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Anabela Mota Ribeiro

Vera Nobre da Costa

05.11.14

O encontro é ao meio-dia, no último andar de uma casa que durante anos foi sua: a McCann Erikson. A casa onde fez parte substancial do seu trajecto. Onde era número dois. Quando em 93 a rival Young & Rubicam a convidou para ser número um, Vera Nobre da Costa era ainda verde. Não tinha experimentado o travo da responsabilidade absoluta. É isso que marca o amadurecimento. Em 93, a Young era a 11ª empresa do ranking. Há um ano e meio, quando a publicitária vendeu as quotas e passou o testemunho, era a primeira.

De regresso à McCann, em moldes que nas próximas páginas se explicitam, recebe-me num dos últimos dias do ano. Para lá da parede de vidro anunciava-se um temporal. Ao longo de duas horas foi possível ouvi-la nestes termos:

«Consegui uma distância muito grande em relação às empresas com quem trabalhei. Nunca me desiludiram porque nunca estive iludida com elas. Sempre trabalhei para multinacionais e sempre considerei que as multinacionais eram entidades de que me ia servir para determinados fins e que se iam servir de mim para determinados fins». Mas também nestes: «É uma ferida tão grande estar interessado em alguém e esse alguém não estar interessado em nós... Ou querer prosseguir uma relação e de repente perceber que o outro não está interessado... É inaceitável: não há nada pior que uma pessoa ser rejeitada. Em relação ao amor, à amizade, ao que quer que seja. O pior que há é ser rejeitada ou ignorada. Sempre tive o pavor de ser ignorada. Tenho essa fraqueza».

Vera Nobre da Costa é formada em Psicologia. É publicitária desde 72. Começou por trabalhar na área de estudos de mercado na Lintas. Passou pela Cinevoz. Na McCann chegou a directora geral-adjunta e a vice-presidente. Na Young foi presidente. Fez o que fez porque queria provar a si mesma que era capaz. E ao pai, «Olhe, afinal, eu também sou capaz». O pai era um homem sério que chegou a ser primeiro-ministro quando o governo de Mário Soares caiu. Tem uns 50 anos de que muito se orgulha. É casada e tem uma enteada. Gosta de ler, da pintura de Van Gogh, da música de Mozart, de viagens e de golf. E agora, gosta também de jardins.  

 

Gostava que me falasse da sua família goesa.

Não sinto praticamente nenhuma influência goesa em mim, a não ser fisicamente. Alguns traços têm reminiscências indianas: os olhos, a nascença do cabelo. A minha família goesa veio para Portugal na pessoa do Alfredo da Costa da maternidade, meu bisavô. Era ginecologista, médico da família real e notabilizou-se no seu tempo. Casou com uma senhora Andresen de ascendência dinamarquesa. (Curiosamente o meu marido também é Andresen, somos primos em segundo grau). Tiveram nove filhos. À parte a mobília indo-portuguesa que havia na casa dos meus bisavôs em Sintra, onde íamos tomar chá aos domingos, a influência indiana é abstracta e teórica.

 

O facto de o seu bisavô ter sido uma figura venerável foi marcante para a família?

Foi. Os meus bisavôs viviam na Lapa na casa onde é hoje o Colégio das Escravas. A família vivia toda lá, na altura as famílias viviam todas juntas. A casa tinha cerca de 50 pessoas: vários tios-avós que eram solteiros, outros que eram casados e que tinham filhos, o meu pai, a minha tia, os meus avós. Quando o meu bisavô morreu, novo, a família ficou sem dinheiro. A casa era inviável, era praticamente um quarteirão inteiro, e foi vendida por 2000 contos. A minha bisavó acabou por ser a figura mais marcante, a verdadeira matriarca da família. Viveu até muito tarde, com muitos filhos solteiros.

 

Era possessiva?

Acho que sim. Sabe uma coisa curiosíssima? Sou a última pessoa da família quer do lado Nobre quer do lado Costa. Não há mais ninguém. Eu não tenho filhos, a minha tia Vera, irmã do meu pai, não tem filhos, e os meus tios, irmãos do meu avô, também não.

