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Anabela Mota Ribeiro

Jorge Armindo

12.11.14

Conhece o Jorge Teixeira? O Jorge que praticava desporto, que era um líder do seu grupo, que comia como os negros a moamba, que não se deixava influenciar a dar umas passas de liamba. O Jorge que tinha uma garridice que só África consente e que teve que limitá-la, um pouco, só um pouco, neste sítio onde nasceu, mas de onde era pouco. Ajustar a “escala de valores” – para usar a expressão dele. Valores estéticos. O Jorge “realmente malandro”, a quem o pai punha rédea curta mas que chegou a dar aulas na Faculdade de Economia do Porto, e se preparava para fazer o doutoramento na Escócia.

Mas foi no regresso de umas férias em Espanha que decidiu mudar de vida. Estava a começar a ser o Jorge Armindo – que conhece bem, ou julga que conhece. Ele vinha de um parque de campismo, onde o dinheiro era esticado para dar para todos os almoços. Guiava um carro que fazia um repuxo em certas partes do caminho. Passaram 30 anos, e Jorge Armindo fala-me dos projectos turísticos nos quais está envolvido, pergunta-me se eu gosto de spas, oferece boleia num carro que impressiona. É outro homem? Não! É outra vida, mas não outro homem.

Jorge Armindo tem do tempo em que era Jorge Teixeira uma certa rudeza que não quis polir. Demasiado orgulhoso para isso. E o sangue palpita demasiado nas veias, na cara que se faz vermelha, para o conseguir amansar. Houve uma “evolução” natural: ele agora sabe quais são os melhores tintos que se produzem no país, e não usa joias que se topem à vista desarmada. Mas não resiste a mostrar o cordão que usa ao peito quando lhe falo da pulseirinha da África do Sul, o penduricalho que reluz na fotografia que leva para me mostrar. Ele agora compra não só a Paula Rego ou a Vieira da Silva, consagradas e valiosas, mesmo que não interesse nada o que lá está representado, mas também a Menez e o Ângelo de Sousa – já não é para todos.

Há umas semanas almocei com o Jorge Armindo que todos conhecem e que eu conhecia das fotografias. Apareceu ao meio dia e meio, como combinado, e notou logo que estava 17 kilos mais magro! Grande sacrifício, desde Novembro passado. Não me recordo agora se comeu carboidratos ao almoço, mas disse-me que aprendeu a gostar de legumes. O rodovalho era óptimo. E ele portou-se como um anfitrião que conhece todos os cantos à casa – o pessoal do restaurante, respeitosamente, “o senhor doutor isto, o senhor doutor vai desejar aquilo”.

Pelo meio, houve alguma bazófia endinheirada (como quando fala da casa de Canelas, com governanta e jardineiro, uma casa como deve ser). Mas creio não estar a ser ingénua quando afirmo que, apesar desse lado, que muitos reputariam de boçal, há nele uma paixão e uma espontaneidade que deixaram de se fabricar. Um dia um administrador de um banco disse-lhe que ele parecia uma “rock star”; nunca se esqueceu disso. Jorge Armindo tem orgulho na sua têmpera. Para quê ser dissimulado quando se está bem na sua pele? Riso alarve, mãozinha sapuda? Eu vi nele um trabalhador infatigável, uma pessoa que gosta de viver, e um homem que não desiste de um certo idealismo.

Meu caro leitor, apresento-lhe o Jorge Armindo, que em tempos foi Jorge Teixeira.

  

Começamos pelo seu nome? Muita gente pensa que Armindo é apelido, mas é, como Jorge, nome próprio. Por que é que se chama Jorge Armindo?

Sempre fui Jorge Teixeira. Eu vivi em Angola. Nasci no Porto, mas fui para Luanda com seis anos. Fiz muito desporto: hóquei em patins, karaté, ginástica aplicada, futebol de salão, e sempre fui Jorge Teixeira. Voltei para o Porto, fiquei a dar aulas na faculdade, e tinha um colega chamado João Teixeira. Aos poucos, as pessoas começaram a chamar-me Jorge Armindo.

 

Nunca contrariou essa tendência?

Não. O meu pai chama-se Armindo, de primeiro nome... Comecei a gostar de ser Jorge Armindo. Com a evolução das minhas relações sociais, fiquei Jorge Armindo. Até hoje.

 

Digamos que se formou em Angola. É como se tivesse nascido em Angola.
É bom dizer que durante o tempo que estive em Angola, só cá vim uma vez. Entre os seis e os 23 anos, só vim uma vez. Agora, vou a Angola com frequência.

