisão dessas significa distribuir poder, um enorme poder, por pessoas que não nos devem fidelidade. A ameaça é essa.

Essa é a ameaça que tem que ser assumida. O nosso problema histórico, ao contrário do mundo anglo-saxónico, é que Portugal nunca conseguiu reformar as suas instituições por via do consenso interno. Todos os regimes acabaram em revolução. Não conseguimos fazer transições sem convulsão externa porque as nossas instituições, mesmo quando estão esgotadas – final da Monarquia, final da República, final do Estado Novo –, não conseguem regenerar-se por dentro.

 

Porém, quando se dá essa revolução que põe fim ao regime, existe uma promessa infinita. Aquela é que é a oportunidade para fazer uma coisa de que nos orgulhamos. E depois perde-se sempre.

Podemos ir até ao Fernão Lopes que dizia aquela frase: “Levanta-se uma nova geração”. A maior parte das pessoas interpreta que era uma nova geração de líderes; penso que Fernão Lopes se referia a que eram os mesmos. Fez-se a revolução de 1383-85, mudou-se o rei, mas a elite continuava a ser a mesma. O nosso problema vem da fundação. Neste momento uma das coisas que se ouvem é que o sistema não está a funcionar, que alguma coisa vai ter que acontecer. Isso não é necessariamente verdade.

 

Que parte é que não é necessariamente verdade?

Que alguma coisa tem que acontecer [risos]. Isto pode continuar assim durante muito tempo. É verdade que com a tecnologia as coisas vão mais rápidas. A discussão que podemos ter é se vamos fazer a transição para um novo equilíbrio de forma pacífica e democrática ou se não vamos ser capazes, e vamos ter uma crise menos democrática dentro de cinco ou dez anos. O definhamento das instituições é claro, e pode prolongar-se por mais 30, 40 ou 50 anos. Não tem que acabar amanhã. Temos uma grande almofada, que é a União Europeia.

 

Estava a pensar na famosa frase do Príncipe de Salina: “É preciso que alguma coisa mude para que tudo fique na mesma”. Ou é preciso que tudo mude para que tudo fique diferente?

O que temos feito, e voltando à área da justiça, é mudar algumas coisas para que tudo fique na mesma. O que só vem dar apoio ao que estava a dizer – as instituições não se reformam por dentro. As instituições têm uma aversão à mudança. No caso português iria mais longe: a sociedade portuguesa tem uma grande aversão à mudança. É extremamente cautelosa.

 

Cautelosa ou medrosa?

É medrosa, cautelosa, e em muitas circunstâncias acobardada. Não se mobiliza com coragem. Responde, é muito reactiva. É uma sociedade que não tem uma dinâmica de mudança nos seus genes. Isto agrava-se nas instituições, que não querem, mesmo que possam pensar que a dez ou 20 anos vão estar melhor, pagar o custo dessa mudança.

 

No Direito anglo-saxónico, ao contrário do continental, há sistema de júri – o que parece condição para o seu bom funcionamento, transparência e rapidez. Temos, aliás, essa imagem mítica dos filmes.

Tudo tem aspectos positivos e negativos. O sistema de júri é caro. É preciso recrutar 12 pessoas e ter em conta que essas pessoas estão presentes em toda a fase do julgamento. E só funciona com o princípio da oportunidade. Do lado das vantagens do júri, celeridade.

 

Sobretudo essa?

Se tenho um julgamento com júri, não posso levar sete anos [a julgar]. A sentença e a leitura da sentença são rápidas porque a decisão é do júri e a leitura é feita pelo juiz em consequência da decisão do júri. Não há que esperar oito meses ou dois anos.

Se quiséssemos ter um sistema de júri tínhamos que alterar drasticamente a nossa forma de pensar o Direito Penal. Não há júri que aguente ouvir 600 testemunhas. Tenho que limitar os elementos provatórios. No sistema americano o fazer prova, o discovery, é feito antes do julgamento. Chegamos ao julgamento e as provas têm que estar todas ali. E a grande questão é a da linguagem.

 

Nos filmes, as provas são demonstradas perante o júri, de modo acessível. Nada que ver com o modelo intrincado que temos em Portugal em que ninguém percebe nada do que ali se está a passar.

O que o júri introduz é uma linguagem muito mais acessível ao cidadão. O nosso sistema fechou o mundo da justiça com a criação de uma linguagem que o cidadão comum não entende.

 

Só entende aquele que é formado em Direito.

Estamos a chegar a um ponto em que só entende o jurista que é especialista naquela área. Isso é muito negativo.

 

Cria opacidade.

Sim. A linguagem tornou-se o objectivo em si próprio e não o meio para nos expressarmos.

