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Anabela Mota Ribeiro

Pedro Adão e Silva

18.11.14

Pedro Adão e Silva não tem um estilo de pistoleiro, mas atira a matar. Sobre o Governo (quando diz que estamos a ter um PREC de direita). Sobre o Ministério Público (quando diz que ninguém está livre de ser condenado arbitrariamente). Sobre Carlos Costa (quando, a propósito do caso BES, diz que o governador interveio tarde e tem manchas no currículo). O seu estilo é, no mínimo, contundente. E o tom afável, muito afável.

Licenciou-se em Sociologia, tem um doutoramento em Ciências Sociais e Políticas. Talvez um dia, na política, passe para o outro lado, o da política activa. Para já, escreve no Expresso, é comentador na TSF e SIC – Notícias, dá aulas de Sociologia no ISCTE. Publicou recentemente “E Agora?”, onde reflecte sobre o país. Não se falou de surf, uma das suas paixões. Nasceu em 1974.    

 

Podia prever esta evolução do caso BES? Como é que o vê?

Se tomarmos como bom o que o Governador do Banco de Portugal, a ministra das Finanças, o primeiro-ministro e até o Presidente da República foram dizendo, não. Primeiro foi-nos dito que o BES era uma coisa, o GES outra. Logo depois, que o banco tinha uma almofada de capital suficiente, para logo ser dito que havia privados interessados. Tudo culminando na retórica populista de Passos Coelho – e que amarrou o Governo – de que nem um euro dos contribuintes seria gasto para salvar privados. É impressionante como nada do que foi dito se revelou sustentável, num espaço de tempo tão curto. Aliás, este histórico é a melhor das razões para estarmos cépticos e de sobreaviso face a esta solução.

 

Isto pode não ser o fim?

Esta solução é vendida como se fosse neutra para os contribuintes e comentada na praia pelo primeiro-ministro em fato-de-banho.

Mas uma coisa é o que foi sendo dito, outra, bem diferente, é o que se sabia. E, mais grave, o conjunto de informação que, desde Setembro do ano passado, o governador já possuía. É incompreensível que se tenha mantido em funções a administração até há um mês e é inexplicável o último aumento de capital. E é também incompreensível que tenham passado vários dias desde a apresentação de resultados e do comunicado do Banco de Portugal até a apresentação da solução. A machadada final no banco não podia ter sido dada sem que a solução fosse apresentada de imediato. Isso levou ao colapso bolsista de sexta-feira, com riscos de inside trading.

 

Considera que o governador interveio tarde.

A forma como ao longo de um ano se destruiu valor no grupo e no banco, com uma complacência generalizada, é chocante. Estamos perante uma gestão desastrosa de um processo que é, de facto, muito complexo. A própria confissão de que desde Setembro havia detectado fraudes na forma como o grupo se financiava no banco torna ainda mais inexplicável os últimos 11 meses.

Não faço uma leitura positiva daquilo que tem sido o trabalho do regulador. E, convém não esquecer, Carlos Costa é alguém que foi director-geral do BCP quando o BCP andava a utilizar offshores para comprar acções próprias. O que foi dito em tribunal pelo ex-administrador do banco, Christopher de Beck, e a forma como Carlos Costa descartou qualquer responsabilidade, é um tema que devia ter sido escrutinado de outra forma e não foi. É um daqueles casos em que se Carlos Costa soube é muito grave, mas se não soube é também preocupante, pois quer dizer que, apesar das suas funções de responsabilidade, as coisas passavam-lhe ao lado.

 

Isso não tem a ver com a sua acção enquanto governador do Banco de Portugal.

É alguém que tem um currículo que o diminui para regulador. É sempre com espanto que vejo os elogios a Carlos Costa e a capacidade de esquecer aquilo que foi a sua acção, ou inacção, no BCP.

 

Estamos perante uma nacionalização encapotada? 

Se tudo correr bem, será uma nacionalização temporária; mas não deixa por isso de ser uma nacionalização. Foge-se à utilização da expressão nacionalização apenas para resolver um problema que o Governo criou a si próprio, ao ter feito declarações demasiado definitivas sobre o assunto.

 

Mas, a seu ver, é uma nacionalização.

Qual é, em última análise, a natureza da garantia? O Estado empresta dinheiro – convém não esquecer, quase 5 mil milhões de euros – ao Fundo de Resolução. Alguém acha possível que se o banco bom for vendido por um valor inferior ao que agora se estima ou, pior, que não seja possível reprivatizá-lo, serão os outros bancos a suportar o prejuízo? Bancos que já têm, eles próprios, dificuldades e que já recorreram à linha de crédito da Troika.

Será muito interessante ouvir o que os outros banqueiros têm a dizer sobre o assunto. Estará Fernando Ulrich disponível para o BPI suportar, para falar claro, os desmandos de Ricardo Salgado? O sistema financeiro português está em condições ou disponível para garantir o reembolso integral de quatro mil milhões e meio mais juros?

 

O que quer dizer é que, se a solução correr mal, a factura será para nós?

É evidente que se correr mal – e há muitos riscos, desde logo riscos legais, que se avolumaram com a confissão do Governador que detectou irregularidades no financiamento do grupo pelo banco, logo em Setembro de 2013 –, em última análise, seremos todos nós a suportar os prejuízos. A alternativa é um colapso sistémico do sistema bancário português.

 

As comparações com o BPN eram inevitáveis à partida. Os casos parecem-se cada vez mais?

São dois casos muito graves, mas com diferenças substantivas. O BPN é uma espécie de caso de associação criminosa, com um balcão virtual e um banco offshore, desconhecido das autoridades (o Insular), que serviam para ocultar perdas. O problema do BES é de natureza distinta. Num par de anos, curiosamente desde que Portugal assinou o memorando de entendimento, um grupo transformou um banco num instrumento de financiamento do próprio grupo e fê-lo em público.

 

Em público? O que se dizia até há pouco, e reproduzindo o vox populi, é que ninguém sabia do BES e toda a gente sabia do BPN.

Em público no sentido em que isto aconteceu com os accionistas a assistirem, com a Troika cá, com os supervisores a verem, com as empresas de auditoria – que devem proteger os interesses dos accionistas – a caucionarem as contas. É, nesta medida, um caso de supervisão e devemos questionar-nos como é que isto foi possível? Agora resta saber se o BES não se revelará também um caso de contabilidade paralela como o BPN. A avaliar pelas últimas declarações do Banco de Portugal, há fortes indícios disso.

 

A justiça popular procura sempre, e para começar, alvos fáceis, bodes expiatórios. Quem são, neste caso? E quem são, na sua opinião, os grandes responsáveis pela situação? 

É tentador encontrar um bode expiatório e individualizar a culpa. A repetição de escândalos financeiros nos últimos tempos é reveladora, no essencial, da incapacidade dos mecanismos de supervisão. A fraude está sempre um passo à frente dos reguladores. Há um problema generalizado de opacidade e complexidade no sistema financeiro, na forma como se organiza o financiamento, nos modelos de governação, que cria incentivos para comportamentos de risco e que geram fraudes, ao mesmo tempo que torna impotentes os supervisores. Nenhum supervisor de base nacional será capaz de lidar com este problema enquanto, por exemplo, tivermos autênticos paraísos fiscais como o Luxemburgo dentro da zona euro. Se nada mudar, os supervisores estão condenados ao fracasso e as fraudes financeiras repetir-se-ão.

A Europa tem andado a disparar ao lado. A culpa era da insustentabilidade dos Estados sociais ou era necessário fazer reformas estruturais que devolvessem a competitividade às economias. Mas a realidade regressa sempre a galope e é sintomático que, assim que a Troika e o seu reformismo saíram de Portugal, tenhamos sido devolvidos à realidade dos problemas sistémicos do sistema financeiro.

 

Olhemos para a “realidade que regressa sempre a galope” a partir do seu ponto de vista. O maior problema do país são as lideranças, é o crescimento, é a dívida? Estes problemas são constantes nos livros de História, quando analisamos o passado.

As lideranças, não. Têm um papel relevante, mas não são o nosso problema. A dívida e o crescimento estão ligados. Temos problemas de natureza política que têm implicações no crescimento e na dívida. E temos problemas na forma como as políticas públicas se organizam. A nossa tradição é de muita instabilidade.

 

Somos instáveis exactamente em que sentido?

Temos um padrão de excesso de mudança, da ausência de cultura de planeamento em que quase todos os governos caem. Uma lógica big bang: cada novo governo quer começar tudo de novo.

 

É tentador, é uma forma de deixar uma marca e de afirmar a diferença em relação ao seu eleitorado.

Cada secretário de Estado, cada ministro quer ser diferente e fazer diferente dos anteriores, mesmo que sejam do mesmo governo e do mesmo partido. Essa instabilidade tem custos. O Ortega Y Gasset dizia que o que diferencia o homem do orangotango é o facto de o homem ter memória.

 

Tem também um horizonte de futuro.

Certo. Mas se estamos sempre a perder essa memória, estamos a plagiar o orangotango. Nas políticas, em Portugal, há excesso de plágio do orangotango. Tem sido sempre verdade e é particularmente verdade neste último ciclo político. Houve muitas rupturas, pagamos caro por isso e vamos pagar muito mais. Temos a tentação de replicar o que funcionou no estrangeiro, fazer como os irlandeses, os finlandeses, os suecos.

 

Andamos há pelo menos 40 anos a querer ser (como os) suecos.

O que temos que perceber é que os países que crescem mais têm um conjunto de características que não tem tanto a ver com as opções substantivas mas com questões formais. Com a forma como organizam as políticas. Tendem a ter maior coerência entre várias áreas políticas e um padrão de maior estabilidade nas opções. A cada mudança de governo não corresponde uma mudança radical de políticas.

 

Conseguem isso fazendo pactos? Recentemente António Costa e Rui Rio falaram de um pacto a dez anos.

Fazem isso porque têm uma cultura de compromisso. Obrigam a governos de coligação.

 

Está a pensar sobretudo no pós 25 de Abril? Tudo somado tivemos 25 governos em 40 anos, seis provisórios e 19 constitucionais. Ou está a pensar no tempo anterior à revolução?

Esse anterior nem interessa. Não há nenhuma nostalgia em relação às políticas públicas antes da democracia. Estrangulamentos estratégicos que ainda temos hoje são fruto de opções erradas anteriores.

 

Durante estes 40 anos tivemos diferentes ciclos. Antes e depois da CEE, por exemplo. Antes e depois do Euro. Porque é que nunca fomos obrigados a assumir compromissos a longo prazo?

Não nos libertámos dessa tradição de grande instabilidade em áreas importantes. Se já tínhamos isto, a marca mais forte destes últimos três anos é a ruptura permanente – uma espécie de PREC de direita.

 

Como assim?

PREC de direita. A reconstituição institucional e das políticas vai demorar muito tempo. Vamos levar mais a recuperar [dela] do que o tempo de que precisámos para recuperar de alguma instabilidade das políticas do PREC.

 

Isto a que chama “PREC de direita” pode ser isolado da crise internacional, nomeadamente da europeia?

Não pode. A crise foi ao mesmo tempo uma oportunidade (que permitiu introduzir uma agenda) e um mecanismo de distribuição de poder. Estes três anos serviram, não para resolver os problemas estruturais da nossa economia, a dívida ou as contas públicas – nada disso foi resolvido. Serviram para a transformação das relações de poder mais profunda em Portugal desde 74.

 

Quem é que manda agora? Houve um tempo em que mandava mais quem tinha mais dinheiro.

Em 74 tivemos uma grande transformação das relações de poder, e agora voltámos a ter. Ainda não consigo dizer quem manda mais. O que sei é que o poder se concentrou. Se pensarmos nas relações laborais (um bom observatório), o trabalho perdeu poder em relação aos empregadores ou ao capital.

 

Consequência da reforma laboral?

É uma coisa mais vasta. Há um contexto de perda: reforma laboral, desvalorização salarial, desemprego.

Nas grandes empresas portuguesas – a EDP, a PT – a estrutura accionista mudou. Os bancos: nenhum tem a mesma estrutura accionista que tinha [antes da crise].

 

Os maiores accionistas são quase sempre estrangeiros. O poder mudou de mãos, em suma.

Certamente vão surgir novos focos de poder. E também novos equilíbrios. As reformas estruturais, que são tão apregoadas, funcionaram, mas não no sentido que lhes é dado. Não no sentido de libertar a economia e pôr o país a crescer ou a flexibilizar o mercado de trabalho para os jovens. As reformas estruturais funcionaram porque alteraram as relações de poder. Se calhar foi sempre esse o objectivo. Tudo isto é uma espécie de cavalo de Tróia para um outro fim – que foi conseguido. Desse ponto de vista, a aplicação do programa de ajustamento foi um sucesso.

 

Em que é que falhou redondamente a aplicação do programa de ajustamento?

O programa de ajustamento, de acordo com os critérios e medidas definidos à partida, foi um falhanço total. Não há um indicador macroeconómico relevante que tenha sido cumprido. E aproveitou-se o memorando para fazer transformações profundas em áreas que não estavam previstas no memorando.

 

Está a pensar em quê?

Pensões. Caixa Geral de Aposentações e regime geral da Segurança Social. O memorando inicial nada dizia sobre pensões.

Já terminado o programa de ajustamento, surgiu a questão do BES; é notável a assimetria na forma como se tratam os pensionistas ou os aposentados da CGA e as perdas do sistema financeiro e bancário. Mostra bem que há uma atitude dúplice: a uns tudo é exigido, a outros tudo é permitido.

 

Os bancos estiveram/estão descapitalizados. Os nossos ricos não são suficientemente ricos. Temos um problema de capital?

Sempre tivemos. E não o resolvemos. Se calhar não é possível resolvê-lo.

 

Quando é que foi a última vez que tivemos dinheiro a sério? Fora o período de D. João V.

Nunca tivemos dinheiro a sério. Tivemos um período, nos primeiros quadros comunitários, em que houve alguma capacidade de investimento. Mas não foi dinheiro a sério porque não foi um reforço de capitais próprios.

 

Quando diz que não vamos ter capital está a ser pessimista.

Um dos problemas do país, e também do centro-esquerda, e da social-democracia, é que olha para a História como uma trajectória de progresso sistemático e com aspirações sociais e materiais crescentes. É uma visão ingénua da História. Podemos estar a entrar num período de grande estagnação ou de grande declínio em que essa ideia da História como progresso deixará de ser verdade.

 

O que é que marcou o fim dessa caminhada esperançosa, em que achávamos que o futuro ia ser melhor, que os nossos filhos iam viver melhor?

Isso foi assim durante muito pouco tempo.

 

Depois do 25 de Abril, os nossos pais confiaram que ia ser assim.

E aconteceu. As pessoas viveram melhor do ponto de vista dos recursos materiais, dos apoios sociais da saúde, da educação. As pessoas tiveram aspirações de que a sua vida melhoraria, a dos seus filhos ainda mais. O que marca essa mudança é uma conjugação de factores. É o crescimento das economias noutros espaços, com ganhos notáveis de outras regiões, que criaram um problema objectivo à Europa.

 

A emergência dos BRIC’s, uma reorganização da economia mundial.

E não só. Transformações demográficas no espaço europeu alteraram aquilo que é a demografia da Europa. A criação da moeda única desequilibrou o poder dos países que faziam parte da União Europeia. A combinação de tudo isso criou um contexto novo.

 

Está resignado a que os seus filhos vivam pior do que você?

Não, claro que não. Quando se olha para estas coisas individualmente temos sempre a expectativa de que isso não seja connosco. Não é uma questão de resignação. Mas temos demasiados indicadores de desagregação social, comunitária, de crise de representação política e de legitimidade, de crescimentos económicos anémicos.

 

Não vai haver uma erupção no fim disso tudo? Ou, até 2030, vamos fazer como na canção brasileira: “A gente vai levando”?

Não sabemos se as coisas se vão reequilibrar. Ou se vamos ter uma crise sistémica. Se olharmos para a História, em todos os momentos em que se combinaram estes factores, houve mudanças de regime. Guerras. Pode ser que haja alguma aprendizagem que impeça isso. Não temos muitos sinais positivos disso.

 

A Europa, ou vai ou racha.

Sim. Temos sinais eleitorais de enormes falhanços (Frente Nacional em França) que podem obrigar à mudança. Os partidos do centro podem perceber que é preciso fazer alguma coisa – que não é possível “ir levando”.

 

Quem é que vão ser os líderes, os protagonistas desse movimento que vence o impasse?

Não tenho uma visão messiânica das lideranças. Os momentos carismáticos é que produzem líderes carismáticos. É evidente que a liderança é importante porque, em última análise, a política é uma conversa que temos uns com os outros. É preciso alguém que inicie essa conversa.

 

Uma pessoa do sistema, de fora do sistema?

Temos tido um número excessivo de lideranças demasiadamente de dentro do sistema, com pouca capacidade de falar para fora.

 

Está a pensar à esquerda e à direita?

Sim. Não pode ser uma coincidência que os líderes dos principais partidos tenham tantas semelhanças de percurso. Não tem a ver com cada um deles. Tem a ver com qualquer coisa que o sistema está a gerar que tornou esses os líderes viáveis.

 

No momento em que nos lêem, estamos a pouco mais de um mês das eleições no PS, que vão ter, forçosamente, um impacto na organização política nacional. Voltou a falar-se abertamente de eleições antecipadas. O que é que pode acontecer na rentrée?

A rentrée vai ser marcada pelas primárias no PS. Depois de resolvida a questão do PS vamos entrar num novo ciclo e vai haver uma antecipação técnica das eleições legislativas. Não é nem uma solução de parlamento nem uma demissão do Governo. As eleições, em lugar de serem em Setembro ou Outubro, serão antecipadas para antes do Verão. É o que faz sentido se pensarmos no Orçamento de Estado para 2016.

 

No começo de 2016 haverá também presidenciais.

É importante separar o processo das eleições legislativas das presidências. De Outubro para Janeiro é muito próximo. As coisas iriam estar contaminadas. O Presidente da República pode precisar de ter uma intervenção importante na formação de um novo Governo. Se já estiver com os candidatos à sucessão em campanha, isso diminui a sua capacidade. Até do ponto de vista do semestre europeu, há várias vantagens em antecipar.

Significa que vamos chegar ao fim de Setembro, o Partido Socialista terá um líder novo e rapidamente se entrará numa dinâmica de preparação das legislativas.

 

Vai ser animada a rentrée depois das primárias do PS. Os estilhaços vão estar por todo o lado. A esquerda vai ter que se reorganizar, com as fracturas do Bloco, os novos movimentos.

Esses micro-temas da reorganização da esquerda interessam aos comentadores, aos jornalistas e pouco mais. As pessoas não estão a olhar para o que se está a passar na reorganização do Bloco. A grande virtude do Bloco foi contrariar a ideia de que era impossível o diálogo à esquerda e entre as esquerdas. O que o Bloco agora está a provar é que a ideia que contrariou afinal era verdadeira.

 

Pensava na reorganização de equilíbrios depois das eleições do PS. À esquerda e à direita.

Aí é que não sou mesmo optimista. Vai ser mais do mesmo. Só não vai numa coisa: há uma grande saturação em relação a Passos Coelho e Paulo Portas. As pessoas já não aguentam.

 

As sondagens não têm dito isso, eles têm subido.

Marginalmente. Mas isso mudará. O PREC de direita gerou uma coisa insólita na sociedade portuguesa: uma coligação contra Passos Coelho muito ampla. Essa coligação, que tem voz e protagonistas visíveis, não tem ainda uma representação política.

 

Os grande opositores têm sido pessoas de direita, Pacheco Pereira, Manuela Ferreira Leite, Bagão Félix.

Ainda não houve quem representasse esse descontentamento que vai de Pacheco Pereira a pessoas mais à esquerda. A reacção ao radicalismo, ao voluntarismo ideológico do Governo, acabará por ter algum tipo de representação política. O país está disponível para encontrar essa representação.

 

É uma nova força política?

Não, acabará por ser o PS. As primárias, que têm muitos defeitos e riscos, têm essa vantagem, dão uma legitimidade acrescida. Se votar muita gente há uma força acrescida.

As pessoas têm um desejo de estabilidade. Um quotidiano previsível. Implica parar com esta voragem revolucionária e voltar a respeitar o funcionamento das instituições. Perceber que a Constituição é um ponto de consenso, de defesa de todos. E recuperar esse lado de alguma sanidade institucional que se perdeu nos últimos três anos.

 

Perdeu-se, também, e não só nos últimos três anos, confiança nas instituições e nos políticos.

E no regime, o que é pior, ainda. O que legitimou o nosso regime democrático foi o amor pelas liberdades combinado com uma melhoria objectiva das condições de vida. A democracia confunde-se com as pessoas terem uma vida melhor.

 

Confunde-se legitimamente?

Sim. Em Portugal, a democracia são três coisas: as liberdades, o Estado Social e a Europa. No momento em que o Estado Social se está a desagregar, em que o desemprego sobe, as pensões baixam, os salários baixam, a Europa está em implosão, é natural que haja uma crise de regime. Vai demorar muito tempo a reconstituir a confiança nas instituições, a confiança uns nos outros.

