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Anabela Mota Ribeiro

Rui Tavares (2012)

25.11.14

Vamos lá trocar umas ideias sobre a Europa. E esquecer a politicazinha nacional, a disputa interpartidária, os anúncios pe-cu-li-a-res (estamos do domínio da descrição e do eufemismo) de Vítor Gaspar, a face opaca mas prestes a escangalhar-se de Passos Coelho, a face igualmente opaca mas com-sorte-ainda-lá-vou de António José Seguro. Vamos lá trocar umas ideias sobre quem manda realmente em nós (excluindo os bancos, que mandam pouco, mas ainda mandam, e o poder político, que manda bastante, por mais que isto seja um protectorado da troika). Vamos lá falar de Merkel e de muito antes de Merkel, da Comunidade do Carvão e do Aço, da cortina que divide a Europa, da eventual ruína do projecto desenhado sobre os escombros da Segunda Guerra. De um continente que está a dar errado. De soluções para um futuro incerto.

O eurodeputado e historiador Rui Tavares lança um livro em que disseca um mapa, uma utopia, os momentos em que os caminhos de bifurcaram, uma encruzilhada, “A Ironia do Projecto Europeu”. 

 

 

Qual foi a pior coisa que aconteceu ao projecto europeu?

Foi ter sido construído com base no medo dos políticos em relação aos cidadãos; como se o projecto europeu precisasse de uma linguagem que é sempre ínvia, oblíqua. O governo não se chama governo – chama-se Comissão. À lei europeia não se chama lei – chama-se directiva. Foi sempre fugindo ao seu verdadeiro objecto, estruturalmente.

 

Tem correcção?

A certa altura já vai num desvio demasiado grande para se corrigir com pequenos passos. O bloco orçamental é perigoso porque reforça uma dinâmica segundo a qual, para o Euro ter que viver, a União Europeia tem que morrer.

 

O que parece um contra-senso quando olhamos para o projecto inicial.

Sim, é um contra-senso porque o Euro era suposto amarrar a União Europeia de uma vez por todas.

 

Uma vez que não existe federalismo, uma vez que não existe uma Constituição, uma vez que não existe uma união fiscal, o grande cimento é o Euro.

A ideia do Euro era resolver a rivalidade franco-alemã, impedir que ela voltasse à superfície. Esse era o grande objectivo da União Europeia, no início, com [a criação da Comunidade do] Carvão e do Aço. O que Mitterrand tentou fazer no início dos anos 90, quando percebeu que era inevitável a reunificação alemã, foi que o peso de uma nova Alemanha não afastasse a Alemanha do projecto europeu, mas que a amarrasse através da moeda única.

Não era um projecto alemão. Era um projecto no qual a Alemanha entrou quase sob chantagem dos outros países. Depois fez aquilo que as pessoas fazem quando fazem uma coisa contrariadas: “Ai é?, então vai ser feito à minha maneira. Vai ser o marco para todos”. Acabou por produzir um acender dessas tensões.

 

O projecto europeu deixou de ser a resolução da tensão entre os dois pólos mais poderosos deste mapa para passar a ser entre a Alemanha e os outros. Mas os outros parecem não ser suficientemente poderosos para competir com a Alemanha.

Continuo a achar que a batalha decisiva, que, ou é resolvida ou acaba com o Euro, é entre a França e a Alemanha. Não é entre a Alemanha e o sul. A Comunidade Europeia começou no início dos anos 50 com a ideia de resolver esse problema, que tinha sido o problema da Europa desde meados do século XIX (em 1870, em 1914, até à Segunda Guerra Mundial). Foi-se firmando nos estadistas franco-alemães, e nos países que estavam no meio (Holanda, Bélgica, Luxemburgo e norte da Itália), a ideia de que resolver o problema da Europa era resolver a secular rivalidade franco-alemã.

 

E a Inglaterra?

Os ingleses também tinham interesse em resolver essa rivalidade, mas era um problema do continente, dentro do qual não estariam. Quando Churchill faz o discurso dos Estados Unidos da Europa não era pensando que a Inglaterra, que ainda tinha o seu império, estivesse dentro dos Estados Unidos da Europa.