 

Uma vez, em Nova Iorque, fui a um tribunal. Só tive que passar por um detector de metais. Uma vez lá dentro pude assistir a julgamentos que estavam a decorrer. O tribunal não era um clube fechado. Rapidamente pude perceber o que ali estava em causa. Aquilo era compreensível. Comentando esta experiência com um americano ele dizia-me que é um enorme distúrbio para um cidadão ter que participar num júri. Fica com a vida interrompida. Quanto tempo? Em média, três dias. Pensei nos sete anos do Casa Pia.

Quando se diz que o julgamento são três dias, temos que ter em conta que houve uma fase anterior ao julgamento que pode ser bastante longa, dois ou três anos. Toda a discussão sobre o que está em causa faz-se através de várias moções até à fase do julgamento. Cerca de três quartos dos processos nos Estados Unidos nunca chegam a julgamento. São terminados por via de negociação, 98 porcento para processos cíveis, 90 porcento para processos criminais.

Em Portugal temos um sistema que herdámos da cultura continental que tem dois pilares fundamentais. Um, que entende que deve dar todo o tipo de garantias a quem é acusado. Cria um grau de formalismo que protege quem é acusado e vê no sistema americano uma perversão (não entende como é que é possível não ter essa preocupação). Outro aspecto: nos últimos 200 anos o que temos no ADN é uma desconfiança em relação ao juiz.

 

Recusamos a ideia de que a empregada doméstica, o pedreiro possam ser o nosso júri? Existe um preconceito de classe no coração da resistência ao sistema de júri?

Existe, porque [esse preconceito] está enraizado na sociedade portuguesa. A corporação tem uma linguagem e acha que deve excluir todo e qualquer cidadão das decisões que são da corporação. Criámos um sistema de tal maneira formal e técnico que só quem sabe da técnica é que consegue perceber o que é a culpabilidade no sentido técnico. Acontece que os sistemas jurídicos foram criados para aferir a culpabilidade no sentido corrente. O que se pretende é saber quem violou ou não violou a lei. Criámos tecnicismos que levam a que se entenda que não podemos ter o cidadão comum a participar nessas decisões.

 

Então, é ou não é a favor do sistema de júri?

Em abstracto ou no caso português? Em abstracto, acho que sim. No caso português, só poderíamos ter um sistema de júri com uma alteração profunda no nosso sistema de pensar o Direito Penal. Com a nossa forma de pensar o Direito – e o nosso Código já prevê a utilização de júri, não está excluído – não veria que tivesse consequências relevantes ou muito positivas para o sistema. Provavelmente iria criar mais confusão.

 

Há quanto tempo regressou dos Estados Unidos?

Está a partir do princípio de que regressei. Estava a dar aulas nos Estados Unidos, estou com uma licença sem vencimento e estou aqui na Fundação. É um projecto que espero que seja por vários anos. Mas não tenho a ideia de que estive fora e regressei.

 

Quando é que começou a ir?

Saí no princípio dos anos 90 para fazer o doutoramento em Inglaterra. Voltei no início do século, em 2001, para leccionar na Universidade Nova, e depois saí em 2007 para os Estados Unidos. Estou cá desde Novembro.

 

O que é que nota de surpreendente no país agora que vive cá todos os dias?

É um país que, vivendo num mundo globalizado, e tendo o discurso do mundo globalizado, continua a viver em autarcia. Como se fosse uma economia fechada, virada para dentro. O Manifesto dos 74 não tem impacto nenhum em Badajoz. É preciso ter noção da nossa pequenez mas também da nossa dependência. Isto não quer dizer que uma discussão sobre a reestruturação da dívida não seja importante lá fora. Se essa discussão for feita no parlamento, tem impacto.

 

Mas lá fora não sabem da decadência das nossas instituições e de como o português comum se está nas tintas para o que se passa no parlamento.

Estão preocupados com quem toma ou não as decisões. Se diria alguma coisa em relação à reestruturação [da dívida], é que o debate está mal colocado desde o primeiro momento.

 

Porquê?

Porque tem uma premissa básica que está errada, [a de que] Portugal é um estado soberano. Portugal está intervencionado pelo Fundo Monetário e pela União Europeia, está dentro do Euro, abdicou da sua soberania monetária, praticamente abdicou da sua soberania orçamental com o novo Tratado Orçamental. É um debate que tem que começar por uma premissa diferente: o que é que se pode fazer tendo em conta que abdicámos da nossa soberania?

 

Tendo em conta que somos tutelados?

Sim. Tutelados tem uma conotação negativa. Podemos discutir qual foi o momento em que abdicámos da nossa soberania. Foi um processo longo, voluntário, começou com o Tratado de Maastricht há 20 anos. E foi um processo democrático. As forças políticas que apoiaram esse processo de abdicação foram sistematicamente eleitas e reeleitas ao longo de 20 anos.

 

Não tenho ideia de que na Holanda ou na Bélgica se fale de abdicação da soberania.