 

E tratam-no como um deles?

Exactamente. Por razões que têm a ver com a grande prudência que caracterizou o meu pai, fui para Escola Técnica. O meu pai quis que eu tirasse um curso que me permitisse trabalhar, (no caso de não poder tirar um curso superior). Uma enxada, como ele próprio dizia. Convivi muito com a população africana, que frequentava mais esse tipo de ensino. É uma grande surpresa até, para muitos amigos que tenho em Angola, quando lhes digo que afinal nasci no Porto. Consideram-me um verdadeiro angolano.

 

Se a intenção, modesta, era dar-lhe uma enxada, os voos para os quais estava a ser lançado não eram tão ambiciosos quanto a vida revelou que podiam ser. Volta como um vencedor... Esse sentimento acompanha-o no regresso àquele lugar?

Não, não. Convivi com pessoas de todos os extractos sociais. Desde comer moamba, com pirão, que aprendi a comê-la, com os meus colegas africanos, até amigos que sempre tive dentro do bairro de Alvalade, o mais chique de Luanda.

 

Situe-me socialmente a sua família. O que é que o seu pai fazia?

O meu pai era contabilista. É com orgulho que vejo ainda dois ou três prédios emblemáticos da cidade de Luanda, como o Hotel Presidente... Eu tinha os meus oito anos, nove anos, e não havia os computadores; na contabilidade havia livros muito grandes, usava-se o sistema americano. O meu pai levava-me para as fundações desses prédios, aos sábados, apenas para me ocupar. Era director de uma organização muito grande, e depois fazia aquilo a que chamávamos “escrita”, para ter os seus extras. A minha mãe foi sempre dona de casa.

 

Ainda não tinha falado da sua mãe. E desde o início do almoço mencionou umas quantas vezes o seu pai. A referência forte é ele?

É. Estão os dois vivos, felizmente. A minha mãe acarinhava-me, preocupava-se comigo, às vezes até em excesso. O meu pai passava-me regras. Aos 23 anos, quando me formei, é que percebi como se esforçou para ser tão espartano comigo. (Eu era realmente um rapazinho difícil). Procurou transmitir-me valores que são, para mim, muito importantes, de ordem ética, de trabalho, de empenhamento. E de exigência, exigência comigo próprio. Quando fiz 18 anos, o meu pai disse-me: “Quando quiseres tirar a carta de condução, tens que ir trabalhar para a tirar”. Não é que não ma pudesse dar... É curioso, trabalhei para a carta num colégio, que era do Horácio Roque.

 

O mundo é pequeno! Foi quando se formou que percebeu o quanto o seu pai gostava de si?

Sempre percebi que o meu pai gostava muito de mim. Por exemplo, se estivesse com febre, se tivesse a mínima coisa, a minha mãe já não dormia com o meu pai: era eu que dormia com o meu pai. Era aí que o meu pai era o homem que realmente é: humano.

 

Tem uma irmã dois anos mais nova. Mas a atenção recaía sobre si?

Era só porque eu era mais malandro. Eu era muito virado para participar em tudo. Sempre tive características de liderança, no meu bairro, entre os meus amigos.

 

Os seus amigos, aqueles com que jogava à bola, eram negros, e de todas as classes sociais? Não me diga que não havia descriminação...

Também havia uma média burguesia de cor, e esses integravam-se neste género de pessoas: davam festas, iam às farras, juntavam-se nos cafés e esplanadas. Andávamos de mota, tínhamos interesses comuns. Não havia qualquer questão de natureza racial. Era a questão de natureza económica que fazia com que os mais desfavorecidos estivessem afastados, como se costuma dizer, até do alcatrão.

 

Rédea curta e uma enxada. Para fazer o quê à vida?

O meu pai tinha a preocupação da segurança. A estabilidade e a família eram valores do meu pai. O brio profissional, o ser competente. Sempre fui muito ambicioso em termos de metas. A questão financeira foi sempre uma consequência do meu sucesso profissional.

 

Numa linha: o objectivo era o sucesso e não o dinheiro?

Exactamente.

 

Que depois pode traduzir-se, e traduz-se, normalmente, em dinheiro.

Traduz-se normalmente. Muitas vezes transmito mesmo isto, quer ao meu filho, quer aos meus amigos. Tenho dois filhos. Tenho uma mais pequena, fez agora oito anos, e um filho já com 29 anos. São de dois casamentos.