A questão é que em 60 anos se foram dando uma série de pequenos passos que já nos levaram muito longe. Para dar um exemplo, Estrasburgo, uma das capitais simbólicas da União, escolhida precisamente porque é a cidade que mais vezes mudou de mãos entre franceses e alemães, hoje em dia não diz nada a romenos, a portugueses, a polacos. Um deputado maltês é bem capaz de ter que apanhar um avião para a Tunísia para depois apanhar um avião para Estrasburgo, tendo que sair da União para poder ir para uma das capitais da União.

 

A evolução da Europa foi tal que o que serviu em 1950 já não serve agora?

As respostas da Declaração Schuman são boas respostas dadas naquele momento histórico, mas já não servem para este. “A Europa terá que ser feita por realizações concretas, que criem solidariedades de facto”. Isto é que era o mais importante na resposta dele, não era a concretização específica entre a França e a Alemanha, o carvão e o aço.

 

Porquê?

O que está por trás disso é que a solidariedade se consegue através de realizações concretas, criando mecanismos em que toda a gente está melhor. Isso perdeu-se pelo caminho.

 

Eram precisos esses dois elementos, o da concretização e o da solidariedade. Hoje quando pensamos no projecto europeu e em Bruxelas, pensamos numa teia tecnocrata, imensa, impenetrável, num labirinto do qual não se sai para a realidade concreta, ainda que o que dali sai produza realidades concretas.

A União Europeia, já escrevia um federalista de esquerda, um euro-comunista italiano chamado Altiero Spinelli, está dividida em duas partes. Uma é a Europa dos funcionários, a Comissão, toda a gente ali à volta em Bruxelas; e outra que é a Europa dos governos. E nenhuma destas Europas é aliada dos cidadãos europeus. Às vezes, tacticamente, uma parece ser, ou a outra parece ser, mas na verdade ambas têm uma lógica divergente. Uma tem uma lógica procedimental, que é a dos funcionários; o funcionário tem o seu livro de instruções, se chegar ao fim do dia e tiver cumprido com as instruções todas, está safo.

 

Preenche um quadriculado. Como é que não se rompe a aridez evidente que está nessa quadrícula?

Porque é uma Europa de funcionários feita por gente cuja vivência e sobrevivência, todos os meses, depende de cumprir com a quadrícula.

Do outro lado, na Europa dos governos, afirmou-se a ideia de que o governo é, e deve ser, uma máquina de dar más notícias aos cidadãos – “Vamos ter que cortar, vamos ter que fazer sacrifícios”.

 

A contenção não é nova. Pelo contrário.

Sim. É uma coisa que a curto prazo pode funcionar, e historicamente já houve momentos em que os governantes tiveram que dizer: “Isto vai ser sangue, suor e lágrimas”. Mas os governos e os políticos não podem pensar que governar para as pessoas ficarem piores, governar para a austeridade, é uma coisa que se possa fazer em democracia. Daí que alguns deles comecem a namorar com ideias de suspender a democracia ou ter governos tecnocráticos.

Se nos virarmos para outras grandes esferas regionais no mundo (o Brasil, a China, a Índia, mas em particular o Brasil), a ideia é que se governa para que as pessoas fiquem melhor. O governo brasileiro é, como já foram os governos europeus a seguir à guerra, uma máquina de dar boas notícias: “Vamos fazer universidades federais para os vossos filhos poderem estudar, para saírem do ciclo de pobreza”.

 

Entretanto descobriram-se poços de petróleo. Os bens energéticos mudaram completamente o posicionamento do Brasil no mundo.

Não, não é isso. O Brasil nunca foi pobre em recursos naturais. No entanto tinha uma elite que achava que se devia governar, em primeiro lugar, para ela, e que pobre era pobre. Lula dizia a certa altura: “Governar é simples: trate-se primeiro daqueles que precisam mais”, e o resto vem por arrasto. Isto é o grande petróleo. Quando começou a crise em 2008, Lula fez algo que os europeus e americanos se esqueceram de fazer. Foi dizer: “Continuem com os vossos planos de estudo, de família, de casa. O governo vai ser um baluarte e tentar aguentar a travessia durante esta borrasca”.

 

É uma forma de dar futuro.

Dizer uma coisa destas entre os governantes do hemisfério norte, hoje em dia, é quase uma blasfémia. A Europa esqueceu-se de como escrever o segundo capítulo do crescimento que teve no pós-guerra, tal como nos Estados Unidos se esqueceram de escrever o segundo capítulo do New Deal. Já podíamos, durante os anos 80 e 90, ter pensado como fazer para escrever a sequela dos grandes sucessos da Europa (da social-democracia escandinava, da Frente Popular Francesa, dos 30 anos gloriosos de crescimento, do estado social europeu). Temos capacidades realistas para o fazer.

