Sara Maia
Sara Maia é pintora.
Nasceu em 1974. Formou-se em artes plásticas no Ar.Co. Vive e trabalha em Lisboa.
Há uma concentração nestes quadros que não havia nos anteriores. Estão mais directamente relacionados com o que se passa na minha vida. Mais próximos daquilo que sou, e, nesse sentido, menos velados, menos codificados.
Parece, justamente, que desvela o assunto e que avança straight to the point. Esse processo foi deliberado?
Foi acontecendo. Talvez por estar neste momento mais concentrada, e até mais encontrada, comigo própria. Não é preciso conhecer a minha biografia para compreender o enredo destes quadros. Mas a vida está intrinsecamente ligada ao trabalho e ao resultado do trabalho.
N’ O Colo, o primeiro a ser pintado, anuncia-se já uma ruptura. Todavia, as criaturas são ainda metamorfoseadas – processo constante nas séries de anos anteriores. Trata-se de uma sereia e de uma cauda feita com a espuma do mar? Ou é uma cauda feita de véu de casamento? São dois homens? E isso interessa?
Não interessa saber exactamente o que lá está. Interessa que diga alguma coisa às pessoas e fale com elas. Penso que esta é a imagem mais clara de toda esta série. O Colo fala de um apoio afectivo. Um deles já não tem pernas e está coberto por um véu rendilhado, muito delicado. Pode ser uma cauda de noiva, ou de sereia... Mas é um modo de tornar visível a sua fragilidade, e o requinte com que precisa de ser cuidado. O outro tem um pé entrapado, pelo que não se move com agilidade. Ou seja, um não sobrevive sem o outro, ou corre o risco de ficar amputado, e ambos se sentem constrangidos nessa dependência.
O carácter híbrido destas figuras – que são elas? – instala-nos num mundo original, e surreal. De algum modo, sente-se devedora de uma herança Surrealista?
Não, acho que não. O Surrealismo remete para o sonho; e, ainda que as minhas personagens não sejam humanas strict sense, é abordando aquilo que é mais íntimo, e onde não há limites ou regras, que sou mais livre; logo, é uma realidade mais próxima, mais perto do que sou
É por parecer uma sereia que me reporta às criaturas das fases anteriores, em que a carne está estilhaçada, em transformação. São criaturas mitológicas. Talvez exprimam o que sentimos, mas não são pessoas como nós.
Mas quando as faço, penso que são pessoas como nós. Talvez porque lhes atribua sentimentos que se possam ver, materializar. Seja pela amputação ou pela construção do corpo, ou pelo véu que é frágil. E é nesse diálogo comigo própria que posso acabar por dialogar com outras pessoas, criando uma espécie de metáforas daquilo que sinto.
Se se fizer um buraco na carne (que é, por acaso, uma imagem recorrente nos seus quadros), espreitando, o que é que se pode ver no interior? Além das vísceras, claro.
Mas raramente existem vísceras, se exceptuarmos a Rainha em Campânula de Vidro, onde as minhocas saem alegremente dos buracos... Mas são continuação de vida, expressão de vida. Na Santa das Garrafinhas, onde há um buraco, é como se a carne ficasse transparente e pudéssemos ver o interior... A Santa faz-me lembrar uma fonte e um relicário. Na minha infância tinha relicários em casa. Abria-se uma portinha e dentro punha-se uma vela... Na iconografia religiosa, também há estas campânulas, onde estão os santos. Talvez isto tudo esteja ligado.
A campânula remete-nos, a começar pelo título, para a obra de Sylvia Plath. O romance homónimo descreve a asfixia da escritora, num mundo irrespirável, sem canais de comunicação. Suicidou-se, como é sabido, abrindo o gás da cozinha. No seu quadro, a figura está em pleno processo de transformação. A campânula pode ser um casulo?
É uma transformação, sim. E pode ter sido uma espécie de casulo que serve enquanto se precisa de protecção. A Rainha em Campânula de Vidro fala das finas barreiras de vidro que criamos para nos protegermos. Se foram defesas, por um tempo, passado outro tempo transformam-se em barreiras: acabam por tirar o ar. Em vez de protegerem, passam a ser entraves. É como uma planta que cresce numa estufa: se cresce demais, não tem espaço e sente-se sufocada. Aqui, o canal que ela encontra é crescer e transformar-se.
Neste quadro há uma referência aos relicários, mas são outros os quadros mais explicitamente “religiosos”. A Santa das Garrafinhas resulta numa crucificação. O Colo e o Retrato com Pai e Mãe são Pietàs alternativas.
