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Anabela Mota Ribeiro

Júlia Pinheiro (2005)

06.11.14

Marco encontro com a apresentadora da «Quinta dos Famosos» num restaurante do coração de Lisboa. Ela chega em cima de uns sapatos altíssimos, forrados de um tecido exuberante, e ocorre-me que poucas mulheres poderiam usar aqueles sapatos, tão estilizados, sumptuosos, originais. Porque exigem uma personalidade forte. Está constipada e queixa-se da traição! Tomou a vacina e não era suposto que isto acontecesse. Ao longo da conversa, envolve-se na sua pashmina, fala dos filhos e do marido, dos projectos de vida que esboçava quando era uma menina, fala da sua auto-estima como o bem mais precioso, da autenticidade como segredo do seu sucesso. Quem é Júlia Pinheiro? Estudou Literatura, mas sempre quis ser jornalista. É provavelmente a mulher mais famosa da televisão que neste momento se faz em Portugal. Conduz a Quinta com um prazer manifesto, como aconteceu com A Noite da Má Língua, Praça Pública ou Noites Marcianas. E o prazer, como se perceberá, é para uma condição. Conheçam-na e reconheçam-na nas próximas páginas.

 

 De que é que acha que é feita a relação entre as pessoas? Quais são os nós, os pontos nucleares?

O que fica provado com a Quinta é que as pessoas se agrupam na procura das afinidades. Aquilo de que eu gosto, de que tu gostas, do que são as nossas experiências passadas. Com o passar do tempo, logo a seguir às afinidades, vêm as diferenças. Tudo o que se construiu numa primeira teia começa a rebentar e aparecem outras cumplicidades, que têm a ver com o carácter, a capacidade de tolerância, a confiança. Acho que também há alguma tensão erótica e aquela chama indefinível que acontece entre as pessoas. Provavelmente, o que vai acontecer no final do jogo, como na vida, é que pessoas com quem simpatizamos muito, mas que não conhecemos muito bem, quando temos oportunidade de estar perto, acabamos por não gostar delas. A maioria de nós, e disso também padeço eu, fazemos juízos à distância.

 

Embirrações de estimação, amores que são projectivos...

Completamente. Não há nenhuma razão para isso, mas pronto, às vezes fazemos juízos, não gosto de fulano, não gosto de beltrano. Depois, por qualquer razão conhecemo-nos e é uma coisa completamente diferente.

 

A história de amor com o seu marido (Rui Pêgo) cabe nessa descrição...

Eu tinha por ele uma admiração profissional grande. [O Rui] já era uma referência lá na [Rádio] Renascença, e foi embirração absoluta no momento em que o conheci. Tratou-me com a displicência dos grandes em relação aos pequeninos... E reza a lenda que terá comentado com a pessoa ao lado, o Henrique Mendes, quando me afastei furibunda: «Esta miúda é gira, vou casar-me com ela».

 

E como é que é possível seduzi-la? A que é que é sensível?

Ele persistiu, persistiu, persistiu; e há um elemento decisivo: a enorme capacidade de ternura. Sobretudo nos homens, quando é manifestada de uma forma transparente, é comovedora. Casar apaixonada, no estado em que eu estava é uma bênção e uma recordação inolvidável. Passado o tempo da paixão, e já lá vão 20 anos de vida em comum, o olhar de absoluto reconhecimento daquilo que sou e não daquilo que pareço, e que ele reconheceu no primeiro minuto... É esse o segredo da nossa longevidade.

 

É fácil olhar para si como uma mulher furacão, por causa da garra, do tom efusivo; mas é também, claramente, uma mulher que se realiza no espaço familiar.

Ele viu isso. Antes de mim. As pessoas intimidam-se um bocadinho com essa primeira bateria de certezas, de intimidação e autoridade. Como tenho opinião, pareço muito conflituosa. Depois há a outra, que detesta conflitos, que não é nada autoritária, que gosta de coisas tranquilas. Adoro uma grande festa, mas prezo imenso o meu silêncio – dêem-me uma cadeira, uma linha de água e um livro e estou para ali seis meses.