 

Acha que, sobretudo a Europa, não soube lidar com o cataclismo de 1989, com aquilo que foi o desmoronamento de um mundo e uma recomposição obrigatória depois da queda do Muro do Berlim?

É mais irónico do que isso. A Europa não soube lidar com o milagre de 1989. Não é um cataclismo, é uma coisa maravilhosa. Havia uma Cortina de Ferro a dividir a Europa, havia uma cidade, Berlim, dividida ao meio, e nada do que os europeus pudessem fazer ia resolver isso. Só podia ser resolvido em Moscovo ou em Washington, ou nos dois lugares. Em 1989 Berlim foi reunificada, e agora, curiosamente, é em Berlim que as soluções para a Europa estão. Há uma nova Cortina de Ferro na Europa, que é a que divide a Europa endividada da Europa do crescimento, e os europeus, que podem finalmente decidir o seu destino, não sabem para onde é que hão-de ir.

 

Esse desequilíbrio, essa desigualdade entre os dois lados da cortina são sustentáveis?

A Zona Euro está equilibrada, se tomada como um todo. É no interior da Zona Euro e no interior da União Europeia que há desequilíbrios, como há em qualquer outra unidade regional. Alguém alguma vez pretendeu que os Estados Unidos, o Canadá ou o Brasil fossem equilibrados entre si? Não podem ser. Mas o que é poucas vezes dito é que os desequilíbrios já mudaram ao longo da história. Já houve regiões que eram principalmente regiões que recebiam e que hoje são regiões que dão.

 

Isso pode acontecer na Europa? Ou o norte, protestante, poupado e produtivo, vai ser sempre o que tem dinheiro para emprestar ao sul, presuntivamente negligente, gastador e improdutivo?

Não há nenhuma razão para que o sul da Europa esteja condenado a ser subdesenvolvido em relação ao norte da Europa. A União Europeia é uma unidade regional com 500 milhões de cidadãos, maior do que os Estados Unidos, maior do que o Brasil. É verdade que é menor do que a Índia ou a China. Tem uma população mais educada do que qualquer destes dois blocos, e provavelmente mais do que os Estados Unidos. É, ex aequo com os Estados Unidos, a maior economia do mundo. É um continente que tem Londres, Paris, Berlim. Mas se desaparecessem as capitais europeias e ficássemos só com Milão, Hamburgo, Manchester, Barcelona, estaríamos mal? Este continente não é um continente que possa dar errado. É um continente que estão a fazer dar errado.

 

Retomo a pergunta inicial, mas declino-a de outra maneira: Merkel foi a pior coisa que aconteceu ao projecto europeu? O pior que aconteceu, e que faz que ele dê errado, foi a falta de desígnio, a falta de liderança, os interesses particulares que se impuseram aos do colectivo?

A Europa deixou-se prender uma situação em que os estados já não podem e a federação ainda não pode.

 

“A federação ainda não pode”?

A Europa, na verdade, já é uma federação. O que Durão Barroso anunciou – que queria fazer da Europa uma federação de estados-nações – é muito fácil, porque é o que a Europa é neste momento. Mas uma federação tem duas pernas, a do Estado e a dos cidadãos; a parte dos cidadãos está por completar. Como os cidadãos não legitimam nenhum poder político executivo (escolhido pelos 500 milhões), o pior que aconteceu à Europa não foi Merkel ou Sarkozy: foi não haver ninguém em Bruxelas que lhes dissesse: “Têm que pensar nos interesses da Alemanha ou da França. Mas eu fui eleito pelos 500 milhões [de europeus], e vou pensar nos 500 milhões”.

Para voltar ao exemplo brasileiro: foi a mesma coisa que Lula fez quando os cariocas acharam que o petróleo do pré-sal era deles. “Ok, está ao largo do Rio de Janeiro, mas eu tenho problemas para resolver que vão desde Roraima ao Rio Grande do Sul”. Isso, não temos na Europa.

 

O presidente da Comissão poderia dizer isso, fazer esse papel?