É possível que tenhamos de fazer uma revisão constitucional em algum momento. Que condições é que há para fazer uma revisão constitucional que envolva o PS e o PSD depois do que se passou na relação com o Tribunal Constitucional e com a Constituição nestes anos? Degradaram-se as condições objectivas para reformar as instituições. É esse o legado destes três anos, esta loucura.

 

Quando olha para os últimos três anos, o que é que o surpreende mais? Sabia que ia ser um governo de direita, num país intervencionado.

Nunca pensei que num momento como este, tão exigente, pudéssemos ter um governo tão impreparado. Há uma componente que tem a ver com ideologia, mas há muita incapacidade. E também nunca pensei que se fosse tão longe nos ataques aos pensionistas.

 

Porquê?

Achei que politicamente não era possível. É terrível essa vontade de pôr os portugueses uns contra os outros. Os pensionistas contra os jovens que descontam. Dilui o sentido de comunidade. Recordo-me sempre da ausência de compaixão na forma como se lidou com os verdadeiros perdedores nestes últimos anos, as pessoas que ficaram desempregadas, sem rendimentos, os pensionistas.

 

Está a pensar em alguma declaração específica de Pedro Passos Coelho que ilustre isso?

Estou a pensar na ligeireza com que estas coisas se fizeram. E o lado da culpa moral que nós, portugueses, interiorizámos e que o Governo reproduziu activamente. Ao mesmo tempo penalizou aqueles que já pouco tinham e que com menos ficaram.

 

Houve alguma coisa que tivessem feito bem ou que tivesse corrido bem?

[pequena pausa] É bem revelador [este silêncio]. Não é fácil identificar algumas áreas de acção governativa em que as coisas tenham corrido bem. Nas áreas duras, o que se passou foi uma ofensiva terrível.

 

Educação, saúde, pensões?

O [que se passa no] ensino superior e ciência é uma coisa sem nome. O ministro [Nuno] Crato é a corporização dessa lógica radical e revolucionária.

A saúde foi uma área um pouco mais protegida. É um bom contraste de como é diferente ter alguém movido pelo bom senso e com experiência de administração pública. Não houve nenhuma vontade de ir além do memorando.

O ministro [Vítor] Gaspar foi o líder da revolução e quis fazer de nós um laboratório, uma experiência de austeridade expansionista – que falhou. Como sempre tinha falhado. Depois tentou reescrever dizendo que afinal não era austeridade expansionista; era só para conquistar a confiança dos mercados. Não é verdade. Foi mesmo uma tentativa de destruir para crescer, com os resultados conhecidos.

 

Qual foi o falhanço, no país, destes 40 anos de democracia?

Há uma área das políticas públicas que é obscura e que, nestes três anos, não mudou: a justiça. A maior parte das pessoas não tem má experiência nem do contacto com a educação nem com a saúde. Mas com a justiça a maior parte das pessoas não contacta. Persiste um poder em Portugal que não se democratizou e onde todos estamos sujeitos a uma enorme arbitrariedade. Chama-se Ministério Público.

 

Um poder que não se democratizou?

Se pensarmos nos casos mais mediáticos, é possível alguém ser condenado em Portugal sem que o Ministério Público seja obrigado a mostrar e a provar quando, como e de que forma [aquela pessoa cometeu um crime], alegadamente. Há uma ausência de escrutínio do Ministério Público, uma coligação ultra-perversa entre péssimas investigações, péssimas acusações e péssimo jornalismo que diminui a confiança na justiça..

Quando falamos das condições da participação política em Portugal, há um risco que ninguém assume: por ser político, ou por ser figura pública, corro o risco de ser sujeito a uma condenação arbitrária na justiça.

 

Há casos?

Há casos. Há casos na forma como o sistema trata as pessoas. E os casos muitas vezes nem se traduzem em condenações em tribunal. É o pior dos mundos: o espectro da culpabilidade, a impossibilidade de defesa e a não-condenação. Temo que enquanto pensamos no tema da dívida, do défice, do crescimento económico, da sustentabilidade das pensões, ninguém tenha coragem de diminuir, de facto, o poder e a forma como funciona o Ministério Público em Portugal. É uma reforma essencial para garantir as liberdades civis e políticas.

 

E a reforma do mapa judicial, as reformas levadas a cabo por Paula Teixeira da Cruz?

Há um problema na gestão da justiça, na organização do território. A questão da presença do Estado no território deve ser tida de forma integrada e temos falhado nisso. Mas estou a falar de outra coisa. Estou a falar do poder do Ministério Público. Isso tem sido uma ameaça à nossa democracia. Uma espécie de espada de Dâmocles por cima de todos nós. Ninguém está livre.

 

Tem noção que lhe ficam com um pó depois do que disse.

Ou fico mais defendido. É da vida. Não confio no Ministério Público. Quero ter as garantias de que, se um dia tiver que enfrentar um problema na justiça, e se for inocente, tenho condições para demonstrar a minha inocência, e que o que tem que ser provado é a minha culpabilidade. Não me parece que seja isso que acontece frequentemente em Portugal. E o problema é que só temos essa percepção [quando temos] proximidade à justiça. Isso o 25 de Abril não resolveu, a democracia não resolveu, a Troika não resolveu, e não vejo que no futuro alguém tenha coragem de resolver.

 

 

 Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014

 

Ler Mário de Carvalho

18.11.14

No próximo Ler no Chiado, faço uma entrevista a Mário de Carvalho

Como ponto de partida, o livro "Quem disser o contrário é porque tem razão", um guia prático de escrita de ficção. É uma forma de ouvir o autor sobre o seu universo e de conhecer algumas das costuras da sua escrita.  

No dia 20 de Novembro, às 18.30, na Bertrand do Chiado. 
Juntam-se a nós?
Ler no Chiado é uma iniciativa mensal da Bertrand e da revista Ler
 
 

João Pereira Coutinho (2014)

16.11.14

Antes de João Pereira Coutinho ser o colunista amado e odiado que é, era um rapaz licenciado em História (variante História de Arte) e depois um doutor em Ciência Política e Relações Internacionais. Antes e agora, um conservador. Porquê? “Em sentido prosaico: é aquela história de preferir o familiar, o que existe e persiste. Em sentido político: por entender que os políticos são tão falíveis e até perigosos quanto eu. O que significa que quanto menos poder tiverem sobre a vida dos outros, menor será a margem de erro e de destruição.”

Acabou de lançar em Portugal um livro de capa azul, chamado simplesmente “Conservadorismo”, que já havia sido lançado no Brasil. É um ensaio de um académico habituado a chegar ao grande público, com humor e consistência. MEC chamou-lhe um golfinho no meio de sardinhas.

 

Se vou entrevistar um conservador, começo a provocar desde já: Salazar foi a pessoa que fez pior à direita em Portugal?

Ajudou à festa. Um regime autoritário ajuda sempre. Mas é preciso relembrar que a festa foi montada pelo caos e pela violência da 1ª República, que tiveram dois efeitos. O primeiro foi produzir Salazar, que até prova em contrário não aterrou entre nós na sua nave espacial. E o segundo, menos óbvio, foi o jacobinismo doméstico ter varrido uma direita civilizada e “liberal”, daquelas que podemos apresentar à família e que sabe comer à mesa com talheres, e que era possível encontrar na segunda metade do século XIX.

 

E do outro lado, quem é que fez pior à esquerda desde que a esquerda é esquerda?

Todas as ideologias são doenças. A própria noção de que é preciso uma ideologia – uma forma de interpretar e transformar o mundo – já é uma confissão de debilidade. Mas existem doenças e doenças. Algumas são benignas. E outras desenvolvem metástases. Quem fez pior à esquerda, geneticamente falando, foi Jean-Jacques Rousseau no mais brutal ataque à “civilização” que a história das ideias políticas produziu. A descendência levou as premissas de Rousseau – a ideia de que nascemos livres e nos encontramos aprisionados em toda a parte – até às suas últimas e brutais consequências. Deu no que deu.

 

No concreto, quando é que começou o seu pó de estimação à esquerda? Ou, devo dizer, ao Partido Socialista?

Não há nenhum pó de estimação à esquerda, muito menos ao PS – e, em geral, ao socialismo democrático. Ser de esquerda ou de direita faz parte do jogo pluralista de qualquer sociedade decente. Só fanáticos, ou pessoas com grande património genético neandertalensis, pensam o contrário. E o socialismo democrático, ao enterrar os eflúvios revolucionários do marxismo-leninismo, foi precioso ao proteger as regras do jogo democrático e ao aceitar participar nele pela força do voto e não pela força das armas. Isso é bastante estimável.

 

O que é que ainda temos do “saudoso tempo do fascismo”, como dizem os fascistas e reacças? Quarenta anos depois, voltámos a sentir o que muitos apontam como factores essenciais para compreender a permanência de Salazar no poder, ou seja, pobreza e medo?

Com a devida vénia a José Gil, o livro dele sobre o “medo de existir”, essa herança perversa do salazarismo que ainda hoje perdura e bla bla bla, é uma tese fantástica. Pena que seja totalmente fantasiosa. Como já disse algures, Salazar só foi possível porque a maioria dos portugueses era tão iliberal quanto ele. Foi um ditador exactamente à medida do que somos e valemos. Só isso explica a duração obscena da ditadura. José Gil absolve os portugueses e condena Salazar. Lamento. A condenação é mais vasta e a história do Estado Novo tem poucos heróis.

 

Como é que ficámos com estes pares de jarras, em que ninguém se revê em ninguém e toda a gente vocifera contra toda a gente? Falo da degradação da cultura democrática e da apregoada indigência da classe política. Ou não é nada assim e só estou a repetir as vozes de inúmeros treinadores de bancada?

Costuma dizer-se que a classe política de um país reflecte o que esse país realmente é. No Portugal democrático, essa tese não foge à regra. Na generalidade, os políticos são maus porque os portugueses não exigem melhor. Basta ver este cenário anedótico: aqueles que tiveram responsabilidades directas na degradação das contas públicas são os mesmos que comentam a actualidade política, nas tv’s, nos jornais ou na rádio, como se tivessem chegado hoje de outro planeta. E, que eu saiba, as audiências e os leitores apreciam a farsa. Quer melhor do que isto?

 

Engrossa a fileira dos que dizem que é perigosíssimo o discurso anti-políticos e anti-partidos?

Não. É saudável o discurso anti-políticos e anti-partidos, desde que seja apenas discurso (e não violência) e inclua também alguma dose de vigilância sobre os usos e abusos do poder. O que é pena é que essa desconfiança só apareça quando o país está de rastos – e não quando havia pão e circo para entreter os nativos. Como sempre, os portugueses protestam tarde e a más horas. Para regressar ao Estado Novo, faz lembrar aquelas multidões que no dia 25 de Abril eram todas democráticas e prontas para varrer o regime de peito feito – mas no dia 24 nem se atreviam a dar um pio. Conheço casos.

 

Aposto que não esperava um país novo, com a vinda da troika. Mas, que diabo, não era para estarmos melhorzinho depois de três anos a levar forte e feio?

Não, não era para estarmos melhorzinho. A vinda da troika foi para não falirmos, uma coisa desagradável que normalmente implica salários e pensões suspensos, contas bancárias congeladas, pancadaria social e, quem sabe?, até a própria ruína do regime democrático. As pessoas que pensam que estes anos foram o pior possível, nem imaginam o que é o pior possível.

 

O que falhou?

Dizer-lhe que o governo falhou ao não ter reformado estruturalmente o Estado é um exemplo. Ter carregado nos impostos é outro. Mas isso seria contar uma parte diminuta da história. O nosso falhanço deve-se a uma sucessão de políticos incompetentes ou dolosos que permitiram a falência do país três vezes em 40 anos de democracia. É fácil fazer tiro ao alvo com o dr. Passos Coelho e tutti quanti. É outra atitude infantil dos portugueses: acreditar que o mal começou hoje ao pequeno-almoço, e não ontem, nem anteontem, quando vivíamos alegremente com crescimento medíocre e com o dinheiro emprestado dos outros. E ninguém achava a coisa bizarra porque havia crédito, estádios de futebol e o diabo a quatro.

 

E a crise internacional?

A “crise internacional” pode ter as costas largas. Mas ela só deu a sua estocada final porque o país já estava de joelhos. Sou crítico deste governo, sim, mas ainda não sofro de amnésia.

 

O descalabro dos números revela a falência da política neoliberal?

“Neoliberal”? Bom, partindo do pressuposto de que “neoliberal” tem algum significado político substancial, coisa que duvido, só por piada se pode chamar “neoliberal” (ou simplesmente liberal) a este governo. Com uma despesa na estratosfera e uma carga fiscal deste tipo, onde é que está o liberalismo? Até o sr. Friedrich Hayek, que tinha fama de ser um paz de alma, teria um colapso nervoso se o identificassem ideologicamente com este governo.

 

Retomo a pergunta com uma variação: o descalabro dos números revela a incapacidade destes políticos na execução da política neo-liberal?, revela a conjuntura?

O governo não é liberal, nem neoliberal, nem coisa nenhuma de substancialmente ideológico, ao contrário do que pensam alguns histéricos. É um governo que encontrou uma casa em chamas e tentou apagar o incêndio como pôde, aos trambolhões, desse por onde desse e às ordens do capataz. É tão simples e tão dramático quanto isso.

 

E de quem é a culpa?

Repito: não é do dr. Passos Coelho. É nossa: dos políticos que elegemos, da vida que fomos fazendo, do total alheamento com os destinos da coisa pública.

 

Apesar do que foi anunciado, foi de facto uma reforma profunda o que aqui se passou? Ou tudo se limitou a um emagrecimento à bruta, com serviços – o Estado de um modo geral – a pão e água?

Uma reforma não é coisa que se faça sob pressão e em três ou quatro anos. Pelo menos, uma “reforma” no sentido próprio da palavra. Porque a “reforma” implica estudo e reflexão: saber que Estado podemos ter; que funções ele deve executar; que funções ele deve delegar; e etc. Essa reforma não existiu, é duvidoso que exista para 2015 e essa é uma crítica legítima a um governo que se apresentou aos portugueses com um plano para “transformar” o mastodonte. O que sobrou? Sim, cortes à bruta. E uma situação fiscal próxima do confisco. São os típicos expedientes de governos impreparados que recebem o país de tanga, como dizia o outro. Não há milagres. Nem inocentes.

 

O que é que devíamos ter mudado mesmo, e como? Sistema eleitoral?, modo de funcionamento da justiça?, redistribuição de riqueza?

A reforma do sistema eleitoral já devia ter sido feita para acabar com o “voto de cabresto”, uma expressão brasileira que eu adoro, e que existe nos partidos com representação parlamentar. Consiste em enchouriçar listas de deputados com nulidades avulsas que depois fazem figura de corpo presente no hemiciclo e, mesmo em matérias que não são estruturais para o partido, votam de acordo com os mandos do chefe. Um sistema eleitoral decente devia começar por responsabilizar cada deputado perante os seus eleitores, que deviam ter a possibilidade de o premiar ou punir na eleição seguinte.

Sobre a justiça, enfim, nem temos espaço. Basta olhar para a punição da grande criminalidade económica: não existe. Não conheço. De duas, uma: ou temos uma justiça incompetente; ou somos o único país do mundo civilizado onde a grande criminalidade económica não existe, o que devia merecer uma referência no Livro do Guinness.

 

Se tivermos um governo socialista no próximo ano, será fácil voltar ao estado anterior, ou há uma reconfiguração fundante que tem de ser feita, e que vai levar tempo?

Não voltaremos mais ao mundo que tivemos. Quem disser o contrário, mente. E não voltaremos porque, com a crise, o país perdeu soberania orçamental, ou seja, e trocado por miúdos, rédea solta para as loucuras do costume. A partir de agora, e com a assinatura dos três partidos do regime (é importante lembrar isto, porque o dr. António Costa anda com problemas de memória), as nossas contas passarão a ser vigiadas por Bruxelas. Uma vergonha? Com certeza. Uma tristeza? Talvez. Mas para citar o sr. Burke, essa é uma lição clássica da política: quando não há tino vindo de dentro, alguém acaba por nos impor tino de fora. Claro que estas coisas costumam acabar mal: alimentam extremismos, nacionalismos, etc.

 

Como já acontece na Europa.

Sim. E podem, no limite, conduzir à ruína da União Europeia. Mas duvido que isso aconteça em Portugal. Entre nós, está tudo bem desde que alguém passe o cheque. Se o outro dizia que Paris vale bem uma missa, nós dizemos que o cheque vale bem a “soberania”.  

 

Como viu o caso BES? Como é que a bomba só explodiu agora, depois da saída da troika? Borrou a pintura ao Governo, à Europa, à troika – para não falar do dano aos accionistas? Quem se saiu pior? Há alguém que se tenha saído bem?

Só posso falar do que leio nos jornais: ou a coisa foi má gestão de proporções homéricas ou então é um caso de polícia. Deixemos a apuração dos factos às autoridades competentes. O problema é saber se elas são mesmo competentes, porque a novela GES parece mostrar, de forma quase cómica, que governos, reguladores, órgãos de comunicação, a troika e sei lá quem mais, ao nunca terem dado por nada, foram de um incompetência atroz. Desconfio que se a ruína do Grupo não tivesse começado a ser investigada lá fora, continuava tudo cá dentro no sono dos justos.

 

Não há-de ser por acaso que desde a queda do Lehman Brothers tombaram, de maneiras diferentes e por diferentes razões, BPN, BPP, BES (para não falar da situação de pré-falência de outros bancos, como o Banif). Que explicação dá?

As razões são distintas mas partem de um mesmo problema: falta de supervisão. Porque é preciso fazer uma distinção importante entre os abusos e a vigilância deles. Abusos sempre existirão e não têm nada de especial: como se costuma dizer, acontece nas melhores famílias. O que é grave é a incapacidade de os travar e punir no momento certo. O Banco de Portugal, com Vítor Constâncio, saiu pessimamente da pintura do BPN. Mas, cuidado, Carlos Costa não sai melhor agora.

 

Não acha estranho que Ulrich e os outros não tenham aparecido a barafustar “ai não aguentamos, não aguentamos”? E não acha estranho que os bancos, que nada têm que ver com o que se passou no BES, sejam chamados a pagar a factura (e não me refiro às taxas, que só daqui a cem anos permitiriam pagar o que agora se adiantou)? Como olha para as repercussões internacionais desta medida (falo da fuga de investidores)?

Essa é a parte que verdadeiramente devia preocupar qualquer português: saber se os quatro anos de sacrifícios podem ser postos em causa por uma maçã podre que assusta os mercados e nos fazem regressar para trás. Passos Coelho esteve bem quando não aceitou a demissão de Paulo Portas no Verão passado; se não o tivesse feito, a saída do programa teria sido à grega, e não à irlandesa, mesmo com todas as incertezas orçamentais que pairam sobre o país no futuro próximo. Com o GES, este é o seu segundo momento decisivo e até agora o primeiro-ministro tem agido com prudência, vigilância e recato, como convém. Ter separado as águas com o Novo Banco, resguardando os clientes, está a anos-luz da aventura lunática da nacionalização do BPN.

 

Olhe para Portugal como uma família. De doidos? Quem se safa? Ou vai tudo directo para o manicómio?

Não, não olho como um manicómio. Olho da mesma forma que um pai para um filho: com exigência e amor. Há 16 anos ininterruptos que escrevo sobre Portugal. Acha que isso seria possível se não me importasse com o que somos e fazemos? Digo-lhe desde já: não seria possível. Portugal é uma obsessão e só nos tornamos obsessivos com aquilo que é significativo para nós. O contrário disto é a indiferença, que é bem pior do que a crítica excessiva. Não me confunda com o típico escriba queirosiano, que acha isto tudo uma pocilga mas, ironicamente, só a pocilga é que o aceita e reconhece. Eu vivo cá porque escolhi viver: se quisesse, já teria feito as malas para São Paulo, por exemplo, onde sou muitíssimo bem tratado e onde até teria vantagens materiais consideráveis. Mas Portugal é o meu país, a minha língua, a minha gente. Sem ressentimentos.

 

Quando é que vamos dar o salto e ser aquele país do caraças que almejamos ser há pelos menos umas décadas? Pergunto de outra maneira: quando é que vamos deixar de ser os cafres da Europa (Padre António Vieira dixit) que somos há pelo menos uns séculos?

Ah, se eu soubesse! Infelizmente, e com a matéria disponível, não me parece que seja para a minha geração, nem para a próxima, nem para a seguinte. Um amigo brasileiro, infelizmente já desaparecido, dizia-me uma coisa com piada: “Vocês, portugueses, já tiveram África, o Brasil, Bruxelas. Agora é só encontrarem a letra C.” Verdade: a nossa história, para além dos mitos grandiloquentes sobre “mares nunca dantes navegados”, é uma história de pobreza e fome. Sair daqui, procurar territórios que não fossem tão exíguos e infecundos como o nosso, foi uma necessidade vital. Por isso veio África, Brasil.

 

E Bruxelas? Tivemos Bruxelas de que maneira?

Bruxelas deu uma ajuda preciosa na consolidação democrática. E agora? Falta-nos a letra C. Falta-nos o tradicional balão de oxigénio para não sufocarmos cá dentro. Ainda temos Bruxelas, sim, mas agora o oxigénio será mais racionado. Pela primeira vez na nossa história, e tal como escrevi há tempos na Folha, estamos condenados a regressar para casa. Talvez seja essa a letra C, o que não é necessariamente mau: arrumar a casa e torná-la sustentável é um desafio bem maior do que vencer o Adamastor.