 

É uma família que estanca. Não é assustador, quando pensa nisso?

É. Quando era mais nova não pensava nada nisso. À medida que vou envelhecendo, (tenho 50 anos), faz um bocado de impressão. Não há ninguém, directamente, a quem passar o legado espiritual, familiar, intelectual, etc. O fio não é contínuo. Mas neste momento não há hipótese. Nem de passar as coisas boas nem as más. Há uma interrupção. É uma família interrompida.

 

Há ainda a ironia de esta família ser a do fundador de uma maternidade.

Uma tia-avó, filha do meu bisavô Alfredo da costa, deu-se ao trabalho de fazer uma genealogia da família. É um livro cujo original me veio parar às mãos. Embora tenha sido feito há 40 e tal anos, não houve qualquer alteração. Eu já existia quando ela o fez, estou mencionada, e acaba por ser a história da família, uma vez que acaba em mim.

 

Frequentou o colégio das Doroteias, recebeu uma educação cuidada. Foi a clássica menina de boas famílias educada para casar e ter filhos?

O meu pai teve um desgosto enorme quando nasci, estava à espera de um rapaz, o herdeiro, o continuador da história da família. Contam que o meu quarto era azul. A minha mãe incutiu-me os valores femininos. O meu pai sempre me empurrou para uma vida independente. Tive a chave de casa aos 15, 16 anos. Fui viajar pela Europa com amigas do colégio aos 13, 14 anos. Sempre insistiu que eu tirasse um curso superior, e foi sempre muito rigoroso, por exemplo, na atribuição de dinheiros. Fui educada não num espírito de abundância, mas de rigor; as coisas tinham de ser ganhas e não oferecidas. Na altura, evidentemente, não gostava, mas hoje em dia agradeço muito.

 

Como era a relação com o meio, um meio de meninos bem, de uma burguesia instalada, quando não se dispunha do mesmo?

Eu dispunha, nunca tive privações. Mas aos meus amigos era-lhes atribuída uma semanada automaticamente, eu tinha de trabalhar. Para lhe dar uma ideia, os meus pais tinham uma segunda casa no Estoril, onde se passavam os fins de semana e as férias de verão; eu tinha como incumbência lavar e aspirar a piscina e ajudar a minha mãe em casa.

 

E da sua mãe, herdou o quê?

Herdei da minha mãe uma feminilidade, o gosto por estar arranjada, cuidada, por vestir bem. Sou uma dona de casa exemplar. É evidente que tenho apoios, mas tenho muito gosto na casa, em ter as coisas impecáveis. Não sou capaz de viver numa casa que tenha desarrumação e sujidade. Faço a gestão da minha casa como faço a gestão de uma empresa. Na família fazem imensa troça...

 

Sabe o que tem no frigorífico?

Ah, completamente. Destino todos os dias o que é o almoço, o jantar, e aproveitam-se restos! A minha mãe é muito assim, ainda. Controla a casa, ela própria está sempre chiquíssima. Se chego de repente para almoçar, sem a prevenir, ela está, não como os ingleses dizem «overdressed», mas sempre com uma camisola a dar com as calças. É muito «soignée», até mais do que eu.

 

Quando era pequena, espreitava-a no ritual da feminilidade, no recanto das pinturas?

Não. Eu era muito maria-rapaz, as minhas brincadeiras não tinham nada que ver com as das meninas. Esta feminilidade comecei a ter quando percebi que podia seduzir, pelos 13, 14 anos. Nunca me fascinou vestir-me com a roupa da minha mãe.

 

Foi uma paixão que lhe provocou o desejo de ser sedutora?

Quando eu tinha 13 anos, estávamos em 1965, não é? Os ídolos da altura eram a Sylvie Vartan, a Françoise Hardy. Era a época áurea das festinhas dançantes, em casa de uns e outros, aos sábados e domingos à tarde. Todos nós levávamos os discos de 45 rotações e dançávamos. Começa a haver um jogo, que nem sequer é sexual, é um jogo de sedução.

 

A sexualidade despontava mais tarde, nessa altura.

Dançávamos de cara encostada ao som de uma música e aquilo era uma emoção! Estava completamente fora de questão uma actividade sexual.