 

A diferença entre o privado e o público sempre existiu?

Sempre. Quando conheci o Rui estava à procura da minha identidade profissional. Queria ser jornalista e tinha a certeza de que a televisão era o meu meio, mais do que qualquer outra coisa.

 

Era o fascínio da televisão?

Sim. Era também a ideia de ser testemunha das coisas, estar perto sem ser protagonista. Estava lá, via e podia contar. Eu não tinha nenhum projecto para me casar, nem ter imensos filhos. Sou filha única e costumava dizer aos meus pais que ia ser uma péssima dona de casa, que não contassem com netos...

 

Era uma afirmação contra o conforto da vida burguesa?

Era uma espécie de contestação. O meu pai é profundamente conservador, a minha mãe é mais de cabeça aberta. Foi ela que impulsionou isto tudo.

 

Telefona-lhe a dizer: «Mãe, convidaram-me para este projecto»?

Sim. Ficou muito zangada quando soube que ia apresentar a Quinta. «Que horror, que raio de programa é esse?!». Eu disse-lhe: «Tem calma, isto é diferente, é um programa que tem uma componente mais lúdica e brincalhona». Agora, acha divertidíssimo. A Quinta é muito transversal. Há miúdos de quatro anos e velhinhas de 90 que gostam. O problema da transversalidade é que há coisas das quais não vale a pena falar. No outro dia dizia: tenho aqui tantos ganchos bons, a homossexualidade, aqueles que ainda falam no Salazar...

 

Voltemos à Júlia cortada ao meio, à do espaço privado e à do espaço público.

Tenho a consciência de que aquilo que sou cá fora não interessa por aí além, interessa mais o que sou lá dentro. Tudo aquilo que a televisão projecta é efémero, relativo, consumido e deitado fora. O que importa é o que está lá atrás para nos sustentar. Começo a fazer televisão um bocadinho tarde, com 30 anos, e com a noção de que tenho de fazer um boneco, que é o boneco da televisão. Depois há a verdade das coisas, que fica em casa.

 

Mesmo em televisão, o seu percurso não é linear. Quem a via na «Noite da Má Língua», diz agora que é uma vendida, que está a fazer isto por causa do dinheiro, do sucesso, que isto a desconforta...

Não tenho desconforto algum. Em televisão, se trabalhamos para um grande público, temos que nos adaptar às regras desse consumo. Não posso pretender chegar ao prime-time, que em média tem um milhão e meio a dois milhões de pessoas, e encaixar ali um formato altamente selectivo, com mensagens culturalmente díspares e imaginar que vou ter sucesso, que as pessoas me entendem... O que é que posso fazer? Tento fazer um formato de grande entretenimento, com uns brilhozinhos, que consiga congregar ali todos. Conseguir este equilíbrio...

 

Qual é o segredo do sucesso? É pela graça, é pelo humor que faz a ligação entre os diferentes públicos?

Não sei se é bem a graça. Tenho mesmo muito prazer naquilo que faço, e a autenticidade é meio caminho andado. Depois, tento tocar as pessoas todas sem ofender ninguém. Sou muito espontânea, nada do que digo está escrito. Sei que quando as coisas me saem na hora, podem resultar bem. Aquilo tem a temperatura do momento. Estou contentíssima com aquela história de pormos o burro a falar. A crítica bate-me desalmadamente, estou-me rigorosamente nas tintas. A ideia não é minha, é da Gabriela Sobral, [produção], e eu desenhei um bocadinho o que o burro ia dizer. Estávamos excitadíssimas por causa do Schrek e o burro foi conseguido para a miudagem. Resultado: quando chego à TVI, tenho uma fila de meninos, os filhos dos funcionários todos da TVI, os amigos dos filhos dos funcionários, para ver o Pavarotti.

 

E os seus filhos?

Os meus filhos acham graça. O meu filho não acha graça nenhuma ao Pavarotti, mas delira com a Quinta. Mas não são muito ligados ao que faço.

 

Quando vai levar os seus filhos à escola, as pessoas estão à espera que seja a Júlia Pinheiro da Quinta ou já a conhecem como a mãe daqueles meninos?

