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Anabela Mota Ribeiro

Luís Campos e Cunha

09.11.14

Tarde de calor. A universidade deserta. O gabinete cheio de livros. Luís Campos e Cunha, num retrato alternativo: o filho de um militar, o rebelde que usou o cabelo à Jimi Hendrix, o artista que expôs quadros abstractos em Nova Iorque. O jovenzinho que atira a professora: “Não estou para aturar isto”. O rapaz sensível às injustiças que treme como varas verdes mas que não consegue deixar de dizer o que pensa. O homem que tem a sorte de poder ser livre e dizer o pensa. O filho de um pai que acha que ele tem a obrigação de retribuir ao país o investimento que este fez nele. E por isso, também, foi ministro. O amigo de Constâncio e Guterres. O católico que tem mais dúvidas que certezas. O apaixonado pela arte que prefere jantar com artistas a professores de economia. O pai de três filhos a quem passa princípios estritos. E o que inventa tempo para estar com eles.

Campos e Cunha. O ministro das Finanças que bateu com a porta ao cabo de quatro meses? O ex-vice governador do Banco de Portugal? O professor de Economia? Sim, mas talvez pela ordem inversa. “Ser ex-ministro, como ser ex-vice governador, faz parte do meu currículo, mas não faz parte do meu cartão de visita. Sou professor de Economia, essa é a minha vida”.

Tem uma voz arranhada, por vezes áspera. Mas ilumina-se quando sorri. É um homem novo. Tem 54 anos. Parece ter mais. Começámos por aí.

  

É visto como uma pessoa mais velha do que na verdade é. Fale-me da sua relação com a idade.

Sempre foi assim. O que me perturba não é a idade em si, mas a noção de que, à medida que o tempo passa, o número de opções vai diminuindo. A sensação de que a vida é mais finita do que a gente pensa, e a aceleração do tempo, são estranhas. Já não há tempo para certas coisas: plantar uma árvore e desfrutar da sua sombra e da copa – a árvore leva 50 anos a fazer. Às vezes sou apanhado nessa armadilha. À parte disso gosto de celebrar os meus anos.

 

Porque é que acha que as pessoas lhe dão mais idade?

Talvez por causa da minha aparência física. Por ter um ar sisudo. Sou tímido e procuro retrair-me na minha abordagem do mundo e da vida. Mas quem me conhece, sabe que não sou assim.

 

Como eram as suas fotografias de criança?

Parecidas com as do meu filho mais velho! Não tenho muitas: as fotografias eram raras, dispendiosas. O meu pai fazia bem fotografia.

 

Era um menino precocemente envelhecido? A partir de que momento a sombra da sisudez se abateu sobre si?

A minha vida foi toda marcada pelo facto de o meu pai ter sido militar. O que levou a que, nos anos 50 e 60, estivesse sempre em mudança. Nasci em Luanda mas podia ter nascido na Índia ou em Timor. Saí de lá com um ano. Vivi em Moçambique, Mafra, Santa Margarida, Lisboa, Coimbra, um pouco por todo o país. Se pensar que estive em Nampula com 14 anos, tomava conta da minha irmã que era três anos mais nova, cheguei a receber o ordenado do meu pai e pagar as contas, e num redor de 5000 km não tinha ninguém que conhecesse há mais de seis meses…, imagina a forma rápida como tive de amadurecer. Penso que desempenhei bem as minhas funções. Inclusive recusei vir para Lisboa para ser operado…

 

Vamos devagar. Tudo isso é romanesco…

Não havia telefones e viajar era difícil. O meu pai foi para Nampula, eu pedi muito e fui ter com ele. Num período em que veio cá [metrópole] com a minha mãe, que estava doente, fiquei lá sozinho. Não me atrapalhei particularmente. Estava no quinto ano do liceu. Parti o braço e tive que ser operado. Havia um problema: quem é que tinha capacidade para autorizar a minha intervenção cirúrgica – porque eu não era maior. Para falar com o meu pai, havia comunicações rádio que iam do Estado Maior em Lisboa para o Estado Maior em Nampula.

 

Porque é que quis ir ter com o seu pai?