 

O dinheiro não é o mais importante. Mas não estou a falar com um idealista.

Sou é um idealista com os pés mais assentes no chão. Não podemos pensar em determinados ideais da mesma maneira que pensámos aos 20 anos. Mas dentro da minha escala de valores, a honestidade é o primeiro.


Perdoe empregar estes termos, mas o pior que podiam dizer a seu respeito era que “é gatuno, é corrupto”?

Era! O meu pai podia ter sido um homem muito rico, se tivesse feito o que fizeram muitos portugueses que estavam em África; nunca passou aquilo que eram os seus critérios... éticos. Claro que hoje considero-me um comando. Sou uma espécie de “ranger” das empresas, a quem a vida obrigou a não ser ingénuo. De facto, não sou ingénuo quando tenho que lutar – eu luto. Tive que aprender isso, por exemplo, na Portucel.

 

Foi um dos principais responsáveis pela transformação daquilo que era uma empresa forte, mas de dimensão familiar, numa grande empresa internacionalmente reconhecida. A verdade é que não era da família. Agora é casado com uma sobrinha do senhor Amorim... É o seu segundo casamento.

E é na altura em que saio para a Portucel. Fui para a Portucel em 97, e mantive-me no Grupo Amorim com um calendário independente da minha vida pessoal. Não acho negativo o que vou dizer, não o digo em tom depreciativo, e tenho muito gosto que a minha filha seja Amorim: mas os Amorins são um clã. Apesar de tudo, à medida que as famílias crescem, o espírito do clã vai-se passando mais para o núcleo familiar de cada um. Mas continua a existir.

 

É verdade que entrou para o grupo Amorim porque respondeu a um anúncio de jornal?

É. Fui recebido pelo Sr. Américo Amorim, que eu nem sabia quem era. Em 1981, mais ou menos no mês de Outubro. Eu tinha 29 anos e o Sr. Américo Amorim 48 ou 49. Trouxe-lhe esta fotografia que descobri nesta mudança de instalações... [mostra-ma, sobre a o peixe do almoço]. África do Sul. Andei seis anos, a ir de dois em dois meses, a sair daqui domingo à meia-noite e a voltar terça. Saía de lá às oito da noite, chegava cá de madrugada e ia trabalhar. Trabalhei que nem um cão! Mas agora estou a trabalhar mais ainda, portanto, está a ver... A minha mulher pensava que eu ia desacelerando, mas eu vou acelerando.

 

Américo Amorim está igual ao que é hoje. E o senhor parece um miúdo!

Nessa altura já era vice-presidente do grupo Amorim.

 

Conte-me essa ascensão devagar! Foi recebido pelo Sr. Amorim um rapaz de 29 anos. Imaginou que aquele encontro ia mudar a sua vida?

Não.

 

Por que é que concorreu? Queria ganhar mais? Queria deixar a faculdade onde dava aulas?

Casei-me aos 23 anos, e a minha intenção era seguir a carreira académica. Cheguei a trabalhar a inscrição para ir para a Escócia fazer o doutoramento! Estive quatro anos a dar aulas e a fazer escritas, num gabinete que se chamava Gatec, Gabinete Técnico de Contabilidade. E fazia a contabilidade dos Armazéns da Portela, de uma empresa de caldeiras...

 

Tal como o seu pai...

Tal qual o meu pai, para poder completar o ordenado. Dava aulas em Oliveira de Azeméis, na escola secundária, e dava aulas na faculdade, onde não me pagavam, porque, [apesar de contratado], não tinham orçamento. Sempre gostei da parte da gestão, da contabilidade e pedi ao Dr. Baganha e ao Dr. Jesus que me arranjassem estágios não remunerados. Para aprender mais. Fiz uma série de cursos extra-curriculares. Mas aos 29 anos tive a minha prova de fogo. Um convite para vir a Lisboa...

 

Vir a Lisboa, nesse tempo, era equivalente a ir, nos dias que correm, a Nova Iorque...

Fazer uma palestra no Hotel Altis, em que um dos oradores veio a ser Primeiro-ministro: o Prof. Cavaco Silva. Gastei mais de 50 horas a preparar aquela intervenção! E o Prof. Rogério Martins, que era conhecido por ser um tipo muito irónico, tinha sido ministro do governo do Marcelo Caetano e tal, escrevia, escrevia, escrevia. Eu via-o a escrever e pensava: ”Vai atacar-me”. Depois, fala o Prof. Rogério Martins e diz: “Vou limitar-me a fazer uns comentários sobre a brilhante exposição daquele jovem. Quando era da idade dele, ainda preparava as conferências, agora não”. E é verdade, que hoje acontece isso comigo.