Fala-se. Por isso é que vai ter a extrema-direita a ganhar na Holanda, a dizer que quer re-ganhar a sua soberania. Tem a Sra. Le Pen em França que anda há 20 anos a dizer isso. Mesmo na Alemanha, foi um profundo debate. Recuperar a nossa soberania tem custos e benefícios, e os custos não são poucos.

 

Face à dívida, o que é que podemos fazer?

Não estamos em condições de reestruturar seja o que for a não ser que quem nos tutela permita isso. Como quem nos tutela não nos vai permitir fazer isso, estamos numa situação em que o debate é inconsequente.

 

Voltando à sua apreciação do país.

É um país em que, estando a economia aberta, as elites continuam fechadas e a olhar para o umbigo. Nesse sentido evoluímos pouco em 20 anos. Podem dizer que os Estados Unidos também olham para o umbigo, mas o umbigo dos Estados Unidos é metade do mundo. A China também está a olhar para o umbigo, mas o umbigo da China é a outra metade do mundo. Nós não estamos em situação de poder olhar para o nosso umbigo. Estamos a perder muito tempo.

 

 

 Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014

 

 

João Miguel Tavares

19.11.14

João Miguel Tavares dispara frases de efeito garantido como “o Ricardo Salgado devia ter ido mais vezes pôr o lixo à rua”. Diz que é preciso ter respeito pelo bife e que merecia ser condecorado no 10 de Junho por causa dos processos que teve de Alberto João Jardim e José Sócrates. Com ironia. Com um tom pop e humorado que é o da sua geração.

É um homem de direita ma non troppo. A esquerda frequentemente gosta dele. Escreve para a última página do Público duas vezes por semana, integra o “Governo Sombra” na TSF e TVI, alimenta o blog Pais de Quatro. (Sim, tem quatro filhos e está sempre a falar disso.) Jornalista, colunista, é uma das três pessoas optimistas sobre o país e a Humanidade.

 

 

De que falamos quando falamos de crise? Falamos de mercados, falamos de desesperança, falamos de Europa?

Sou demasiado novo para ter desesperança. A crise, para a nossa geração, foi importante porque nunca tínhamos passado por isto. Não havia memória nossa, física, disto. Nos anos 80 não foi uma coisa tão impactante como agora. Pela primeira vez temos a noção de que os nossos filhos correm o risco de vir a viver pior do que nós. Era uma coisa inimaginável até há pouco tempo.

 

Esse pior significa, sobretudo, viver com menos dinheiro?

Com menos dinheiro e com menos oportunidades de trabalho.

 

Oportunidades é diferente de dinheiro. Quando falei de desesperança estava a pensar num quadro mais aberto, onde entram as oportunidades.

Não me identifico com essa desesperança. Dizem os chineses que convém não perder a oportunidade que uma crise nos dá. Há um lado muito doloroso, a desgraça no presente. Mas as crises permitem corrigir erros que de outra forma jamais seriam corrigidos. A partir delas podemos esperar que algumas coisas funcionem melhor, que as instituições funcionem melhor. Evidentemente, se fizer um discurso a apontar as virtudes desta crise, é muito fácil chamarem-me insensível. Alguém chega perto e diz: “Mas como é que é isso, se há pessoas a sofrer com fome no meio da rua?”.

 

Aponte lá algumas virtudes.

Podemos pegar num caso polémico como o BES e a maneira como ele foi tratado.

 

Podia prever esta evolução?

Uma derrocada desta dimensão, eu não previa. Mas o mais preocupante não é eu não ter previsto: é Carlos Costa e Vítor Bento não o terem previsto. O actual sistema financeiro é de tal modo complexo, e há um tal desequilíbrio de informação e um tal défice de transparência, que mesmo quem é suposto andar a passar as contas de um grupo a pente fino só vê chegar a pancada quando já está com o nariz no chão.

 

As notícias mais recentes põem em causa a ideia de que só se vê chegar a pancada quando se está com o nariz no chão. O Público de ontem dizia que, tudo somado, a exposição do Estado ao BES superou os 10 000 milhões de euros. Como é que o Estado, que deu o aval a diferentes empréstimos e operações, não sabia das dificuldades do banco?

A informação vai surgindo dia a dia. Estamos no meio de uma nuvem de fumo e não é possível ainda perceber o que aconteceu. Pode ser que cheguemos à conclusão de que Carlos Costa devia ter corrido mais cedo com Ricardo Salgado. Mas convém ter memória. Há um mês estávamos espantados e a dizer que o BdeP enfrentava com energia o problema. Devia ter tido mais? É possível. Não tenho dúvidas de que houve falhas de regulação. Mas não invertamos as coisas e não transformemos o polícia em ladrão. Desta vez, isto bateu fundo a muita gente com dinheiro. Nem toda a gente se conseguiu por ao fresco. É uma diferença radical, que valorizo muito.

