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Anabela Mota Ribeiro

Carlos Monjardino (2002)

11.12.14

A sua ligação ao Oriente fez-me começar por falar de jogo. De póquer. Este homem enigmático, Carlos Monjardino, ensinou-me a jogar póquer. O suficiente para entender o póquer como uma metáfora do jogo social, da tessitura das relações. A sageza, a ousadia, a virtù de que falava Maquiavel, são fios essenciais à trama.

Começámos pelo póquer para poder perceber rapidamente que aquilo que é, mais que um jogador, é um negociador. Um hábil negociador. O Avô Pulido Valente compreendeu a cena muito cedo, quando o viu afogueado a trocar ovos e perus entre as duas avós. Descansou-se quanto ao futuro do neto. O pai quis que não ficasse confinado à estreiteza da Pátria e mandou-o estudar para Inglaterra. Fez carreira na banca, entre Portugal e Paris. Instalou-se em Macau em meados dos anos 80, 14 meses. Não chegou a ser Governador do Território, mas iniciou obra de que ainda hoje se orgulha. Como justificação para a sua não-indigitação, há quem sustente a tese das boas relações que mantinha, e mantém, com Stanley Ho.

Tem 60 anos, 12 filhos, é casado. É o homem da Fundação Oriente.

 

Li algures que gosta de jogar póquer, a doer.

Gostei. Já não jogo há imenso tempo. Desde os meus 17, 18 anos que me entretinha a jogar póquer com um grupo de amigos. Não tínhamos muitas disponibilidades, mas jogávamos a dinheiro, claro, o póquer só se pode jogar a dinheiro. Começávamos às dez da noite e ficávamos até às 6 da manhã. Ao princípio jogava mal e entusiasmava-me. Talvez fosse mais pulsional. A pouco e pouco, fui aprendendo a ser cauteloso. Olhar para as pessoas e perceber que jogo é que têm, os tiques que têm...

 

Como é que se joga póquer?

Tem duas cartas fechadas na mão, e vão abrindo 5 cartas na mesa. Abre uma, as pessoas apostam, mais ou menos, conforme o jogo que têm ou que pensam que terão probabilidade de vir a ter. Às vezes até não apostam, quando têm bom jogo, para não dar indicações de que têm bom jogo, e seguem só os outros jogadores.

 

Como?

De acordo com as cartas que estão na mesa. Se tem um bom jogo, vai avançando. Se tem um jogo médio, vê até onde pode ir; quando começam a dobrar cartas, por exemplo, começa-se a ter alguns problemas. Também podem estar a fazer bluff, mas é um bluff muito arriscado. Quando já se tem uma sequência, aposta-se muito forte. Há pessoas que desistem. Porque têm menos do que sequência e não querem arriscar. E você ganha.

 

Na tensão do jogo, o que é alterado no comportamento? Que tiques e expressões se revelam?

Quando se joga póquer aberto, que é o meu preferido, pode-se observar melhor a reacção das pessoas de cada vez que as cartas vão sendo abertas. É preciso decorar as cartas que se tem na mão (o que não é difícil, porque são duas), ficar a olhar para os outros jogadores e depois apostar com um ar o mais indiferente possível. A maior parte das pessoas não consegue evitar um pequeno sinal, seja abrir os olhos, um sorriso, um tique qualquer quando sai uma carta que convém. Há pessoas que são esfíngicas e não se percebe absolutamente nada do que ali se está a passar. Esses são os grandes jogadores.

 

Aprenderam a ser assim?

Claro, aprenderam.Outra maneira de jogar é não apostar ao princípio, dando a entender que se tem um jogo corriqueiro. No final, na última aposta, quando se tem a certeza ou se sabe que se tem grandes probabilidades de ganhar, a pessoa que está a puxar pelo jogo, aposta, e você, em vez de igualar a aposta, aposta aquilo e mais o que tiver disponível. Apostam 10 e diz: «Esses 10 e mais 100». O outro, que está a puxar o jogo desde o princípio, já não quer sair. Há uma coisa que o empurra para ir até ao fim.

 

É um elemento muito misterioso: o já não poder recuar.

É muito difícil a uma pessoa que conduziu o jogo desde o princípio deixar de ir. É desistir. Muitas vezes, mesmo sabendo que há uma hipótese de haver um jogo maior, já não consegue segurar-se.