Dava-me bem com ele. Hoje dou-me muito bem com a minha mãe, mas com 14, 15 anos, um rapaz dá-se melhor com o pai. Com estas bolandas todas, eu não seria uma criança fácil… Seria impensável os meus filhos terem este amadurecimento precoce.

 

Essa sisudez tem que ver com uma austeridade militar que o seu pai lhe passou?

O meu pai não era um militar típico. Deu-me sempre uma grande liberdade. A única coisa que me impôs foi não ir para o Colégio Militar – para onde foram vários amigos meus, porque receava que eu fosse para a Academia Militar. Hoje reconheço que fez bem. Não tenho a certeza que me tivesse dado bem lá. Eu tinha 10 anos, e julgo que um pai tem direito de dizer a um filho, com essa idade, para onde é que ele deve ir. O meu pai teve uma vida difícil. Era um excelente aluno e não foi para engenharia porque o pai morreu cedo. Foi para a Academia Militar porque era o único sítio onde podia prosseguir os estudos sem sobrecarregar a família. Sempre me transmitiu valores de austeridade. Ou seja, não gosto de gastar dinheiro mal gasto, não sinto necessidade de ir passar férias às Caraíbas – passar férias no campo, em Portugal, é mais calmo e simpático para mim. A ligação à terra e alguma inflexibilidade em matéria de princípios devo-o a ele e fico satisfeito por isso.

 

Porque é que tinha uma relação tão próxima com ele?

A minha mãe, mais tarde, foi ter connosco. Toda a gente fala da Guerra de África, toda a gente fala dos militares, mas ninguém fala das famílias dos militares do quadro permanente. Aqueles que têm agora entre 45 e 55 anos foram muito marcados. Mas [naquele tempo], para a família militar, aquilo era relativamente comum. Eu sabia que se acontecesse alguma coisa, como aconteceu, seria imediatamente apoiado.

 

Como é que viveu lateralmente essa guerra?

Na altura não me apercebi. Hoje percebo que foi mais fundo… À porta de minha casa, passavam ambulâncias que vinham do aeroporto para o hospital militar. Praticamente todos os dias a capela militar, que eu via de casa, estava iluminada – o que queria dizer que estava lá um soldado morto. Nunca estive numa situação de guerra, nunca ouvi tiros, nunca peguei numa arma, mas vi as consequências da guerra. Isso talvez tenha feito de mim, não direi um pacifista, mas um homem que odeia a guerra. É a consequência e a fonte das maiores injustiças. A invasão do Iraque, por exemplo, perturbou-me bastante. Tenho uma profunda repulsa pelo presidente Bush, pela sua violência particularmente gratuita.

 

Tinha curiosidade em espreitar na capela e ver o morto?

Julgo que nunca o terei feito. Mas convivi com muitos milicianos, jogávamos às cartas, xadrez, e um ou outro morreu. De repente, saber que determinada pessoa tinha morrido… Era chocante porque tinha estado 15 dias antes a jogar as cartas com ele. Via muitas pessoas mentalmente perturbadas – eram conhecidos como “os apanhados do clima”.

 

Perguntava pela curiosidade em ver a face da morte. Era como se a morte rondasse a sua porta, sempre. Mas isso é diferente de sentir a morte de alguém.

O primeiro encontro que tive com um morto foi na Igreja da Boa Hora e tinha seis ou sete anos. A certa altura enganei-me e fui ter à zona mortuária em vez de ir para a catequese. Estava lá um homem morto e ainda hoje me lembro da imagem. Durante muitos anos foi o único contacto directo que tive com um morto. Depois tive, infelizmente, a experiência da morte de pessoas próximas, mas já era adulto. Só se sente verdadeiramente o que é a morte quando alguém muito próximo morre. Sentimos que, em certo sentido, parte de nós também morreu. Uma certa vivência morreu ali. É uma história que fica interrompida – não há mais daqui para a frente.

 

Quem é que lhe incutiu esse sentido de responsabilidade?

Era uma coisa natural, era a força das circunstâncias, e isso tem muito peso. Ia comer à messe, tinha um empregado que tomava conta da minha roupa e da casa; um mês em que o meu pai esteve fora mais tempo, fizeram-me chegar o ordenado e paguei o empregado. Estas coisas, só me apercebi de que eram fora do comum quando tinha 30 anos. Quando tive filhos. Só então percebi que estava muito mais preocupado com eles do que o meu pai poderia estar comigo; ou então estava e não me dizia.