 

O Governo recusou usar a palavra nacionalização. Vozes críticas dizem que ela não é senão uma nacionalização encapotada. É?

Não. Acho essa leitura completamente injusta, e tenho defendido imenso a solução do Fundo de Resolução. Claro que nos calhou ser cobaias de um sistema que só agora está a ser implementado na Europa, e que é natural ter falhas. Mas há um mundo de diferenças – políticas, económicas, morais – entre a solução BES e a solução BPN e acho intelectualmente desonesto isso não ser sublinhado pelos comentadores. Esta é a primeira verdadeira alternativa à terrível máxima “too big to fail”, colocando na primeira linha de responsabilidade os accionistas e na última linha os contribuintes. O que se pretende, com o Fundo de Resolução, é que o sistema financeiro se auto-regule mais eficazmente, na medida em que se um banco falha, todos os bancos pagam.

 

E é justo?

Parece-me justíssimo que assim seja, e significa que a Europa aprendeu alguma coisa com a crise que se abateu sobre nós.

 

E acredita que os bancos, que recorreram a linhas de apoio tão recentemente, poderão suportar a factura no caso de a venda do Novo Banco não render o previsto? E pode render o previsto? Ou seja, não há um excessivo optimismo nesta solução?

Olhando para as notícias, concordo que pode haver um excessivo optimismo. Toda a gente falhou, houve inúmeros erros, é inacreditável que tenha sido Marques Mendes a dar as notícias... Mas mesmo que a solução não corra bem, é suposto que a diferença seja paga, não pelo contribuinte, mas pelo sistema bancário. É isso que quero sublinhar: que a solução encontrada é justa.

 

Nas suas crónicas mais recentes defendeu que o modelo encontrado representa um novo modo de fazer política. Deduzo que não concorde com os que pensam que os casos BES e BPN se parecem.

Não, os casos não se parecem, e é contra este tipo de equivalências que eu me indigno. Aquilo que vejo à minha volta são as queixas de sempre. Acho óptimo que a opinião pública seja exigente, mas não podemos pôr o queixume em piloto-automático. Muitas vezes, parecemo-nos demasiado com os velhos dos Marretas: sempre a mandar bocas do camarote, seja o que for que aconteça em palco. Ora, é trágico que isto tenha acontecido, mas tendo acontecido, ninguém tem melhor alternativa do que o Fundo de Resolução – e o Fundo de Resolução está a anos-luz da solução BPN. Eu adoro o papel do “watch-dog”, mas isso não significa rosnar e morder em tudo o que mexe, sem qualquer espécie de critério.  

 

Os velhos dos marretas – nós todos, de uma maneira geral, e de diferentes maneiras – procuram bodes expiatórios, alvos fáceis, responsáveis. Quem são? 

Neste caso o alvo fácil não é nenhum bode expiatório: o primeiro responsável é Ricardo Salgado e os administradores do BES. Colocar demasiada atenção em Carlos Costa, quando Carlos Costa apesar de tudo mostrou um músculo que nem após ver a sequência completa dos Rockys e dos Rambos Vítor Constâncio algum dia sonhou ter, é uma estupidez. Agora, a justiça tem de ser rápida a actuar, e há pessoas que têm de ser presas.

 

Contam-se pelos dedos os autores de crimes de colarinho branco que vão para a cadeia.

Se depois disto não houver gente a entrar na cadeia, ninguém algum dia acreditará que o crime não compensa. Mais vale inscrever de uma vez por todas no Código Penal uma alínea que diz que é proibido assaltar bancos com pistolas e caçadeiras mas é permitido assaltar bancos com assinaturas e offshores. É preciso dar o passo que falta, e que cabe à justiça – é preciso prender os responsáveis por este estratosférico buraco. Senão há uma ferida moral que continuará aberta.

 

No início deste excurso dizia que uma das virtudes da crise é obrigar a um fazer de novo, a um melhoramento do funcionamento das instituições.

É claro que a natureza das pessoas não muda – mas o aperfeiçoamento das instituições torna as sociedades e os países mais civilizados. Da mesma forma que, depois do escândalo da fruta, me parece que hoje em dia é mais difícil comprar árbitros, espero que depois do escândalo do BES passa a ser mais difícil enganar os reguladores e mandar bancos abaixo.

 

Retomemos o tema da crise. Vivemos acima das nossas possibilidades?, fomos estimulados a endividar-nos?

Escrevi um livro infantil, A Crise Explicada às Crianças, que goza com essa narrativa. Vivemos claramente acima das nossas possibilidades, e fomos estimulados a endividarmo-nos.

 

E por quem?

Há separações a fazer. Uma coisa é apontarmos o dedo às pessoas que compraram as suas casas como se tivessem feito um esforço irracional.