 

O que é tão excitante quando se joga póquer? Joga-se uma noite inteira e fica-se exaurido. A expectativa, o dinheiro, levam-se até ao limite.

O cansaço é relativo, sabe? Está-se de tal maneira entretido naquilo, em busca da sorte...

 

O que é que entretém tanto?

Para já, receber as cartas. A expectativa de ver que jogo é que se vai ter. Há pessoas que levantam uma, depois a outra, como se fizesse alguma diferença. São manias que têm que ver com superstições. Depois, o entusiasmo de perceber que jogo se vai fazer com as cartas que se tem na mão e com as cartas que estão a sair.

 

Porque é que deixou de jogar?

Não tenho vida para isso nem tenho amigos com quem possa jogar amigavelmente. A última vez que joguei foi em Macau, com o meu amigo dr. Carlos Assumpção. Eram uns póquer um tanto ou quanto clandestinos... Ele era o presidente da Assembleia Legislativa, e eu, na altura, encarregado do governo de Macau. Mas era um jogo entre amigos e bem divertido.

 

Era um encontro clandestino, algo bizarro. As pessoas ficam completamente destituídas das funções que exercem em encontros particulares?

Nesses jogos de pocker, ele e eu estávamos numa posição difícil. Tínhamos mais pessoas a jogar connosco, que não tinham necessariamente as mesmas disponibilidades financeiras.

 

Vai-me dizer que perdia de propósito?

Durante um bocado da noite, aquilo era a sério. O que fazia era começar a jogar e, por vezes, estando a ganhar razoavelmente, chegada a parte final do jogo, fazia de propósito para perder, e perdia tudo. O dinheiro voltava todo para o outro lado. O dr. Carlos Assumpção também se sentia muitas vezes nessa situação.

 

Quando não existem esse tipo de constrangimentos, ninguém gosta de perder nem a feijões. O que é que se ganha e o que é que se arrisca exactamente? Não é só dinheiro, pois não?

É um desafio. À memória: tem que se pensar no seu próprio jogo e no que se está provavelmente a construir nas mãos dos vários jogadores. À interpretação daquilo que pensamos que vai na cabeça das pessoas através de alguns sinais que possam dar. Joga-se muito com a cara das pessoas. Não é um jogo muito elaborado, não é o xadrez ou o bridge. Mas é um jogo interessante porque há uma enorme expectativa.

 

Nunca se sentiu dominado pelo jogo? Como Dostoievski descreve n’ «O Jogador», o indivíduo arrisca face ao destino, avança para o abismo, afundado numa pulsão que o domina, e sem uma réstia de racionalidade.

Eu acho que, como actividade, é uma actividade menor. Para passar o tempo pode ser agradável desde que não se leve o jogo demasiado a sério nem que se torne num modo de vida.

 

Tem respeito pela actividade?

Não particularmente. Até tenho uma história. Aos 17, 18 anos fui estudar para Inglaterra. Já jogava póquer nessa altura, e não jogava mal. O meu pai dava-me exactamente o dinheiro de que precisava para ter uma casa, comer e comprar livros. Que era muito pouco. Então, além de lavar pratos num restaurante, resolvi que tinha de sacrificar uma parte do meu tempo livre para fazer uma coisa que fazia bem: jogar. Jogava para ganhar. E ganhava! Porquê? Sabia exactamente o que queria, até onde podia ir, não me deixava levar por impulsos. Sexta-feira era a noite que reservava para jogar. Tinha meia dúzia de libras e com elas jogava muito cerebralmente.

 

Dava-lhe gozo, sendo tão cerebral?

Não me dava gozo nenhum. Mas como queria comprar um automóvel, melhorar a minha vida de todos os dias, ter um fim-de-semana simpático com a minha namorada e não tinha dinheiro para o fazer, tinha que o arranjar. Um amigo que vivia na mesma casa, que tinha muito mais dinheiro do que eu, deixava-se ir e perdia fortunas. Enquanto que ele apostava 100 libras, eu apostava uma.

 

Teria o mesmo respeito por si mesmo se se deixasse dominar?