 

Quando se fala da barreira (que ainda faz todo o sentido?) entre esquerda e direita, fala-se o centímetro em que o Estado intervém e regula as relações entre os cidadãos (para não acabarem todos à batatada?)?

Genericamente, sim, pelo menos desde o século XIX. A divisão entre “esquerda” e “direita” começou por ser uma divisão espacial: nos Estados Gerais da França pré-revolucionária, o Terceiro Estado sentou-se à esquerda do rei e as classes aristocráticas à direita. Mas essa divisão espacial entre os defensores dos privilégios da velha ordem não tem significado hoje. Historicamente, é possível citar vários exemplos de homens da direita que lutaram pelo fim dos privilégios da velha ordem.

 

Quem?

Benjamin Disraeli, o líder dos conservadores ingleses, alargou o direito de voto às classes trabalhadoras urbanas, legalizou os sindicatos, o direito à greve, etc.

Hoje em dia, creio que o filósofo Steven Lukes tem razão quando distingue a esquerda e a direita com aquilo que ele designa por “princípio de rectificação”. Para uma pessoa de esquerda, é função do Estado rectificar as desigualdades de rendimentos entre indivíduos. Para uma pessoa de direita, a função do Estado será mais modesta: garantir, sim, que ninguém caia abaixo de uma linha mínima de decência – mas respeitar a desigualdade que é inerente à condição humana, às diferenças de talento, mérito, etc. Tudo isto parte de uma visão mais optimista (para a esquerda) e mais pessimista (para a direita) da natureza humana. Porque o governo é composto por seres humanos e, nestas matérias, alguém de direita tenderá a relembrar Lord Acton de que o poder corrompe – e o poder absoluto corrompe absolutamente.

 

Na Folha de São Paulo disse que ser conservador em política é dizer ao Estado que não o quer para baby-sitter. Em que domínios precisa dele? Em que matérias somos sempre umas crianças a precisar que nos guiem pela mão?

Para retomar a metáfora da baby-sitter, precisamos do Estado quando nos sentimos tão vulneráveis como uma criança. Precisamos do Estado na justiça, na segurança, na pobreza, na doença. Algumas dessas funções são soberanas e inalienáveis (a justiça é um caso). Mas existem outras em que o importante é fornecer essa rede, independentemente de quem a produz (na saúde, por exemplo). Claro que quando se tenta discutir estes temas complexos, existe sempre um cavernícola que encerra o debate com tiradas guturais, do género: “Querem acabar com a saúde!”, “Querem matar os portugueses!”, “É o regresso do fascismo!”, etc. Em 2014, seria de esperar que este reductio ad hitlerum já estivesse enterrado. Mas a política portuguesa está sempre na vanguarda do atraso.

 

O que é que a geração a que pertence deve ao Estado, à democracia e aos que fizeram Abril?

A minha geração agradece a liberdade: poder ler, pensar, escrever sem o lápis da censura. E, como dizia Popper, agradece poder substituir os políticos incompetentes sem o expediente desagradável de ter que os matar. Isso é muito. Mas não chega. Também agradeceria que, pela incompetência ou pelo abuso, o país não estivesse hipotecado para o resto das nossas vidas úteis. Creio que era a sra. Gertrude Stein quem chamava aos jovens que participaram na Primeira Guerra a “geração perdida”. Fazer comparações com os infelizes de 1914-18 seria obsceno. Mas não são apenas as guerras que fazem gerações perdidas. As elites políticas que tivemos foram cavando a nossa perdição. A minha geração também é uma geração perdida à sua maneira.

 

O que é ser conservador hoje? Pode responder em forma de teaser, a ver se os leitores do Negócios ficam com vontade de comprar o seu livro.

O conservadorismo é uma forma de estar no mundo e uma forma de estar na política. Como forma de estar no mundo, todos somos, em maior ou menor grau, conservadores. Só uma criatura doente, ou lobotomizada, não tem pessoas, coisas, lugares que deseja conservar para desfrutar. Em política, a atitude conservadora parte de uma visão céptica sobre o conhecimento humano para defender que a melhor forma de governar implica uma recusa do pensamento utópico e um compromisso com a realidade, com aquilo que é tangível e necessário, com as tradições que sobreviveram no tempo, sem nunca recusar as reformas necessárias para se salvaguardar aquilo que é precioso em qualquer sociedade. Mas o mais importante para um conservador é “viver e deixar viver”; é limitar o poder do Estado para que sejam as pessoas, como dizia o outro, a tentarem, a falharem e a falharem melhor.

 

O Miguel Esteves Cardoso chamou-lhe numa crónica do Público um golfinho num cardume de sardinhas. Quanto é que lhe pagou?, confesse. Agora falando sério, como cantava o Chico Buarque: em que sentido é um golfinho num cardume de sardinhas? Pela clarividência da análise? Voz isolada? Mas a direita não está cada vez mais confortável, acompanhada?

O Miguel é de uma generosidade excessiva. Sempre foi. Tenho coleccionado vastas cicatrizes nas costas de pretensos amigos. Exibo-as com orgulho. Mas não tenho nenhuma cicatriz dele, apesar de não nos vermos há séculos, com muita pena e saudade minhas. Agora, sobre o golfinho e as sardinhas, felizmente já há mais golfinhos na água. Nos tempos do Indy a solidão era maior. Os insultos também. Mas entretanto vieram os blogues, apareceram outras vozes, a coisa foi-se “normalizando”.

Eu, se me permite a derivação gastronómica, desenvolvi um gosto pantagruélico por sardinhas. No Verão, a coisa toma proporções alarmantes.

 

Fala da política de todos os dias aos seus alunos? Eles procuram o comentário, o bota abaixo o Sócrates (ainda?) ou o bota abaixo o Passos? (A propósito: enquanto politólogo, que explicação encontra para o ódio que Sócrates desencadeia?)

A política de todos os dias não entra na minha sala de aula. E o único Sócrates que lá tem lugar é o original. José Sócrates não me desperta nada. Nunca despertou, pessoalmente falando. Não o conheço e, por amor de Deus, nunca escrevi um texto com “ódio”. Devemos deixar esses sentimentos mais elevados para figuras mais elevadas. As minhas apreciações eram políticas e só políticas. Há pessoas que não conseguem fazer essa separação e acham que é tudo pessoal. O que escrevi, mantenho: foi um mau primeiro-ministro, teve responsabilidades directas na falência do país – mas a partir do momento em que saiu de cena, ou pelo menos passou aos bastidores, deixou de ocupar o meu espaço mental. Agora, se ele ainda desperta sentimentos fortes entre muitos portugueses, isso é compreensível: o país ruiu nas mãos dele, independentemente do contributo da “crise internacional”. E falir não é propriamente um feito que deixe saudades.

 

A rentrée promete ser animada, com primárias no PS e a possibilidade de legislativas antecipadas. Que cenário prevê?

Com novas eleições, prevejo um “empadão”: PS e PSD no mesmo governo, e talvez o CDS se o convidarem com jeitinho. Qualquer outra solução parece-me duvidosa, em vários sentidos da palavra: chegou-se a um ponto tal que até o “empadão” é um mal menor. E as reformas de que o país precisa exigem esse consenso. Resta é saber que nomes estarão no cozinhado.

 

O que é mais plausível?

O caso do PS, apesar do teatro, parece-me mais cristalino: Costa talvez ganhe folgado porque Seguro teve as piores vitórias eleitorais que um líder da oposição pode ter, sobretudo com um país sob austeridade: vitórias que cheiram a derrota. No CDS, duvido que Portas continue para um segundo round. Basta olhar para a cara de frete do homem para ver que ele tem um relógio privado em casa, em contagem decrescente até à sua própria libertação. O caso bicudo está no PSD: se Rui Rio pensa que a liderança social-democrata é um passeio no campo, alguém devia oferecer-lhe antes botas de alpinista.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014 

 

Maria João Avillez

13.11.14

«Já reparou como as mulheres conversam bem?», disse ela? Nós conversámos sobre cutelaria comprada em Portobello, histórias da cena política e dos seus personagens, uma insegurança nunca questionada, uma viagem ao Brasil. Falámos de um turismo de habitação chamado «Na Curva do Rio», e ela, a esse propósito, disse gostar do Naipaul e do livro com este título. A fluidez entre um registo e outro é facilíssima. Finda a entrevista, continuámos a entretecer todas as linhas que trazíamos. Pintámos uma manta (para usar uma má expressão) que só duas mulheres poderiam pintar.

Maria João Avillez é a jornalista que há quarenta anos entrevista políticos em Portugal. Ela acrescenta que é, também, aquela que faz diálogos com o mundo da cultura. Tem uma genealogia por demais conhecida: casada com Francisco van Zeller, irmã de Maria José Nogueira Pinto e de Sum Sum Avillez. Nasceu numa família tradicional, cresceu numa casa que continua a ser sua. Mas essa proveniência, sente que lhe é cobrada ainda hoje. Tem quatro filhos. Falámos na sala, sentadas num mesmo sofá, com Noronha da Costa de um lado (muito antigo, comprado na Buchholz por meia dúzia de contos), e uma “árvore”, escultura de Cristina Ataíde do outro. Daí a dias terminaria um ciclo da sua vida, ligado ao grupo de Balsemão – já deixou o Expresso, e abandona a Sic no fim do ano. Mas em nenhum momento essa noção de fim de caminho nos acompanhou. Para falar a verdade, quase nos esquecemos, ambas, de o mencionar. Entusiasmámo-nos muito mais a falar de Companhia das Índias!

 

Começo pelo mesmo ponto de partida que usei para entrevistar a sua irmã: Fé, Esperança e Caridade. São também vectores essenciais da sua vida?

Para a católica que tento ser – todos os dias a cair, todos os dias a levantar-me – as três virtudes teologais são um instrumento e um amparo. Não será a Esperança a melhor resposta ao cepticismo? Não será a Fé um bom " recado" para a incerteza? E não será a Caridade o melhor desafio para o individualismo?

 

Ainda que os vossos percursos tenham sido muito diferentes, o rio de onde partiram foi o mesmo.

O rio chama-se Campo Grande. É uma sorte, um privilégio [viver na casa onde nasci]. E um certo peso. Há aqui uma matriz pela qual sou simultaneamente responsável, porque me foi dada, que gostaria de prolongar, através da minha vida, e de legar aos meus filhos e netos.

 

O que se percebe na sua casa é que ela está cheia de história. As fotografias são evocativas...

É a nossa história. A fotografia, os objectos que nos dão e que a gente compra.

 

As fotografias dizem quase todas respeito a uniões e a nascimentos – e são as chegadas que reconfiguram as famílias. E fotografias de viagens. Na outra parede, há a história de uma profissional.

A vida faz-se de uma partilha entre as pessoas que aqui vivem. Tenho um filho que é arquitecto em Barcelona, tenho outro filho já casado, tenho outra filha longe daqui. Se geograficamente estamos separados, sentimentalmente, o coração bate junto. Eu só sou explicável pelo meu ponto de partida. Não sou um ser que caiu de pára-quedas no jornalismo, na vida social, nos meus amigos.

 

Não cai de pára-quedas; mas o jornalismo, para uma menina de sociedade, era uma coisa um pouco extravagante, ou não?

Um pouco. O meu começou em jornaizinhos escolares, depois em jornais católicos. Foi tendo um enquadramento que não estava dissonante com a menina de família. Quando se tratou de fazer uma coisa mais séria, percebi muito cedo o que queria.

 

Foi fácil impô-lo?

Impôs-se naturalmente. Sou comunicativa. Gosto de chegar ao outro através da comunicação do que o outro tem para me dizer e do que eu tenho para lhe dizer. Isso fez de mim aquilo que sou há quarenta anos.

 

Conte-me de quando aprendeu a ler. Não sei se tudo não radica aí, nesse gosto pelas palavras.

Gostei imenso de aprender a ler. Aprendi muito depressa. A Sophia de Mello Breyner era prima direita da minha mãe; quando veio do Porto para Lisboa, veio para esta casa do Campo Grande. Quando a minha mãe nos teve às três, lembro-me de nos dar poemas da Sophia para ler, alguns escritos no jardim desta casa. Em casa dos meus pais há livros. Era uma casa aberta, por onde circulavam pessoas interessantes, com quem eles se davam. Não havia o jantar na copa: sempre jantámos à mesa com os nossos pais, a ouvir o que eles diziam, meninas pequeninas.

 

Nunca quis ser romancista?

Não. Mas escrevia, escrevia contos. Ainda no outro dia a arrumar papéis... Vivo a arrumar papéis, gosto de arrumar gavetas...

 

Gosta?

Imenso. Sou do papel. Preciso de ter o papel na mão, de sublinhar, cortar, riscar, anotar. Eu leio um livro com um lápis na mão. Gosto da ordem, mas da revisita, também. Gosto imenso de voltar a ver uma coisa de que gostei, ou não gostei, que me chocou ou deslumbrou. Tenho uma retaguarda disciplinada: se me pedirem um retrato de 1992, ou 87, ou 50, posso ir buscá-lo.

 

Guarda os artigos todos?

Tudo, tudo, tudo. As perguntas das minhas entrevistas na Sic, estão todas no computador e no papel, imagine.

 

Escreve ainda as perguntas ou tem só ideias nucleares?

Não, escrevo tudo. Uma vez o Miguel Sousa Tavares ironizou comigo no ar: “Ai, tantos papéis, tantas fichas”. Gosto muito mais desse lado assumido do que da pretensão de ter tudo na cabeça e depois vem tudo pelo auricular. Uma jornalista tem ali os seus instrumentos de trabalho e assume-os.

 

Estávamos no romance. Então escreve contos?

Não. De vez em quando escrevinho. Tenho textos sobre algumas coisas, mas prefiro a natureza humana à ficção. Por isso é que entrevisto. Gosto da ideia de uma pessoa diante de mim. As pessoas proporcionam deambulações sem fim. [São] como um rio, que ora vai devagarinho, ora vai depressa, ora desagua num lago aprazível.

 

Aprende muito com as entrevistas que faz?

Não faço senão aprender. Também porque parto de uma disponibilidade total. Estou ali para o que der e vier. Evidentemente que se se trata de uma entrevista política tenho que estar atenta à tipologia e à profissão da pessoa que tenho que entrevistar. Não entrevisto um político da mesma maneira que um artista ou um desportista.

 

Coincidem pessoas da esfera pessoal e profissional? Quem são os seus amigos mais antigos?

Os meus amigos são os mais antigos. São os que fizeram uma vida comigo. Uma vida, já viu? Partilhar 60 anos de vida, 50, 55, com algumas pessoas, talvez não haja nada melhor.

 

As pessoas com quem se dá são pessoas de poder?

Não necessariamente. Podem ter passado, episodicamente, pelo poder. Devo dizer que herdei alguns amigos pós-25 de Abril; comecei por ter uma relação jornalística, procurar a pessoa que estava na política, e ao longo dos anos herdar a pessoa que vivia dentro desse político.

 

Considera-se uma mulher de poder?

O que é que isso quer dizer?

 

Quero perguntar-lhe a si qual é a definição de poder. Pode ser poder económico, influência, poder político, poder social.

O único poder que gostava de ter e não sei se tenho, porque o país é invejoso e ressentido, é o de dizer: “Estou aqui a trabalhar a sério, por uma questão de rigor, integridade e decência”. Pela saúde dos meus quatro filhos, é o único poder que me interessa. Se há duas ou três pessoas em Portugal que perceberam isso, já fico contente.

 

No fundo, é o respeito. A credibilidade.

Ser credível. Saber: se ela escreve isto ou se ela diz isto, é porque é assim. Não foi manipulada, não está a querer manipular, não está a vender gato por lebre. O Dr. Cunhal percebeu isso, foi a primeira pessoa que me fez um grande elogio em Portugal.

 

Antes de falar desses homens, queria dizer que li na wikipédia a seguinte nota a seu respeito: “Maria João Avillez, Lisboa, 1945, jornalista, autora de biografias de Mário Soares, Cunhal e Sá-Carneiro. Faz parte dos quadros do Expresso e colabora com a Sic”.

Já está desactualizado, já não estou no Expresso.

 

Nestas linhas está o essencial daquilo por que ficará conhecida, fora do círculo familiar. A convivência com o poder e com homens do poder, o facto de ser uma jornalista que os interpela, é o que mais distingue o seu percurso.

O Cunhal esteve sempre na oposição. O Sá-Carneiro entrou e saiu do poder não sei quantas vezes, o Mário Soares, meu Deus, esteve tanto no poder como na oposição. Largue a palavra poder!

 

Eu não me referia ao exercício do poder. Estava a pensar noutras formar de poder.

Foram igualmente influentes no poder e na oposição – estou de acordo consigo. Fiz jornalismo político, essencialmente, durante muitos anos. Mas fiz também diálogos muito profundos, intensos, bonitos, eu diria, imodestamente, com o mundo da cultura. Aí era outra música, eram sonatas de Schubert. Tenho pena que nunca venha tanto ao de cima como a política. Não quer dizer que seja uma pessoa culta, não sou. Sou é muito atenta e interpelada por todo o mundo da cultura. A política, pelas condições do país, é que me fez fazer jornalismo político.

 

Começamos por Cunhal? Conte-me do vosso primeiro encontro. O seu mundo de origem era conservador e salazarista. Aquele homem representava a antítese disto mesmo.

Mas eu já tinha conhecido muita gente de vários meios. Tinha 28 anos no 25 de Abril. O que me fascinava no Cunhal era a impenetrabilidade e o nunca se conseguir absolutamente nada! Eu, aliás, não consegui muito mais do que os outros. Fazia de conta que conseguia.

 

Fazia de conta?

Fazia de conta perante mim própria. Ao longo dos anos, fui conseguindo tecer uma relação, não diria mais íntima, que seria abusivo e insensato, mas talvez um pouco mais próxima. Ia muitas vezes falar com ele “off the record”. Escorreram algumas coisas no livro que publiquei sobre o Dr. Cunhal.

 

Essas visitas “off the record”: ia falar com ele, ouvi-lo, aprender com ele, recolher informações.

Não ia aprender. No fundo, eram trocas de informações. O pretexto era sempre a política. Era ele a dizer mal dos governos, fossem eles do PSD ou do PS. E depois nascia um diálogo que extravasava para fora do perímetro político. Numa das alturas estava o Herman a começar um dos seus geniais programas na televisão. Gostava de dizer que o país deve imenso ao Herman, riu imenso com ele; gostava de dar-lhe um abraço de gratidão.

 

O Dr. Cunhal ria com o Herman?

Via o Herman José e ria tanto quanto eu, comentava os últimos sketches. Depois, falávamos de pintores se eu tinha ido a uma exposição. Sei que é pretensioso dizer, mas talvez seja verdade: era um pouco como se abrisse uma janela e entrasse ar. E o ar era eu, que chegava ali e contava: “Ontem estive com o Jorge Martins ou com o Júlio Pomar, ou a Menez”. Muito interessante.

 

Ele?

A memória que guardo disto.

 

De entre estes políticos, a relação com Mário Soares foi a mais profícua. Mesmo que politicamente não se situem...

Nada. No Mário Soares o que me tocou foi a relação vital que ele tem com a vida. Aliás, é parecida com a minha. Gosta muito da vida e tem o mesmo prazer a descobrir um país que tem a comer um bom bacalhau no Pap’Açorda.

 

A Maria João também pode comer numa tasca em Freixo de Espada À Cinta?

Ou no melhor restaurante de Londres. O Dr. Mário Soares partiu de duas ou três ideias muito simples, cumpriu-as e resolveu-as. A liberdade, a democracia, a Europa, um Estado de Direito, partidos, uma sociedade civil unida. Reconciliou a sociedade portuguesa, radicalizada, com rancores, quando foi primeiro-ministro em Julho de 76. Também lhe estou grata por isso.

 

Disse há pouco que o país é ingrato…

Convivo muito mal com a ingratidão. Sou uma pessoa grata a Deus, aos meus pais, às pessoas que me empregaram, à vida. Acho nojento ser-se ingrato.

 

Mas este é um traço tão dominante nos portugueses quanto a inveja.

Ah, mas então sou pouco portuguesa. Como sou nos hábitos de trabalho, na disciplina; odeio a meia-coisa, o tanto faz, o logo se vê. Acha-se normal não responder a uma chamada ou a uma carta! Não gosto de desmazelos, o pior defeito dos portugueses é o desmazelo. Por tudo isto, há uma certa solidão no meu trabalho.

 

Já voltamos a Mário Soares. A propósito dessa solidão, a maior parte dos jornalistas não é uma menina bem-nascida...

Mas o que é que interessa isso do bem-nascido? Hei-de estar até aos cem anos a ouvir dizer...

 

Não é uma acusação. O que quero perguntar é se, ao longo da vida, isso a perseguiu.

Senti que me era cobrado. Sempre. Nunca agiria assim. O que interessa é o que uma pessoa é, faz, ou é capaz de fazer, e não o “background” ou a moldura.