 

As taxas de juro eram baixíssimas, o dinheiro era muito barato.

Se se alugasse uma casa ficava-se a pagar mais. O discurso [acusatório] sobre a pessoa comum é profundamente injusto. Outra coisa são as pessoas de responsabilidade, os políticos. Esses estão lá para saber o que é que está a acontecer, antecipar problemas. Não vimos essas pessoas a agir de maneira correcta. Quando fala de Portugal como um todo não consigo atribuir a culpa a entidades malévolas exteriores. Ainda que estejam a empurrar a colher, somos nós que abrimos a boca. Em última análise, comemos demais. Não fazia sentido nenhum fazer três auto-estradas paralelas para ir do ponto A ao ponto B. Foi uma loucura que se sabia que ia acabar mal.

 

Disse que não faz uma leitura positiva deste Governo.

Podemos ter perdido uma boa oportunidade para mudar mais.

 

Quais foram os grandes falhanços?

Não houve uma reforma do país. Não pararam para repensar o sistema político. “Faz sentido que os nossos deputados sejam eleitos assim? Vamos pensar como é que o país pode ficar mais democrático para aproximar o poder das pessoas.” Tentaram fazer reformas autárquicas que foram uma comédia. Conseguiu-se acabar com umas freguesias. As câmaras municipais continuam iguais. Pequenas coisas simbólicas: mudar a RTP; passaram-se três anos e a RTP está na mesma. Quando se vêem as fundações sente-se a inércia brutal do sistema. Também acho que as pessoas chegam mal preparadas ao Governo. É o velho problema das nossas elites.

 

A qualidade das elites é um dos problemas centrais do país? Como é a dívida ou a falta de crescimento.

Não se conseguem separar uns dos outros. Deus Nosso Senhor, quando fez os países perguntou: “Queres ter sol e bom tempo ou queres ser bem governado?”. Quando se olha para o planeta, não se consegue ter sol e ser bem governado [risos].

 

Vai introduzir a conversa do norte-sul, a ética protestante do trabalho versus o laxismo dos católicos do sul?

Não somos preguiçosos. Não veja isto só numa perspectiva negativa. A cunha – tema ao qual sou muito sensível, tem que se combater o amiguismo nacional – não tem apenas um lado negativo. Gosto de dar o exemplo dos retornados. A minha mulher e a família dela veio de Moçambique. Os franceses ainda hoje têm problemas com as pessoas que vieram da Argélia. Enfiaram-nas em guetos. Nós tivemos quase um milhão de pessoas a chegar em menos de um ano e conseguimos absorvê-las e integrá-las na sociedade.

 

Muitos foram integrados na função pública. E de um modo geral os retornados eram qualificados.

Os meus sogros são professores. O que se conseguiu é admirável e conseguiu-se pela simples razão de que temos uns laços sociais extraordinários. As pessoas tinham cá a família que sentia genuína responsabilidade. “Estas pessoas são nossas e vamos tomar conta dela”. Isto não existiria na Noruega.

 

Somos uma sociedade “porreira, pá”.

Isso é o lado bom, temos traços de sociabilidade gigantes.

 

Conhece alguém que se queira reformar e ir viver para a Alemanha?

Não. Para Portugal, sim. Quando estou em Portugal, muitas vezes desejo ser alemão, mas vou à Alemanha [faz cara de rejeição]… Eu quero passar com o semáforo dos peões no vermelho [riso].

 

Gosta da transgressão de atravessar no vermelho.

Temos também uma desconfiança, que nos está no sangue, em relação à instituição, ao Estado. Por isso é que as pessoas fogem aos impostos. O dramatismo é como encontrar o equilíbrio. Como ser mais produtivo sem ser alemão. Como aproveitar a praia e o sol sem ser calão. Tento praticá-lo na minha vida.

 

Fazemos o diagnóstico. Contudo, ninguém vira a mesa e diz: “Vamos mudar isto tudo”.

Mas está a mudar.

 

Acha?

A questão é como mudar isto sem levar com uma crise em cima e sem a Troika a entrar pela Portela adentro. É preciso ter uma cenoura à frente do nariz. Senão, não mudamos. Tínhamos a cenoura da CEE, a cenoura do Euro. Como é que se explica que as pessoas vão lá para fora e sejam fabulosos trabalhadores? Porque precisaram e mudaram.

 

Outra resposta possível: lá fora há lideranças extraordinárias, organizações extraordinárias que nos fazem funcionar de outra maneira.

Sim. Pode ser uma questão de défice educativo. O problema é que as elites acabam por ser o reflexo do povo. E há a ciclotimia muito irritante do português, que ou é bestial ou é besta.

 

Façamos um exercício de rememoração pensando no que mudou para melhor. É o exemplo acabado da geração de 70 que cresceu em democracia. Como é que era a sua infância? Como é que é a infância dos seus filhos?