 

Quando é que teve a noção de que era bonita?

Acho que nunca fui bonita. Era gira, animada, espertalhota. Era o que na altura se chamava um borracho. Bonitas eram outras, a Rita Matos Chaves, que ganhou o concurso internacional das teenagers. E depois entra-se nos jogos de sedução que são típicos dessa idade.

 

Isso contrastava com a rigidez de educação das Doroteias?

Estava sempre no quadro de honra, mas era péssima em comportamento. Fui suspensa duas vezes. Estive dez anos nas Doroteias, até ao quinto ano de liceu, sem nunca me encaixar muito bem. Havia uma dissonância entre o discurso em casa e o discurso no colégio, e isso fazia-me confusão. Lembro-me de termos feito uma novena porque o Henrique Galvão tinha assaltado o [paquete] Santa Maria, e em casa o meu pai tecia comentários cínicos sobre o assunto...

 

Disse que a sua vida passou a ser muito mais divertida a partir dos 17 anos, altura em que se tornou independente e começou a ganhar dinheiro. O tema do dinheiro acaba por ser recorrente no seu discurso e no seu percurso, ainda que nunca tenha sido uma carenciada. Foi o seu Grito do Ipiranga?

Estava a tirar o curso de Psicologia e arranjei um trabalho eventual – fazia entrevistas, coisas assim. Vivia em casa dos meus pais, o dinheiro não era viver, era para ter umas coisas que o meu pai não me dava. O Ipiranga foi quando comecei a trabalhar a sério, aos 20 e tais. Casei entretanto. Casei aos 21.

 

Não sabia.

Foi antes do 25 de Abril. O meu marido entrou para a tropa imediatamente, para o curso de oficiais milicianos, onde não ganhava dinheiro. Estávamos numa casa cedida pelo meu sogro, não pagávamos renda, mas tudo o resto era por nossa conta. Não tínhamos nenhuma ajuda financeira, vivíamos do meu ordenado.

 

Não era comum uma mulher sustentar a família.

Diria que eu era completamente inserida socialmente até aos 20 anos. Fazia o que os meus pares faziam, havia uma aprovação social. A partir de certa altura houve uma bifurcação. Entre os nossos amigos, havia muito poucas mulheres interessadas em fazer uma carreira. Todas começaram a ter as suas famílias, e as actividades profissionais eram mais na área da decoração, ou tratavam de crianças, ou eram tradutoras, ou secretárias. Coisas ditas para as meninas.

 

E para se entreterem, não havia o sentimento de carreira implicado nisso.

A minha intenção inicial era ser psicóloga. Tirei a especialidade e comecei a trabalhar no Hospital Júlio de Matos. A minha entrada na publicidade foi completamente fortuita, e mais uma vez, como diz você e muito bem, por razões financeiras. Ofereceram-me numa agência para onde fazia trabalhos eventuais três ou quatro vezes mais o ordenado que estava a ganhar no hospital. É evidente que era irresistível, e além disso precisava.

 

O seu caminho bifurca-se aí?

Sim. Nos jantares de amigos as meninas ficavam de um lado a falar de assuntos ditos femininos, os homens do outro a falar de desporto ou de política. Eu estava fascinada com o trabalho e comecei a ter outros interesses. Senti-me desinserida. Acho que me separei, não por problemas com o meu primeiro marido, com quem me dou lindamente, mas numa atitude quase revolucionária. Eu não estava mal no casamento, eu estava mal com a vida que tínhamos. O mundo com que me dava não era um mundo adulto. Era um mundo de gente imatura como eu para quem o mundo adulto é o mundo dos pais. Quando comecei a trabalhar descobri que havia uma data de gente com quem eu dialogava, que me ouvia, para quem as minhas opiniões tinham interesse; eram pessoas que já tinham uma vida adulta e de uma classe social diferente.

 

Quando estava casada, ainda antes de experienciar esse tempo de rebelião, tinha a ideia de ter filhos, de se dividir entre a carreira e a família?