 

Ofende-a se as pessoas dizem: “A Maria João Avillez é uma tia que é jornalista”?

Acho imbecil!, que é pior do que ofender. Ainda? O que é preciso fazer mais? Atravessar a ponte sobre o Tejo a fazer o pino? Para mostrar que se trabalha.

 

É insegura?

Sou um bocadinho insegura. Tenho que saber se correu bem.

 

A quem é que telefona imediatamente? Por exemplo, a entrevista ao professor Cavaco: a quem é que telefonou depois do programa?

Não telefonei, telefonaram-me. Se tenho um texto que me causa mais apreensão dou a ler a um ou dois amigos antes. Ainda faço isso.

 

No regresso a casa, depois da emissão de um programa, não telefona para o marido ou para um dos filhos a perguntar se correu bem?

Os filhos, santos de casa não fazem milagres: não vêem a maior parte dos programas. Para eles, é como o pai estar a trabalhar não sei onde. Podem ver quando há uma pessoa que lhes interesse, mas não é pela mãe, é pelo convidado. Ao meu marido é que pergunto muito e que me diz muito. Presto muita atenção ao que ele diz: é de muito bom conselho, tem uma severidade doce.

 

Deixe-me insistir: foi mais cobrado o facto de ser mulher, o ser bonita, ou o meio social?

O meio social. Há quinze dias um jornalista perguntou-me se eu era “queque”. O meu meio social, a casa onde nasci e os meus pais, estão em tudo nas antípodas da palavra “queque”. Se ainda há estas confusões ao fim de quarenta anos de bons e leais serviços no jornalismo, caramba!

 

O jornalismo era uma forma de rebeldia e de assunção da sua personalidade em relação aos seus pais?

Não precisávamos de ser rebeldes porque não éramos nem manietadas, nem formatadas, nem preconceituosamente formatas. Nunca senti que precisasse de ser rebelde em relação ao meu meio social. O que percebi foi que, apesar desse meio, tinha que tentar ser o melhor possível na minha profissão.

 

As discussões acesas que, consta, tinha com os seus pais, foram determinantes na definição da sua identidade?

Não. O que retenho como mais essencial foi o clima de inteligência e de abertura. Foi uma espécie de imagem de marca da casa que nos fez voar. É o que mais lhes agradeço, aos meus pais.

 

Mas nessas discussões, também exercitava o verbo, o poder de argumentação.

Absolutamente. Sou impaciente e irritava-me na altura, mas depois passava-me, porque o que era residual, o importante, era mais um passo andado na caminhada. E não a amargura dessa de confronto.

 

Mas então, era preciso ter a certeza de um amor e de uma rede onde pudessem caber todas as discussões…

Mas a rede era de aço. Ainda é. Os meus filhos quando estão aqui a almoçar comigo são capazes de me deixar à mesa sem eu ainda ter acabado de almoçar para não perderem o café nos avós. A casa dos avós é sagrada porque se discute integralmente tudo.

 

Quando era mais pequena, e quando começou no jornalismo, alguma vez confundiu a admiração com o afecto? Sentir que era estimada porque se comportava de determinada maneira, porque cumpria profissionalmente. Sentiu um amor que existia independentemente do comportamento?

Pela parte dos meus pais? Sim, completamente. O orgulho que poderia haver quando começámos a voar menos mal era qualquer coisa que vinha em cima do amor.

 

Isso é uma bênção, porque muitas vezes estão fundidos.

É de tal maneira assim que nunca me ocorreu [questionar isso]. É a primeira vez que penso nisso.

 

Onde é que radica a sua insegurança? Por que é que apesar das provas que deu e dessa rede de aço, ainda fica...

Hesitante? Não tenho nada a certeza, quando acabo uma coisa, de ter sido bom. Mesmo que tenha sido. Pergunto logo à minha produtora e à minha realizadora. Apesar de ir muito preparada, há uma parte imponderável. Não sei onde radica a minha insegurança. Terei que saber?

 

Não, mas pensei que pudesse ter-se perguntado e tentado resolver isso.

Já me habitei a ela, vivo há tantos anos com ela. Se perguntar às minhas irmãs, elas dizem-lhe que há um lado inseguro em mim. Não podem deixar de dizer. Sou a mais velha. Depois é a Sum Sum, depois é a Zezinha. Talvez porque estou exposta [seja a mais insegura]. É como você dizer o “louro castanho” ou “sardas”: fazem parte de mim. Pode ser-se inseguro como se pode fumar ou ter jeito para cantar.

 

É como que um traço constitutivo.

Exactamente. As pessoas mais depressa são levadas a achar que sou segura do que insegura. Mas a aparência de excesso de segurança, o “aqui estou eu”, provém, justamente, da insegurança.

 

Por isso prepara-se tão exaustivamente? Mesmo que não corra bem, fica com a consciência de ter feito o trabalho de casa.

Sim, sim. Também o faço por escrúpulo profissional. É por ofício, gosto mais de dizer assim.

 

Estava nervosa e insegura quando entrevistou o professor Cavaco Silva?

Era uma ocasião especial, porque era a primeira entrevista como Presidente da República. Aí, preparei-me.

 

Senti, justamente, um excesso de preparação! Parecia haver uma ansiedade na sua voz...

Não me diga! Parecia? A entrevista começou muito mal, os primeiros cinco minutos foram muito maçadores e depois levantou voo muito bem. O professor Cavaco tinha duas ou três mensagens, muito preparadas, que queria deixar de uma forma muito clara, incisiva. Eu gostaria de um pouco mais. Daí talvez a ansiedade de querer fazer mais perguntas.

 

Sentiu-se muito gratificada e reconhecida por ele lhe ter dado a entrevista a si?

Senti. Há uma parte de reconhecimento da pessoa, um mínimo de amizade, mas aquilo foi à jornalista, foi um reconhecimento profissional que agradeço. Da mesma forma, o Dr. Mário Soares podia ter feito aqueles três livros com uma jornalista de esquerda, mais próxima dele, e fez comigo. A gratidão é incomensurável até ao fim dos meus dias.

 

Com Mário Soares aprendeu muito? Foi uma relação mais forte?

Estivemos em viagens, em férias, na casa dele, em minha casa, no trabalho, em São Bento, em Belém, no partido: enriqueceu-me muito. Ver viver, actuar, existir o Dr. Mário Soares é gratificante. Mesmo discordando – ainda agora discordei da candidatura à Presidência. Ele tem aquela relação com a vida porque está bem na sua pele. Isso não tem preço e o dinheiro não dá. Sabe como é que me defino? Tenho tudo o que o dinheiro não dá. A energia, a curiosidade, o gosto pela vida, a capacidade de trabalho – o dinheiro não me dá, não compra.

 

O dinheiro nunca ocupou um lugar muito importante na sua vida?

Não. Os tais imbecis, invejosos, dirão que é porque o tenho. Vivo igualmente feliz com pouco e com muito, já tive mais e já tive menos.

 

Estávamos a falar da sua mala: é da Zara e parecida com a Birkin da Hermès. Porque é que compra uma da Zara e não compra uma da Hermès?

Porque gosto mais de, com o dinheiro com que compraria uma Hermès, ir aos leilões. Sou muito fã da Zara. O dinheiro que posso gastar em pequenos luxos é nos leilões, nos quadros e nas galerias de pintura.

 

Que tipo de peças procura nos leilões?

Vou com uma disponibilidade total. É a peça piscar-me o olho. Tanto pode ser uma porcelana, como um desenho, um móvel. A última extravagância foi comprar pratos para dez pessoas, que é o que a minha mesa leva, de Companhia das Índias, propositadamente desirmanado. Só me faltam dois pratos de doce. Fui fazendo ao longo do tempo.

 

Persegue isso como quem faz um puzzle, com o propósito de se entreter?

Sim, sim. Começo o ano de 2007 à procura de dois pratos de doce Companhia das Índias!

 

“God is in details”. Nessa procura (pela Companhia das Índias desirmanada) o que se revela de si?

É o gosto de ir comprando, de não comprar tudo de uma vez. A surpresa: o que é que o próximo leilão traz? O ser capaz. Ganhei, fui capaz. Consegui licitar, consegui descobrir. Conseguir é um verbo que declino muito. Tenho que conseguir esta entrevista, tenho que conseguir escrever isto bem.

 

Fica furiosa se lhe recusam uma entrevista?

Fico. Mas não me aconteceu muito. Nestes cinco anos na Sic aconteceu talvez três vezes.

 

Convida indistintamente? Pensa: “Aquela pessoa não tem uma boa relação com o meu marido ou com a minha irmã”?

Por amor de Deus!

 

Estou a tentar perceber se estes termos são equacionados.

Nunca equacionei. As duas únicas coisas que me fazem convidar são haver uma relação com a actualidade e, sobretudo, ser uma pessoa que valha a pena. Não tem a ver com o ser socialmente não sei quê. E depois, se possível, relacionar isso com a actualidade. Por exemplo, para a semana é Natal [entrevista realizada a 14 Dez], quem é que tenho que me fale bem do mistério de Natal, que seja um bom conversador, que traga qualquer coisa e que deixe aqui um rasto?

 

O José Tolentino Mendonça.

Pronto, é ele. Não sabia? É verdade.

 

O país é muito pequeno e as pessoas conhecem-se todas, e por isso é muito fácil que se cruzem, que as histórias, as zangas, as amizades, que tudo isto...

Interligue demais. É uma espécie de Lisboa em camisa, toda a gente é íntima de toda a gente, toda a gente é primo de toda a gente. Faz-me muita impressão, acho nocivo, mas, “hélàs”, o que é que posso fazer?

 

O outro político, cuja biografia escreveu, é Sá Carneiro. Não é segredo que a Maria João politicamente se situa na social-democracia.

Com certeza. E que voto no PSD. Quase sempre, nem sempre.

 

Sente que esta relação foi privilegiada pelo facto de partilharem os mesmos ideais políticos?

Não. Conheci o Sá Carneiro tarde, infelizmente. Mas entre 78 e 80 tentei recuperar o tempo perdido. Ele achava-me, parecia-me, uma inconsciente, porque eu ainda falava muito da revolução, ainda estava agarrada a certos arquétipos. Era um homem íntegro e decente, com uma grande energia. Não tinha ilusões nem sobre Portugal, nem sobre nós; mas, ao mesmo tempo, acreditava que talvez fosse possível fazer qualquer coisa.

 

O que é que mais admirava nele?

Conhecia muito bem a natureza humana. Tinha a capacidade de antever as coisas. Teve muitas vezes razão antes de tempo. Era de uma enorme coragem, determinação, rigor intelectual. Não havia ali nenhuma espécie de batota, nem o mais pequeno vislumbre de hipocrisia. E depois, com muitos saltos de humor. Não era uma pessoa fácil. Mas fez imensa falta.

 

Neste móvel estão fotografias suas com os seus entrevistados mais famosos. Entrevistou toda a gente?

Sim.

 

As fotografias do outro lado da sala são com pessoas da sua família. Elas reconhecem-na no seu personagem público?

Não há aqui a palavra público, porque em casa ninguém é público. No século XIX dizia-se que ninguém é público para o seu criado de quarto. Mas diria que há um certo orgulho, um certo reconhecimento – a mãe foi capaz de fazer isto, e isto exprime uma caminhada. Não gosto da palavra carreira.

 

Por que é que não estão aqui fotografias de encontros profissionais do seu marido?

Não tem nada a ver, não é jornalista. Aquilo é o espelho do meu ofício.


O que escreviam os seus filhos sobre o pai e a mãe nas redacções da escola?

Tenho ideia de coisas normais, felizmente. A normalidade dá-me segurança. Eles habituaram-se desde pequenos a ver a mãe a trabalhar como o pai. Os meus filhos viram cá em casa gente do Partido Comunista, do Partido Socialista, do PP, do PSD, viram Presidentes da República, ex-presidentes, pessoas em desgraça politicamente, artistas, cantores. Assim como viram a madrinha deles ou uma prima minha. Não há nenhuma distinção. Isso foi feito por mim e pelo meu marido. Temos duas grandes qualidades: essa e termos durado. “La dureé”.

 

O que é que isso quer dizer?

Que se quis durar. Que se quis prosseguir junto.


Pode falar-me da vossa relação? Não deve ser nada fácil para ele conviver com uma mulher que é tão cheia de força.

Hoje em dia é ele que aparece todos os dias na televisão! E os ministros e políticos quando falam cá para casa, é para ele – estou a brincar.

 

Concorda comigo?

Concordo apenas que sou mais aparatosa, mais exuberante. Mas isso é como as pessoas que fumam ou não fumam: nasci assim.

 

Teve muito mais protagonismo do que ele...

Exposta, sim. A sua pergunta é?

 

Se isso foi uma coisa que marcou a vossa relação. Se é um homem especial por ter sabido viver com isso.

Ele é especial porque é especial. E como é especial soube viver com isso. Quando digo especial é a integridade, a seriedade, a bondade. Posso até ter uma personalidade mais forte – não estou a qualificar se é bom, se é mau. Mas ele é a âncora e eu o barco que vai e vem.

 

Ele tem mais ascendente sobre si do que a Maria João sobre ele?

Tem. Sei que não parece, mas não faz mal. Rio-me imenso com as coisas que não parecem. É preciso saber olhar, saber ver o outro. Quem preste atenção, percebe que ele é muito mais aglutinador do que eu. Sendo discreto, doce, distante, silencioso. Eu aparatosa, barulhenta, exuberante.

 

Quando é que o encontrou?

Encontrei-o no Verão, e percebi logo que era por ali. Casei-me um ano e dois meses depois. Tinha acabado de fazer 21 anos. Novíssima. Já trabalhava e voltei a trabalhar.

 

Já tinha feito televisão na RTP. Como é que começou?

Estreei-me no “Programa Juvenil” da Yvete Centeno, que era minha professora do sexto ano de Letras – foi a minha sorte. Eu fiz um texto sobre a Florbela Espanca, ela gostou muito e convidou-me para dizer o texto e falar sobre a Florbela ao programa dela.

 

A sua voz já era assim grave e forte?

Acho que é grave de mais. Parece que estou sempre a cair de bêbeda com esta voz. Parece uma ressaca de álcool, que é pior do que alcoólica. Tinha voz rouca, mas não tão baixa.

 

A voz é das coisas mais distintivas em si.

Entro numa loja e as pessoas podem não dizer nada. Eu digo: “Se faz favor, é uma bica”, e viram-se imediatamente não sei quantas cabeças.

 

Não gosta muito dela?

Não. Gostava que fosse um bocadinho menos rouca. Tenho a mesma energia na voz que tenho na vida. Tenho na voz o mesmo tipo de pressa, de impaciência [que tinha na juventude]. Também é uma coisa em que nunca tinha pensado.

 

Quais foram os grandes reveses da sua vida? Porque isso marca também uma pessoa.

Só se cresce se se teve reveses. Só se tem amigos se se tiver inimigos. Tenho uma lucidez muito grande sobre isso. Reveses, não gostaria de falar sobre isso. Mas foram alguns e muito pesados. Deus um dia há-de explicar-me porquê.

 

Vira-se para Deus e pergunta: “Porque é que me mandaste isto?”

“Por que é que Tu me mandaste isto”, sim, sim. Discuto, “hardly”.

 

Não há muitos meses, houve aquele episódio com a carteira de jornalista e o Banco Privado. Foi um revés sério?

Não teve importância nenhuma. Foi mais uma manifestação exuberante da invejazinha. Já nem me lembro. Revés é ter perdido um filho. Nunca se volta a ser o que se foi, por muito que se goste da vida, que o caminho seja sempre para a frente. Eu sei o que são reveses e por isso não os confundo com uma merda de uma carteira...

 

Diz merda?

Com certeza que digo!, não me venha com chichés!

 

Há pouco, em off, disse. Mas não pensei que o fizesse na entrevista.

Não é considerado muito bonito, é uma questão de bom gosto. Mas às vezes digo palavrões.

 

Mas são interjeições. É o mesmo que dizer: “Ai que chatice”.

Exactamente. De uma pessoa que quer tudo já. As mulheres falam muito bem, já reparou? Quando as mulheres se entendem há um fio que nunca é comparável com o fio que se pode tecer entre uma mulher e um homem.

 

A facilidade com que passámos das malas da Zara para o Sá Carneiro não seria possível com um homem.

De maneira nenhuma. Que confusão que lhes fazia à cabeça.

 

Acha que se sentiam atentados na sua masculinidade, na sua virilidade, se falassem de assuntos tão frívolos?

Não é nada disso, simplesmente não são capazes.

 

Quando entrevistou a Thatcher, sentiu esse fio?

Ai, gelada, gelada. Foi “straight to the point” às perguntas, aviou-me em vinte minutos, e não teve história. Não consigo recordar mais do que uma mulher muito eficaz, muito racional e muito fria. No entanto, foi uma formidável primeira-ministra. Um mês depois nascia o meu quarto filho, Francisco. Era de tal maneira patente a minha gravidez, ela podia ter dito qualquer coisa, “é um menino ou uma menina?”, “quando é que nasce?”, “tem passado bem?”. Nada. Nunca me esqueci disso.

 

Seria capaz de fazer isso a um entrevistado seu?

Não. Mas talvez fosse outra época.


Portanto, o que marca são os reveses e os encontros?

Os encontros. “Faire la fête” é um dom, e Deus deu-mo integralmente. Tenho um lado festivo que os tais imbecis podem confundir com mundano: não tem nada a ver com o mundo. Quando estou completamente sozinha na Foz do Arelho, não há mundanismo e há festa.


Em relação à vida, tem a sensação de ter acertado?

Tenho a sensação de ter feito o possível. Mas bati muitas vezes com a cabeça nas paredes, tive reveses, desgostos insuperáveis, alegrias desmedidas. Uma pessoa só é digna desse nome se tiver conhecido a mágoa e a alegria, a dor e a festa, a lágrima e o sorriso. Se não, o que é que esteve aqui a fazer?

 

[Já depois de desligarmos o gravador…]

 

Já reparou que nos esquecemos, as duas, de falar da sua saída da Sic? É um ciclo que se encerra.

Há coisas que chegam ao fim, como os iogurtes têm um prazo. Empenhei-me imenso, trabalhei bem, mas estava um bocadinho cansada de fazer isto semanalmente. Já tinha entrevistado toda a gente, já tinha bisado algumas pessoas e excepcionalmente trisado, (pessoas que mudaram de cargo, ou mudaram de vida). Ninguém me apanhará a criticar ou a lamentar estes cinco anos. Gostei muito, enquanto duraram. Agora vou estudar projectos editoriais, vou viajar com menos pressa. Saí do Expresso para a Sábado, estou muito contente. É uma revista inteligente e bem feita, onde assino uma coluna, e vou fazer reportagens a partir de Janeiro. Começo 2007 com muita “anima”.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2007

 

 

Jorge Armindo

12.11.14

Conhece o Jorge Teixeira? O Jorge que praticava desporto, que era um líder do seu grupo, que comia como os negros a moamba, que não se deixava influenciar a dar umas passas de liamba. O Jorge que tinha uma garridice que só África consente e que teve que limitá-la, um pouco, só um pouco, neste sítio onde nasceu, mas de onde era pouco. Ajustar a “escala de valores” – para usar a expressão dele. Valores estéticos. O Jorge “realmente malandro”, a quem o pai punha rédea curta mas que chegou a dar aulas na Faculdade de Economia do Porto, e se preparava para fazer o doutoramento na Escócia.

Mas foi no regresso de umas férias em Espanha que decidiu mudar de vida. Estava a começar a ser o Jorge Armindo – que conhece bem, ou julga que conhece. Ele vinha de um parque de campismo, onde o dinheiro era esticado para dar para todos os almoços. Guiava um carro que fazia um repuxo em certas partes do caminho. Passaram 30 anos, e Jorge Armindo fala-me dos projectos turísticos nos quais está envolvido, pergunta-me se eu gosto de spas, oferece boleia num carro que impressiona. É outro homem? Não! É outra vida, mas não outro homem.

Jorge Armindo tem do tempo em que era Jorge Teixeira uma certa rudeza que não quis polir. Demasiado orgulhoso para isso. E o sangue palpita demasiado nas veias, na cara que se faz vermelha, para o conseguir amansar. Houve uma “evolução” natural: ele agora sabe quais são os melhores tintos que se produzem no país, e não usa joias que se topem à vista desarmada. Mas não resiste a mostrar o cordão que usa ao peito quando lhe falo da pulseirinha da África do Sul, o penduricalho que reluz na fotografia que leva para me mostrar. Ele agora compra não só a Paula Rego ou a Vieira da Silva, consagradas e valiosas, mesmo que não interesse nada o que lá está representado, mas também a Menez e o Ângelo de Sousa – já não é para todos.

Há umas semanas almocei com o Jorge Armindo que todos conhecem e que eu conhecia das fotografias. Apareceu ao meio dia e meio, como combinado, e notou logo que estava 17 kilos mais magro! Grande sacrifício, desde Novembro passado. Não me recordo agora se comeu carboidratos ao almoço, mas disse-me que aprendeu a gostar de legumes. O rodovalho era óptimo. E ele portou-se como um anfitrião que conhece todos os cantos à casa – o pessoal do restaurante, respeitosamente, “o senhor doutor isto, o senhor doutor vai desejar aquilo”.