Um exemplo óptimo e pouco habitual: começam a existir pessoas com o meu background que chegam a colunistas e escrevem nos jornais. Nota-se muito esse background. Nunca se ultrapassa, a infância, a maneira como fomos educados, as oportunidades que tivemos.

 

Portugal era mais estratificado socialmente, é isso que está a dizer?

Era mais difícil chegar cá a cima. Embora eu bata tantas vezes no funcionalismo público, sou filho de um Estado Social. Sou filho de dois funcionários públicos que completavam o 5º ano (actual 9º ano) que dava acesso a trabalhos de escritório. Os meus pais trabalhavam nas Finanças. Os pais deles teriam a 4ª classe. Eles deram-me a formação para chegar à faculdade. Percebemos o que é que o país nos deu, temos um desejo acrescido de que as coisas mudem, um desejo igualitário.

 

A ascensão faz-se por via da educação. E a integração, a mobilidade social, é plena?

Podemos tentar ler livros como a elite lisboeta, mas nunca nos sentimos realmente parte da elite lisboeta. Podemos fazer um esforço para manipular os braços da melhor forma, mas há sempre uma altura em que se fala alto demais e se põe os cotovelos em cima da mesa. É o upbringing. Marca uma distância. Há quase um conflito de classe. Tenho uma certa alergia a esse lado mais socialite da própria cultura.

Os meus filhos já têm pais licenciados. Têm um pai que é jornalista, têm uma mãe que é médica.

 

No início da entrevista falou da possibilidade de os seus filhos viverem pior, no futuro. Mesmo que percam oportunidades, o que é que não perdem? O acesso à educação?

Sim. Tento ao máximo incutir nos miúdos a ideia de que é preciso trabalhar para ser alguém na vida. Não os quero betinhos. Às vezes olho para a minha filha de dez anos e vejo que está a “abetalhar” [risos]. Nos anos 80 estávamos a ouvir o We Are The World [cantarola], tínhamos a fome em África. Não havia telejornal sem crianças com moscas a passar por cima da cara. Essa memória para mim é tão viva que me sinto ofendido quando as pessoas não valorizam o que têm. Lembrem-se do que era Portugal e o mundo nos anos 80. As coisas de facto melhoraram. Essas imagens faziam com que nos dissessem: “Comes tudo, comes tudo o que tens no prato”. E tem-se um respeito pelo bife.

 

Respeito pelo bife?

O respeito pelo bife e pela batata frita vai-se perdendo a partir do momento em que ele abunda. Essa educação (é uma dimensão muito pessoal) é algo estruturante que tento passar aos meus filhos. “Não olhes para aquilo que te falta, olha e sê grato pelo que tens.” Sou da geração que comprava os livros no Círculo de Leitores e nas Selecções do Reader’s Digest. Saíam as obras completas do Eça de Queirós e andava-se ali a pagar mês a mês, à medida que os volumes chegavam. Tenho muito respeito por isso.

 

O que é que viu mal na crise de 2008? Passam agora seis anos.

Está a falar da internacional ou da nacional? Na nacional, não percebemos que existiu uma crise em 2008. E quando chegámos às eleições de 2009, aumentámos os funcionários públicos 2,5%.

 

Isso é o seu ódio a Sócrates a falar.

Sim. O meu ódio a Sócrates é muito profundo. (Até hoje só tive dois processos, um de José Sócrates e outro de Alberto João Jardim. É uma coisa de que me honro muito e pela qual já devia ter sido condecorado no 10 de Junho [risos].) Independentemente de todas as outras coisas, do amiguismo, aquelas pessoas falharam completamente na sua função. Não viram, não perceberam. Isso não é desculpável. Gostava que tivéssemos na política o rigor do futebol, o rigor dos resultados. A equipa não joga nada, não ganha a ninguém? Rua, venha outro. Devíamos ter a mesma exigência do fanático [da bola] na política. Aquele senhor [Sócrates] foi goleado. Até se pode dizer que é um treinador com muito talento, como o Filipão, mas levou sete da Alemanha. E nós levámos sete da Alemanha.

 

A Alemanha incentivou-nos a gastar, até à famosa frase de Sócrates: “O mundo mudou”. Basta ler o livro Os Resgatados, de Hugo Filipe Coelho e David Dinis (que não pode ser considerado uma pessoa de esquerda ou socratista); vem tudo explicadinho. A Alemanha, que nos deu sete, disse: “Continuem”.

Houve políticas keynesianas e os alemães queriam continuar a vender cá os Volkswagen.

 

Para salvar os seus bancos. Ficou impressionado com a entrevista do ex-conselheiro de Durão Barroso na Comissão, Philippe Legrain, que disse que o resgate serviu para salvar os bancos alemães? Como é que leu aquilo?