Não estou próxima da religião, mas sim da iconografia religiosa. Cresci numa família muito católica, rodeada por toda essa simbologia. Não me ocorreu fazer uma crucificação, até porque, do que me lembro, na História de Arte não há mulheres crucificadas. Pensei que a Santa podia chorar sem lágrimas, como algo contido. Então, há choro nas nuvens e no líquido que escorre para dentro das garrafinhas. A Santa é uma espécie de fonte que enche garrafinhas. É quase uma arqueologia da dor, guardar as lágrimas dentro de garrafas.
Mas uma garrafa, entornada, está cheia de sangue... Lágrimas de sangue?
E por que não vinho? Os braços são de pau, não há mãos, mas há flores e uma transformação constante. A garrafa de vinho é a celebração dessa transformação.
A Rainha está amputada. Parece saída do “Freaks”, um filme de que tanto gosta. Também faz lembrar os estropiados do Portugal de antigamente, que não tinham pernas e se arrastavam numa base de madeira com rodas. Mas consegue encontrar para todas estas figuras um prenúncio de vida nova... Nem que seja nas flores, que despontam no tronco onde a Santa está pregada...
O filme “Freaks” foi feito a pensar numa crítica feroz ao universo hipócrita de Hollywood e é um conto de fadas para adultos. Todos estes filmes, que comecei a ver muito pequena permitiram libertar-me da representação da menina engomadinha que esperavam que eu fosse e quebravam com um certo verniz das aparências. Quanto à Santa, ela não está pregada, tem um tubo por onde escorre o líquido das garrafas. E é como se estivesse em cima de umas nuvens muito recortadas – umas “nuvens de papel”. Há vida nas flores, ou na água que corre. E há um espaço no peito dela, onde falta um coração. Mas a mim, o que me interessa é a parte humana, cada vez mais, e não a aberração ou o fenómeno. Atrai-me dar uma imagem ao indizível, que se traduz no corpo e nas tensões deste mesmo.
Esse espaço assemelha-se a uma vagina. Esta referência ao genital feminino surge, novamente, nas costas da mulher do quadro A Boa Filha. É uma associação consciente: o sexo e o coração serem lugar de uma mesma coisa?
Na realidade nunca tinha pensado nisso, pensei sempre naquele espaço como um altar ou um relicário à espera de ser preenchido. Mas sim, pode associar-se ao sexo, que para mim está sempre ligado ao afecto. Embora, n’ A Boa Filha não seja bem a mesma coisa. É uma sugestão e aparece no vestido de uma Mãe que se afasta.
Há uma cena de incesto sugerida nesse quadro. O homem, de apresentação grotesca, insidiosamente põe a mão sobre o seio da filha. E a mulher, voluptuosa, de cabelo hipnótico, afasta-se e não vê, ou prefere não ver.
É uma história. A de uma filha cega. São as melhores! (risos) Porque não vêem e não contam! Não causam tumultos. A Boa Filha está em cima de um banquinho onde tenta ficar à altura dos adultos, nomeadamente do Pai. Ela está cega porque está concentrada nela própria, virada para ela – é uma forma de se proteger. E também de chamar a atenção dos outros. Édipo furou os olhos depois de ter dormido com a Mãe.
Se não vê o que tem à volta, só existe o mundo que há dentro dela?
De alguma forma, sim. Sofre de uma cegueira voluntária. Por ser cega, torna-se mais atenta ao que sente, confinada a ela própria; e a escuridão dá-lhe clareza. Convive assim com o que a rodeia.
Nos quadros da segunda metade do ano (para apontá-los cronologicamente), a violência, que é imensa, não explode na carne. Não há vestígios de metamorfoses ou de uma abordagem surrealista. A violência está implícita nas relações que as personagens têm entre si.
Há uma diferença em relação ao que vinha fazendo. Nestes quadros falo mais de mim própria, é o que conheço mais de perto, e só posso falar do que conheço. Nestes quadros há seres mais inteiros. Há uma certa...
Perversão?
Sim. Há uma tensão latente, uma violência relacional. Não há explosões, ou lutas. Há relações de poder, mas não tão evidentes quanto em quadros anteriores. Pode dizer-se que, não sendo claras, são mais ambíguas. Se existe perversão, não é deliberada.
A Fingida transporta-nos para o cinema, nomeadamente para Buñuel (“Belle de Jour”, “Tristana”, “Veridiana”...). É um estranho cenário onde um homem pomposamente vestido, tenta, qual príncipe, enfiar um sapatinho no pé da sua princesa.