A mãe dos meus filhos. Eles têm o mesmo núcleo de amigos desde o infantário e as pessoas são muito tranquilos, sabem que sou uma mãe normal: que vou, que trago, que levo, que me preocupo, vou um bocadinho menos às reuniões de pais do que os outros porque são sempre em horários impossíveis para quem trabalha nestas coisas. Quando apareço à hora de saída no colégio, causo algum frisson, que os embaraça muito. Mas também sou discreta e deixo-me ficar no carro.

 

Eles gostariam que fosse uma mãe igual às outras?

Em certos momentos, sim. Se vamos ao supermercado, posso ser muito abordada, muito beijada...

 

Mas continua a ir, a comprar os detergentes?

Completamente! Tenho um regime doméstico um bocadinho pesado, mas muito feliz. Tenho uma empresa que arruma a casa todos os dias, mas quem trata de tudo o resto sou eu e o resto da família.

 

Decide o que vão almoçar, jantar, essas coisas?

Não só decido, como faço.

 

Lembro-me de a ouvir nas tardes da Rádio Renascença. O modo de comunicar não é substancialmente diferente, ainda que tenham passado cerca de 15 anos e tenha militado em projectos distintos. Quais são as principais características do seu poder de comunicação, o que é que a distingue dos outros?

Nessa altura, forjei a Júlia-comunicadora. Fui percebendo com o tempo que comunicava bem com o público que estava em casa, passivo, que precisava de ser mimado, animado e um bocadinho provocado. Tive muita sorte na Rádio Renascença, que me permitiu imediatamente voar com as minhas próprias asas. A Praça Pública tinha um tom jornalístico. Aliás, fiz sempre os híbridos, não se sabia bem se aquilo era informação se era entretenimento. Tenho o que se chama a qualidade camaleónica. Sempre que me é dado um projecto, reflicto um bocadinho sobre a pele que vou vestir; mas as bases são sempre as mesmas: a autenticidade, a capacidade de reagir no momento, elucubrar o que está em discussão.

 

Lê bem as pessoas e a situação, é isso?

É um pouco isso. Com o tempo, e com o «Sic 10 horas», descobri uma coisa que não sabia que tinha: a capacidade de ouvir. Descobri que era meio caminho andado para a coisa funcionar bem. Acabo por gerir as conversas ouvindo o outro. Às vezes levo escrito um leque de perguntas e não as faço. Aquilo que as pessoas dizem é muito mais interessante do que a expectativa que levo. Acho que é esse o segredo: apanhar a bola do outro lado, no momento exacto, com garra. Acho que é isso que tem corrido bem.

 

Nesse tempo da Rádio Renascença, voltando ao seu projecto de vida, imaginava que um dia seria o que é hoje?

Não. Ainda não existia a Christiane Amanpour [jornalista da CNN], mas o que eu queria ser, era exactamente isso. Ser repórter, estar nos sítios, fazer documentários. Depois percebi que não ia ser assim e adaptei-me. Há um momento em que podia ter feito uma opção pelo jornalismo e achei que não valia a pena.

 

Por qe é que enveredou por este lado quando os dois eram possíveis?

Com 30 anos, tinha que fazer um percurso na redacção da Sic que já não fazia muito sentido para mim.

 

Tinha que desbastar todo o preconceito.

Exactamente. Havia um preconceito contra as pessoas que fazem entretenimento. Percebi que a redacção da Sic é muito masculina e que dificilmente poderíamos, as mulheres, furar ali dentro. Quando fui para Sic, pensava: «Agora vou pôr o pé no piso da informação e vou ser pivot». Pertenço à geração para quem as grandes referências eram a Maria Elisa, a Margarida Marante, o Miguel Sousa Tavares. Quem me contrata para a Sic é a Maria Elisa; quando me sento à frente da Elisa..., ainda hoje sinto os joelhos a tremer.

 

É tão extraordinário pensar que pode ser insegura... Porque não é nada essa imagem que as pessoas têm de si.