E se fizermos um esforço para estar nos pés das outras pessoas? Os alemães fizeram isto para proteger os seus bancos, e então? Se tivéssemos oportunidade, não fazíamos as mesmas coisas?

 

No mínimo, não venham com um discurso moralista.

O discurso da Merkel, dos calões dos gregos?

 

Dos gregos e dos portugueses, que trabalham pouco.

Com certeza que não. Não estou a defender a Sra. Merkel. Mas não podemos atribuir as culpas aos outros. Não gosto que Portugal aja como age o [meu filho] Gui que tem seis anos – “Ela bateu-me”. É uma espécie de apoucamento. As pessoas criticam o Portas por dizer que não temos a independência nacional, que somos um protectorado. E a atitude de dizer: “Eles é que me obrigaram a consumir e a endividar-me...”? É ridículo, é ridículo como atitude.

 

Já disse que fomos nós que abrimos a boca.

Recuso colocar-me num papel de mentecapto. Não havia ninguém a fazer contas? O Medina Carreira anda há 20 anos a dizer que isto é insustentável. É uma atitude improdutiva dizer que os alemães tomaram conta do interesse deles. Brilhante! O que não é normal é os países não tomaram conta dos seus interesses. Muito imposto alemão foi parar às nossas auto-estradas. É a aldeia global, as coisas interagem.

Mesmo assim ganhámos mais do que perdemos. Por isso é que ninguém quer sair da União Europeia. Só três ou quatro malucos é que querem sair do Euro. As pessoas reconhecem que a Europa lhes deu muita coisa boa. Claro, eu sou alentejano..., vi que os agricultores alentejanos, em vez de estarem preocupados em melhorar as suas herdades, compraram jipes.

 

Voltando à questão: o que é que viu mal na crise de 2008?

Chegámos a um ponto – e estou completamente alinhado com a esquerda – de total desregulação do capitalismo. Nos anos 80, a Sra. Thatcher em Inglaterra, o Sr. Reagan nos Estados Unidos (e depois o próprio Clinton) começaram a facilitar. O mercado, só por si, resolvia as coisas. Não sou o direitista que acha que o mercado resolve tudo. Convém ter um Estado forte para regular. Não é para nos salvar nem para dizer o que é que temos que fazer com as nossas vidas.

Chegámos a um ponto, com uma tal complexidade de produtos financeiros, que ninguém percebe nada daquilo. Deixámos os senhores divertirem-se e foi um regabofe. Há uma culpa clara da desregulação do mercado e de um papel que o Estado deixou de fazer. Chegados aí, as coisas tinham que começar a mudar.

 

Mudaram?

Diria que não mudaram suficientemente. Nos Estados Unidos, não. Na Europa, foi-se fazendo alguma coisa. São as pequenas alterações de que falávamos e que me fazem ser optimista.

Em Portugal não teve directamente a ver com isto mas com o endividamento. De repente encontrámo-nos num país que tinha uns juros baixíssimos, que quando entrou no euro teve acesso a uma torneira interminável de dinheiro a juros baixos. O pessoal pirou. Desde aí até aqui, a dívida mais que duplicou.

 

Se o objectivo era corrigir o problema do endividamento, os números não são famosos depois de três anos de austeridade. A dívida aumentou. O país quase não cresce. A pergunta que muita gente, não só de esquerda, faz, é: valeu a pena, verdadeiramente?

A pergunta não faz sentido porque não havia alternativa. Provavelmente o programa não estava bem calibrado, foi feito à pressa. Não havia experiência de atacar uma crise destas num país sem moeda própria.

 

Essa é a grande diferença em relação às intervenções do FMI dos anos 70 e 80.

É a diferença radical. E esse é o grandioso problema com o Tribunal Constitucional. Temos uma Constituição que não está preparada para uma moeda única, que só nos deixa empobrecer pela inflação.

 

Acha que se deve mudar a Constituição?

Sim. Devemos repensar o regime. Não acho que [o problema] sejam os senhores do TC, a quem muitas vezes se aponta o dedo. Devia haver maior flexibilidade. Mas se fosse só para dizer sim aos diplomas que vêm do Governo, o TC não estava lá a fazer nada. O TC está a funcionar como contra-poder? É para isso que ele existe.

Se se vive num mundo onde não se pode inflacionar porque não se controla a moeda, a única maneira de cortar é cortar nos salários.

 

Há opções políticas diferentes. Por exemplo, taxar mais o IRC e menos o IRS.

E taxava as empresas nesta altura do campeonato, que é aquilo que pode trazer crescimento?

 

Mas elas têm crescido?

O sector exportador tem crescido. Como é que se pode dizer que se quer o crescimento e taxar o IRC? É impossível. São mais umas empresas a falir. Isso é o contrário do que tem que se fazer. Não sou economista, se tivesse as soluções para a pátria não estava aqui a dar entrevistas, estava em São Bento, podia ser ministro.