Não. Porque este presidente da Comissão foi escolhido por Merkel e Sarkozy, por pares, pelos estados mais poderosos, e está sempre numa posição de dependência em relação a eles. O que é preciso é cortar esta posição de dependência – para que haja uma democracia europeia que não seja um clube de democracias. Se não puder haver democracia europeia não teremos solução para a crise. Quem achar que a democracia está limitada às fronteiras do estado-nação, deve defender que reentreguemos o poder ao estado-nação, que desfaçamos as coisas em que já estamos amarrados uns aos outros (como o Euro), para finalmente o estado-nação resolver os seus problemas. O pior que aconteceu à Europa foi não haver esse contraponto dos cidadãos.

 

Foi isso que nos deixou sem instrumentos para lidar com a situação?

Se não for uma democracia europeia, a Europa tem três hipóteses. A de ser um cartel de estados, a de tornar-se num super estado antidemocrático e a do regresso aos nacionalismos enclausurados.

 

Qual é a mais plausível?

A Europa está a tornar-se nestas três coisas ao mesmo tempo. Está a tornar-se um cartel de Estados porque a Alemanha e a França, e alguns aliados, têm a última palavra sobre tudo, e às vezes têm a primeira palavra. Está a tornar-se um super estado antidemocrático, por exemplo, ao nível da investigação antiterrorista, da vigilância dos cidadãos (os aviões que apanham, as transferências bancárias que fazem, daqui a pouco as comunicações que fazem...). E estamos a assistir aos nacionalismos enclausurados em países como a Hungria, a Roménia, a Holanda. Tudo o que de mau podia acontecer está a acontecer agora e em simultâneo.

 

Há dois aspectos de que não falámos. Por um lado, uma falta de horizonte, uma desesperança que parece contradizer a essência da Europa. Por outro lado, e associado a isto, grassa uma desconfiança dos cidadãos em relação aos políticos, às soluções que estes possam trazer.

O que é anormal é não termos tido a clareza de espírito de perceber que a Europa tem vias de saída da crise. Não nos esqueçamos que se se perder a Europa perde-se um património da humanidade. Um património para o qual os países em desenvolvimento ainda olham como paradigma de bem-estar social, de igualdade, de mobilidade social, que funcionava, e que agora funciona menos. Há uma série de soluções que podem e devem ser utilizadas, e que permitiriam à Europa dar o salto em frente.

 

Que soluções?

Não precisamos de alterar tratados. Se os alterarmos, muito bem, mas não quero que os cidadãos europeus estejam dependentes de uma alteração feita por autorização dos governos – logo, do governo alemão. Podemos escrever um pacto democrático para a União, assinado por 200 pessoas, duas mil, dois milhões, exigindo três coisas muito simples: que nunca mais um presidente da Comissão seja eleito sem ter sido candidato. Que os candidatos à Comissão Europeia vão aos 27 países e façam em 27 universidades debates apresentando os seus programas. Temos que conhecer o candidato e um programa prévio. As pessoas têm que ter uma escolha (expansão ou austeridade?). Até podem escolher austeridade – eu não concordarei – mas tem que haver uma linha programática bem definida. E que o Parlamento Europeu não aceite nenhuma nomeação.

 

São soluções políticas. Mas há outras dimensões em jogo.

Do lado da resolução da crise económica e social é necessário fazer uma coisa que não é exactamente um plano Marshall para o sul, é uma Tennessee Valley Authority para o Sul.

 

Como é que se dá essa especial atenção aos que estão em condições mais frágeis? Na Europa existe uma atitude punitiva e moralista em relação a esses, que se endividaram, e que por isso estão nessa situação de dificuldade.

Cabe-nos, no sul, pensar num modelo de desenvolvimento para os nossos países. Há dez anos que não se fala num modelo de desenvolvimento para Portugal. Um modelo que expliquemos aos nossos concidadãos europeus e que tenha aquela coisa muito simples que faz funcionar isto tudo: que nos beneficie a nós e a eles. Tem que ser um modelo centrado em exportação de energia para o norte, que é dependente de energia (energias alternativas, energia solar) e centrado na sociedade do conhecimento. A União deve fazer o equivalente a universidades federais. Não haveria Silicone Valley sem Berkeley e Stanford. Devemos fazer universidades em Atenas, em Lisboa, em Córdova, em Nápoles, e esses devem ser os embriões dos futuros Silicon Valley europeus. Mas, como são da União, são universidades onde também estudam os estónios, os alemães, os finlandeses. São para todos. Essas pessoas, umas ficam e fazem as suas empresas aqui, outras voltam às suas terras e fazem uma rede entre novos empreendedores de elevadíssimo potencial.