N’ A Fingida há uma morte encenada. Uma morte encenada é uma coisa risível! Ela é uma Cinderela transviada, que tem entre as mãos um terçozito à laia de amuleto, e está de olhos bem abertos na esperança que lhe calcem o sapato. Todo o cenário de luto é um fingimento: as velas estão apagadas, as flores são de plástico. A Fingida fala de desejo, e de expectativa em relação ao outro. O sapatinho pode não caber, o pé inchou, provavelmente! Há um lado cerimonioso no homem que lho calça, e um desejo de que o sapato seja calçado... Mas é o momento antes de isso acontecer.
As mulheres são mais fragilizadas, ou mesmo vítimas, nestas narrativas?
Não, de todo. Dou sempre a hipótese de as leituras serem múltiplas. Gosto dessa ambiguidade. N’ A Ceia, ela ainda não engoliu o pedaço que está no garfo. Procuro um momento de tensão, e não um já consumado.
N’ A Ceia não percebemos se está a falar de um aborto ou de uma relação alimentícia. Está presente noutros quadros a ideia de um amor alimentício, nomeadamente no Retrato com Pai e Mãe.
N’ O Retrato há esse amor alimentício, mas há também uma inversão de papéis – seja pela velhice ou pela dependência. Como se bebessemos todos um pouco uns dos outros. Dar de mamar é um acto imensamente íntimo. Está ligado à sobrevivência e à perpetuação da espécie; mas neste caso está invertido. Há uma filha que, compenetradamente, dá de mamar a uns Pais jovens. Está de olhos fechados, como se, assim, transmitisse o lado sacrificial da maternidade.
N’ A Ceia, a alimentação é de tipo bem diferente. No prato há um feto em miniatura, e no garfo um coração.
E se não for um coração? Pode ser... Mas não tem de todo a ver com o aborto. Este quadro trata dos rituais de repetição, de um mimetismo passado de pais para filhos. Está presente na mitologia, quando Cronos come os seus filhos para não ser ultrapassado por estes. E também nos contos infantis, onde os Ogres engolem as criancinhas. Mas é uma cena familiar, apresentada como um jantar romântico e confortável!
As crianças têm medo de ser engolidas pelo Bicho Papão. O medo e o exorcismo do medo são indissociáveis desta série de quadros?
Absolutamente. O terror sem rosto é o pior. Ao dar-lhes uma correspondência, uma imagem, é, de certo modo, como se me risse desse medo...
Num outro quadro, é uma criança, e não um lobo, que veste a pele de cordeiro... Diverte-se a subverter as regras instituídas, a desmontá-las?
Sim, diverte-me desmontar o instituído. A ovelha negra é representada por uma criança negra. Não é uma imagem política, e muito menos racista. Ovelha Negra em Pele de Cordeiro Branco é um (semi) auto-retrato onde falo da dificuldade em exteriorizar a agressividade. É algo que está intimamente ligado à sobrevivência, e que, bem canalizada, é vital. Mas a necessidade de ser amado faz com que se criem capas de cordeiro..., mesmo que o pêlo seja acrílico.
A farsa, o grotesco, a violência sobrepõem-se a ado burlesco e fantasmagórico que predominava em anos anteriores. Porque é que chamou a esta exposição Dog’s Sleep?
A expressão idiomática inglesa Dog’s Sleep pressupõe uma mise en scène... O título “O Sono do Cão” refere-se ainda ao facto de os cães dormirem em vigília, num permanente estado de alerta. O cão é um animal doméstico, carente, dependente, que assume sentimentos próximos do ser humano. Tem uma sensibilidade apurada, orelha atenta, olfacto sagaz..., por isso recaiu sobre ele a minha escolha.
Nesta série, a cor explode completamente. Mas nem por isso deixa de desenhar. Na exposição, promove um diálogo entre a pintura e o desenho, apresentando, a tinta da China, variações das estórias contadas nestes quadros... É uma espécie de escrita desenhada?
Desenhar é em mim uma pulsão. É, e será, sempre fundamental em qualquer coisa que eu faça. Mas gosto muito de explorar as pontencialidades da cor, e de acompanhar, deste modo, a gradação dos sentimentos. A escolha da cor não é evidente. Vai surgindo, por camadas, por tentativas. Mas as emoções, essas também formam um espectro enormíssimo, e, às vezes, contraditório.
Publicado originalmente no catálogo da exposição de Sara Maia na Sala do Veado, em Lisboa, em 2007.