Pelo meio, houve alguma bazófia endinheirada (como quando fala da casa de Canelas, com governanta e jardineiro, uma casa como deve ser). Mas creio não estar a ser ingénua quando afirmo que, apesar desse lado, que muitos reputariam de boçal, há nele uma paixão e uma espontaneidade que deixaram de se fabricar. Um dia um administrador de um banco disse-lhe que ele parecia uma “rock star”; nunca se esqueceu disso. Jorge Armindo tem orgulho na sua têmpera. Para quê ser dissimulado quando se está bem na sua pele? Riso alarve, mãozinha sapuda? Eu vi nele um trabalhador infatigável, uma pessoa que gosta de viver, e um homem que não desiste de um certo idealismo.

Meu caro leitor, apresento-lhe o Jorge Armindo, que em tempos foi Jorge Teixeira.

  

Começamos pelo seu nome? Muita gente pensa que Armindo é apelido, mas é, como Jorge, nome próprio. Por que é que se chama Jorge Armindo?

Sempre fui Jorge Teixeira. Eu vivi em Angola. Nasci no Porto, mas fui para Luanda com seis anos. Fiz muito desporto: hóquei em patins, karaté, ginástica aplicada, futebol de salão, e sempre fui Jorge Teixeira. Voltei para o Porto, fiquei a dar aulas na faculdade, e tinha um colega chamado João Teixeira. Aos poucos, as pessoas começaram a chamar-me Jorge Armindo.

 

Nunca contrariou essa tendência?

Não. O meu pai chama-se Armindo, de primeiro nome... Comecei a gostar de ser Jorge Armindo. Com a evolução das minhas relações sociais, fiquei Jorge Armindo. Até hoje.

 

Digamos que se formou em Angola. É como se tivesse nascido em Angola.
É bom dizer que durante o tempo que estive em Angola, só cá vim uma vez. Entre os seis e os 23 anos, só vim uma vez. Agora, vou a Angola com frequência.

 

E tratam-no como um deles?

Exactamente. Por razões que têm a ver com a grande prudência que caracterizou o meu pai, fui para Escola Técnica. O meu pai quis que eu tirasse um curso que me permitisse trabalhar, (no caso de não poder tirar um curso superior). Uma enxada, como ele próprio dizia. Convivi muito com a população africana, que frequentava mais esse tipo de ensino. É uma grande surpresa até, para muitos amigos que tenho em Angola, quando lhes digo que afinal nasci no Porto. Consideram-me um verdadeiro angolano.

 

Se a intenção, modesta, era dar-lhe uma enxada, os voos para os quais estava a ser lançado não eram tão ambiciosos quanto a vida revelou que podiam ser. Volta como um vencedor... Esse sentimento acompanha-o no regresso àquele lugar?

Não, não. Convivi com pessoas de todos os extractos sociais. Desde comer moamba, com pirão, que aprendi a comê-la, com os meus colegas africanos, até amigos que sempre tive dentro do bairro de Alvalade, o mais chique de Luanda.

 

Situe-me socialmente a sua família. O que é que o seu pai fazia?

O meu pai era contabilista. É com orgulho que vejo ainda dois ou três prédios emblemáticos da cidade de Luanda, como o Hotel Presidente... Eu tinha os meus oito anos, nove anos, e não havia os computadores; na contabilidade havia livros muito grandes, usava-se o sistema americano. O meu pai levava-me para as fundações desses prédios, aos sábados, apenas para me ocupar. Era director de uma organização muito grande, e depois fazia aquilo a que chamávamos “escrita”, para ter os seus extras. A minha mãe foi sempre dona de casa.

 

Ainda não tinha falado da sua mãe. E desde o início do almoço mencionou umas quantas vezes o seu pai. A referência forte é ele?

É. Estão os dois vivos, felizmente. A minha mãe acarinhava-me, preocupava-se comigo, às vezes até em excesso. O meu pai passava-me regras. Aos 23 anos, quando me formei, é que percebi como se esforçou para ser tão espartano comigo. (Eu era realmente um rapazinho difícil). Procurou transmitir-me valores que são, para mim, muito importantes, de ordem ética, de trabalho, de empenhamento. E de exigência, exigência comigo próprio. Quando fiz 18 anos, o meu pai disse-me: “Quando quiseres tirar a carta de condução, tens que ir trabalhar para a tirar”. Não é que não ma pudesse dar... É curioso, trabalhei para a carta num colégio, que era do Horácio Roque.

 

O mundo é pequeno! Foi quando se formou que percebeu o quanto o seu pai gostava de si?

Sempre percebi que o meu pai gostava muito de mim. Por exemplo, se estivesse com febre, se tivesse a mínima coisa, a minha mãe já não dormia com o meu pai: era eu que dormia com o meu pai. Era aí que o meu pai era o homem que realmente é: humano.

 

Tem uma irmã dois anos mais nova. Mas a atenção recaía sobre si?

Era só porque eu era mais malandro. Eu era muito virado para participar em tudo. Sempre tive características de liderança, no meu bairro, entre os meus amigos.

 

Os seus amigos, aqueles com que jogava à bola, eram negros, e de todas as classes sociais? Não me diga que não havia descriminação...

Também havia uma média burguesia de cor, e esses integravam-se neste género de pessoas: davam festas, iam às farras, juntavam-se nos cafés e esplanadas. Andávamos de mota, tínhamos interesses comuns. Não havia qualquer questão de natureza racial. Era a questão de natureza económica que fazia com que os mais desfavorecidos estivessem afastados, como se costuma dizer, até do alcatrão.

 

Rédea curta e uma enxada. Para fazer o quê à vida?

O meu pai tinha a preocupação da segurança. A estabilidade e a família eram valores do meu pai. O brio profissional, o ser competente. Sempre fui muito ambicioso em termos de metas. A questão financeira foi sempre uma consequência do meu sucesso profissional.

 

Numa linha: o objectivo era o sucesso e não o dinheiro?

Exactamente.

 

Que depois pode traduzir-se, e traduz-se, normalmente, em dinheiro.

Traduz-se normalmente. Muitas vezes transmito mesmo isto, quer ao meu filho, quer aos meus amigos. Tenho dois filhos. Tenho uma mais pequena, fez agora oito anos, e um filho já com 29 anos. São de dois casamentos.

 

O dinheiro não é o mais importante. Mas não estou a falar com um idealista.

Sou é um idealista com os pés mais assentes no chão. Não podemos pensar em determinados ideais da mesma maneira que pensámos aos 20 anos. Mas dentro da minha escala de valores, a honestidade é o primeiro.


Perdoe empregar estes termos, mas o pior que podiam dizer a seu respeito era que “é gatuno, é corrupto”?

Era! O meu pai podia ter sido um homem muito rico, se tivesse feito o que fizeram muitos portugueses que estavam em África; nunca passou aquilo que eram os seus critérios... éticos. Claro que hoje considero-me um comando. Sou uma espécie de “ranger” das empresas, a quem a vida obrigou a não ser ingénuo. De facto, não sou ingénuo quando tenho que lutar – eu luto. Tive que aprender isso, por exemplo, na Portucel.

 

Foi um dos principais responsáveis pela transformação daquilo que era uma empresa forte, mas de dimensão familiar, numa grande empresa internacionalmente reconhecida. A verdade é que não era da família. Agora é casado com uma sobrinha do senhor Amorim... É o seu segundo casamento.

E é na altura em que saio para a Portucel. Fui para a Portucel em 97, e mantive-me no Grupo Amorim com um calendário independente da minha vida pessoal. Não acho negativo o que vou dizer, não o digo em tom depreciativo, e tenho muito gosto que a minha filha seja Amorim: mas os Amorins são um clã. Apesar de tudo, à medida que as famílias crescem, o espírito do clã vai-se passando mais para o núcleo familiar de cada um. Mas continua a existir.

 

É verdade que entrou para o grupo Amorim porque respondeu a um anúncio de jornal?

É. Fui recebido pelo Sr. Américo Amorim, que eu nem sabia quem era. Em 1981, mais ou menos no mês de Outubro. Eu tinha 29 anos e o Sr. Américo Amorim 48 ou 49. Trouxe-lhe esta fotografia que descobri nesta mudança de instalações... [mostra-ma, sobre a o peixe do almoço]. África do Sul. Andei seis anos, a ir de dois em dois meses, a sair daqui domingo à meia-noite e a voltar terça. Saía de lá às oito da noite, chegava cá de madrugada e ia trabalhar. Trabalhei que nem um cão! Mas agora estou a trabalhar mais ainda, portanto, está a ver... A minha mulher pensava que eu ia desacelerando, mas eu vou acelerando.

 

Américo Amorim está igual ao que é hoje. E o senhor parece um miúdo!

Nessa altura já era vice-presidente do grupo Amorim.

 

Conte-me essa ascensão devagar! Foi recebido pelo Sr. Amorim um rapaz de 29 anos. Imaginou que aquele encontro ia mudar a sua vida?

Não.

 

Por que é que concorreu? Queria ganhar mais? Queria deixar a faculdade onde dava aulas?

Casei-me aos 23 anos, e a minha intenção era seguir a carreira académica. Cheguei a trabalhar a inscrição para ir para a Escócia fazer o doutoramento! Estive quatro anos a dar aulas e a fazer escritas, num gabinete que se chamava Gatec, Gabinete Técnico de Contabilidade. E fazia a contabilidade dos Armazéns da Portela, de uma empresa de caldeiras...

 

Tal como o seu pai...

Tal qual o meu pai, para poder completar o ordenado. Dava aulas em Oliveira de Azeméis, na escola secundária, e dava aulas na faculdade, onde não me pagavam, porque, [apesar de contratado], não tinham orçamento. Sempre gostei da parte da gestão, da contabilidade e pedi ao Dr. Baganha e ao Dr. Jesus que me arranjassem estágios não remunerados. Para aprender mais. Fiz uma série de cursos extra-curriculares. Mas aos 29 anos tive a minha prova de fogo. Um convite para vir a Lisboa...

 

Vir a Lisboa, nesse tempo, era equivalente a ir, nos dias que correm, a Nova Iorque...

Fazer uma palestra no Hotel Altis, em que um dos oradores veio a ser Primeiro-ministro: o Prof. Cavaco Silva. Gastei mais de 50 horas a preparar aquela intervenção! E o Prof. Rogério Martins, que era conhecido por ser um tipo muito irónico, tinha sido ministro do governo do Marcelo Caetano e tal, escrevia, escrevia, escrevia. Eu via-o a escrever e pensava: ”Vai atacar-me”. Depois, fala o Prof. Rogério Martins e diz: “Vou limitar-me a fazer uns comentários sobre a brilhante exposição daquele jovem. Quando era da idade dele, ainda preparava as conferências, agora não”. E é verdade, que hoje acontece isso comigo.

 

Esse foi um dos momentos altos da sua vida?

Foi. Estava a contar-lhe como é que decido alterar a vida. Fui fazer umas férias com um casal amigo, para o parque de campismo de Vigo. Eu tinha comprado um carro que levava mais água que gasolina!, tinha que andar com um garrafão de água, que aquilo fervia... Nessa idade tudo é divertido. E então, um colega que estudava bastante comigo, filho do dono da escola de condução Guedes Vieira, vendeu-me um Volkswagen que já tinha feito a escola de condução toda!

 

Que carro tem agora? Só para saber...

Tenho um Mercedes S 320. De facto, fui progredindo, nos automóveis. Eu era muito orgulhoso. O meu sogro era uma pessoa que tinha posses, e até o meu pai; mas nunca quis um escudo nem dos meus pais, nem dos meus sogros.

 

Por que é que era tão orgulhoso?

Não sei. Olhando para trás, acho que levei essa minha maneira de ser talvez demasiado longe.

 

Então, foi passar férias a Vigo.

Fui para o campismo, foi a primeira e a última vez. Íamos para ficar 15 dias, mas no final de, para aí, 12 dias, tinha que contar o dinheiro para ir almoçar. Eu já tinha um filho...

 

Nunca tinha ido ao estrangeiro? Nunca tinha viajado?

Tinha feito uma viagem, com os meus pais, pela Galiza. E [na viagem de regresso ao Porto], vim a pensar nisso: estava a formar alunos que passado uns tempos estariam melhor do que eu. Não era uma questão de ter que lhes ganhar, mas de ter que melhorar as minhas condições de vida. E fui responder a uns anúncios. Não fui logo para o Amorim. Primeiro estive dois anos numa empresa chamada Polinox. Era na zona industrial, perto da Faculdade de Economia – que eu não queria largar a faculdade. Ainda estou a responder àquela sua pergunta...

 

Sobre o que o fez mudar de vida. Enquanto isso, deixe-me fazer-lhe uma pergunta chata: o facto de a família da sua primeira mulher ter posses dava-lhe uma espécie de raiva? Que no íntimo se traduz da seguinte maneira: “Não são mais do que eu, vou conseguir ter mais do que eles”.

Não, não. Fossem quais fossem as circunstâncias, sempre prezo a independência, não gosto de ficar em dívida para com ninguém. O que não toleraria é que pudessem dizer de mim que só cheguei a determinado sítio porque alguém me ajudou. Ai isso não! Ainda hoje digo, quando sabem que a minha mulher é Amorim: “Mas eu já era vice-presidente do Grupo quando me casei”.

 

O encontro com o Sr. Amorim.

Respondi ao anúncio. Vi que era uma empresa exportadora, o que mais me motivou. E ele, ao fim de 15 minutos estava a dizer-me: “Você vem trabalhar comigo. E, primeiro, não é por ser economista, segundo, muito menos por ser lá assistente da faculdade. Você vem trabalhar comigo porque percebe a minha linguagem”.

 

O que é que ele queria dizer com isso?

O Sr. Américo Amorim é um homem com uma força muito grande, cheio de ideias, mas um instintivo. Ele precisava de filtrar algumas ideias. E precisava de alguém que não andasse a atrapalhá-lo com muitas contas. Descobri em mim algo que eu próprio nunca valorizei muito. Eu achava-me bem preparado, até podia ser doutorado, mas nunca valorizei o ser empresário, o ter características que fui vendo que tinha. O Sr. Américo Amorim sempre me deu asas para voar.

 

Chama-lhe sempre e pensa sempre nele como o “Sr. Américo Amorim”?

Exacto.

 

Quando fala com a sua mulher diz “o Sr. Américo Amorim”?

Não, digo “o teu tio”.

 

Com a sua filha diz...

O Tio Américo. Habituei-me a chamar-lhe Sr. Américo, até podia dizer Tio Américo.

 

Ele começou a chamar-lhe Jorge Armindo?

Jorge. Ou Jorge Armindo.

 

Quanto tempo demorou a ser uma pessoa indispensável no grupo?

Seis meses. Vou dizer-lhe: entrei realmente a ganhar muito dinheiro, naquela época. Três vezes mais do que ganhava.

 

Atirou um número, a ver se colava?

Eu sabia que estava a fazer uma opção, que ia largar coisas em que estava a trabalhar – por exemplo, o gabinete que tinha com um colega. Que tinha que largar de vez a ideia do doutoramento. Percebi logo, com a maneira de ser dele, que aquilo ia ser um projecto...

 

Para a vida.

E que ia crescer muito. O Sr. Amorim só me disse assim [a propósito do ordenado]: “Não é mau...”. E outra coisa: “Qual é a minha posição no organigrama?”. E ele: “O que é isso? Aqueles desenhinhos que vocês fazem? Olhe, você um dia faz um, agora, fala comigo”. Apresentou-me os irmãos, os tipos mais antigos do grupo, que eram muito bons técnicos, e está feito. Andei para ali um mês ou dois a ver os papéis passar por cima. Nunca me queixei.

 

Como é que cresceu tanto? Dizem que o seu estilo não é o das grandes convulsões, da força que vem de fora, abana e destrói tudo. O seu estilo caracteriza-se por conseguir que o funcionamento da máquina se adapte a si, a partir de dentro. E a seguir, imprime o seu modo de fazer.

É isso. Se vir que há personalidades que verdadeiramente não aderem, aí, tenho que entrar a matar. Isso é que fui aprendendo ao longo da vida. É a mesma coisa que ter uma equipa de futebol em que há grandes valores, mas o tipo não acredita na técnica do treinador... [Naquele tempo], comecei a estudar bastante a parte da legislação e a descobrir que havia coisas que se podiam fazer que não estavam a ser feitas. Ele começou a pôr-me mais trabalho, mais trabalho, mais trabalho. Eu conseguia responder, trabalhava 14 horas, 15 horas. Ainda hoje, durmo quatro ou cinco horas por dia.

 

Quantos anos tinha, quando passou a administrador?

Trinta. E a vice-presidente do grupo, 36. Foi quando fomos à bolsa.

 

É claro que, apesar de ser muito bom, não era da família. Quando é que percebeu que, sendo um elemento exterior, só podia chegar até determinado ponto?

É preciso ver que a família era toda muito jovem. Este crescimento do grupo foi muito feito pelo Sr. Américo Amorim e por mim. Depois começaram a chegar membros da família que estudaram e que são válidos. Por exemplo, o António Amorim, presidente da Corticeira. Não podia haver pessoa mais certa para aquele lugar, é quase como o Paulo Azevedo na Sonae: um seguidor perfeito.

 

Não digo que não esteja lá por mérito. Digo que, apesar de tudo, tem um apelido Amorim, e o senhor não. É como se fosse uma Cosa Nostra, onde dominam as leis da família.

Eu não estou agarrado a nada material – se há qualidade que tenho, é essa. E tenho muita confiança em mim. Se calhar até tenho demais, o tempo o dirá. Não acho que não seja capaz de mudar de um sítio e vir a estar noutro similar.

 

O que é inegável é que desde logo, ganhou um poder enorme junto de Américo Amorim.

Ganhei um grande protagonismo no grupo. Tinha consciência que isso podia ser pouco confortável..., para que outro membro da família pudesse tomar protagonismo.

 

Está a dizer isso de uma maneira muito polida... E não há lugar de luta mais desenfreada e fratricida que o da família. É normal que alguém que se revela especialmente bom, numa família que funciona como um clã, desperte invejas. É preciso arranjar maneira de lidar com isso: ou se é posto fora, ou se é integrado. Portanto, casou!

Ao contrário. Ter casado com uma Amorim foi o motivo que mais me levou a pensar como é que podia sair dali sem chocar a “opinião pública”.

 

Justamente: agora que não preciso nada de vocês, e que até sou membro da família, hão-de querer-me e eu hei-de estar fora!

Se eu saísse do Grupo Amorim por querer procurar outro tipo de vida, haveria muitas pessoas a dizer: “O Jorge Armindo zangou-se, o Jorge Armindo não sei quê”. E isso era mau. Apareceu-me esse convite para a Portucel, que era para ser em part-time, e que realmente era impossível fazer em part-time.

 

Ouro sobre azul. Há quanto tempo era casado?

Vou fazer 15 anos de casado, fui para a Portucel em 97. Casei-me para aí, quê, em 92.

 

Hoje está na Amorim Turismo. É um dos quatro accionistas, os outros são Amorins. Tanto quanto sei, disseram-lhe: “Se fizer daquilo um caso extraordinário de sucesso, ao cabo de nove anos tem 25%”. Já tem 25%?

Eu comprei-os.

 

É o bolo da sua vida, confesse... Não queria que lhe viesse parar às mãos, se não tivesse que ser conquistado? Vai demorar quanto tempo a pagar esses 25%, os tais nove anos?

Os nove anos não são relevantes, ajudam a solucionar questões. Olhe, fui buscar à banca uma parte. Posso orgulhosamente dizer que fui um gestor muito bem pago. O meu percurso profissional levou-me a auferir bons rendimentos. Nunca discuti um salário. Posso ter chamado à atenção de que se estavam a esquecer de mim..., isso é normal, às vezes também me esqueço dos que falam comigo, mas nunca fiz disso um cavalo de batalha. Mas não estaria em condições de comprar uma participação desta envergadura só com aquilo que ganhei durante a vida. Tive que ir buscar dinheiro. Isso é que caracteriza a fase em que gostaria de estar: ter risco.

 

Esteve estes anos a ganhar dinheiro para outros. Podemos dizer que é rico, mas a sua fortuna não terá comparação, como é evidente, com a do Sr. Américo, que ajudou largamente a construir.

Costumo dizer que a minha fortuna está no meu telefone [tira do bolso e mostra-o].


Como assim?

A minha lista de amigos que acreditam em mim e que me põem dinheiro nas mãos. O meu grande risco é falhar. Não tenho um baú que me permita dizer: “Já tenho o suficiente para não me preocupar”. Não ficarei numa situação de pobreza, mas o meu nível de vida tem que ser mais regrado. O que construí ao longo da vida foi um crédito sobre as pessoas empresárias, banqueiros, sei lá, institucionais.

 

Toda a gente lhe atende o telefone?

Exacto. E quando tenho um projecto as pessoas ouvem-me e sabem que acredito no que lhes estou a expor. E posso estar errado.

 

A sua fortuna é o seu nome?

É. Não sou da classe A, mas não tive privações. E a minha mãe, coitadinha, fazia muito sacrifício, que eu era vaidoso...

 

Costurava, ela?