 

Está a falar de uma forma mais alargada do programa Erasmus.

Sim. É um potencial enorme, tão grande quanto o potencial do mercado único, que se está a desaproveitar se deixarmos que o projecto europeu colapse antes de essa geração tomar as rédeas. Um modelo de desenvolvimento para o sul é resolver o nosso problema do Mediterrâneo Sul, do mundo árabe e do norte de África. Diz-se sempre que o sul é uma periferia; só é uma periferia se não virmos o que está do outro lado.

 

E se o centro for a Alemanha.

O sul da Europa nunca foi periferia nenhuma por estar no Mediterrâneo. Foi o centro da economia e o centro do mundo durante muito tempo. Só que neste momento estamos numa fronteira entre o Mediterrâneo norte e o sul. Se se relaxar um bocadinho essa fronteira, haverá mais troca de pessoas e de mercadorias. E nós já não somos a periferia. Somos o centro de outra coisa que tem o tipo de assimetrias connosco que nós temos com o norte.

 

Deixe-me voltar à simplicidade de Schuman, e insistir no descrédito em relação aos políticos. Precisamos na Europa, em Portugal, de outra coisa que não o patoá de que estamos todos um pouco fartos. Precisamos de um discurso simples, que tenha uma expressão concreta...

A simplicidade é uma coisa ao mesmo tempo boa e perigosa. Em época de crise, as pessoas procuram simplicidade; e, ou se oferece simplicidade inteligente, cooperação, paz, a resolução de conflitos através do diálogo; ou as pessoas acabam por optar por uma simplicidade estúpida. Foi o que aconteceu nos anos 30. Mas numa crise com esta complexidade, a simplicidade é uma necessidade no discurso político. E não iremos lá com transparência.

 

Como assim?

De que me serve a transparência em relação a um produto financeiro cujo prospecto tem 14 mil páginas e que nunca conseguirei entender? De que me serve a transparência quando o Google Office Book tem uma política de privacidade que demora uma hora a ler, que eu não entendo, e se, para pôr o Google em tribunal, eu precisaria de milhões e de uma equipa de advogados enorme?

 

É preciso que a informação, além de transparente, seja mais sucinta?

Não, é preciso que obedeça a uma linha directora que seja expressa em princípios e ideais partilhados por todos – como tinha o Iluminismo: liberdade, igualdade, fraternidade. Nada disto é complicado. Dizerem-nos que é complicado é uma medida da falta de coragem dos políticos.

 

Tem um discurso optimista, quer em relação ao projecto europeu, quer em relação ao Euro, quando hoje se discute a reversibilidade do Euro?

Tenho um discurso muito pessimista num determinado sentido. Já aconteceu, várias vezes, as soluções que estavam em cima da mesa serem melhores do que aquelas que acabaram por ser aplicadas. Durante a paz de Versailles, Keynes, então funcionário do governo britânico, escreveu, logo em 1919, que aquilo ia levar a uma nova guerra. Era uma paz mal feita.

Aquelas pessoas do passado, que não eram estúpidas, que não eram mais estúpidas do que nós, também se sentaram em cimeiras intermináveis a resolver coisas, e não foram capazes de optar por soluções melhores. Foram-se deixando arrastar por egoísmos, ganâncias, políticas de vista curta. A certa altura estávamos num beco em que a guerra era inevitável, ou em que a divisão da Europa era inevitável, ou em que o colapso da Sociedade das Nações era inevitável. E já não havia nada a fazer, já se tinha atingido o ponto de não retorno.

 

É a sua visão de historiador que o faz ser pessimista?

A grande pergunta por responder numa crise destas é: há progresso moral e político na sociedade ou não há? Se houver, devíamos ser capazes de ultrapassar isto de forma simples. Se não houver, se cometemos os mesmos erros do passado, ou se acharmos que somos mais espertos do que as pessoas do passado e que não precisamos de aprender com os erros que cometeram, aí é muito mau.

 

Qual seria o preço a pagar pelo falhanço?

O preço a pagar por não resolvermos esta crise é elevado demais. Mas para resolvermos esta crise é preciso um novo discurso político. É preciso, e aqui falo enquanto pessoa de esquerda, que a esquerda europeia entenda que está a brincar com coisas muito sérias, e que a Europa já pagou demasiadas vezes pelo maniqueísmo interno da sua esquerda. A direita europeia está esgotada. Não sabe para onde levar este continente.