 

Tinham uma relação tácita ou mais verbalizada? Do que falavam?

De tudo. Podia ser um livro ou o que se tinha passado no dia anterior. Tinha a ideia de que os problemas são para ser resolvidos e têm solução. Eu gosto de resolver problemas. Meus ou de outros. Sou um problem solver. Gosto de pensar as coisas de uma maneira original: porque é que é assim e não de outra maneira? Isso estava sempre presente [entre nós]. Sempre questionei tudo. Levou-me também a nunca ter sido marxista. Nunca fui comunista, nem simpatizante.

 

O seu pai era de direita?

Não. Aliás, esteve ligado ao 25 de Abril. Esteve no coração da revolução, antes e depois. Era o elo de ligação, basicamente, entre os homens do 25 de Abril e Costa Gomes – de quem foi chefe de gabinete. Ele confiava muito em mim, sempre me tratou como um adulto. Fui talvez a pessoa mais nova em Portugal que soube que o 25 de Abril ia acontecer. Porque ele disse-me. Não disse que seria no dia 25 de Abril porque isso nem ele sabia. Mas estava para embarcar para Angola no dia 5 de Maio e confidenciou-me: já não vou embarcar para Angola, porque dentro de dias vai haver uma revolução.

 

Usou essa expressão?

Não sei se disse revolução, se sublevação, se revolta. Pode ter sido: o movimento vai para a frente. “Daqui a uns dias, ou estou a trabalhar com o Costa Gomes ou estou na Trafaria (que era a prisão militar). Em qualquer das circunstâncias, vais estar aqui a tomar conta da casa”. E assim foi. Não festejei o 25 de Abril na rua porque fiquei em casa, a tomar conta.

 

Que idade tinha?

Tinha 20 anos, e dois irmãos mais novos – era o homem da casa. Durante toda a vida usou-me como confidente. Habituou a chamar-me à parte para me falar dos aspectos fundamentais da vida dele.

 

Ouvia-o para ter o seu conselho ou porque precisava de um interlocutor?

Muitas vezes queria saber a minha opinião sobre o assunto. Por exemplo: quase todos os discursos do Costa Gomes foram escritos pelo meu pai. Eu era a pessoa que os lia. “Olha, está aqui o discurso, vê lá o que achas”. Umas vezes terá aceitado as minhas sugestões, outras não. Ser chefe de gabinete do Costa Gomes não era fácil – ninguém percebeu Costa Gomes, nem mesmo o meu pai. Punha problemas de consciência graves para ele. “Em todos os discursos aparece democracia pluripartidária ou democracia representativa ou democracia parlamentar” – qualificava sempre democracia; “se o Costa Gomes cortar esta expressão, saio”. E nunca cortou. O meu pai sentiu que se não cortava a frase era porque ele era necessário lá.

 

Não é tão comum quanto isso olhar para um filho como um igual. Normalmente as relações são mais assimétricas.

Julgo que ele tinha confiança em mim. Sabia que eu não falava sobre as coisas. A seguir ao 25 de Abril, isso era muito importante. Nessa altura, toda a gente andava a trair toda a gente, ou quase.

 

Recupero o começo da nossa conversa: o facto de parecer mais velho. De certo modo, talvez isso passe por ter sido um menino precoce. O seu pai sempre o tratou como adulto.

Talvez. Os meus anos de teenager não foram fáceis. Nem sequer era bom aluno. Quando estava quase a chumbar, estudava e passava. Na universidade fui bom aluno, na pós-graduação fui excelente aluno. Mas no liceu fui sempre insubordinado.

 

Insubordinado? Porque é que era insubordinado?

Fui para a rua do primeiro ao sétimo ano por mau comportamento. Uma das vezes uma professora estava a ser injusta com um colega, eu levantei-me e disse-lhe que não estava para aturar aquilo, que não admitia injustiças! O meu colega não sabia o que fazer, ela pôs-me na rua. No dia seguinte apareceram (quase) todos de gravata preta. Era incapaz de não responder a um professor se achava que devia responder. Tremia como varas verdes, mas não podia ser de outra maneira. Era uma questão de personalidade e feitio.