Não. Mas sempre arranjava dinheiro para eu andar com as “sweat-shirts” da moda e as calças da moda. Eu realmente era [vaidoso], como aliás sou, quando estou mais magro. Eu sou um homem de moda, gosto dessas coisas. Quando estou gordo, desinteresso-me. Estou num dia em que tenho o cabelo mais curto, o barbeiro aparou-mo hoje, mal porque nunca o corto tão curto. As pessoas associam-me a uma certa imagem... Eu ia a sítios, a Londres, tenho fatos feitos pelos Manéis. Eles tinham uma boutique no Porto que se chamava Cúmplice, e eu vestia-me na Cúmplice. Já não vestia um fato desta cor há anos!

 

Então porquê?

A minha mulher é mais clássica. Eu ponho-a mais moderna e ela põe-me a mim um bocado mais clássico.

 

Mas acha que esse fato é muito ousado? É um fato cinza claro. Ousada é a gravata, que é de um cor-de-rosa forte.

Esta foi a minha mulher que me ofereceu. A minha mulher já evoluiu.

 

Quando começou a chegar aos bancos, a dar-se com essas pessoas, olhou para si e pensou: "Preciso de um banho de loja! Preciso de pôr aqui um verniz burguês a atirar para o aristocrático"?

Não.

 

"Fala a minha linguagem", disse o Sr. Amorim quando o viu. Falar a linguagem da gente simples, despreconceituosa, despretensiosa, foi fundamental para conseguir estabelecer essa relação com ele?

Foi. A minha integração em Lisboa? Estou integradíssimo em Lisboa. Tenho amigos no mundo empresarial, já não são pessoas de conveniência.

 

Convidam-no para as festas?

Para as festas e para casa e para férias. Eu organizo todos os anos um almoço de lampreia e convido pessoas para a minha casa, que mantenho em Canelas (Vila Nova de Gaia); uma casa a sério, com 7000 metros quadrados de terreno, árvores, tenho uma governanta, um jardineiro. Posso dizer que as pessoas que estão hoje nos lugares mais cimeiros da economia vão a Gaia para estar connosco. É já uma coisa para 140 pessoas.

 

[O empregado pergunta pela sobremesa. Jorge Armindo pede chá Earl Grey, porque só bebe whisky ao fim-de-semana e não gosta de café.]

 

Os amigos formam um clã alternativo, alargado e assente em regras diferentes. As pessoas conhecem-se, amparam-se, não se traem. É este o espírito?

A traição é punida. A mim preocupa-me muito a lealdade. Quem é traiçoeiro é punido pela sociedade. Vai acabar por cair. A lealdade é que é um sentimento nobre. Eu posso ser prejudicado, mas sou prejudicado uma vez só, porque aquilo torna-se tão visível que a [notícia da] traição espalha-se. A traição, não repugna ser denunciada.

 

Que características suas é que o podem fazer perder?

Fazer perder, a mim?

 

Todos temos os nossos telhados de vidro...

Telhados de vidro, também os tenho. Só não são é do mundo dos negócios.

 

O problema é quando eles interferem no mundo dos negócios.

Mesmo no mundo dos negócios, podemos ser mal interpretados. Tenho a consciência muito tranquila: se alguma coisa me pudesse ser apontada seria necessariamente um equívoco. E eu, quando há um equívoco, sou muito frontal e vou esclarecê-lo.

 

O que me está a dizer é que conquistou uma posição e uma independência tais, mercê do seu trabalho e sucesso, que nada o pode atingir que não seja da esfera dos negócios. É isso?

Sim. É esse o mundo em que podia ser mais penalizado. É nesse mundo que praticamente vivo. Ainda por cima sou muito transparente. Podia até dizer que tenho excesso de transparência. Não tenho preconceitos sobre a minha vida. O que é que já fui. O que é que já fiz. O que é que faço. Não tenho segredos de Polichinelo. Sei que há muita inveja, mas as pessoas não têm muitas formas de me atacar. Quando alguém pretender fazê-lo, acaba por encontrar algo que não era tão sigiloso como poderia pensar.

 

Há uma pergunta de atrás que ficou por responder: não teve necessidade de pôr um verniz burguês. Confiava em si o suficiente para ser como é? Achava que tinham de “gramá-lo” sem refinamento?

Não sou hoje o que era com 30 anos. É uma evolução natural.

 

Os homens hoje não usam jóias, o senhor já não usa jóias. É considerado parolo. Na fotografia da África do Sul, lá estava, pendente, a pulseirinha...

[Jorge Armindo olha para a fotografia novamente, e depois abre um botão da camisa para mostrar um cordão, com uma chapa, onde está inscrito o tipo de sangue, e uma cruz]

 

Os seus gostos também mudaram.

Os meus gostos eram mais arrojados do que são hoje. Tive que me ajustar minimamente a uma certa escala de valores que não era a minha. Ou então tinha que escolher outra forma de viver, tinha que ir para outro lado.

 

O que é que o faz fazer dieta? O que é que o faz ser vaidoso?

Dantes, eram períodos de amor-próprio. Agora, tem a ver com a idade. Comecei a tomar consciência de que já não tenho 35, 40 anos.

 

Estava a dizer-me que só foi gordo depois dos 30 anos.

Sim. Mas a primeira vez que achei que estava gordo tinha 80 quilos, menos do que agora. Foi um crescendo. Nesta última fase, ultrapassei os 100 quilos. Só comecei a pensar nisso [na morte, e nos problemas de obesidade ligados à idade] quando percebi que, apesar de ter uma natural tendência para me sentir mais novo, isso representa uma certa inconsciência. Sinto-me mais novo porque convivo com gente mais nova, tenho uma filha pequena. Mas quando caio na realidade e vejo os meus pais, na casa dos 80, percebo que tenho que viver com qualidade. Tenho muito para dar, não devo ultrapassar certos limites. É claro que, se Deus quiser, hei-de morrer a trabalhar.

 

Que nome é que a sua filha usa?

Mafalda.

 

Teixeira ou Amorim Teixeira?

Teixeira.

 

É por ela, é pelo seu filho que fez tudo o que fez? O que é que justifica este “upgrade”? É feito em nome de quê?

Nem nós próprios sabemos muito bem porquê. Mas quando somos obrigados a reflectir e procuramos ser honestos, aquilo que seria tentado a responder é que faço isto porque é aquilo que gosto de fazer. Devo dizer-lhe que houve anos em que não fiz férias, aproveitei os meses de Agosto para organizar o grupo. Cheguei a dar acções de formação nos bancos, com a administração dos bancos, sobre finanças internacionais. E na altura houve um administrador que me disse: “Quem não o conhecer, não acredita que você é o que é.”

 

Porque é que ele disse isso?

Porque eu estava com uma camisa Enrico Coveri que adorava, com o meu cabelo habitual, com uma gravata comprada na Cúmplice e um fato que mais tarde a minha mulher fez desaparecer. “Você parece uma “rock star””, disse ele. Nunca mais me esqueci. Tinha 35 anos.

 

Esse lado exuberante, vem de Angola?

Vem. A primeira entrevista com o sr. Américo Amorim, fi-la com um fato de linho branco. Voltando à sua pergunta: faço as coisas com paixão. Com muita paixão. E habituei-me a nunca fazer uma coisa só. O crescimento do grupo Amorim. Eram 120 e tal empresas. Reorganizá-las. Reestruturá-las. Vender parte. Fazer. Andar para cima e para baixo. Portucel, mesma coisa.

 

Palpita-me que faz isto tudo para o seu pai.

Tenho três grandes referências profissionais. O meu pai. Até aos 78 anos, percorreu toda a evolução da contabilidade. E não cedia a coisas fáceis, a dinheiro fácil. A outra grande referência é o sr. Américo Amorim. Pela humildade que ele tinha, grande dedicação ao trabalho, o não ter problemas em perguntar, querer compreender, a forma como se organizava para dominar a informação – ele sempre soube que o segredo era a informação. É um orgulho ter estado tantos anos a trabalhar com uma pessoa assim. E o Prof. Baganha. Já falecido, com quem aprendi a isenção.

 

Porque é que se comove tanto quando fala do Prof. Baganha? Não aconteceu com os outros dois... É porque já não está vivo?

É, é. Havia facções, e eu não estava na lista dele. Na lista havia um miúdo mais ou menos da minha idade, 24 anos, mas no fim do ano escolheu-me a mim. Trabalhei com ele mais de 14 anos, na Faculdade.

 

O pai verdadeiro, o Sr. Amorim, que foi o pai profissional, e o Prof. Baganha, pai numa fase da sua vida em que ainda estava a ser formado. O que há em comum nos três homens que mencionou é o facto de funcionarem como mentores.

Sim. Sou um “workaholic”, mas nunca deixei de ser um indivíduo completamente integrado na sociedade. Eu era aluno de primeira fila. Sempre fui um contestatário, mas nunca faltava às aulas. E não sou influenciável. Sou do tempo da liamba, em Angola, mas nunca experimentei. Nunca tive vícios desses que se apanham na juventude. Mas apanhei vícios da idade adulta: gostar de bons vinhos, de bons whiskys. Tenho um “hobby”, até sou conhecido por isso, que é ser um grande dançarino. Essa é a minha parte lúdica mais importante.

 

Mas quê? Danças de salão?!

Eu danço por instinto. Consigo dançar tango só de ouvir a música e as pessoas acham que andei numa escola de tango. O outro “hobby” é o ski.

 

Tudo sempre em grupo. Quem é o seu melhor amigo? O amigo a quem telefona a dizer: “Estou de rastos”?

Eu nunca estou de rastos. Sou muito optimista. [risos] Sabe que não sou capaz de dizer quem é “o” grande amigo? Tenho assim uma vintena, ou mais. Mas vou voltar ao tema. A principal razão que me move é esta que lhe fui transmitindo, mas ao longo da vida vamos criando outras motivações. As fasquias financeiras são muito mais altas do que eram quando tinha 30 anos, mas nunca me vou dirigir apenas por razões de natureza financeira. Até lhe digo mais: se tiver, e espero ter, uma independência muito confortável, quer dizer, se vier a ser mesmo rico, irei pôr as minhas energias ao serviço de causas em que possa realizar-me na minha componente idealista.

 

O que é que pensa deixar aos seus filhos?

O mais importante que lhes posso deixar é um bom nome. Um nome sem mácula. É muito importante esse legado. Também é justo deixá-los confortáveis. Mas, entre isso e continuar a esgadanhar só para ter mais uns milhões, muito honestamente prefiro voltar à minha missão.

 

Qual é a sua missão?

É ensinar, é construir. Não queria dar a ideia de que sou filantropo. Não sou. Onde tenho que defender a rentabilidade, tenho que defender às vezes coisas que me doem. Mas tenho de as fazer. Compondo aquelas três figuras que evoquei, diria que neste momento tenho que ser mais Américo Amorim, mas temperado pelas outras duas pessoas que também me guiam. E espero ter a coragem de continuar a ser eu próprio.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2007

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

André Freire e Marina Costa Lobo

11.11.14

“Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo/ golpe até ao osso, fome sem entretém”, escreveu Alexandre O’Neill. Portugal, questão que temos connosco próprios. Com quem somos, no osso, sem entretém. Dois politólogos dissecam a questão – o país, a actual situação política, os cenários que se traçam, os candidatos principais. Portugal e as suas idiossincrasias.

Marina Costa Lobo é investigadora do ICS. André Freire é professor no ISCTE-IUL e integra a comissão de honra e da comissão política de Manuel Alegre.

Entrevista quarta-feira de manhã, com jornais e sondagens sobre a mesa. Num lugar neutro. Como a conversa. [As eleições presidenciais de 2011 seriam daí a dias.]

 

Começo por uma citação de Raymond Aron: “A escolha em política não é entre o bem e o mal, mas entre o preferível e o detestável”. É inevitável que seja assim?

André Freire – Em política é sempre preciso fazer compromissos. As orientações políticas que uma sociedade complexa e bastante diferenciada pode produzir são sempre sínteses, agregações e articulações de diferentes posições. Os programas, os próprios partidos, são sempre coligações de interesses, de preferências. Talvez o Raymond Aron quisesse reportar-se a isso.

 

É um modo de dizer que não há escolhas puras?

AF – Ninguém vai rever-se integralmente numa posição. Mas há escolhas que estão mais próximas de si do que outras.

Marina Costa Lobo – Faz lembrar a citação do Churchill – “A democracia é o pior de todos os regimes, exceptuando todos os outros” – no sentido em que a democracia é a política do possível. Portugal é um caso interessante. Havia enormes expectativas em Portugal depois do 25 de Abril em relação ao que era possível fazer; gradualmente há uma tomada de consciência de que a democracia e o conjunto das instituições são radicalmente diferentes do que havia, mas não são uma garantia de bem estar absoluto.    

 

É esse bem-estar absoluto que se idealiza quando o sistema anterior colapsa e se tem a ilusão de que é possível construir tudo, tijolo a tijolo, desde o princípio, depois do desmoronamento?

MCL – Os três D’s eram Democracia, Desenvolvimento, Descolonização. A democratização não significou a convergência económica e social com a Europa que se esperava. Se observarmos a evolução económica e social dos países com mudanças de regime não conseguimos ver uma correlação directa entre democratização e desenvolvimento. O que acontece é que a redistribuição de riqueza dentro do país pode mudar – muda, normalmente. Parte da desilusão que se vive em Portugal tem que ver com o que o Raymond Aron dizia.

AF – É preciso fazer uma grande pedagogia, porque estamos muito melhor do que estávamos. Recordo apenas que do ponto de vista dos níveis educacionais tínhamos 30% de analfabetos nos anos 70. É claro que tínhamos imenso ouro no banco, mas era uma sociedade incapaz de produzir riqueza. O falhanço tem que ver com a incapacidade de alterar o padrão de especialização da economia portuguesa.

Outra coisa que gostaria de sublinhar, voltando ao Raymond Aron: o falhanço da ideia do compromisso, e de que não é possível soluções óptimas. A democracia é negociar, é o entendimento das várias forças, é chegarmos ao middle term. As elites políticas dos partidos à esquerda nunca foram capazes de construir compromisso. Por isso é um sistema que funciona de modo desequilibrado, à revelia da maior parte dos sistemas equivalentes da Europa ocidental no pós-Guerra Fria.

 

Porque é que as elites não se entendem?

MCL – A força dessas elites, do Bloco de Esquerda ou do PCP, deriva da sua não-cooperação com o PS. Eles estão em representação de um eleitorado que está em protesto com o PS. Por outro lado, o próprio PS não vê grande interesse em cooperar com estes partidos, porque já conseguiu uma maioria absoluta à custa destes partidos. Não é que as elites portuguesas sejam especialmente avessas à cooperação. A cooperação é qualquer coisa que se aprende pela necessidade. As democracias do norte da Europa têm elites que cooperam muito porque eram representativas de grupos sociais minoritários. Assim aconteceria em Portugal se o PS tivesse a noção de que nunca seria um partido maioritário [sem o compromisso com as forças minoritárias]; e se as elites BE e PCP acreditassem que mesmo indo para um Governo com o PS não perderiam grande parte do seu eleitorado – coisa em que não acreditam.

 

Há também uma divergência ideológica de fundo?

MCL – Há. Não há grandes diferenças ideológicas entre CDS e PSD – basicamente, quando se pede os eleitores que percepcionem estes dois partidos, eles ficam muito próximos. Isso não acontece à esquerda.

 

Que questões de fundo separam a esquerda?

MCL – Toda a questão do posicionamento de Portugal face à União Europeia. A UE, como sabemos, determina hoje grande parte das políticas públicas.

 

Essa divergência penaliza o candidato Manuel Alegre, apoiado pelo PS e pelo BE?

MCL – Com certeza.

AF – Há factores significativos que pesam na falta de entendimento, mas eles não são insuperáveis. O problema maior é o da falta de actualização ideológica dos partidos à esquerda, sobretudo do PC, a partir do fim do novo impulso e da ascensão de Jerónimo de Sousa ao poder, e do BE, menos. Se os partidos não cooperam, radicalizam-se. Um dos benefícios da cooperação e da entrada destes partidos no arco governativo seria a perda de uma certa radicalização, e implicaria uma moderação do discurso. Isso aconteceu com Os Verdes alemães. Na Escandinávia foi feita essa actualização ideológica na esquerda radical.

 

Se esse entendimento se faz na Alemanha, na Escandinávia, porque é que não se faz em Portugal?

AF – O que conheço de sondagens revela que os eleitorados destes partidos são maioritariamente propensos a cooperar. Mas há a percepção de que a cooperação tem custos e que pode levar a penalizações. Isso é verdade. Também conheço estudos que demonstram que noutros países em que isso aconteceu o grau de penalização, em média, não é muito elevado. Portanto, não acho que isto seja uma inevitabilidade. O problema é a distância que existe entre eleitores e eleitos.

MCL – Concordo que as soluções de cooperação são a norma na Europa. Voltemos ao caso português. Quando o PSD teve maioria absoluta, o CDS tornou-se no partido do táxi. Realmente perderam muito eleitorado. O que aconteceu posteriormente foi uma disponibilização do CDS para ser parceiro de coligação, sem muitas exigências.

 

E era se queria estar.

MCL – O CDS rendeu-se à evidência de que [se disponibilizava sem muitas exigências] e era se queria estar, ou então estava condenado. A maioria absoluta de Sócrates não teve o mesmo resultado à esquerda. Só teve um mandato e acabou num fortalecimento em 20% da esquerda radical, sobretudo do BE. No meu entender isto é resultado directo da deterioração económica dos últimos dez anos.

Sobre a possibilidade de fazer acordos parlamentares: ontem [terça-feira], um caso mostrou que esta esquerda radical não é um parceiro de confiança do PS. Houve uma manifestação à porta do primeiro-ministro, alguns desacatos, duas pessoas foram presas. Quem foram os primeiros a reagir? Políticos do BE. Isto é uma coisa que embaraça o Governo.

 

Ou seja, os dois partidos digladiam-se em público, às portas das eleições, apesar de apoiarem o mesmo candidato. Voltamos a qualquer coisa que já aflorámos: a penalização de Manuel Alegre.

MCL – O PCP e o BE estão a lutar pelo lugar principal à esquerda do PS. Querem ter o protagonismo do anti-PS. Disputam lugar e proeminência. Há enorme acrimónia entre estes dois partidos. Isto é mais importante para eles do que portarem-se como parceiros. As presidenciais seriam um momento ideal para ensaiar uma coligação… Impossível. Sócrates e Louçã nem sequer fazem comícios juntos, não aparecem juntos. O BE esteve toda a campanha a criticar Sócrates. Isso ajuda Manuel Alegre?

AF – Nisso estamos de acordo. Mas há, apesar de tudo, uma distinção entre a dimensão presidencial e a dimensão governativa/legislativa. São 20% dos eleitores. Podemos deitá-los fora? Concordo que o que aconteceu em 2009 se deveu à deterioração sócio-económica; mas não foi só isso. Várias sondagens demonstravam que as pessoas estavam cansadas da maioria absoluta e do exercício autoritário (não no sentido fascista), da abordagem musculada de Sócrates. Foi uma desinteligência do PS. Não tenho dúvidas que, tal como estão, seja do ponto de vista ideológico, seja do ponto de vista do seu pragmatismo e oportunismo eleitoral, estes partidos não são parceiros fiáveis. Mas podiam ser. Para que isso aconteça é preciso ir dando passos.

 

São sobretudo os eleitores à esquerda os que ficaram defraudados com o que se fez nos anos pós-25 de Abril? Os resultados ficaram aquém do esperado, dessa infinita promessa original.  

AF – Há uma enorme diferença entre o PCP e o BE.

MCL – Quando o PS passar para a oposição vamos ver qual a durabilidade destes 20% nestes partidos. A partir do momento em que o PSD e o CDS forem Governo pode funcionar o voto útil em direcção ao PS.

AF – O que estás a dizer, provavelmente, vai acontecer já nas próximas eleições. Eles são esmagados se não cooperarem.

 

O voto transfere-se facilmente?

MCL – Os eleitores, com excepção dos do PCP, não são fiéis. Vamos ver se alguns tanto votam PS como Bloco. Eu acredito que sim. Muitos deles são eleitores novos. Há uma enorme volatibilidade em Portugal. Não directamente para outro partido, mas passando primeiro pela abstenção, por exemplo, por um período de nojo, e depois para outro partido. Isto é recorrente, e faz com que as elites sejam conservadoras, não arrisquem muito.

AF – Se os eleitores da esquerda radical são uma espécie de perdedores ou desiludidos com o que se passou desde o 25 de Abril para cá? Isso pode ser verdade para o PC, que é um eleitorado a encolher, geracionalmente condenado. Aí sim, há uns deserdados, os vencidos da globalização (como algumas teorias apontam); são pessoas de baixo estatuto sócio-económico, agarradas a determinadas convicções e que são uma parte dos mais penalizados e desiludidos com a performance económica e com os resultados desde o 25 de Abril. O eleitorado do BE é diferente. São eleitores jovens, altamente escolarizados. Podem não ser os grandes vencedores, mas não são propriamente os perdedores. É verdade o que a Marina diz: os partidos jogam à defesa porque o eleitorado é volátil. Mas o eleitorado também é volátil porque os partidos dizem uma coisa quando estão no Governo e dizem outra quando estão na Oposição. Se os partidos mudam de posição overnight (para caricaturar), isso não ajuda a fidelizar.