 

Esse foi um dos momentos altos da sua vida?

Foi. Estava a contar-lhe como é que decido alterar a vida. Fui fazer umas férias com um casal amigo, para o parque de campismo de Vigo. Eu tinha comprado um carro que levava mais água que gasolina!, tinha que andar com um garrafão de água, que aquilo fervia... Nessa idade tudo é divertido. E então, um colega que estudava bastante comigo, filho do dono da escola de condução Guedes Vieira, vendeu-me um Volkswagen que já tinha feito a escola de condução toda!

 

Que carro tem agora? Só para saber...

Tenho um Mercedes S 320. De facto, fui progredindo, nos automóveis. Eu era muito orgulhoso. O meu sogro era uma pessoa que tinha posses, e até o meu pai; mas nunca quis um escudo nem dos meus pais, nem dos meus sogros.

 

Por que é que era tão orgulhoso?

Não sei. Olhando para trás, acho que levei essa minha maneira de ser talvez demasiado longe.

 

Então, foi passar férias a Vigo.

Fui para o campismo, foi a primeira e a última vez. Íamos para ficar 15 dias, mas no final de, para aí, 12 dias, tinha que contar o dinheiro para ir almoçar. Eu já tinha um filho...

 

Nunca tinha ido ao estrangeiro? Nunca tinha viajado?

Tinha feito uma viagem, com os meus pais, pela Galiza. E [na viagem de regresso ao Porto], vim a pensar nisso: estava a formar alunos que passado uns tempos estariam melhor do que eu. Não era uma questão de ter que lhes ganhar, mas de ter que melhorar as minhas condições de vida. E fui responder a uns anúncios. Não fui logo para o Amorim. Primeiro estive dois anos numa empresa chamada Polinox. Era na zona industrial, perto da Faculdade de Economia – que eu não queria largar a faculdade. Ainda estou a responder àquela sua pergunta...

 

Sobre o que o fez mudar de vida. Enquanto isso, deixe-me fazer-lhe uma pergunta chata: o facto de a família da sua primeira mulher ter posses dava-lhe uma espécie de raiva? Que no íntimo se traduz da seguinte maneira: “Não são mais do que eu, vou conseguir ter mais do que eles”.

Não, não. Fossem quais fossem as circunstâncias, sempre prezo a independência, não gosto de ficar em dívida para com ninguém. O que não toleraria é que pudessem dizer de mim que só cheguei a determinado sítio porque alguém me ajudou. Ai isso não! Ainda hoje digo, quando sabem que a minha mulher é Amorim: “Mas eu já era vice-presidente do Grupo quando me casei”.

 

O encontro com o Sr. Amorim.

Respondi ao anúncio. Vi que era uma empresa exportadora, o que mais me motivou. E ele, ao fim de 15 minutos estava a dizer-me: “Você vem trabalhar comigo. E, primeiro, não é por ser economista, segundo, muito menos por ser lá assistente da faculdade. Você vem trabalhar comigo porque percebe a minha linguagem”.

 

O que é que ele queria dizer com isso?

O Sr. Américo Amorim é um homem com uma força muito grande, cheio de ideias, mas um instintivo. Ele precisava de filtrar algumas ideias. E precisava de alguém que não andasse a atrapalhá-lo com muitas contas. Descobri em mim algo que eu próprio nunca valorizei muito. Eu achava-me bem preparado, até podia ser doutorado, mas nunca valorizei o ser empresário, o ter características que fui vendo que tinha. O Sr. Américo Amorim sempre me deu asas para voar.

 

Chama-lhe sempre e pensa sempre nele como o “Sr. Américo Amorim”?

Exacto.

 

Quando fala com a sua mulher diz “o Sr. Américo Amorim”?

Não, digo “o teu tio”.

 

Com a sua filha diz...

O Tio Américo. Habituei-me a chamar-lhe Sr. Américo, até podia dizer Tio Américo.

 

Ele começou a chamar-lhe Jorge Armindo?

Jorge. Ou Jorge Armindo.

 

Quanto tempo demorou a ser uma pessoa indispensável no grupo?

Seis meses. Vou dizer-lhe: entrei realmente a ganhar muito dinheiro, naquela época. Três vezes mais do que ganhava.