Nem pouco mais ou menos. Em Macau havia pessoas que pediam para reunir comigo para dizer que na noite anterior tinham perdido a fortuna toda, que já não eram concessionários disto e daquilo, os prédios tinham ido, as fábricas tinham ido... Lamentável!

 

Pode compreender esse momento em que a pessoa já não pode voltar trás, já não é senhora de si?

Não. De maneira nenhuma. O jogo aparece como uma actividade que anula a vontade de fazer qualquer outra coisa. Ganhar qualquer coisa passa a ser uma obsessão. Se não é hoje é amanhã, se não é amanhã há-de ser depois, e vão-se deixando arrastar....

 

Quem é que o ensinou a jogar?

É capaz de ter sido o meu irmão, que é mais velho e jogava póquer. E também um amigo que tínhamos.

 

O senhor foi talhado para ser um homem de negócios. Uma coisa tem que ver com a outra, julgo. O jogo e o negócio. Trata-se de arrojo, e de esgrima.

Um bocado. O meu avô Pulido Valente dizia sempre que não tinha preocupações comigo. Que por pouco bom aluno que fosse, (e não era grande coisa), tinha a minha vida resolvida de qualquer maneira. Eu fazia uns negócios entre as minhas avós. O meu avô Pulido Valente era médico, tinha uns clientes que mandavam uns presentes de Natal bestiais, uns perus, e não sabia o que fazer aos perus. Eu vivia com a outra avó, que tinha uma quinta na Avenida Praia da Vitória, com patos, cabras e umas capoeiras enormes. O que fazia era pedir à minha avó Pulido Valente que me oferecesse os perus, e depois vendia-os à avó Monjardino.

 

Miúdo pequeno?

Teria oito ou nove anos. Pegava nos ovos das galinhas lá da quinta e ia vendê-los à outra avó, que não tinha galinhas, coitada, vivia num andar. Um dia, numa caixinha estavam 11 ovos. A minha avó, muito agarrada ao dinheiro, diz-me: «Aqui só estão 11!». E eu respondi: «Não, avó, estou a trazer 12. Um deles, como pode ver, é um ovo de duas gemas. Não lhe vou vender 12, porque senão fico eu a perder».

 

Onde é que ia arranjar essas histórias?

Eram uma coisa natural em mim

 

Se for o investimento destituído de risco, interessa-lhe?

Se não tiver componente de risco é muito menos interessante do que um investimento que tenha um poucochinho que seja de risco.

 

Posso voltar à infância e ao futuro que lhe prognosticavam? A sua família tem uma tradição ligada à medicina.

São quase todos médicos, menos eu. O primo Vasco [Pulido Valente] também não.

 

Davam-se em miúdos?

Crescemos juntos, ele é mais velho um ano.

 

Ele tinha já a argúcia que tem hoje?

Tinha, mas era muito nervoso, muito irritadiço.

 

Ainda tem a fama de ser irascível.

Tinha sempre de ser diferente dos outros. E era muito irreverente. O pai dele era engenheiro e director técnico da Robbialac e um dia, no liceu, achou graça em assinar um teste com o nome Robbialac. Não sei se foi expulso se suspenso. Sei que para ele os professores eram todos umas bestas que não sabiam nada. Eu não herdei totalmente isso.

 

Há uma característica que é atribuída ao seu primo Vasco: não condescender com a mediocridade. Também herdou essa parte?

Um bocado. Sou muitíssimo mais sensível à injustiça. Sou muitíssimo mais sensível à falta de solidariedade do que combativo ou pouco condescendente em relação à mediocridade, que também me incomoda, mas que não é uma bandeira.

 

Porque é que um menino de boas famílias, talhado para o sucesso, ficou particularmente sensível à desigualdade social?

Fui tendo essas preocupações por sentir que vivia num país que não evoluía em termos sociais. Que não conseguia satisfazer as necessidades básicas e constitucionais das pessoas, e que passava por cima disso (como continua a passar) de uma maneira um tanto ou quanto leviana. Ao mesmo tempo, o governo preocupa-se com coisas que me parecem laterais, querendo dar ao exterior a impressão de que somos uma coisa que já não somos. Os fundos públicos são escassos, muito escassos, e os poucos que temos são, muitas vezes, mal dirigidos. O papel do governo é preocupar-se com os direitos básicos dos cidadãos e ter a certeza de que esses direitos estão a ser contemplados.