Não fui insegura, estava nervosa! Mas convenci-a imediatamente! Estava sobretudo esmagada pela presença dela, que é uma mulher muito interessante e muito inteligente. Era difícil, depois de um ano de Praça Pública, (embora tenha corrido muito bem e o programa seja considerado uma referência), crescer e ganhar asas ali. Nunca seria pivot, embora tenha feito curso de pivot e tudo.

 

Exigia para si o protagonismo, a excelência?

Não tenho essa noção, essa necessidade de ser a melhor. Talvez seja um grande defeito meu, mas não sou perfeccionista. Quero fazer bem, mas não batalho para ser a melhor de todas. Tenho uma coisa que é talvez o traço mais forte da minha personalidade, e que é uma tremenda auto-estima! Acho que sou fantástica, olho para o espelho: «Eh pá, és bestial»!

 

Desconfiamos sempre quando as pessoas dizem isso assim, é como se se quisessem convencer a elas próprias...

Não é o caso. Ao longo destes anos, a crítica não tem sido benevolente comigo, e se não tivesse esta espécie de pele coriácea, podia ter ficado abalada. E nunca fiquei. Tirando a primeira crítica, que me doeu muito, do João Gobern, que me conhece tão bem. Nesse dia disse: «Nunca mais choro por uma coisa que dizem sobre mim», e nunca mais chorei. Resultado, tenho a certeza que estou a fazer o melhor que posso e sei na altura. Se calhar podia ter feito uma série de coisas que tornariam o momento mais brilhante, mas se ficar bem feito e for eficaz, fico feliz. Não vivo na ansiedade da aprovação de coisa nenhuma, não preciso da aprovação de nada nem ninguém.

 

Foi uma criança muito reforçada? Tem esta auto-estima desde miúda?

Muito reforçada. Talvez por ser filha única tive sempre a convicção de que era profundamente amada. E isto é um traço muito importante, que faz de mim uma pessoa segura, muito forte (sendo que sou muito frágil noutras coisas), muito centrada.

 

É o que mais tenta incutir nos seus filhos, essa noção de que são amados?

Não há dia nenhum que não diga a todos [às gémeas de 11 anos e ao rapaz de 16] que gosto devastadoramente deles. É talvez o legado mais importante dos meus pais e aquele que transmito com mais intensidade e mais militância. Aquilo que, como educadora, tento passar todos os dias, (além dos valores, para que sejam cidadãos de corpo inteiro e pessoas com cabeça para pensar), é uma profunda noção do amor, é a noção de que há um reduto onde nada acontece e onde estarão sempre seguros e salvos.

 

Podemos de alguma maneira conhecer essa Júlia-privada ou esquiva-se sempre?

A Júlia privada é a mesma do que a pública, mas num downsizing de estridência e exuberância!

 

É assim porque não consegue ser de outra maneira? Acontece chegar a casa e pensar: «Por que é que fui tão estridente, por que é que não fui mais sossegada?».

Às vezes penso isso. Mas tem a ver com o prazer, com o facto de me entusiasmar. Tenho um entusiasmo infantil completamente deslocado para uma senhora da minha idade.

 

Tem quarenta e...?

E dois. Não imagina o meu comportamento diariamente no meu local de trabalho, digo coisas impensáveis a toda a gente, pelo puro prazer de ser desalinhada. Gosto muito desta minha atitude da festa e da alegria, aquele número do blasé não é para mim. Na TVI sabem sempre quando estou porque se ouve a minha voz num gabinete qualquer, às gargalhadas e a dizer disparates. Também sou assim em casa, mas numa dose mais tranquila. Percebo que queira tocar qualquer coisa que ainda não apanhou daquilo que sou...

 

Daquilo que é também.

Daquilo que sou também. Mas não é muito mais do que isto que lhe estou a dizer, de facto. Sou tranquila quando tenho que ser tranquila, carinhosa quando tenho que ser carinhosa. E sou exuberante e desmiolada também, em todos os planos da minha vida. Sendo que aquele que para mim é o mais importante, aquele onde sou mais eu, é, de facto, o privado.

 

 

Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em 2005