 

Como olha para os resultados das legislativas de 2009? Que importância têm ainda no quadro que vivemos?

MCL – Houve uma componente importante de funcionários da administração pública que se sentiram alvo das reformas de Sócrates, nomeadamente os professores, e eventualmente na área da Saúde. Houve divisões entre o PS e algum do seu eleitorado de base, de que os professores fazem parte. Estiveram 200 mil pessoas na Avenida da Liberdade.

AF – 150 mil. Mas sim, é significativo.

MCL – Isto não é despiciendo. Tem que ver com as políticas públicas que Sócrates quis implementar, a forma como ele o fez, os resultados que teve. Também não me parece despiciendo ter havido uma greve geral na qual a UGT participou com a CGTP pela primeira vez em 18 anos. É o retrato da evolução da relação do PS com o mundo laboral, que é uma coisa que não começou agora. Fazer reformas a seco é muito difícil. Vai gerar imenso conflito. As reformas têm de ser feito no momento em que há alguma folga económica. O que está a acontecer com este Governo é que é obrigado a fazer reformas ou a tomar medidas de austeridade sem condições para aplicar contra-medidas que suavizem um pouco a dureza destas reformas. Esta é a história dos mandatos de Sócrates.

AF – O problema é também processual. No fundo, houve uma certa vertigem política. “Nós agora temos maioria absoluta, vamos desenhar umas políticas cientificamente perfeitas e implementá-las. Não interessa as pessoas, vai tudo à nossa frente.” Esse foi o drama. Penso que há uma grande diferença entre o que se passou até 2009 (com a UGT a fazer acordos de cooperação) e o que se passou nesta greve geral.

 

Estamos a dias de eleições, mas o que está sobre a mesa transcende largamente o fenómeno das presidenciais. Muito mais está em jogo. Contudo, o fim-de-semana passado, opinion makers como Clara Ferreira Alves ou Miguel Sousa Tavares, falavam de indigência política a propósito destas eleições. Quer dizer, estas são umas eleições pelas quais não estamos a dar muito, e concomitantemente tem-se a impressão de isto ser o preâmbulo de qualquer coisa fracturante que vai acontecer a seguir.

AF – Estas eleições podem abrir um novo ciclo, mas as pessoas não estão mobilizadas para isso. Nem há sondagens. Não sei se é pela falta de dinheiro se é um misto de falta de dinheiro e dar o vencedor por adquirido. A campanha tem sido pobre, mas os actores políticos jogam nas suas posições. Quem está numa posição mais favorável tenta-se proteger, joga à defesa. Não esperávamos que o Prof. Cavaco Silva fosse mostrar o jogo todo, não é? E os outros atacam. O debate não é sobre a governação, é sobre a influência que o presidente pode ter no curso da governação.

MCL – Concordo com o André. Estamos a fazer uma campanha eleitoral para um cargo que não é o de chefe de Governo, é o de chefe de Estado. Essas funções são muito dependentes das condições que existem. Se é um Governo maioritário ou minoritário, se é um Governo da sua cor política ou não. É uma incógnita a situação que vamos ter nos cinco anos de mandato. Não se pode discutir políticas públicas porque o presidente não é responsável por elas. Pode-se discutir carácter, mas é preciso ver quais são os temas que são legítimos ou não legítimos.

 

É legítimo discutir a questão do BPN?

MCL – A questão do BPN é absolutamente legítima, porque tem a ver com a idoneidade das decisões financeiras e com as ligações políticas de Cavaco Silva. Há uma bipolarização do eleitorado para escolher o candidato que vai ser presidente. Nessa bipolarização os dois partidos, PS e PSD, estão no centro do debate. Acontece que esses dois partidos, neste momento, estão muito enfraquecidos. A pobreza e a falta de interesse e a falta de intenção de voto (segundo esta última sondagem [publicada quarta-feira]), estão relacionadas com esta crise do bipartidarismo. Em 2009 estes dois partidos juntos tiveram 65% dos votos. É o valor mais baixo desde 1987, quando começaram as maiorias absolutas.

Vamos escolher um chefe de Estado que não é responsável pelas políticas públicas quando o que as pessoas querem saber é se o FMI vai entrar, se vamos perder o 13º, o 14º mês, se vamos perder 50% do nosso rendimento devido a necessidade de deflação para ficarmos no Euro.

 

Então, nas próximas legislativas vai haver uma maior mobilização porque as pessoas entendem que aquilo tem implicações na sua vida de todos os dias?

MCL – Temos que ver quais são as alternativas, quais são os programas. Tendo em conta a crise económica, diria que sim, que as legislativas vão ver muito importantes. A não ser que o FMI já tenha entrado, as pessoas se tenham convencido de que o Governo não tem autonomia para determinar as políticas públicas, que há uma euro-dependência total… Isto é muito grave.

AF – A situação económica do país e a preocupação das pessoas retira alguma importância e visibilidade a estas eleições. Importância essa que os portugueses já entendem, em termos relativos, uns furos abaixo em relação às legislativas. Ainda mais quando há um presidente recandidato, que geralmente parte em vantagem.

O presidente da República tem um papel no sistema político. Pode ser um guardião da Constituição, impor moderação a um Governo, qualquer que ele seja, no sentido de o fiscalizar, através dos vetos, de o fazer inflectir a legislação. Isso não passou na campanha. Não é verdade que o presidente não tenha poderes nenhuns.

 

Mas é verdade que não temos um sistema presidencial, e que os poderes do presidente são, nessa medida, limitados.

AF – Temos o que temos. O papel do presidente da República não é negligenciável.  

 

Esta desmobilização revela também uma saturação em relação a esta classe política, cujos nomes são basicamente os mesmos há 20 anos? As pessoas estão fartas destes actores políticos? Introduzo já uma outra questão: porque é que se tem a ideia de que as pessoas não gostam de se submeter ao escrutínio dos eleitores?

MCL – É como as pessoas não gostarem de exames. É um momento de teste.

 

Cavaco: a primeira vez que perdeu as eleições para Jorge Sampaio só se recandidatou passados dez anos. Com excepção de Soares e Santana, são poucos os políticos que vão a votos, ganham, perdem, voltam a candidatar-se, ganham, perdem, e isso não é fim do mundo.

AF – A questão da cultura política é muito importante. É raro haver uma valorização do conflito e da negociação. O conflito são insultos, são maldades… Também a cooperação, que é a sua contraparte, é lida como uma forma de vender a alma. O Ferro Rodrigues foi o primeiro líder de um partido que, após perder as eleições, foi para o Parlamento. Em geral, um primeiro-ministro, um líder de um partido vai para uma espécie de exílio dourado. Não volta para cargos mixurucas. Mas o Helmut Kohl foi líder do CDU/CSU e primeiro-ministro durante três mandatos, e depois voltou para o Parlamento. Porque [na Alemanha] ser deputado, exercer actividade política é um valor.

 

Justamente, em Portugal, existe um grande desligamento em relação à política. Ser deputado não é considerado um valor.

AF – O que ouço dos Medinas Carreiras, da vertigem tecnocrática, é que estes tipos dos partidos são uns malandros. E depois dependem dos eleitores. E como dependem dos eleitores, não podem fazer o que precisa de ser feito. Mas em democracia o que tem de ser feito não tem de ter um ajustamento face às preferências dos eleitores? Então a democracia não é o Governo em representação do povo? Isto é o cerne da democracia. Quando ouço colunistas defenderem que as eleições são um escolho para a governação… Isto é a teoria da ditadura encapotada.

 

Voltemos à questão dos líderes que gostam ou não gostam de ir a votos.

MCL – No caso de Cavaco Silva, sabemos que é muito difícil ganhar a um presidente que está em busca da reeleição (que era o caso de Sampaio). Cavaco preferiu retirar-se e ir a votos apenas no mandato seguinte em que havia uma disputa aberta. É compreensível do ponto de vista da estratégia política e pessoal.

 

Porque é que acha que o nosso parlamento não é uma instituição valorizada?

MCL – É uma instituição parlamentar num quadro semi-presidencial. Este regime não é um regime parlamentar. Os membros do Governo não emanam do Parlamento, e têm de abdicar do seu mandato parlamentar. Penso que isso é nocivo para a credibilidade do Parlamento. Os ministros, que muitas vezes são cabeça de lista nas legislativas e são porta-bandeira do partido neste ou naquele distrito, uma vez ganha a eleição desaparecem do Parlamento. E no Parlamento aparecem caras desconhecidas, de uma lista que nunca ninguém viu. Há outra tendência, que é a de haver independentes. São pessoas que não são verdadeiros independentes, porque são compagnons de route de um ou de outro partido. Simplesmente não militam no partido. Essa falta de militância não é prejudicial – pelo contrário – à ascensão aos cargos mais altos do Governo, que é onde, verdadeiramente, as decisões políticas são tomadas. É uma idiossincrasia portuguesa haver tantos independentes. Resulta um pouco do anti-partidarismo latente que se sente em toda a sociedade. Cerca de 50% dos ministros de Sócrates não são do PS.

 

Exploremos esse aspecto – o de um candidato ser valorizado pelo simples facto de não pertencer a um partido político. Não é por aí, também, que se explica o sucesso da candidatura de Alegre nas eleições anteriores, nas quais, sendo desde sempre um insider dos partidos, estava ali como independente? Esta campanha, comparativamente mais frouxa, tem o apoio de dois partidos.

MCL – Alegre é claramente um político partidário, dos históricos do PS. Isso dá-lhe credibilidade em relação a outros. A carreira política dá previsibilidade ao comportamento que um actor político possa ter se for eleito para um cargo. As pessoas conhecem Manuel Alegre, e essa foi uma grande vantagem na eleição anterior. Tinha uma independência que não era anónima, tinha um passado, com provas dadas. Depois de ter assumido posições bastante contrárias às de Sócrates, e tendo em conta que a liderança não mudou, e que as políticas não mudaram assim tanto, o seu re-alinhamento com Sócrates não terá sido bem entendido. Terá sido entendido como uma táctica para ser candidato a presidente. Ele é o candidato do Governo. Esse é o principal problema. O Governo está a perder popularidade.

AF – Tenho uma visão distinta da da Marina acerca das razões pelas quais o Parlamento é tão pouco valorizado. Não acho que seja uma questão central a necessidade de os membros do Governo terem de ser deputados. O problema é a forma como os deputados são eleitos, que lhes retira autonomia e visibilidade. Temos deputados invisíveis perante os eleitores porque quem os escolhe, quem determina a sua posição na lista, é a direcção do partido. Isto mudava-se com uma abertura de listas ou com círculos uninominais. Em França, os deputados, acumulam mandatos (são presidentes de câmara, são deputados), fazem imenso trabalho de círculo, e isso é muito valorizado. Foi essa visibilidade e essa autonomia que Manuel Alegre teve quando foi deputado histórico do PS.

 

A sua dissidência com Sócrates pareceu irremediável.

AF – Ousa [enfrentar o líder] quem tem prestígio, quem não tem nada a perder. Foi isso que Alegre e outros deputados na legislatura passada fizeram. Isso granjeou-lhe prestígio.

 

É um pau de dois bicos. Por um lado, um candidato merece simpatia por não ter apoio dos partidos. Por outro, nenhum candidato é eleito sem ter o apoio dos partidos.

AF – Não vejo sinais de que isso possa acontecer. O problema de Alegre não é tanto o de ser apoiado pelo partido A ou B. É o de ser o partido A e B que estão sempre à nora. É o ser o partido que é Governo. É uma candidatura muito difícil. A própria forma como tem sido conduzida não está isenta de problemas.

 

Cavaco vai ganhar à primeira volta? Qual estimam que será o nível de abstenção?

MCL – As sondagens indicam que Cavaco vai ganhar à primeira. Esta última dá-lhe 61%. Mesmo que a margem de erro seja de 7 ou 8%, ele ganharia com uma margem até superior à que teve na eleição anterior. Cavaco corre contra si próprio. Isto é também um referendo ao seu primeiro mandato. Interessa-lhe ganhar, obviamente. Mas interessa-lhe também saber como é que ganha. A abstenção, penso que será extremamente elevada. É-o por razões estruturais. Este tipo de sondagem, que indica um vencedor claro à partida, é muito desmobilizador. A pessoa pensa: o meu voto não vai lá fazer nada. E há as razões conjunturais. Isto é uma oportunidade da esquerda para mostrar cartão amarelo a Sócrates. Eu diria cartão vermelho, mas não pode mostrar cartão vermelho.

AF – A esquerda? Mas Sócrates não é de esquerda?

MCL – Este redireccionamento da campanha de Cavaco no sentido de a tornar entre ele e Sócrates [parece surtir efeito]. Quanto mais o eleitorado de esquerda pensa em Sócrates mais desmobilizado fica.

 

Numa linha, esta eleição é entre Cavaco e Sócrates?

MCL – A campanha tornou-se numa disputa entre Cavaco e o Governo. Temos todos os dias os ministros a responder a Cavaco!

AF – Precisamos de mais sondagens para ver com mais segurança o que se perspectiva. A probabilidade maior é vitória à primeira volta. Pode haver algum volte-face; seria surpreendente, mas pode haver. Há muitas pessoas que estão indecisas; umas abstêm-se, outras não. Espera-se muita abstenção, e a dúvida é se ela atinge mais um campo do que outro. A verificar-se uma distância destas – em que não acredito – seria preocupante para o sistema político. Parece-me óbvio que se vai abrir um novo ciclo no próximo ano. Ter uma forte concentração de votos também em Cavaco e um enfraquecimento dos seus opositores à esquerda não seria saudável para a democracia.

 

Terça-feira veio a público o apoio do ex-ministro de Sócrates Correia de Campos a Cavaco. Este apoio pode passar pelo facto de lhe ter sucedido na pasta da Saúde uma alegrista, Ana Jorge?

AF – Pode sim. Também tem a ver com o facto de Correia de Campos, enquanto ministro da Saúde, ter sido alvo de críticas do deputado Manuel Alegre. Vieira da Silva está muito retraído – Alegre criticou o Código do Trabalho. A política portuguesa é muito pessoalizada. Eles eram ministros e foram beliscados. Sócrates é, desse ponto de vista, muito mais pragmático e político do que estas pessoas. Consigo perceber que Mário Soares se sinta pessoalmente machucado com o que se passou nas presidenciais de 2006. Mas o filho dele, João Soares, e Alfredo Barroso, ex-chefe da Casa Civil e sobrinho de Soares, estão a apoiar Alegre.

 

Do outro lado, Isabel Soares e Maria Barroso apoiam Fernando Nobre.

MCL – Há relações pessoas e elas são muito importantes. Mas há divergências ideológicas. Não podemos esquecer que Manuel Alegre foi candidato do BE antes de ser do PS. Tendo em conta as divergências de que falámos, isto não é irrelevante. Cavaco Silva nunca foi um liberal. É criticado por ter sido demasiado estatista. Há pessoas na esquerda, mais ao centro, que não se revêem na campanha de Alegre. Correia de Campos pode ser um representante desse eleitorado.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Janeiro de 2011

Francisco Murteira Nabo

10.11.14

Por vezes, parece um homem que não saiu do seu lugar. Como se o sucesso não lhe tivesse acontecido e ele fosse o Chico que prossegue o negócio do pai.

Fala, mas sem especial entusiasmo, sem trazer os cheiros, do tempo em que o pai o acordava de madrugada para irem à feira. E podia falar do barulho da carroça, do toque da cortiça, das narinas muito abertas dos animais.

Três e meia da tarde. Quando começámos, a música é ainda a do Alentejo. Ele sabe que tem sotaque quando discursa, lendo. Eu apontei-lhe a “falta”: que discursava, ainda. Posava, ainda. Posava sem saber que retrato era o que eu procurava.

Mas não tardou a perceber. Ele percebe muito bem. Tem uma esperteza inequívoca, que não é nada saloia. Se fosse saloia, não teria saído de Évora e hoje venderia a retalho. Percebeu que ângulo era o meu e insistiu em não posar. Tem a íntima convicção de que ter o coração ao pé da boca, que muitos consideram uma debilidade, é um dos seus segredos.

É um homem a quem a vida correu bem porque teve ambição. E está tão tranquilo em relação a isso que não tem pejo em afirmá-lo. Não pretende ser o humilde, o pobre moço a quem saiu a sorte grande. Não, não. Ele sabe que isto se faz de sorte. De competência. De ciclos políticos. Conhece as regras do jogo: sabe que está em cima quando os amigos socialistas estão no poder. E creio que posa, apenas, quando diz que a oposição, ou seja, o PSD, poderia chamá-lo para uma coisa ou outra… Ah, esperamos gestos magnânimos?, ironizo eu.

Francisco Murteira Nabo espalha os documentos que traz na carteira sobre a mesa, dispõe as cartas. Rapaz avisado, nunca põe os ovos todos no mesmo cesto; quer dizer, documentos de um lado, dinheiro do outro. Insiste na paixão pelos livros (terá sido isso, mais que tudo, a mudar a sua vida?), do admirável mundo novo que estes lhe trouxeram. Do Huxley e dos movimentos que marcaram uma geração.

Em tempos ele foi hippie (não consigo imaginá-lo de guedelha crescida e roupa de 15 dias no corpo. Mas alguém imagina?). Na conversa traz a libertação sexual do Maio de 68. Já antes disso, eu falara d’As dioptrias de Elisa, do escritor maldito Gancho, que foca o tema do desejo. Mas ele passou ao lado. Tenho a impressão que não o fez de propósito; que é o tema que o desinteressa.

O tema da vida de Francisco Murteira Nabo é a ascensão que protagonizou, e da qual sente vaidade. É um contente da vida, sabe que ela lhe correu bem. 

 

Começamos por algum ponto em particular, para falar de si?

Como é que comecei a minha vida, não?

 

Nasceu em Évora.

Se sabe a minha vida toda por que é que quer saber mais? Pois é, nasci em Évora em 1939. A minha mãe é de Reguengos de Monsaraz, o meu pai é de Montemor-o-Novo. A minha mãe era de uma família relativamente rica, proprietários de terras e ganadeiros, e o meu pai era um trabalhador rural.

 

O que é que sabe da história de amor dos seus pais?

O meu pai era um homem bonito, tinha mota, usava bigode, mas um trabalhador rural. O meu avô (materno) era de uma família latifundiária, já na fase decadente da agricultura; e a minha mãe era menina prendada de boas famílias. Era daqueles amores difíceis de convencer os pais e os avós. Mas acabou por ter sucesso.

 

A menina prendada impressiona-se com este rapaz garboso, que usa bigode e tem mota – o que não era comum num trabalhador rural. Quando casaram, passaram a viver de quê?

O meu pai arranjou um negócio ligado a vinhos e cereais. Curiosamente a família da minha mãe, que era muito rica, foi perdendo importância económica, e o meu pai, que era pobre, acabou por ter uma ascensão e transformar-se num proprietário classe média. Foi ele a apoiar a família da minha mãe. O negócio: comprava por grosso e exportava, fazia a ligação entre o campo e o mercado. Com muita dedicação, humildade. O sucesso de meu pai deve-se à capacidade de conseguir gerir em grande dificuldade.

 

Diz “de meu pai” e não “do meu pai”? Era assim que se dizia à moda antiga e à alentejana?

A gente dizia “do meu pai”... Eu só tenho sotaque alentejano quando me zango. Ou quando discurso, lendo, não falando. Uma vez estava em Macau a fazer um discurso, e uma senhora, minha colega de infância, diz-me assim: “Tem um sotaque alentejano quando lê.”

 

Agora tem um bocadinho, o que significa que ainda está a discursar.

Ainda estou a discursar. Não estou é zangado.

 

Há um aspecto que me interessa na história do seu pai: se ele não procurou, nessa perseverança, mostrar à família da sua mãe que era digno dela.

Naturalmente terá havido um grande desejo de mostrar sucesso. Vindo de baixo e de uma vida difícil, queria mostrar que era capaz.

 

Foi ele que o ensinou a gerir o dinheiro?

O meu pai era um homem de sucesso e queria que eu seguisse a vida dele.

 

Comerciante?

Armazenista e comerciante. Tenho duas irmãs, e na época as mulheres não continuavam os negócios dos pais. Eu tinha vontade de estudar, era um bicho de bibliotecas. Sempre tive grande ambição de conhecer, de ler... Quando acabei o curso da Escola Comercial quis continuar, em Lisboa e no Porto, e o meu pai disse: “Fazes mal, era melhor ficares aqui, alguém tem que continuar esta coisa...”. No fundo, o meu pai, que me levava todas as manhãs quando ia comprar coisas, gado, cereais...

 

Ia com ele às compras todas as manhãs, ou apenas nas férias?

Todas as manhãs. Às cinco da manhã, seis da manhã, passava pelo meu quarto e ia com ele até aos montes.

 

Como é que ele lhe chamava?

Chico. Eu teria os meus 14 anos, 15, por aí. Saí da terra com 19. Procurava estimular-me a vontade de ficar no negócio, mas eu tinha vontade de sair. Acabei por ter uma discussão com o meu pai e depois concertámo-nos. De algum modo, herdei as características de um homem ligado à empresa. Gostava de ler livros e tal, mas o curso empresarial e a vida económica sempre foram coisas de que gostei.