 

Atirou um número, a ver se colava?

Eu sabia que estava a fazer uma opção, que ia largar coisas em que estava a trabalhar – por exemplo, o gabinete que tinha com um colega. Que tinha que largar de vez a ideia do doutoramento. Percebi logo, com a maneira de ser dele, que aquilo ia ser um projecto...

 

Para a vida.

E que ia crescer muito. O Sr. Amorim só me disse assim [a propósito do ordenado]: “Não é mau...”. E outra coisa: “Qual é a minha posição no organigrama?”. E ele: “O que é isso? Aqueles desenhinhos que vocês fazem? Olhe, você um dia faz um, agora, fala comigo”. Apresentou-me os irmãos, os tipos mais antigos do grupo, que eram muito bons técnicos, e está feito. Andei para ali um mês ou dois a ver os papéis passar por cima. Nunca me queixei.

 

Como é que cresceu tanto? Dizem que o seu estilo não é o das grandes convulsões, da força que vem de fora, abana e destrói tudo. O seu estilo caracteriza-se por conseguir que o funcionamento da máquina se adapte a si, a partir de dentro. E a seguir, imprime o seu modo de fazer.

É isso. Se vir que há personalidades que verdadeiramente não aderem, aí, tenho que entrar a matar. Isso é que fui aprendendo ao longo da vida. É a mesma coisa que ter uma equipa de futebol em que há grandes valores, mas o tipo não acredita na técnica do treinador... [Naquele tempo], comecei a estudar bastante a parte da legislação e a descobrir que havia coisas que se podiam fazer que não estavam a ser feitas. Ele começou a pôr-me mais trabalho, mais trabalho, mais trabalho. Eu conseguia responder, trabalhava 14 horas, 15 horas. Ainda hoje, durmo quatro ou cinco horas por dia.

 

Quantos anos tinha, quando passou a administrador?

Trinta. E a vice-presidente do grupo, 36. Foi quando fomos à bolsa.

 

É claro que, apesar de ser muito bom, não era da família. Quando é que percebeu que, sendo um elemento exterior, só podia chegar até determinado ponto?

É preciso ver que a família era toda muito jovem. Este crescimento do grupo foi muito feito pelo Sr. Américo Amorim e por mim. Depois começaram a chegar membros da família que estudaram e que são válidos. Por exemplo, o António Amorim, presidente da Corticeira. Não podia haver pessoa mais certa para aquele lugar, é quase como o Paulo Azevedo na Sonae: um seguidor perfeito.

 

Não digo que não esteja lá por mérito. Digo que, apesar de tudo, tem um apelido Amorim, e o senhor não. É como se fosse uma Cosa Nostra, onde dominam as leis da família.

Eu não estou agarrado a nada material – se há qualidade que tenho, é essa. E tenho muita confiança em mim. Se calhar até tenho demais, o tempo o dirá. Não acho que não seja capaz de mudar de um sítio e vir a estar noutro similar.

 

O que é inegável é que desde logo, ganhou um poder enorme junto de Américo Amorim.

Ganhei um grande protagonismo no grupo. Tinha consciência que isso podia ser pouco confortável..., para que outro membro da família pudesse tomar protagonismo.

 

Está a dizer isso de uma maneira muito polida... E não há lugar de luta mais desenfreada e fratricida que o da família. É normal que alguém que se revela especialmente bom, numa família que funciona como um clã, desperte invejas. É preciso arranjar maneira de lidar com isso: ou se é posto fora, ou se é integrado. Portanto, casou!

Ao contrário. Ter casado com uma Amorim foi o motivo que mais me levou a pensar como é que podia sair dali sem chocar a “opinião pública”.

 

Justamente: agora que não preciso nada de vocês, e que até sou membro da família, hão-de querer-me e eu hei-de estar fora!

Se eu saísse do Grupo Amorim por querer procurar outro tipo de vida, haveria muitas pessoas a dizer: “O Jorge Armindo zangou-se, o Jorge Armindo não sei quê”. E isso era mau. Apareceu-me esse convite para a Portucel, que era para ser em part-time, e que realmente era impossível fazer em part-time.

 

Ouro sobre azul. Há quanto tempo era casado?

Vou fazer 15 anos de casado, fui para a Portucel em 97. Casei-me para aí, quê, em 92.