Nunca foi uma opção no sentido «Não, eu não vou ter filhos». Foi ficando para trás porque havia outras coisas que me interessavam mais. Estava fascinada e entretida com o meu dia a dia, tão rico em acontecimentos e estímulos novos. Depois de me ter separado, tive um período de quase vinte anos, em que evidentemente tive pessoas na minha vida, mas nunca encontrei uma com quem me apetecesse fazer uma família. A certa altura, por volta dos 40, o relógio biológico dá sinal... Mas não tinha uma pessoa com quem me apetecesse ter filhos, e além disso, entre os 40 e os 49, estava no auge da carreira. Se tivesse conhecido antes o meu marido actual, o João, se não tivéssemos casado tão tarde, com ele teria tido filhos. Mas a vida não foi construída assim. Quando casámos eu tinha 43 e ele 50 e tal.

 

Um casamento, uma vida refeita depois dos 40, depois de um tão longo interregno, não é muito comum. E tem um brilho quando fala nele... É o amor da sua vida?

Completamente. Se não fosse assim, nunca teria casado. Nunca senti necessidade de casar. Os homens têm necessidade de viver com mulheres porque precisam delas.

 

O que é o casamento?

É a partilha. Dos interesses, dos problemas, das alegrias, do dia a dia. O casamento vale a pena quando essa partilha é feliz. Foi muito gratificante a descoberta do fim da solidão. A solidão nunca foi um peso. Tenho mais dificuldade em estar com pessoas do que estar sozinha. Habituei-me a ir sozinha para o estrangeiro, a jantar sozinha no restaurante, a ir sozinha ao teatro, a um concerto, a um cinema.

 

E gostava?

É claro que é preferível ir com alguém. Mas não tendo uma pessoa para ir, prefiro ir do que não ir. O que descobri com o João foi realmente o bom que é partilhar estas coisas todas. Foi uma descoberta tardia. Mas quando se é muito novo não se tem maturidade para apreciar isto. Aos 20 e tal anos somos profundamente egoístas, centrados em nós, está a vida toda pela frente. Somos invencíveis. Vamos ficando mais humildes à medida que os anos vão passando. Percebemos que há doenças, contrariedades, infelicidades.

 

Quando é que ficou mais humilde? Quando é que percebeu que nada do que conquistou, ainda que tenha sido a pulso, a tornava invencível, porque é vulnerável ao que todos somos?

A minha época de arrogância acabou aos 33, 34 anos. Não foi nenhum acontecimento específico. Foi simplesmente a observação da vida. O perceber que as coisas são relativas. Mesmo o triunfo profissional. Vou dizer-lhe uma coisa: consegui uma distância muito grande em relação às empresas com quem trabalhei. Nunca me desiludiram porque nunca estive iludida com elas. Sempre trabalhei para multinacionais e sempre considerei que as multinacionais eram entidades de que me ia servir para determinados fins e que se iam servir de mim para determinados fins. Nunca tive grandes desgostos, como certas pessoas têm. As pessoas constroem, mitificam, acham que vão ser apreciadas pela sua personalidade, pela maneira como se esforçam, e não é assim.

 

Mas o que vulgarmente se diz é que para as pessoas conquistarem o topo têm de se entregar de alma e coração, dar o litro, etc.

Tudo isso é verdade. Mas eu nunca me entreguei de alma e coração a empresa nenhuma nem a entidade multinacional nenhuma. Entreguei-me de alma e coração a projectos pessoais, que coincidiam com projectos empresariais, sim senhor, porque queria o sucesso, o prestígio, o poder. Queria provar a mim própria que era capaz de fazer as coisas. Nunca foi por causa da empresa A ou B. E nunca estive à espera que me dessem reconhecimento. Sempre batalhei pela minha remuneração. Percebi que se não batalhasse, ninguém me vinha dar absolutamente nada. Muita gente cai nesse logro. Acham que por se dedicarem muito, por trabalharem muito, são automaticamente reconhecidas e gostados. Esquecem-se que nas empresas as caras mudam, vêm outras, o historial perde-se, e perde-se todo um investimento de anos de trabalho.

 

Agora percebo o que dizem quando dizem que é uma pragmática.