 

Já vamos à economia e ao curso. Ainda a propósito dos livros: leu um livro do António Gancho que se passa na Praça do Giraldo, As dioptrias de Elisa? Numa linha, trata o tema do desejo e de como ele altera a vida das pessoas.

Não li. Mas conheço.

 

É um livro raro. O Gancho morreu há pouco tempo, estava na Casa de Saúde do Telhal.

O que li foi a tese do José Cutileiro sobre a vida no Alentejo nos anos 30, por aí. Marcou-me muito. Ele escreve de uma maneira muito real aquela vida, a sociedade.

 

Reviu-se nesse retrato que Cutileiro fazia?

Revi o Alentejo, a gente identifica-se com aquela descrição. A sociedade era muito estratificada, muito difícil o acesso. Nos meus tempos de escola houve um ou dois alunos que continuaram os estudos, os outros ficaram pelo caminho.

 

Consegue perceber por que é que, num meio como esse, gostou sempre de estudar e de ler?

Não sei bem. A minha mãe não tinha grande instrução, o meu pai também não. Eu era considerado um dos atletas lá daquela época, mas conseguia conciliar isso com um grande interesse pelos livros. Ia para a Biblioteca Municipal, que era junto ao Templo de Diana.

 

Mas isso há-de vir de algum lado. Não havia televisão, eram tempos austeros, mesmo os que tinham que comer, só comiam bolo em dias de aniversário. Como era a professora primária?

Professor. Havia umas revistas de desenhos animados levadas pelo professor primário, que me dava a mim a preferência de ler. Ele gostava muito de mim: eu levava-lhe uma garrafa de vinho, todos os dias, para o almoço. Fazíamos uma espécie de troca. Talvez seja daí, desse professor da quarta classe, que tenha vindo essa ligação.

 

O que é que nessa altura, contrariando as expectativas do seu pai, queria fazer à sua vida?

Não sabia bem o que queria ser. As pessoas mais ricas iam para o Liceu. O meu pai achava que nós éramos de uma classe pobre e meteu-me na Escola Comercial, a mim e às minhas irmãs. Caí na economia, não tinha grandes escolhas. Mas acho que escolhi bem.

 

Não se saiu nada mal na vida, convenhamos.

Não é de economia que eu gosto. Gosto de economias de desenvolvimento, e entrei na gestão.

 

Estabeleço um paralelismo entre a sua história e a do seu pai. Como ele, perseverou para mostrar que era capaz. Que podia ter sucesso longe do armazém, vingar em caminhos escolhidos por si. Faz sentido?

Faz. Embora ele já não assistisse a isso. O meu pai morreu quando eu estava a acabar a faculdade, em 68. Sempre foi um homem doente, tinha asma, bronquite, vários problemas pulmonares.

 

Nessa altura, ele já acreditava em si?

Já, já. Tinha uma grande estima e admiração por ele, e acho que ele também tinha por mim. Não manifestava muito, era reservado. E pagava: eu estava em Lisboa, num quarto, que saía do bolso do meu pai... Quanto a dinheiro era muito cuidadoso, não gostava de esbanjar.

 

Sovina?

Não posso chamar essa palavra, mas era muito rigoroso. Era solidário, dava tudo o que pudesse fora da família; com a família era mais cuidadoso.

 

Tinha pensado começar por lhe pedir que me mostrasse a sua carteira, e daí saber como faz a gestão do dinheiro. Posso ver a sua carteira?

Pode. Não me recordo onde é que a comprei, mas é velhota, como vê. É basicamente uma carteira de cartões, carta de condução, identificação fiscal, grupo sanguíneo, bilhete de identidade, coisa da saúde e o cartão do golfe.

 

E o dinheiro, não tem aí?

Nunca uso dinheiro aqui, uso no bolso lateral do casaco.

 

Solto?

Sempre solto. Nunca anda dentro da carteira: se perder uma coisa, não perco as duas.

 

Homem prevenido. Aprendeu com o seu pai, isso de separar as coisas?

Não, aprendi ao longo da vida. Acho que não posso pôr tudo no mesmo saco, tenho que ter o cuidado de dividir o risco.

 

É válido para tudo? Não pôr os ovos todos no mesmo cesto…

Sim. Ando com as coisas espalhadas por vários sítios; não é necessariamente pensado, é por ser prático.

 

É possível fazer um exercício de extrapolação e perceber se politicamente, profissionalmente, afectivamente, nunca depositou os ovos todos no mesmo cesto?

Eu sou um homem de compromisso. Só faço rupturas quando não posso evitá-las. Como é que isso liga com o que me está a perguntar? Não sei se posso ligar as duas coisas. Não sou uma pessoa que preveja as coisas, planeada.

 

Ah, não?

Não, sou muito improvisador, gosto de uma certa anarquia.

 

É muito português, nesse sentido. Os portugueses são mestres na arte do desenrascanço.

Não digo que seja desenrascanço… Como profissional sou organizado, sei muito bem distinguir o que é importante do que não é. Agora, na minha vida não sou organizado. Uma das coisas que tenho com a minha mulher é que ela gosta de dizer assim: “Depois de amanhã vamos ao cinema”, e eu gosto de dizer: “Queres ir ao cinema daqui a duas horas?”.

 

E sozinho, também vai ao cinema?

Geralmente não vou.

 

Estava a perceber se é completamente gregário ou se existe bem sozinho.

Não sou muito gregário, gosto de alguma solidão. Quando estou em grupo sou muito comunicativo.

 

Dizem que nos jantares é sempre muito bem-disposto, rodopia de mesa em mesa, faz a festa.

Faço amigos com facilidade. Não tenho assim coisas a esconder, sou muito aberto. É uma das minhas riquezas, há quem diga que é uma das minhas debilidades: falo sempre com o coração ao pé da boca. Digo o que tenho a dizer.

 

Voltando à gestão do dinheiro e à influência do seu pai: não percebo completamente qual é a importância do dinheiro na sua vida. O dinheiro ou o que se pode conquistar com ele, nem que seja uma ascensão social.

Sou muito ambicioso nessas coisas. Não tenho a ambição da riqueza, mas tenho a ambição de estar bem e que as pessoas sintam que tenho sucesso. Tenho essa vaidade. Sempre gostei da ascensão. Não sei se posso dizer isto…, mas tenho características de liderança. Desde gaiato. Chefe de turma, era sempre, quando os professores iam embora, eu é que ficava a tomar conta. Fui sempre escolhido como pessoa responsável.

 

Porque é que o escolhiam?

Tem a ver com a capacidade de comunicar, mas também com a forma de me posicionar. Uma das razões da minha ascensão social, tem a ver com a ambição, com a vontade de singrar, fazer por mostrar que... Sou o primeiro caso de licenciatura na minha família, há aqui uma vontade de ter sucesso, isso há.

 

Então, em Macau quando foi governador sem ser, o facto de não ter sido explicitamente nomeado, foi muito desagradável para o seu ego ambicioso?

Sou encarregado do governo numa situação ocasional, não era expectável. O senhor Presidente da República reconhece que sou a pessoa mais indicada. E depois não sou governador efectivo porque, na época, o senhor Presidente da República achava que este tinha que ser um militar. Mas também não lutei por isso, devo confessar.

 

O que eu perguntei foi se isso o magoou. Se tocou a sua vaidade.

Percebo o que diz. Foi-me explicado, e eu entendi, que a solução não passava por mim; passava por razões que não têm nada a ver com competência. Por razões de natureza política. Se me pergunta se fiquei magoado, não fiquei magoado. Agora, se calhar, teria gostado de ser Governador.

 

Diz que é ambicioso, que tem vaidade no seu percurso. Sublinho isto porque são poucas as pessoas que o dizem de um modo tão natural.

Se não fosse a minha ambição não tinha chegado onde cheguei. Claro que houve um conjunto de circunstâncias favoráveis, que isto na vida é sempre assim: a gente pode ter as maiores capacidades e as coisas não se proporcionarem. Também acho que sou competente. Não tenho problemas em dizer, é assim mesmo.

 

Disse-me que aconteceram coisas extraordinárias na sua vida no ano de 68.

É o ano em que o Salazar cai da cadeira. É o ano em que entro na Marconi. É o ano em que caso. É o ano em que o meu pai morre. E é o ano da revolução em França.

 

A libertação sexual do Maio de 68, a libertação política com a queda de Salazar, a definição de um quadro de vida conjugal e profissional, a morte de uma figura estruturante: sim, são muitas revoluções para um ano só.

Ao mesmo tempo, todas estão ligadas. Na crise académica de 64-65 eu era vice-presidente da Associação Académica, de Económicas, e fomos todos expulsos da universidade; nesse ano, vou para a Noruega, onde estou uns meses, fazer um estágio para estudantes.

 

Uma espécie de Erasmus?

Era uma coisa chamada AIESEC (Association Internationale des Étudiants en Sciences Economiques et Commerciales). Isto marca-me muito porque vivi a democracia na Noruega em 64-65 e no regresso vou trabalhar com um conjunto de pessoas de esquerda, progressistas, que não eram a favor do regime. É uma das pessoas desse grupo que me leva para a Marconi.

 

A Noruega foi a primeira vez que saiu de Portugal?

Não. Vivi o movimento hippie na sua plenitude. Em termos filosóficos, com o Huxley, o “peace and love”. Ia passar as minhas férias fora, para a Holanda, para a Dinamarca…

 

E ia com que dinheiro, se posso perguntar?

Com os dinheiros que o meu pai me dava, coitadito. O movimento para mim é mais filosófico e cultural do que propriamente de revolta sexual. E estas ligações, à Marconi e às telecomunicações, e à gente de esquerda, marcam a minha formação e o meu futuro. Marcam as minhas ideias, a forma de estar, a forma de pensar.

 

Tinha intenções políticas?

Nunca fiz política. Mesmo quando fui expulso da universidade, foi porque pertencia ao movimento académico; e era do movimento académico apenas por achar que Salazar era um atrasado mental. E que não se ia a lado nenhum com a guerra colonial. Essas coisas começaram em mim na Noruega. Adiro ao Partido Socialista muito mais tarde, em 75.

 

Tinha quantos anos quando se operam todas essas revoluções, em 68?

Não chegava a 30 anos. Nunca fui muito namoradeiro. Sempre fui um tipo muito ocupado. “O Chico namora a Manela”, e o meu amigo dizia: “o Chico não tem tempo para namorar”. Eu conheci a minha mulher em 64-65, na AEISEC.

 

Como é que o Chico, que nem foi um grande namoradeiro, reparou na Manuela?

Estava na altura de namorar, também. Ela era uma pessoa que fazia da simplicidade a sua maneira aberta de falar. Ainda hoje gostamos um do outro, já lá vão quase 40 anos.

 

Dá a sensação de ter vivido várias vidas. O que é que delimita as fases?

A minha vida é feita por períodos de três, quatro, cinco anos. Uma pessoa que esteja muito tempo no mesmo sítio acaba por se deixar absorver pela rotina. A pessoa, para alimentar a inovação e a criatividade, tem que ir mudando. Eu acompanho muito o ciclo da vida política, também.

 

É um socialista e fica tudo enformado por esta afinidade.

Muito marcado. De qualquer maneira, entro em 68 na Marconi e rapidamente vou a presidente, em 76.

 

Foi uma ascensão meteórica... Foi surpreendente para si a rapidez com que subiu?

Tive sorte. Era adjunto do Director Administrativo da Marconi, praticamente foi tudo saneado, menos eu, porque era jovem e tinha sido expulso da universidade. Portanto, tinha um bom currículo para não ser saneado. E como fiquei, facilmente ascendi a um lugar cimeiro.

 

Não se interrogou: “Será que vou saber fazer isto”?

Essa questão nunca se me pôs. Saltei muito rápido para uma quantidade de funções, mas não tenho esse problema. Sou muito confiante. Pronto, de 68 a 81 estive na Marconi. Depois estou no governo até 85. Vou para Macau, onde estou três anos e pouco, e regresso.

 

O oriente mudou a sua vida?

Um bocadinho. Aquilo não é bem um continente, é uma zona do mundo de grande desenvolvimento, com um modelo muito liberal. Libertei-me imenso. Eu e a minha mulher achámos que a gente estava ali era para conhecer, e íamos à China quase todos os fins-de-semana. A gente apreciou a experiência de sucesso de Taiwan, da Coreia do Sul, completamente inovadoras à época. Nós estávamos muito mais pesados, lentos, com uma estrutura menos elástica, menos moldável. Na Ásia é tudo mais rápido. E deixou-me ligado a um grupo em que ainda hoje estou.

 

Sim, há os “amigos de Macau”...

Nunca alimentei a ideia dos “amigos de Macau”, nunca quis pertencer a um grupo de Macau. Achei que era mau.

 

Entre esses membros, digamos assim, estão António Vitorino, José Lamego, Carlos Monjardino, por razões diferentes Mário Soares...

Eu não sou propriamente desse grupo. Conheço-os todos, são todos meus amigos...

 

Quem fazia parte do seu grupo, então?

O meu grupo é posterior. O mais conhecido é o Jorge Coelho, foi meu chefe de gabinete; de resto, eu é que o levei para lá. Acima de tudo, aprendi a cultura asiática de fazer negócios e a rapidez, a eficácia, com que eles os fazem.

 

O que se segue?

O meu futuro depois de Macau não é influenciado por Macau. Fico aqui a gerir uma empresa que ninguém sabe qual é, faço umas coisas na Ucrânia como consultor. Depois entro na PT, e isso nada tem a ver com Macau.

 

Não, mas tem a ver com o socialismo e com a subida de Guterres a primeiro-ministro.

A entrada na PT tem a ver com a minha saída do governo. Entro no governo e depois tenho que sair por causa da sisa.

 

Já falaremos da sisa. Ainda estamos em Macau e nos efeitos desta passagem na sua vida. Mantém relações desse tempo?

Por exemplo, sou administrador do banco do Sr. Stanley Ho porque fiz uma relação com ele. Mantive este tipo de ligação à China e a Macau, sou muito amigo daquelas pessoas.

 

A partir do que contou da relação com o seu pai, seria fácil imaginar que tivesse dúvidas em relação a si próprio. Não se referiu a ele como uma pessoa que constantemente o reforçou.

Tenho vindo a ser cada vez mais comunicativo. Quando estou em grupo. Tenho mais confiança, talvez pelo facto de as coisas me terem corrido bem.

 

Um homem que é completamente membro de um grupo (e fez referências aos ciclos políticos e ao modo como a sua vida foi sendo condicionada por isso) temeu, em algum momento, ser abandonado? Receou ser proscrito por causa do episódio da sisa?

Sim, a questão da sisa afectou-me. Foi um acto absolutamente injusto, sendo verdade, e assumi imediatamente que era verdade. Dos momentos todos que tive ao longo da vida, talvez tenha sido a coisa que mais me marcou. Eu tinha acabado de chegar, há 15 dias… Ainda hoje não posso pensar de outra maneira: eu era uma pessoa que não interessava que ficasse naquele sítio, que era preciso eliminar. Lendo desta maneira, que é a leitura política possível, acho que foi injusto.

 

Sentiu que muitos outros tinham faltas daquele tipo, e que era injusto que tivesse sido apanhado?

Não é ter sido apanhado. A questão da sisa que se passou comigo passava-se com 90 e não sei quantos por cento da população portuguesa. O acontecimento em si é pouco importante. A questão que é importante é porque é que fui atacado. E a injustiça: eu acho que podia ser um bom ministro. Sabia muito daquilo. O Partido Socialista tinha-se candidatado às eleições com um programa na área dos transportes e comunicações feito por mim e por mais cem pessoas lideradas por mim durante dois anos. Mas também não tive muito tempo para pensar sobre isso, porque fui logo convidado para entrar na PT.

 

Não correu mal. Financeiramente até correu muito melhor, convenhamos...

Há até quem diga que foi eu que pus a notícia de propósito, mas não é verdade. Até porque é autofágico.

 

Por que é que a PT seria menos apetecível do que ser ministro?

Uma pessoa que chega e 15 dias depois sai de ministro por uma questão dessas, é uma machadada brutal na sua auto-estima. Eu jamais trocaria o lugar de ministro pelo de presidente da PT, nem que fosse pago a peso de ouro.

 

Estamos a falar de prestígio?

Mesmo em termos de prestígio.

 

Nada paga o prestígio de ser ministro, é isso?

Não. A machadada que levamos na nossa auto-estima é tal de maneira grande que o prémio de ir para a PT não é suficientemente compensador. É muito violento.

 

A PT foi um prémio?

Acho que a PT não foi um prémio porque saí [do governo]. A PT aconteceu porque eu tinha o melhor perfil. E correu bem, felizmente.

 

De qualquer maneira, soube bem saber que os amigos socialistas não o abandonavam naquele momento… E que lhe deram um presente chamado PT.

Não era um presente. O desafio profissional foi enorme, foi a melhor experiência da minha vida. Jamais imaginaria que ia ser como foi. Reconheço que da parte do António Guterres foi um acto de confiança, que lhe tiro o chapéu. E assumiu isso. Não era fácil, havia muita gente que achava que eu não merecia ir para a PT.

 

Mas o que mais me interessa, passado este tempo, é saber como viveu esses dias de indefinição. Teve medo que aquilo fosse um disparate que deitasse tudo a perder?

Medo, não. Mas podia acontecer. Ser proscrito, podia ter acontecido. Nunca fui propriamente proscrito, sempre tive bons relacionamentos. Mas se você analisar os ciclos políticos, verificará que estou sempre na crista quando é o Partido Socialista que está no poder.

 

Claro.

Ou seja, não sendo um político profissional, que nunca fui, estive sempre ligado ao poder. Quando o poder não é PS nunca estou ligado ao poder. O partido da oposição nunca me fez o favor, a gentileza de me convidar seja para onde for.

 

Mas é demasiado comprometido! A oposição não o iria buscar para o que quer que fosse, francamente...

Podiam ser generosos.

 

Estamos à espera de gestos magnânimos?

Deixe-me dizer-lhe uma coisa dentro dessa linha do proscrito: quando vim de Macau, achei que tinha feito um bom trabalho, e foi pouco reconhecido isso. Vim em 91 e estive até 96, com o governo PSD, lá está, um bocadinho abandonado, esquecido. Subutilizado.

 

O que é esteve a fazer nesses cinco anos?

Estive na Marconi Internacional...

 

Numa prateleira dourada.

Numa prateleira dourada.

 

Como é que ocupava os dias?

No estrangeiro, viajava muito. Muito do que a PT veio a ser mais tarde foi feito nessa altura. Andava muito entretido. Era uma prateleira dourada, mas com muitas coisas para fazer. Não era conhecido.

 

O que me está a dizer é que precisa que os outros reconheçam o que está a fazer. E de ter poder. Precisa disso?

Sim. Tinha actividade, mas não tinha capacidade de decisão, tinha que ser tudo sancionado. Gosto de exercer a liderança, gosto de comandar projectos. Sou essencialmente um homem de poder e um homem de projectos. Nesses anos, depois de sair de Macau, trabalhava imenso, mas não era protagonista de nada.

 

Nunca se deprimiu?

Não. Deprimir só daquela coisa da sisa. Tive muitos problemas, falando da minha vida, que me deprimiram. A morte do meu pai, as operações que fiz. Fui operado a um cancro na próstata. A minha mãe está com Alzheimer, quando lá vou, coitadinha, não me conhece.

 

Teve medo de morrer?

Acho que não tenho medo de morrer. Acho que tenho medo mais do que antecede a morte, do que do modo como vou morrer. Não gosto de sofrer. Sofrer é das coisas que me mete medo.

 

Quando se tem um cancro é natural que se faça uma reequação da vida...

Modifica a nossa maneira de ver o mundo, sim. Eu tive um carcinoma grande, fui operado, as coisas correram bem, felizmente nunca mais tive nada. Soube seis meses antes numa consulta de rotina. Resolvi ser operado, nos Estados Unidos.

 

Esteve sempre convencido de que podia vencer aquele desafio?

Foi tudo muito rápido. O meu médico disse-me: “Vamos operar”, e eu disse: “Dê-me um mês”. Fui aos Estados Unidos, fui ao Brasil, consultei dois especialistas, consultei mais dois aqui. Nos Estados Unidos, o médico queria operar-me em Novembro, e eu disse: “Não, é já este mês” (Outubro). Assim foi, fui operado uma semana depois. Não tive grande tempo para pensar. Acho que sim, que equacionei morrer, mas como lhe digo, é mais a maneira como se morre.

 

Não queria terminar esta entrevista falando de cancro. Vamos terminar falando de quê?

De que é que você quer falar? Sobre o Sporting, por exemplo, que eu sou sportinguista.

 

Queria que me dissesse quem é a pessoa que mais ama. Se o seu pai fosse vivo, aposto que a resposta seria o seu pai...

A minha mãe ainda é viva. Dou a resposta clássica, que corresponde à verdade: é a minha mãe, a minha mulher e os meus filhos. A minha mãe, quando lá vou, venho sempre muito depauperado. Está com 91 anos e já não sabe bem quem eu sou. A pessoa que mais amo acaba por ser ela. E a minha mulher e os meus filhos.

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2006