 

Política é isso?

Para mim, a base da política de um país é isso. Não são as preocupações do deficit. O deficit podia não ser o que é se houvesse coragem. É uma coisa que falta neste país: coragem. A democracia já está razoavelmente arreigada no espírito das pessoas para se que possam tomar decisões corajosas, que se impõem.

 

Não se tem coragem por causa do apego ao poder? Os governantes têm um fascínio e um apego pelo poder que faz que, de um modo geral, sejam muito pouco audaciosos.

É. É um erro, e mais do que um erro, é estarem a subalternizar aquilo que é a principal característica que um governo deve ter: a capacidade de atacar os problemas que têm que ver com as pessoas. Isso passa rapidamente para 2º, 3º, 4º lugar. As preocupações são mais para consumo externo. E você tem toda a razão: o mal dos políticos e dos governantes em geral é esse apego ao poder. É muito raro encontrar um político em qualquer sítio do mundo que esteja disposto a perder o poder por uma boa causa.

 

O que é tão tentador assim? Uma boa resposta pode ser a sua, que é um homem de poder, sem ser exactamente um homem da política.

Quem passa por isso sabe. Sempre que aconteceu ter de tomar uma decisão, daquelas grandes que marcam etapas na vida, tomei a certa. Julgo que tenho tido muita sorte porque, às vezes, por mais que se pense nas coisas, pode não se acertar nas decisões.

 

E aí é o quê? Intuição?

Intuição. Não me importo se disserem que sou basicamente um intuitivo. Sou. Quando vim de Inglaterra, fui para o [Banco] Português do Atlântico. Foi uma escolha intuitiva, disse que não a outro banco onde ia ganhar um pouco mais. Fiz uma carreira meteórica no Atlântico por razões várias. Uma delas foi porque não fiz tropa e não tive aquele período morto que muitos tinham. Aos 27, 28 anos estava já a bater no topo da carreira, aquela a que podia aspirar – o mais era ser director-geral e isso nem sequer se punha. A seguir aparecem duas propostas, uma feita pelo senhor Cupertino de Miranda e outra pelo senhor Bulhosa. O Cupertino de Miranda perguntou-me: «Quer ir para o Algarve, tomar conta do banco do Algarve? E ainda fica com a Lusotur». Fui lá ver com a minha mulher, uma casa formidável com piscina. A alternativa era ir tomar conta de um banco falido em Paris, a Franco-Portugaise. Aceitei o desafio do senhor Bulhosa e escolhi a Franco-Portugaise.

 

O que o fez decidir-se?

«Vai ser mais duro, mais chato, mas paciência, é um desafio: são contactos internacionais e vou aproveitar». Resultado: aos 30 anos era director-geral da Franco-Portugaise.

 

Quando se dá a Revolução, permanece em Paris. É dada como certa a sua ligação ao Partido Socialista, mas a verdade é que nunca aderiu formalmente ao partido. A política nunca o excitou verdadeiramente?

Excitou, excitou! Mas sou suficientemente frio para perceber aquilo que sou capaz de fazer e aquilo que não sou capaz de fazer. E sei do incómodo que posso trazer a um partido, uma estrutura espartilhada, com o feitio que tenho. Não consigo ser obediente e só dizer o que é suposto. Pensei: vou trazer confusão ao partido, não gosto de algumas pessoas que, no meu entender, se estão a juntar ao partido claramente por motivos de oportunidade, portanto não vou.

 

O seu regresso dá-se em 85, para o BIC. Pouco depois surge a campanha do doutor Soares e a sua subsequente ida para Macau. Mas ainda antes de passar a essa fase da sua vida, gostaria de me deter no apego ao poder. O seu poder não é eminentemente político, mas é inegável que é um homem poderoso. Porque é que o poder é uma coisa tão tentadora para si?

É mais a assumpção plena das responsabilidades do que o poder como tal. Habituei-mem a ser completamente independente. Não sou muito colegial nas decisões. Fui obrigado a tomar decisões sozinho muito cedo, decisões complicadas. Tenho mesmo dificuldade em partilhar as decisões. Continuo a assinar todos os cheques da Fundação, todos os dias.