 

Intervir ou não era sempre um combate? Citando o seu pai, dizia que os corajosos não eram os que não tinham medo, eram aqueles que eram capazes de controlar o medo.

Os que não tinham medo numa situação de guerra eram inconscientes. O meu pai, quando jovem, teve medo de ter medo. Quando esteve pela primeira vez debaixo de fogo percebeu que era capaz de controlar o medo e ser o comandante das suas tropas. Isto deu-lhe confiança para toda a vida. Estava responsável por 100 homens e tinha 23 anos.

 

Essa rebeldia surpreende. Porque temos de si a ideia de que é um homem muito bem comportado. O que é que o fez atinar?

Continuei exactamente na mesma. Quer dizer, tenho 54 anos, não tenho 17, não posso fazer o mesmo. Estou mais profissional. Mas nunca deixei de dizer o que pensava. Se for preciso escrevo. Não devo nada a ninguém, não vejo porque não há-de ser assim. A razão porque sou professor universitário é porque gosto muito desta independência. Foi uma coisa que o meu pai me transmitiu: que tenho obrigação de dizer aquilo que penso, e dizê-lo publicamente.

 

Obrigação?

Os meus estudos foram em parte pagos pelo povo português, cheguei onde cheguei porque o Estado pagou parte da minha formação. Acho que ele tem razão. Tenho uma obrigação moral [de dizer o que penso]. Se estou numa situação de total independência, tenho esse imperativo categórico. Tenho a sorte de poder ser uma pessoa muito livre. Se estivesse à frente de uma empresa, a minha primeira obrigação seria fazer com que a empresa progredisse, tivesse lucros, tinha responsabilidade perante as famílias dos trabalhadores. Neste caso, não tenho negócios, sou livre como um passarinho.

 

O seu pai ainda era vivo quando decidiu sair do governo. Falou com o seu?

Nessa altura o meu pai já estava muito doente e passou uma boa parte do tempo no Porto. Teve um cancro, lutou até ao fim. Não podia falar muito ao telefone…, mas é evidente que falava com ele.

 

À luz do que o seu pai lhe ensinou, era seu dever aceitar ser ministro.

Sempre achou que se eu fosse convidado devia aceitar. Noutras circunstâncias em que recusei, ele achou que não estava a cumprir os meus deveres éticos. Era uma questão de retribuição: tinha obrigação de pôr os talentos que me tinham sido dados ao serviço dos outros.

 

Aceitou ser ministro, também, por causa dele?

Não sei responder a essa pergunta. Não me senti obrigado a aceitar. Até porque tinha 50 anos, era uma pessoa madura. Sempre pensei pela minha cabeça, e continuo a pensar. Pode ser num sentido mais subtil e longínquo, porque tive esta educação.

 

Porque é que aceitou?

Hesitei. Mas conhecia bem os problemas do país do ponto de vista macroeconómico, tinha um conjunto de ideias e abordagens para esses problemas, tinha a cabeça arrumada e achava que podia dar uma contribuição. Foi essa a razão.

 

Quando saiu, estava lá, também remotamente, essa inflexibilidade em relação aos princípios que o seu pai lhe incutiu?

A minha vida toda foi sempre assim. Perdi muitas coisas, em alturas até em que era difícil, por obediência aos princípios. Trabalhos que me encomendavam, dizia: “Esse trabalho não faz sentido, não faço”. E tenho três filhos, a minha mulher é professora… Foi duro. Quando tinha 40 anos tinha uma vida particularmente apertada. Mas nunca deixei de dizer “não” quando achava, em consciência, que assim devia ser. O mesmo se passa com a minha mulher. Talvez por isso estejamos casados há 30 e tantos anos.

 

Porque é que tiveram filhos tão tarde?

Foi a vida. Tinha 23 anos quando casei, estava para ir para os Estados Unidos para me doutorar e mal tínhamos dinheiro para nos sustentarmos em Nova Iorque. No princípio dos anos 80 Portugal estava na maior das crises, não havia um tostão, nem sequer da família, tínhamos de nos desenvencilhar. Não tínhamos qualquer hipótese de ter um filho. Estava casado há sete anos quando nasceu o meu filho mais velho.