É preciso encarar estas coisas de modo muito pouco emocional. Nunca trabalhei para as empresas. Trabalhei para projectos onde eu estava. Não tenho qualquer amargura, sobretudo em relação ao projecto mais comprido. Estive dez anos aqui na McCann. Mas quando saí da McCann ainda estava verde. Nunca tinha tido a responsabilidade a 100% de uma empresa.

 

Estava verde porque não tinha tido a responsabilidade total. Essa é a grande diferença?

É. A grande diferença é essa: de repente não tem ninguém a quem recorrer. Só se tem a si. As decisões têm de ser tomadas por si, boas ou más, difíceis ou fáceis, e a responsabilidade em última análise é sua. O peso da responsabilidade é o que faz o amadurecimento. Esse peso é um adicional que as pessoas só realizam quando o têm nas mãos. Não há férias, nem fins de semana, nem pausas na responsabilidade.

 

E a coisa do «Será que sou capaz»?

Ah, tive imensas dúvidas. Mas encaro sempre a vida como... Uma vez no Egipto fui à Grande Pirâmide; é uma subida penosa, escura, cheira mal, falta ar. Você vai subindo. Sabe que não é obrigada a subir até lá cima, que pode descer a qualquer momento. Mas há aquela coisa do «Vou mais um degrau, vou conseguir mais um degrau». E depois diz «Não, vou-me embora, já não aguento, isto é tão desagradável». Mas continua a tentar. A vida é um bocado assim. Sou capaz ou não sou capaz? E se não se é capaz, pode-se passar para o degrau de baixo e não cai o mundo por cima!

 

Mas isso é outra coisa que não se sabe até se experimentar.

Exactamente. O desafiar-nos a nós próprios para ir mais longe faz parte de determinado tipo de personalidades. Eu sou muito inquieta e isso é uma espécie de condição de existência. Essa necessidade de forçar.

 

Nos momentos em que se sente mais inquieta, em que se pergunta se é capaz, a quem é que seria capaz de recorrer?

A ninguém. A ninguém. Nunca tive muito essa sensação do «Estou em baixo, estou perdida, não sei o que é que hei-de fazer». Sou muito combativa. É evidente que já me correram mal coisas, mas pragmaticamente tento analisar porque é que aconteceu e não falhar segunda vez.

 

Quando descobre que agiu mal, que a culpa foi sua...

Fico lixada. Tenho imensas reacções de fúria e de irritação comigo própria, mas não me lembro de ter tido uma reacção depressiva. Sou tão combativa... É como se fosse uma bola que dá logo um salto para o outro lado. Perdi imensas batalhas, mas não tenho a sensação de ter perdido a guerra.

 

A título pessoal é capaz de confessar a uma amiga «Ele deixou-me, estou triste e infeliz».

Ah, já foi assim! Os desgostos de amor são feridas narcísicas terríveis. Graças a Deus que há imensos anos não tenho um desgosto de amor! Mas é evidente que os tive. Os 30 anos são uma fase tão ingrata. Ainda não se tem a maturidade dos 40 e já não se tem a frescura e a ilusão dos 20. É uma ferida tão grande estar interessado em alguém e esse alguém não estar interessado em nós... Ou querer prosseguir uma relação e de repente perceber que o outro não está interessado... É inaceitável: não há nada pior que uma pessoa ser rejeitada. Em relação ao amor, à amizade, ao que quer que seja. O pior que há é ser rejeitada ou ignorada. Sempre tive o pavor de ser ignorada. Tenho essa fraqueza.

 

Porquê?

Não sei.

 

O poder que conquistou é uma forma de dizer «Estou aqui, não podem ignorar-me»?

É. É uma maneira de dizer ao meu pai «Eu também sou capaz». Já não está vivo..., mas a um nível inconsciente julgo que continua a ser assim, «Olhe que afinal eu sou capaz».

 

Porque é que teve necessidade de lhe afirmar isso?

O meu pai era impaciente com inteligências menores. Nunca foi bom a ensinar porque se impacientava imediatamente. Eu era péssima a matemática, ele tentava explicar-me problemas de matemática que eu pura e simplesmente não conseguia apreender! A minha inteligência não é virada para o exercício da matemática. Ele era o padrão inalcançável, tinha excelência no que fazia, sabia de música, lia imenso, era informado, com uma personalidade muito forte.