 

Mesmo que a maior parte dos partidos neste momento no poder seja de direita.

Na direita europeia ficariam muito aliviados se vissem a esquerda com o mínimo de ideias acerca do que fazer à Europa. Alguns estão na direita pelo poder, por interesse, por oportunismo, para ficarem com os últimos despojos da nossa República (em Portugal). Mas muitos sabem que as suas ideias não estão a dar certo. Sabem que os bons exemplos de saída deste tipo de crise – por cima – são a social-democracia escandinava, são o New Deal rooseveltiano; sabem que, mesmo nos países que tiveram governos conservadores, como a Inglaterra, foram conservadores muito especiais, que empregaram políticas socialistas, social-democratas, de investimento no sector público.

 

Então, o problema está também, e muito, na esquerda.

Muita gente respiraria de alívio na Europa, à esquerda, no centro e na direita, se a esquerda se apresentasse com vontade política de ultrapassar as suas estúpidas querelas e fazer qualquer coisa de patriótico e de bom pela humanidade. Na Islândia fizeram-no.

A Islândia foi o país mais atingido pela crise. Os bancos valiam muitas vezes mais que o PIB, e as suas opções são reduzidas por ser uma ilha, por estar localizada onde está. A esquerda islandesa, os socialistas, que eram mais neo-liberais que os nossos, foram os obreiros da desregulação. Tiraram a Islândia de uma tradição social-democrata escandinava e atiraram-na para um capitalismo selvagem anglo-americano. Apesar de ter este cadastro terrível, a esquerda islandesa juntou-se, governou e conseguiu salvar a Islândia da crise com reduzidas perdas no seu estado social e até com invenção e reforço em algumas áreas. Viraram-se para o FMI e disseram: “Meus senhores, podem apanhar o avião de regresso a casa. Adeusinho”.

 

Em quanto tempo?

Em dois, três anos.

 

E isso porque quiseram que assim fosse?

Também porque quiseram. E também porque não estavam dentro do Euro e não tinham a camisa-de-forças do Euro. Mas pergunto a qualquer português o que é melhor: se é ter um sistema político que oferece saídas ou ter um sistema político como o grego? Vejo que em Portugal há muita gente que quer ter um sistema político-partidário como o grego, em que ninguém fala com ninguém, ninguém faz governo com ninguém, e toda a gente está a vigiar o vizinho do lado para ver se lhe chama traidor.

 

Há um culpado, um principal culpado? Os governos de direita dizem que a crise é obra dos governos de esquerda.

A culpa desta crise não é da esquerda. É da desregulação financeira, é do neo-liberalismo, e é também do centro-esquerda.

 

Em Portugal foi assim?

Em Portugal e no mundo. O centro-esquerda deixou-se cooptar por estas ideias, mas a esquerda, globalmente, não. O centro-esquerda foi colonizado, como diz Alfredo Barroso, pelo neo-liberalismo e esqueceu-se das suas raízes.

Não termos saída para a crise, pode e é, também, culpa da esquerda. E não termos saída para a crise pode ser muito mais grave do que termos entrado nela.

 

O que é que aprendeu sobre Portugal desde que vive em Bruxelas?

Aprendi que o nosso sistema político-paridário é pior do que pensava, que oferece menos soluções, que é mais oligárquico.

 

E está auto-manietado?

Há muita gente boa nos partidos, mas os partidos transformaram-se em pequenas oligarquias em competição por nichos de mercado. Fazem a gestão da frustração respectiva. O PS faz a gestão da frustração com o PSD, o Bloco e o PCP fazem a gestão da frustração com o PS. E o CDS faz a gestão da frustração, em parte, com partidos do governo, e em parte com os outros partidos da oposição, porque estão numa posição dupla.

Como dá para o gasto, vão-se mantendo nisto. Não perceberam ainda que a emergência histórica os obriga a afrontar as suas próprias oligarquias internas.

 

Quem é que os pode forçar a fazer diferente?

Os cidadãos. Os cidadãos têm que dizer aos partidos que é inaceitável que a nossa democracia seja incompleta. As pessoas votaram livremente, mas não podem ser eleitas.

 

Vai falar dos círculos uninominais?