 

Hoje está na Amorim Turismo. É um dos quatro accionistas, os outros são Amorins. Tanto quanto sei, disseram-lhe: “Se fizer daquilo um caso extraordinário de sucesso, ao cabo de nove anos tem 25%”. Já tem 25%?

Eu comprei-os.

 

É o bolo da sua vida, confesse... Não queria que lhe viesse parar às mãos, se não tivesse que ser conquistado? Vai demorar quanto tempo a pagar esses 25%, os tais nove anos?

Os nove anos não são relevantes, ajudam a solucionar questões. Olhe, fui buscar à banca uma parte. Posso orgulhosamente dizer que fui um gestor muito bem pago. O meu percurso profissional levou-me a auferir bons rendimentos. Nunca discuti um salário. Posso ter chamado à atenção de que se estavam a esquecer de mim..., isso é normal, às vezes também me esqueço dos que falam comigo, mas nunca fiz disso um cavalo de batalha. Mas não estaria em condições de comprar uma participação desta envergadura só com aquilo que ganhei durante a vida. Tive que ir buscar dinheiro. Isso é que caracteriza a fase em que gostaria de estar: ter risco.

 

Esteve estes anos a ganhar dinheiro para outros. Podemos dizer que é rico, mas a sua fortuna não terá comparação, como é evidente, com a do Sr. Américo, que ajudou largamente a construir.

Costumo dizer que a minha fortuna está no meu telefone [tira do bolso e mostra-o].


Como assim?

A minha lista de amigos que acreditam em mim e que me põem dinheiro nas mãos. O meu grande risco é falhar. Não tenho um baú que me permita dizer: “Já tenho o suficiente para não me preocupar”. Não ficarei numa situação de pobreza, mas o meu nível de vida tem que ser mais regrado. O que construí ao longo da vida foi um crédito sobre as pessoas empresárias, banqueiros, sei lá, institucionais.

 

Toda a gente lhe atende o telefone?

Exacto. E quando tenho um projecto as pessoas ouvem-me e sabem que acredito no que lhes estou a expor. E posso estar errado.

 

A sua fortuna é o seu nome?

É. Não sou da classe A, mas não tive privações. E a minha mãe, coitadinha, fazia muito sacrifício, que eu era vaidoso...

 

Costurava, ela?

Não. Mas sempre arranjava dinheiro para eu andar com as “sweat-shirts” da moda e as calças da moda. Eu realmente era [vaidoso], como aliás sou, quando estou mais magro. Eu sou um homem de moda, gosto dessas coisas. Quando estou gordo, desinteresso-me. Estou num dia em que tenho o cabelo mais curto, o barbeiro aparou-mo hoje, mal porque nunca o corto tão curto. As pessoas associam-me a uma certa imagem... Eu ia a sítios, a Londres, tenho fatos feitos pelos Manéis. Eles tinham uma boutique no Porto que se chamava Cúmplice, e eu vestia-me na Cúmplice. Já não vestia um fato desta cor há anos!

 

Então porquê?

A minha mulher é mais clássica. Eu ponho-a mais moderna e ela põe-me a mim um bocado mais clássico.

 

Mas acha que esse fato é muito ousado? É um fato cinza claro. Ousada é a gravata, que é de um cor-de-rosa forte.

Esta foi a minha mulher que me ofereceu. A minha mulher já evoluiu.

 

Quando começou a chegar aos bancos, a dar-se com essas pessoas, olhou para si e pensou: "Preciso de um banho de loja! Preciso de pôr aqui um verniz burguês a atirar para o aristocrático"?

Não.

 

"Fala a minha linguagem", disse o Sr. Amorim quando o viu. Falar a linguagem da gente simples, despreconceituosa, despretensiosa, foi fundamental para conseguir estabelecer essa relação com ele?

Foi. A minha integração em Lisboa? Estou integradíssimo em Lisboa. Tenho amigos no mundo empresarial, já não são pessoas de conveniência.

 

Convidam-no para as festas?

Para as festas e para casa e para férias. Eu organizo todos os anos um almoço de lampreia e convido pessoas para a minha casa, que mantenho em Canelas (Vila Nova de Gaia); uma casa a sério, com 7000 metros quadrados de terreno, árvores, tenho uma governanta, um jardineiro. Posso dizer que as pessoas que estão hoje nos lugares mais cimeiros da economia vão a Gaia para estar connosco. É já uma coisa para 140 pessoas.

 

[O empregado pergunta pela sobremesa. Jorge Armindo pede chá Earl Grey, porque só bebe whisky ao fim-de-semana e não gosta de café.]