 

Bem!

Tenho que saber minimamente o que é que se passa! Há alguma descentralização, mas faço questão em assinar todos os cheques.

 

Porque é que tem dificuldade em delegar? É a confiança?

É a vontade de saber o que se passa. A Fundação Oriente é uma criança minha, que tem 15 anos de existência. Foi-me entregue um tal património e uma tal responsabilidade que não me sinto à vontade se não controlar o processo. Tudo o que a Fundação hoje representa são compromissos que assumi e que não posso deixar de controlar. Porque para mim fazem parte da génese da Fundação, mas, se calhar, para outras pessoas não.

 

O que é preciso para confiar absolutamente numa pessoa, se é que chega a confiar absolutamente numa pessoa?

Ui... Há pessoas dentro da Fundação Oriente em quem tenho a máxima confiança. A grande maioria está cá desde o início. São pessoas que perceberam o projecto e são elas que terão de tomar, um dia, as rédeas dos destinos da Fundação.

 

Eu não estava a pensar exclusivamente nas pessoas que trabalham consigo na Fundação ou no facto de não delegar responsabilidade aqui, mas na confiança em termos mais genéricos.

Há duas, três ou quatro pessoas em quem tenho absoluta confiança, nomeadamente as mais chegadas a mim.

 

Posso perguntar quem são?

O meu irmão, o Vasco Vieira de Almeida, o Henrique Medina Carreira, a minha assistente na Fundação é uma das pessoas em quem mais confio. Coitada, vai fazer 30 anos que trabalha comigo. Começou como minha secretária. Tenho total confiança nela, tenho total confiança no meu irmão, tenho confiança em todos os meus filhos.

 

Quantos filhos tem?

Tenho doze! Tenho 4 e mais 8. Tenho uma pequenina que tem agora 23 meses, a Carlota, filha da Maria Amália – por sinal muito bonita, sai à mãe. Tenho os outros que já tinha, que têm 22, 24 e 34. E depois tenho ainda os que adoptei e que têm entre 12 e 24.

 

São os meninos da Fundação.

Não são da Fundação, são meus. Esta semana já vou no segundo jantar com eles todos.

 

Diverte-se nesses jantares?

Divirto. Às vezes há problemas, trazem uma carga chata, e é preciso contrariar algumas coisas, hábitos, ideias que têm da vida. Muitos deles são irmãos. Esse era o projecto inicial: não separar irmãos biológicos.

 

A ideia de criar uma fundação que amparasse meninos carenciados materializou-se quando?

Quando fiz 50 anos. Passei pela vida com enorme dose de sorte e intuição. Só comecei a queixar-me da vida quando morreu o meu pai, que era a pessoa de quem mais gostava (ele tinha 58, eu tinha 24). Só vim a ter outro desgosto grande com a morte da minha mulher. Uma morte depois de 8 anos de um sofrimento brutal, de uma coragem fora de série. Há uma parte que morre connosco.

 

Voltando à constituição da Fundação Monjardino, a ideia materializou-se, então, quando fez 50 anos.

Era um projecto que eu e a minha mulher acalentávamos: tomar plenamente a cargo o acolhimento de crianças abandonadas ou retiradas às famílias, proporcionando-lhes uma estrutura de vida familiar e assegurando a sua educação e acompanhamento até à inserção na vida activa. Os miúdos: em vez de deixar separar irmãos, privilegiámos o acolhimento de grupos de irmãos. Para não perderem as poucas referências que tinham. Depois havia a questão: irão constituir uma família entre si?

 

Como é que se constrói uma família, quais são os laços?

Aparentemente nunca ninguém tinha experimentado isto. Começou com uma coisa básica: como é que nos iam chamar. Não íamos impor aos miúdos que nos chamassem mãe ou pai ou o que fosse. Não éramos, de facto, pais deles, eles tinham conhecido os pais. «Como é que vocês nos querem chamar? Inventem uma coisa qualquer, porque às vezes sentimos que é difícil falarem connosco». Eles devem ter falado entre eles e um dia disseram: «Já sabemos como é que vos havemos de chamar: mãe Ana e pai Carlos». Durante anos chamaram-nos assim. A minha mulher morreu, algumas das referências que eles tinham também desapareceram, e aqui há pouco tempo deixaram cair o Carlos. Hoje todos me tratam por pai.