 

Vamos, então, para NY. Mudou a sua vida?

Mudou. O facto de me ter doutorado é importante, mas à medida que o tempo passa, percebo que ter sido em NY e não no meio do far west foi importantíssimo. Como todos os filhos de militares, que vivem só de um salário, nunca tinha viajado. A primeira vez que fui aos Estados Unidos foi para doutorar-me. Foi um choque brutal. NY tem tudo no seu mais alto grau e pode ser-se qualquer coisa. Desde um pedinte no metro até um banqueiro. Aproveitei tudo ou quase. Estudei com vários prémios Nobel, mantive uma boa relação com os meus professores. E mantenho: de cada vez que vou a NY, estou com eles, janto com eles. Trocamos cartões no Natal, telefonamo-nos de vez em quando.

 

Quando sublinha que foi aluno de vários Nobel, que mantém relação com eles, é evidente a sua satisfação. Por pertencer a um grupo de elite?

António Sérgio falava nas elites de serviço; tenho procurado esse espírito de elite de serviço. Quando estive em NY, ainda não eram prémio Nobel, eram apenas professores conhecidos. Especializei-me naquilo que a minha universidade tinha de melhor – macroeconomia e economia internacional. Estava a lidar com uma das fábricas de pensamento nessa área.

 

Essa convivência confirmava a sua auto-estima – era aí que eu queria chegar.

Vencer em NY é um certificado de que posso vencer em qualquer sítio – foi importante para a confiança, para ultrapassar uma timidez que eu tinha.

 

Mas parece uma timidez pouco insegura…

Percebo isso que está a dizer: normalmente, uma pessoa respondona aos professores não é tímida.

 

Quando defende um colega que mal conhece, há nisso uma afronta ao professor – o colega, a injustiça de que é alvo, é o pretexto para esse jogo. Tem em si a confiança suficiente para ousar – e defende outros que estão mais desprotegidos.

Sempre aconteceu. Com 15, 16, 17 anos vendi estereofonias aos amigos, dei explicações, vendi enciclopédias para comprar o meu primeiro gira-discos. Um dia, a senhora da empresa de enciclopédias foi malcriada com um velhinho que estava ao meu lado. Foi de uma ordinarice esmagadora perante aquele sujeito que não tinha defesa. Quando se voltou para mim, virei costas e disse que não estava para a aturar. No dia seguinte mandei-lhe os papéis (o kit para poder vender enciclopédias) com um pacotinho de chá! Foi sugestão do meu pai.

 

Em NY floresceu a sua relação com as artes plásticas.

Fui tirar cadeiras de pintura e história de arte. Fui seleccionado para os jovens artistas de Columbia University. Tive a minha exposição.

 

Como eram os seus quadros?

Eram abstractos. Eram interessantes. Eu não tinha um tostão. As tintas, os pincéis, as telas tinham um preço exorbitante para mim. Um dia, precisei de comprar telas e não tinha dinheiro. Fui ao Harlem a uma casa de roupa em segunda mão e comprei casacos e calças de veludo, que tinham deixado de se usar, de uma cor só; desmanchei-os e forrei as placas de madeira com aquilo. A professora achou que eu tinha uma grande imaginação, mas era a necessidade a aguçar o engenho. Mais tarde, vários artistas famosos pintaram sobre veludo!

 

Quem eram as suas referências?

Jean Michel Basquiat.

 

Basquiat era um protegido de Andy Warhol. Alguma vez foi ao Studio 54, o espaço mítico dessa geração?

Nunca tive curiosidade. Já estava um pouco decadente, mas hoje arrependo-me de não ter ido. Era uma referência, era como ir ao Empire State Building. Além do Basquiat, o Keith Haring. Pintava no metro aqueles seus homenzinhos estilizados. Não era conhecido, claro. Uma vez saí do metro a ver se conseguia tirar a cartolina em que ele pintava… Daí a dois anos, era famosíssimo. Hoje valeria uma fortuna.

 

Onde começa a relação com a arte?