Não. Para isso era preciso mudar a lei. Estou numa onda que é: o que for possível fazer… Não porque goste do que está, mas não quero estar a depender de outrem. Quero depender daquilo que eu, como cidadão, posso fazer. Posso dizer: “Podemos votar em quem quisermos”. Mas as pessoas em quem podemos votar foram escolhidas por líderes partidários, no caso do PCP por um colectivo. Não há a possibilidade de se fazer primárias nos partidos, e isso depende, não de se mudar a lei, mas da vontade dos partidos. Para os partidos terem vontade temos que os obrigar. Foi o que aconteceu em Itália (onde já há primárias), foi o que aconteceu em França.

 

No fundo, preconiza que se abra o leque de escolha dos cidadãos. E que ele seja menos controlado pelos partidos.

E [preconizo] a possibilidade de os próprios cidadãos – porque não? – avançarem e dizerem que são capazes de fazer melhor. Melhoraria em muito. Temos uma democracia que está capturada dentro dos partidos, por um modo de pensar que é de uma enorme mesquinhez.

Muita gente nos partidos que vai ler o que acabei de dizer, vai dizer: “Lá está este a querer ser eleito”. Ou: “Lá está este que quer fazer um partido”.

 

A verdade é que está. O Nova Esquerda, que encabeça com outros, é um projecto político.

É alguma vergonha uma pessoa exercer os seus direitos cívicos? É alguma vergonha os cidadãos deste país quererem fazer coisas ou acharem que as podem fazer? Os partidos queixam-se do anti-partidarismo que em grande parte é fomentado por eles.

 

Uma expressão do anti-partidarismo: chegámos à fase em que ter exercido cargos políticos ou estar ligado a um partido é uma nódoa no currículo.

É um estigma associado. Isso quer dizer que 99 porcento das pessoas não querem estar nem lá perto. No um porcento que resta, encontramos pessoas boas; e encontramos pessoas que estão ocupadas em exercer o seu poder “ali” porque “ali” controlam as portas de acesso aos cargos de representação, aos cargos de governação, e aos negócios que são possíveis fazer com os cargos de governação.

 

Vamos sempre dar ao dinheiro.

É o único ascensor social que ainda está na cara que funciona. Hoje em dia não é possível dizer a nenhum português: “Estuda, forma-te bem, fica aqui no país e a tua vida vai correr bem”.

 

O estudo deixou de ser ascensor social, para usar a sua expressão.

Também não é possível dizer: “Faz um café, uma empresa, trabalha no duro, vai correr bem”. Ninguém honestamente pode dizer a um filho, a um irmão, à namorada para fazer isso, porque daqui a cinco ou dez anos aquelas pessoas podem estar na falência. O que é que as pessoas vêem que funciona?

 

Os partidos políticos?

“Não estudes, entra numa jota. Faz os favores ao tipo que estiver a subir, aposta num cavalo dentro do partido. Depois apresenta-te com uma cadeira feita numa universidade, inventam-te mais quatro e dão-te equivalência a 26. Chegas a ministro e estás com a pasta das privatizações”. Este ascensor social funciona muito bem. Não por acaso é o senhor que beneficiou deste ascensor social que vem dizer aos portugueses: “Emigrem”. Ou seja: “Não deixem o meu ascensor social apinhado, isto funciona enquanto for para alguns espertos como eu”.

 

Pode apontar mais uma coisa que tenha percebido acerca de Portugal vivendo fora, e que lhe tenha causado surpresa?

Portugal tem tudo a ganhar em estar na primeira linha da inovação política europeia. Se passamos o tempo todo na discussão mesquinha, caseira, não nos safamos. Uma coisa que me surpreende em relação a Portugal na Europa é o papel decisivo que Portugal pode ter, mesmo sendo pequeno, mesmo estando falido.

 

E, além disso, que não é pouco, mesmo sendo periférico?

Sim. Não há vergonha nenhuma nisto. Uma pessoa endividada que morre numa aldeia não é menos cidadão, e um estado-membro periférico, endividado e pequeno não é menos estado-membro por isso.

Do lado português há uma visão para o Brasil e para os Estados Unidos, que são uma federação, há um país que é um excelente país de acolhimento, e que teria muito a ganhar como país de acolhimento. Estamos a começar a abrir as nossas universidades ao estrangeiro e vemos como somos um pólo de atracção muito fácil. Dizer à Europa que podemos pôr isso a funcionar a favor da Europa no seu todo é uma coisa que está ao nosso alcance.

 

 Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2012