 

Ele dizia-lhe que é inteligente?

Ao contrário, achava que eu era completamente burra. Para ele, ter tirado Psicologia foi um golpe. A Psicologia não era considerada. Eu deveria ter tirado Engenharia, Advocacia.

 

Uma coisa de homens. E já agora meteu-se na publicidade que é um mundo de homens.

Exactamente. O meu pai ficou surpreendido quando constatou que afinal a profissão que ele pensava ser uma brincadeira, podia dar frutos. Não só ao nível do dinheiro como de uma mediatização que a certa altura existiu. E existiu comigo porque sou mulher.

 

E por ser bonita.

Mais fácil de fotografar.

 

Não é isso. Teve de impor-se num mundo de homens sendo bonita e assumindo a sua feminilidade. Era uma dificuldade adicional.

Há sempre o chavão da loura burra..., ainda que eu não seja loura.

 

E outro pior, o de subir na horizontal.

Há esse chavão, «Ela consegue porque faz isto...». O que, aliás, influenciou a minha atitude para uma excessiva rigidez. Era uma maneira de me defender de qualquer alusão. Acho que passei incólume. Não acredito que se diga que fiz a minha carreira à custa de seduzir alguém. Hoje já tenho uma idade que me permite ser calorosa. Posso dar dois chochos a uma pessoa, acho que não me fica mal.

 

O seu pai alguma vez lhe disse explicitamente que tinha orgulho em si?

Nunca. Foi sempre muito reservado nos seus afectos. Acho que gostava de mim, claro, e que tinha, sobretudo ultimamente, não admiração, mas algum reconhecimento pela minha vida e pela minha existência profissional. Às vezes eu percebia que ele tinha orgulho, sobretudo quando terceiros lhe iam falar de mim. Mas fazia troça... De prémios que ganhava, de promoções. Estava na Young & Rubicam há três, quatro anos, e levei-o lá. Quando acabou a volta pela agência virou-se para mim e disse: «É formidável, a menina controla, vê-se que isto é uma empresa afinada». Mas disse isto com ar espantado! Não sei se pensava que aquilo era um vão de escada, uma coisa com quatro ou cinco pessoas. A partir daí olhou com mais respeito para a minha actividade. Mas nunca explicitou admiração.

 

Seria óptimo poder recorrer ao pai num momento em que se sentia mais insegura. Por outro lado, não podia mostrar àquele pai, a quem queria dar provas da sua capacidade, que estava em baixo.

Ah, claro. Mas nunca gostei de mostrar que estou em baixo, a qualquer pessoa.

 

Isso não é, de certo modo, estar sempre sozinha?

Se calhar é. Mas sou filha única; o que marcou a minha infância e adolescência, mais do que o mimo, foi o facto de não ter irmãos. Pode ter primos, amigos, vizinhos, mas a verdade é que a seguir ao jantar não tem ninguém com quem falar. Quem tem irmãos tem uma presença permanente. A minha companhia era a minha imaginação. E a leitura. Isso dá um hábito de introspecção. E como lhe dizia, não me incomodo de estar sozinha.

 

A sua melhor amiga vive no estrangeiro.

A Teresa. Falamos imenso ao telefone.

 

Falam de quê?

De tudo. Desde os trapinhos que comprámos na véspera... Aliás, temos situações extraordinárias! Eu compro fora e ela também. E muitas vezes, sem nos falarmos, compramos as mesmas coisas! Vamos muito ao mesmo estilo, e as lojas são sempre as mesmas. Hoje em dia a partilha de confidências é mais serena. Há uns anos era divertidíssima!, contávamos coisas íntimas uma à outra, tínhamos grandes ataques de risota à conta de terceiros e daquilo que nos ia acontecendo.

 

Um pouco como o encontro das quatro amigas na série «O Sexo e a Cidade», em que se fala de sexo e de sapatos Jimmy Choo?

Não sei se a nossa vida era tão atribulada como a delas!... E temos muitos outros interesses de que falamos. Este ano encontrámo-nos em Amesterdão para ver a exposição Van Gogh-Gauguin. Eu fui visitar jardins... É uma faceta da minha vida que não conhece.