 

Já o desafiaram a ser político?

Não. Fui editor, fui director-adjunto, gosto muito de liderança. Mas há questões de liberdade. Ser deputado e ter disciplina de voto é uma coisa que não me cabe na cabeça. E defender imbecilidades. São precisos demasiados compromissos na vida política.

 

Cresceu imenso em termos de impacto mediático nos últimos anos. Com o blogue Pais de Quatro, com o Público, que o posicionou junto de uma audiência diferente daquela que tinha com a Time Out ou o Correio da manhã, de que foi colunista, por integrar o Governo Sombra (TSF e TVI). Que poder é que acha que tem?

Nenhum [riso].

 

Sabe que é não é verdade.

Escreve-se no Público, na última página, duas vezes por semana: tem um enorme impacto. Num texto perguntava de onde é que vinha o dinheiro da campanha do António Costa e ele escreveu-me uma carta a explicar. A não explicar, na verdade. Isso tem a ver com a própria projecção do jornal. Mas daí a dizer que tenho uma influência… Influência, em Portugal, tem o Marcelo [Rebelo de Sousa]. Também não tenho forma de aferir isso. Sou muito fechado em minha casa. Para se fazer bem o trabalho de colunista não se pode conhecer muita gente.

 

Porquê?

Tenho que preservar imenso a questão do almocinho. Recebem-se convites, mas não se pode almoçar com pessoas do Governo. Perde-se independência. Se for almoçar com Pedro Passos Coelho, há boas probabilidades de vir a gostar dele. E a próxima vez que escrever sobre Passos Coelho estou a vigiar os meus adjectivos. Acontece com facilidade. O meio é muito pequeno.

 

Qual é que foi o grande falhanço de Portugal nestes 40 anos?

O grande falhanço é atribuirmos aos outros as culpas pelos nossos erros. Não assumirmos a merda que fazemos. Como país, tem que se ser homenzinho. Andar sempre a apontar para fora é um grande falhanço. Tenho pena que acabe com essa pergunta...

 

Por falar de falhanço e por que é um optimista?

Vivemos numa cidade como Lisboa que é liderada por um homem de esquerda, o António Costa. Não podemos achar que está igual à de há dez anos. Lisboa melhorou incrivelmente. As pessoas passaram a andar de bicicleta, a correr junto ao rio, saem à noite, bebem um copo depois do emprego. Temos uma qualidade de vida tão maior. Mas ninguém fala nisto porque o país está em crise, é tudo uma desgraça. Parece que pomos umas palas nos olhos para só vermos as coisas más.

 

Como é que se faz o país assumir as suas responsabilidades?

O país está a ser obrigado a assumir as suas responsabilidades. Não tem feito outra coisa. A minha tristeza é as coisas não andarem suficientemente depressa. É mais difícil ser um político da treta e estar na Assembleia da República. Existe uma exigência superior. Gosto de acreditar que Portugal vai sair melhor daqui. Muito porque somos empurrados lá por fora, que nos diz: “Comportem-se”. Essa é a parte dolorosa.

Tenho muitas dúvidas na existência de Deus. Muitas, mesmo. Provavelmente Deus não existe. Assumo-me muitas vezes como um católico ateu.

 

(Essa frase é uma frase pop. A sua escrita é completamente pop. Parte do seu sucesso resulta, também, da maneira como faz a concatenação de elementos dispersos.

É muito da nossa geração. E a utilização do humor.) A questão religiosa e a ética individual: pusemos tudo em causa, e bem, mas deixámos de ir ao ginásio da consciência. Há uma vigilância dos nossos actos que a religião dá. A religião é inventada para controlar o animal humano. Está constantemente a dizer: “Pensas que és o maior?, não és, baixa a bolinha”. Esse “baixa a bolinha”, tem um lado terrível, muitas vezes de opressão, mas esse treino é necessário. É por aí que as pessoas podem fazer a diferença no dia-a-dia, na educação dos miúdos. Não somos o centro do mundo e precisamos de ouvir isso.

 

Fala dos seus filhos recorrentemente.

Não precisava de ter filhos para ser feliz. Internet banda larga e uma biblioteca, e deixem-me estar. Mas graças a uma mulher pela qual me apaixonei e com a qual tive filhos, estou constantemente a descentrar-me de mim. Ela está constantemente a dizer: “Vai pôr o lixo à rua”. E isso é mesmo muito importante. O Ricardo Salgado devia ter ido mais vezes pôr o lixo à rua [risos].

 

Quando terá sido a última vez que Ricardo Salgado pôs o lixo na rua?

Não sei. Mas é preciso. Somos pó.

 

São os chamados pés na terra.

Pés na terra e olhos no céu.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014

 

 

Pág. 1/3