 

Moram consigo?

Não tenho casa para meter 12! É impossível. Vivem na casa da Fundação, onde cada um tem o seu quarto, o seu espaço, um jardim e o enquadramento de que precisam. Os biológicos moram comigo.

 

Como é que conheceu a sua mulher (Ana Sofia)?

Por termos casa na Marinha, eu ia muitas vezes à praia a Cascais. Comecei a ver uma menina de fato-de-banho verde, muito bonita, e quis saber quem era. Tínhamos uns amigos comuns e começámos a falar. Eu passava a vida a ir à loja dos gelados oferecer-lhe um gelado! Tinha ela 12 anos e eu 15. Era um namoro muito contrariado pelos pais dela.

 

Porquê?

Eu era considerado um bocado anárquico, comuna e razoavelmente cábula. Eles eram uma família muito estrita. Mas as coisas foram andando. Aos 18 anos, antes de ir para fora, acabámos. Em Inglaterra arranjei uma quantidade de sarilhos sentimentais. A certa altura fixei-me numa pessoa e estivemos quase a casar. A mãe dela disse que não achava bem que ela viesse para minha casa – quando já estávamos a viver juntos há uma série de tempo... O que é que aconteceu? Vim a Portugal, encontrei a Ana Sofia na Praça da Figueira e ficámos a olhar um para o outro. Passado um dia estávamos no nosso namoro. Seguiram-se mais uns anos até casarmos e por fim estivemos casados 32 anos.

 

Disse-me que o jogo não tomou nunca conta de si. E o amor? Importa-se que tome?

Vou responder-lhe talvez o mais sinceramente que respondi a qualquer pessoa que me fez essa pergunta. Pode tomar-me. Toma, cá dentro toma. E muito. Amachuca-me bastante. Mas é difícil as pessoas perceberem que estou apanhado, não dou grandes sinais. Há quem se queixe que não exteriorizo muito aquilo que sinto... Nem sei porque é que sou assim.

 

Pode ser para dar de si a imagem de homem poderoso. O homem poderoso, supostamente, não é tão vulnerável ao amor.

Talvez, mas não olho para o poder dessa forma. Sei que tenho algum poder. Também sei que tenho mais do que alguma vez pensei que viria a ter, mas durante muitos anos não tive essa noção. Sou totalmente desprendido. Não visto uma carapaça, não me faço diferente para falar com o presidente da República ou com o porteiro da Fundação ou com alguém que está na rua a pedir.

 

É o complexo por ter sido um favorecido? É a culpa de ter nascido bem?

Talvez seja. Mas é também ter a noção do país em que se vive, das dificuldades, das carências... A maior parte das pessoas é egoísta e não liga nenhuma. Mas sempre tive essa preocupação e não concebo a possibilidade de passar pela vida sem dar à sociedade qualquer coisa do que tive a mais. Tive mais sorte que os outros. Há um equilíbrio que se deve tentar fazer.

 

Nessa preocupação ocupa-o também aquilo que ficará de si? O dinheiro e o poder, por muito inebriantes, dizem respeito à vida material. O que fica para além da morte é uma imagem, uma memória.

Não penso no que está para além da vida, mas sou capaz de ir pedir ao presidente da república, para dar uma condecoração, nem que seja póstuma, a alguém. Por exemplo, o meu pai é uma pessoa mal conhecida que sempre lutou muito para que Portugal se tornasse num país democrático. Tinha uma atitude de grande solidariedade com as pessoas que viviam na clandestinidade, sobretudo no exercício da sua profissão. Durante anos e anos, entravam na clínica com nomes postos, fazia-lhes o parto e saíam, claro está, sem pagar nada. Morreu em 1969. Estava muito ligado a Cascais e um dia deram o nome dele a uma praça.

 

Isso comoveu-o?

Comoveu. Sou piegas com a memória da minha mulher e do meu pai.

 

Qual é a melhor imagem que tem do seu pai? Essa relação deve tê-lo formado.