 

Como é que aparece o interesse pelos jardins?

Estive nove anos presidente da Young & Rubicam e de repente fiquei farta. Fiquei farta. Tive uma necessidade absoluta de mudar de vida.

 

Ficou farta como?

Fiquei farta da responsabilidade, fiquei farta da publicidade, fiquei farta do trabalho do dia a dia, das pessoas, da empresa, de tudo. Senti que a minha imaginação estava a emperrar, que não estava a funcionar com frescura. E macei-me. Resolvi acabar. Achei que podia sair, a Young & Rubicam era a agência número um, estava tudo em óptima condição. Organizei a minha saída, a passagem de poderes, vendi as minhas acções. Saí em Julho de 2001. Estive um ano e meio sem estar ligada a empresa nenhuma, a minha única actividade profissional neste período foi dar aulas. Tive necessidade de não fazer absolutamente nada. De esvaziar a minha cabeça de uma ocupação continuada. Portanto, li, viajei, tirei cursos de jardinagem.

 

Mas porquê a jardinagem?

Para meter as mãos na terra. Não sabia absolutamente nada de jardins, não sabia o nome de uma planta, nunca tinha plantado, nunca tinha podado. Descobri o prazer de ver uma planta que eu cuido, adubo, observo, dar flor. Em particular as orquídeas. Podem dizer que é um disparate, que é muito melhor estar à frente de uma empresa e ter sucesso. Em termos de intensidade de prazer, não é. Mas eu já tive o prazer do sucesso, esse assunto está arrumado.

 

O prazer do sucesso é o quê? É deitar-se a pensar «Que bom, tenho sucesso»?

O prazer do sucesso é completamente afrodisíaco. É o prazer de perceber que aquilo que pôs em prática resultou, que os objectivos foram conseguidos.

 

Fala nisso num tom inebriante.

Ah, mas é. A carreira das pessoas tem um triângulo: o poder, o prestígio e o dinheiro. Quando começa a carreira o vector mais importante é o dinheiro. Quando atinge um patamar em que o dinheiro já vem com a posição que alcançou, tem o segundo patamar, que é o prestígio. A partir daí quer o reconhecimento, quer que a comunidade olhe para si como sendo uma pessoa de referência. Quando esse patamar está atingido, quer o poder. O poder é o sentido da responsabilidade absoluta. É poder mexer as peças. O que aconteceu foi que realizei que aquilo afinal não era tão importante assim.

 

E agora, o que é que quer fazer à vida? Está de regresso?

Penso estar aqui três, quatro meses em regime intensivo. Há um objectivo concreto, que é dar uma volta à McCann. Vai absorver-me a tempo inteiro até ao final de Março, penso eu. Não ponho de parte continuar ligada à McCann, embora não queira dedicar-me em regime exclusivo, executivo e com a tal responsabilidade do dia a dia. Quero continuar a ter tempo para ler, dedicar-me à jardinagem, viajar, jogar o meu golfe.

 

Lamenta não ser uma criativa?

Não. Gerir uma empresa deste tipo e lidar todos os dias com a criatividade dos outros é uma forma de ser criativo. Interessa-me mais a floresta que a árvore. Interessa-me o todo, pôr na rua um produto criativo bom. Deu-me muito gozo estar numa empresa que pôs na rua campanhas como o Código de Barras de Timor. Quando vi na televisão os jogadores de uma equipa de futebol entraram em campo com as camisolas de Timor vestidas, devo dizer que estava em casa e me vieram as lágrimas aos olhos. Senti que uma boa ideia pode ter um efeito devastador. Se quiser, é conseguir pôr a publicidade ao serviço de alguma coisa menos fútil. A publicidade, se pensar em que é que muda o mundo, não muda em nada, não contribui em nada para que o mundo seja melhor. Tem um cariz de futilidade. No fundo, está a lidar com consumo. A nossa actividade é persuadir comercialmente as pessoas. Quando olha e analisa a coisa assim... é poucochinho.

 

 

Publicada originalmente no DNa do Diário de Notícias, em 2002