O meu pai pintava. Era um pintor tradicional, naturalista. Tinha jeito, mais jeito do que o filho.

 

Pintar era um refúgio. Mas a arte nunca foi um caminho para si.

Costumo dizer que entre o computador e a memória devo ter para aí dez exposições. Noutra encarnação talvez seja artista. E acho mais divertido conviver com artistas do que com professores de economia. Às vezes são um bocadinho enfadonhos… [riso] Tenho bons colegas e amigos. Mas o lado radical, cutting edge, inovador, fascina-me. É um universo mais imprevisível.

 

Se não foi sempre bom comportado, não chegou a ser um rebelde…

Tinha um cabelo à Jimi Hendrix – os meus amigos de faculdade ainda se lembram de mim assim. Nunca fui marxista, como lhe disse. Estive mais perto de ser hippie. Ainda andei na associação de estudantes, mas achei aquilo religioso: havia as capelinhas do PC, dos maoístas, dos trotskistas… Ainda fiz parte de um grupo meio hippie que andava pela Praça de Londres, existencialista.

 

Não frequentavam exactamente os caveaux…, mas que música ouviam, que filósofos liam?

Lia-se o Sartre, obviamente. Nunca achei grande graça à pessoa, mas gostava de o ler. Boris Vian. Devo ter lido o “Crime e Castigo”, que é um livro pré-existencialista, em Nampula, com 14, 15 anos. Mas isto não durou muito, talvez um ano. Torna-se também uma religião. Nunca tive capacidade para estar em rebanho. Não me importo de ter uma opinião solitária. Perco muitas vezes, mas paciência. Estou habituado a estar em minoria e não me sinto desconfortável.

 

Tem inclusive uma certa desconfiança em relação ao rebanho e às maiorias…

Ai isso tenho.

 

É católico?

Sou.

 

É amigo de António Guterres e Vítor Constâncio. Católicos. Pertenciam ao grupo da Capela do Rato.

Sou amigo dos dois. Mas o nosso encontro dá-se mais tarde. Eles tinham 30 anos e eu 20 – fazia diferença.

 

Foi Guterres que o convidou para Ministro das Finanças?

Não disse que me tinham convidado para Ministro das Finanças. Ele já o disse à frente de várias pessoas – não creio que seja um grande segredo. Mas não foi para Ministro das Finanças.

 

Apesar de ser seu amigo, recusou.

Certamente que o facto de ser meu amigo pesou, mesmo depois de ter dito que não. Pus-me à disposição dele e ajudei-o a constituir o seu gabinete de economia. Depois fui para vice-governador do Banco de Portugal.

 

Porque é que recusou?

Tinha 40 e poucos anos. Não tinha maturidade. E do ponto de vista familiar a minha mulher estava a tirar o doutoramento – era a minha vez de ajudar em casa com tempo e disponibilidade.

 

Isto era a propósito do catolicismo e da importância que isso tem na sua vida.

Fui educado segundo a religião católica. Espero não ser um grande pecador, mas não tenho uma prática religiosa normal. Não vou à missa, não me confesso. A não ser que se seja tocada por uma fé muito grande – que não tenho – não sei se alguém pode estar plenamente convencido de que Deus existe. Em matéria religiosa, as dúvidas são para mim mais importantes do que as certezas. Mesmo que Deus exista, os limites ao conhecimento não nos permitem perceber o que é isso de Deus. Ou se Deus se importa connosco. A resposta dos católicos é Jesus Cristo, que se fez homem e era filho de Deus. Tenho consideração por alguns grupos religiosos católicos, mas não por todos.

 

É um católico atípico.

Sou muito atípico. Sou culturalmente católico e tenho muito respeito por quem acredita. Dei aos meus filhos educação religiosa, dei-lhes essa oportunidade, não os isolei. Mas eles fazem o que entenderem. Têm os instrumentos para poder recomeçar a qualquer altura, se assim o quiserem.

 

As amizades com Guterres e Constâncio…

Não tem nada que ver com a Igreja Católica.

 

A estrutura pessoal de todos é a de um católico. Guterres fez voluntariado desde cedo. Estiveram ligados à Sedes – como o senhor.

Nesse sentido, sim. Mas não nos encontramos na igreja – é o que quero dizer. Conheci-os relativamente tarde.