 

Os amigos formam um clã alternativo, alargado e assente em regras diferentes. As pessoas conhecem-se, amparam-se, não se traem. É este o espírito?

A traição é punida. A mim preocupa-me muito a lealdade. Quem é traiçoeiro é punido pela sociedade. Vai acabar por cair. A lealdade é que é um sentimento nobre. Eu posso ser prejudicado, mas sou prejudicado uma vez só, porque aquilo torna-se tão visível que a [notícia da] traição espalha-se. A traição, não repugna ser denunciada.

 

Que características suas é que o podem fazer perder?

Fazer perder, a mim?

 

Todos temos os nossos telhados de vidro...

Telhados de vidro, também os tenho. Só não são é do mundo dos negócios.

 

O problema é quando eles interferem no mundo dos negócios.

Mesmo no mundo dos negócios, podemos ser mal interpretados. Tenho a consciência muito tranquila: se alguma coisa me pudesse ser apontada seria necessariamente um equívoco. E eu, quando há um equívoco, sou muito frontal e vou esclarecê-lo.

 

O que me está a dizer é que conquistou uma posição e uma independência tais, mercê do seu trabalho e sucesso, que nada o pode atingir que não seja da esfera dos negócios. É isso?

Sim. É esse o mundo em que podia ser mais penalizado. É nesse mundo que praticamente vivo. Ainda por cima sou muito transparente. Podia até dizer que tenho excesso de transparência. Não tenho preconceitos sobre a minha vida. O que é que já fui. O que é que já fiz. O que é que faço. Não tenho segredos de Polichinelo. Sei que há muita inveja, mas as pessoas não têm muitas formas de me atacar. Quando alguém pretender fazê-lo, acaba por encontrar algo que não era tão sigiloso como poderia pensar.

 

Há uma pergunta de atrás que ficou por responder: não teve necessidade de pôr um verniz burguês. Confiava em si o suficiente para ser como é? Achava que tinham de “gramá-lo” sem refinamento?

Não sou hoje o que era com 30 anos. É uma evolução natural.

 

Os homens hoje não usam jóias, o senhor já não usa jóias. É considerado parolo. Na fotografia da África do Sul, lá estava, pendente, a pulseirinha...

[Jorge Armindo olha para a fotografia novamente, e depois abre um botão da camisa para mostrar um cordão, com uma chapa, onde está inscrito o tipo de sangue, e uma cruz]

 

Os seus gostos também mudaram.

Os meus gostos eram mais arrojados do que são hoje. Tive que me ajustar minimamente a uma certa escala de valores que não era a minha. Ou então tinha que escolher outra forma de viver, tinha que ir para outro lado.

 

O que é que o faz fazer dieta? O que é que o faz ser vaidoso?

Dantes, eram períodos de amor-próprio. Agora, tem a ver com a idade. Comecei a tomar consciência de que já não tenho 35, 40 anos.

 

Estava a dizer-me que só foi gordo depois dos 30 anos.

Sim. Mas a primeira vez que achei que estava gordo tinha 80 quilos, menos do que agora. Foi um crescendo. Nesta última fase, ultrapassei os 100 quilos. Só comecei a pensar nisso [na morte, e nos problemas de obesidade ligados à idade] quando percebi que, apesar de ter uma natural tendência para me sentir mais novo, isso representa uma certa inconsciência. Sinto-me mais novo porque convivo com gente mais nova, tenho uma filha pequena. Mas quando caio na realidade e vejo os meus pais, na casa dos 80, percebo que tenho que viver com qualidade. Tenho muito para dar, não devo ultrapassar certos limites. É claro que, se Deus quiser, hei-de morrer a trabalhar.

 

Que nome é que a sua filha usa?

Mafalda.

 

Teixeira ou Amorim Teixeira?

Teixeira.

 

É por ela, é pelo seu filho que fez tudo o que fez? O que é que justifica este “upgrade”? É feito em nome de quê?

Nem nós próprios sabemos muito bem porquê. Mas quando somos obrigados a reflectir e procuramos ser honestos, aquilo que seria tentado a responder é que faço isto porque é aquilo que gosto de fazer. Devo dizer-lhe que houve anos em que não fiz férias, aproveitei os meses de Agosto para organizar o grupo. Cheguei a dar acções de formação nos bancos, com a administração dos bancos, sobre finanças internacionais. E na altura houve um administrador que me disse: “Quem não o conhecer, não acredita que você é o que é.”