 

Doutorou-se com 31 anos e foi catedrático cerca de dez anos mais tarde. O que é que representou para si e para o seu pai ter conseguido isso?

Era o que ele gostaria de ter sido. O meu pai foi um aluno excepcional. Não foi investigador porque não pôde. Isso marcou-me muito, e a ideia de que temos de criar oportunidades. Não há nada mais cruel do que deixar uma pessoa perder oportunidades. Uma perda para ele e para o país. Julgo que temos que acompanhar os filhos dos mais pobres, para que eles não sejam pobres como os pais. O ensino devia ter esse papel; infelizmente não tem tido.

 

Está ligado à Sedes por essa razão? Há em si uma tentativa de vingar e honrar o seu pai.

Estou na Sedes por dever cívico. Faz parte da minha educação. Mas não vivo a pensar o que é que o meu pai faria se estivesse nas minhas circunstâncias. Penso mais nos meus filhos, no exemplo para os meus filhos. Mais vale quebrar que torcer é uma ideia que me acompanhou e tenho procurado passar-lhes isso.

 

À luz desse “mais vale quebrar que torcer”, não é tão estranho assim que tenha saído do governo ao cabo de quatro meses…

Provavelmente tem razão, a conclusão é sua, mas não devo falar desse período. O que digo e faço é usando informação pública, nunca refiro conversas que tive nessa altura. Tudo o que tem saído, não tem sido pela minha boca. Nem sequer é para as minhas memórias porque não tenho intenção de as escrever – não guardo papéis, não tomo notas, não tenho sequer instrumentos para as escrever.

 

Envelheceu nesses quatro meses?

Nesses quatro meses vi um lado da vida que conhecia mal. Uma coisa é conhecer as pessoas, outra coisa é estar no governo. É como a Alice no País das Maravilhas quando passa o espelho: o mundo altera-se. Embora eu conhecesse as pessoas: estive no inner circle dos Estados Gerais do António Guterres, não participei senão episodicamente nas Novas Fronteiras mas sempre que me pediram dei o meu contributo ao Partido Socialista. Aliás, estive filiado a seguir ao 25 de Abril.

 

Nunca teve verdadeiramente ambição política?

Não. Acho que uma pessoa, se tem ambições políticas deve inscrever-se num partido. É aí que se faz a carreira política. O que é diferente de dizer que no governo têm de estar só pessoas do partido – não é verdade. Mas nunca fiz nada nem me posicionei com o fim de ser convidado para. Tal como tenho uma carreira académica, e para isso doutorei-me, fiz o meu trabalho na universidade até ser catedrático, se uma pessoa tem ambições de ser alguém na política, mete-se num partido e vai a votos.

 

Aceitou, apenas, por dever cívico?

Por dever cívico e porque achei que podia fazer diferente e melhor. Por ter uma ligação com o Partido Socialista e porque estavam lá pessoas que conhecia.

 

Arrepende-se desse passo?

Se eu soubesse o que sei hoje, obviamente seria irresponsável uma pessoa aceitar o cargo de Ministro das Finanças para estar lá quatro meses. Fui, honestamente, para quatro anos. Mas também fui com a disposição de, se necessário, estar apenas quatro meses. É a única maneira de se ser ministro.

 

Desde o princípio, tinha decidido que não engolia sapos?

Não ia fazer papel de bobo – julgo que não fiz, nem ninguém me acusa disso, nem estou a acusar os outros de o terem sido. Essa é a minha postura e ali não foi diferente. Não estou a acusar ninguém e conheci pessoas com imaginação, capacidade de trabalho, espírito de sacrifício – não foram só más experiências.

 

Fiz uma pesquisa no Google sobre a sua saída. Fala-se muito da polémica resultante da acumulação da reforma do BdeP com o ordenado de ministro. A questão está estafada. Mas interessa-me saber até que ponto o incomodou o facto de a sua imagem pública ter sido maculada.

É evidente que foi um momento difícil. Os meus amigos não alteraram a imagem que têm de mim – isso era o mais importante. Sempre tratei desse problema com as pessoas relevantes – desde o primeiro-ministro – com toda a transparência. Ninguém foi surpreendido. Deixe-me contar o seguinte: a minha saída do BdeP… Tinha feito um trabalho de adaptação de todos os departamentos que estavam sob a minha supervisão à nova realidade.