 

Porque é que ele disse isso?

Porque eu estava com uma camisa Enrico Coveri que adorava, com o meu cabelo habitual, com uma gravata comprada na Cúmplice e um fato que mais tarde a minha mulher fez desaparecer. “Você parece uma “rock star””, disse ele. Nunca mais me esqueci. Tinha 35 anos.

 

Esse lado exuberante, vem de Angola?

Vem. A primeira entrevista com o sr. Américo Amorim, fi-la com um fato de linho branco. Voltando à sua pergunta: faço as coisas com paixão. Com muita paixão. E habituei-me a nunca fazer uma coisa só. O crescimento do grupo Amorim. Eram 120 e tal empresas. Reorganizá-las. Reestruturá-las. Vender parte. Fazer. Andar para cima e para baixo. Portucel, mesma coisa.

 

Palpita-me que faz isto tudo para o seu pai.

Tenho três grandes referências profissionais. O meu pai. Até aos 78 anos, percorreu toda a evolução da contabilidade. E não cedia a coisas fáceis, a dinheiro fácil. A outra grande referência é o sr. Américo Amorim. Pela humildade que ele tinha, grande dedicação ao trabalho, o não ter problemas em perguntar, querer compreender, a forma como se organizava para dominar a informação – ele sempre soube que o segredo era a informação. É um orgulho ter estado tantos anos a trabalhar com uma pessoa assim. E o Prof. Baganha. Já falecido, com quem aprendi a isenção.

 

Porque é que se comove tanto quando fala do Prof. Baganha? Não aconteceu com os outros dois... É porque já não está vivo?

É, é. Havia facções, e eu não estava na lista dele. Na lista havia um miúdo mais ou menos da minha idade, 24 anos, mas no fim do ano escolheu-me a mim. Trabalhei com ele mais de 14 anos, na Faculdade.

 

O pai verdadeiro, o Sr. Amorim, que foi o pai profissional, e o Prof. Baganha, pai numa fase da sua vida em que ainda estava a ser formado. O que há em comum nos três homens que mencionou é o facto de funcionarem como mentores.

Sim. Sou um “workaholic”, mas nunca deixei de ser um indivíduo completamente integrado na sociedade. Eu era aluno de primeira fila. Sempre fui um contestatário, mas nunca faltava às aulas. E não sou influenciável. Sou do tempo da liamba, em Angola, mas nunca experimentei. Nunca tive vícios desses que se apanham na juventude. Mas apanhei vícios da idade adulta: gostar de bons vinhos, de bons whiskys. Tenho um “hobby”, até sou conhecido por isso, que é ser um grande dançarino. Essa é a minha parte lúdica mais importante.

 

Mas quê? Danças de salão?!

Eu danço por instinto. Consigo dançar tango só de ouvir a música e as pessoas acham que andei numa escola de tango. O outro “hobby” é o ski.

 

Tudo sempre em grupo. Quem é o seu melhor amigo? O amigo a quem telefona a dizer: “Estou de rastos”?

Eu nunca estou de rastos. Sou muito optimista. [risos] Sabe que não sou capaz de dizer quem é “o” grande amigo? Tenho assim uma vintena, ou mais. Mas vou voltar ao tema. A principal razão que me move é esta que lhe fui transmitindo, mas ao longo da vida vamos criando outras motivações. As fasquias financeiras são muito mais altas do que eram quando tinha 30 anos, mas nunca me vou dirigir apenas por razões de natureza financeira. Até lhe digo mais: se tiver, e espero ter, uma independência muito confortável, quer dizer, se vier a ser mesmo rico, irei pôr as minhas energias ao serviço de causas em que possa realizar-me na minha componente idealista.

 

O que é que pensa deixar aos seus filhos?

O mais importante que lhes posso deixar é um bom nome. Um nome sem mácula. É muito importante esse legado. Também é justo deixá-los confortáveis. Mas, entre isso e continuar a esgadanhar só para ter mais uns milhões, muito honestamente prefiro voltar à minha missão.

 

Qual é a sua missão?

É ensinar, é construir. Não queria dar a ideia de que sou filantropo. Não sou. Onde tenho que defender a rentabilidade, tenho que defender às vezes coisas que me doem. Mas tenho de as fazer. Compondo aquelas três figuras que evoquei, diria que neste momento tenho que ser mais Américo Amorim, mas temperado pelas outras duas pessoas que também me guiam. E espero ter a coragem de continuar a ser eu próprio.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2007