 

O período era o de transição do escudo para o euro. Três anos antes, três anos após.

As fronteiras entre departamentos e a sua organização alteraram-se todas nesses seis anos e ficaram aptos à nova realidade. Tinha feito um trabalho interno de preparação do banco na área da política monetária e na gestão de reservas, que muito me orgulha e que pôs o banco numa posição de grande prestígio dentro do sistema europeu de bancos centrais. Tinha consciência de que tinha feito um bom trabalho. O governador queria que eu continuasse; embora tivesse esse direito, a ministra [Ferreira Leite] decidiu que não continuaria. Podia ter sido reconduzido no tempo do Guterres e não quis.

 

Porquê?

Estávamos à beira de eleições e achei que podia macular o BdP nomear um vice-governador numa altura em que o governo era mais de gestão. Falava-se muito de jobs for the boys e eu não era boy de ninguém. E gostaria de ter sido reconduzido – não escondo. Saí mal. Somos um país pequeno, e quando alguém tem um trabalho reconhecido internacionalmente, como era o meu caso, é muito importante haver continuidade. Os meus colegas vice-governadores conheciam-se há 20 anos. Chegar lá uma pessoa mais nova do que eles, um outsider…, é muito difícil entrar nesse clube – especialmente vindo de um país tão irrelevante quanto Portugal.

 

Sentiu como sendo uma injustiça não lhe renovarem o mandato?

Mais do que uma injustiça, foi mau para o país, foi uma estupidez. É importante que estes mandatos perdurem para além dos governos. É por força do prestígio das pessoas que lá estão – e não pelo país, que é muito pequeno­ – que Portugal pode ter a capacidade de influenciar alguma coisa. Mas já passou. A controvérsia: foi muito desagradável, houve muito populismo e pessoas interessadas naquilo. Eu não fui tido nem achado na alteração do sistema de reformas – ao contrário do que foi dito, maldosamente. Nem sabia os detalhes.

 

Estava a tentar perceber como isto o corroeu.

Foi atirada muita lama para cima. Claro que não gostei.

 

Este episódio foi fundamental para a decisão da sua saída?

Não, não foi. Um dia a gente pode conversar sobre isso…, daqui a uns anos. Implicaria a conversa de coisas que se passaram e cujos contornos nem eu conheço totalmente. Tudo aquilo foi politicamente motivado por razões mais obscuras e estranhas. Devo dizer que foi mais doloroso para mim, e exigiu mais disciplina, a introdução de certas medidas – o aumento de impostos ou o congelamento das progressões dos funcionários públicos, por exemplo – do que o outro aspecto. Fez-me dormir muito pior.

 

Explique isso melhor.

Tenho uma relação com o poder estranha. Acho que tenho imaginação para dissecar um problema e propor uma solução diferente. Há outras coisas em que sou inapto: não sou capaz de cantar, nunca soube jogar futebol. Uma pessoa com este espírito precisa de poder. Para poder resolver. Mas o poder em si é uma coisa que limita a minha liberdade. Saber que há pessoas dependentes de mim, além dos meus filhos, é uma coisa de que não gosto. Ser livre é não ter ninguém dependente.

 

O poder, ao mesmo tempo que lhe dá a liberdade de resolver, retira-lhe liberdade de viver.

Em certo sentido, é isso.

 

O que se diz de si, numa linha, é que é filho de um militar. Um filho seu diria que é filho de um académico? É assim que se vê? É assim que quer ficar?

Eu sou um professor da universidade – é esse o meu cartão de visita. Às vezes apresentam-me como ex-ministro. Ser ex-ministro, como ser ex-vice governador, faz parte do meu currículo, mas não faz parte do meu cartão de visita. Sou professor de economia, essa é a minha vida. Há uns tempos entrevistaram a minha filha sobre mim. Disse coisas engraçadas: que lhe transmiti princípios muito estritos, mas que sempre tive tempo para ela. Que lhe disse muitas vezes que não. Acho que ela apanhou a ideia…

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2008