Completamente. A melhor imagem que tenho do meu pai é a da sua bonomia, amizade, e humanidade. Tenho mais o feitio do meu pai, embora, nalgumas coisas – teimosias, por exemplo – tenha herdado o lado Pulido Valente. Herdei do meu pai uma grande preocupação em relação aos outros – coisa que também existe na outra parte da família, mas de uma forma mais dura. Tinham uma preocupação social, que, na prática, se traduzia em pertencerem a partidos políticos muito de esquerda. Mas no terreno, directamente e não através da política, o meu pai era muito mais actuante.

 

Daí que tenha nascido consigo esse lado pragmático.

Exacto. Vou mostrar-lhe uma fotografia dele.

 

Mostre.

A ligação do meu pai comigo era tão grande, o carinho... Esta fotografia foi tirada no dia em que o meu pai comprou a casa da [Quinta da] Marinha, tinha eu cinco anos.

 

O seu pai, tendo um porte distinto e aristocrático, não tem um porte altivo.

Era um bonzarrão. Ainda hoje há pessoas que vêm ter comigo, «O senhor é tão parecido com o seu pai e tenho tal admiração pelo seu pai que não podia deixar de o cumprimentar». Entregou-se completamente à profissão, fez uma casa magnífica, o seu sonho, onde só viveu 3 anos antes de morrer.

 

Tiveram uma excelente vida fruto do trabalho dele? Havia heranças?

Havia uma herança da minha avó, mãe do meu pai, que era grande, mas a minha avó morreu em 62 e o meu pai em 69.

 

Usufruiram desse dinheiro muito pouco tempo.

E ainda houve uns problemas financeiros com uma tia...

 

A excelente vida foi, então, por esforço dele.

Claramente. Morreu por causa disso. Não tinha grande cuidado com a saúde, não descansava o mínimo, era chamado várias vezes durante a noite para assistir às suas doentes.

 

Isso perturba-o? A ideia de poder trabalhar demasiado, para ganhar demasiado e depois morrer de um momento para o outro?

Eu não penso no que ganho. Mas já vou pensando na morte e em ir deixando as coisas arrumadas...

 

Sabe quanto dinheiro tem?

Não. Tenho uma ideia aproximada, é evidente. Por acaso aqui há tempos estive a tentar saber por causa dos meus filhos. As pessoas dizem: «Não ligas porque tens dinheiro». É verdade. Não ligo ao meu dinheiro, ao da Fundação ligo e de que maneira! Tenho dinheiro, mas não tenho as fortunas que há para aí. Se quisesse seguir esse trajecto, quando vim para Portugal, tinha aceite uma proposta que o Stanley [Ho] me fez quando saí de Macau.

 

Que proposta?

Disse ao Stanley que não podia aceitar por muito tentadora que fosse a proposta, que eu nem sabia qual era. «Tenho uma boa relação consigo, você cumpriu sempre comigo como governante deste território em tudo e mais alguma coisa». Ele ultrapassava as contrapartidas ao território, bastava pedir-lhe: «Preciso de mais tanto para a construção do aeroporto». Para a ponte, para o terminal, para o turismo. Ele dava e não era obrigado a dar. Sempre se portou ao milímetro.

 

Estávamos a falar de não se interessar pelo dinheiro.

Tenho de admitir que não me interesso pelo dinheiro porque tenho o dinheiro suficiente para fazer aquilo que me dá na cabeça, que também não é nada de especial, a não ser os carros, e mesmo esses já há uns anos que não compro. Vestir-me, visto-me mal e visto-me na China.

 

É verdade aquela coisa de não comprar fatos em Lisboa, porque são muito caros, e depois recorrer aos alfaiates chineses?

É. Encomendei dois fatos na China, vou prová-los segunda-feira, quando lá chegar.

 

Mas isso é pura sovinice? Compõe um personagem com graça, o escusar-se a gastar dinheiro num bom alfaiate e preferir fazê-lo na China.

Não é tanto pelo dinheiro que gasto. É pelo valor que as coisas têm. Um fato em Macau custa-me 35 contos.

 

Num grande alfaiate, com um tecido extraordinário?

Fora de série. Chego cá e para o mesmo fato tenho de pagar 180 contos ou 190 contos! Sinceramente não consigo deixar de comprar os meus fatos lá. Um sobretudo de caxemira, neste momento em Macau, não chega a 50 contos. Uma casaca custou-me 30 contos. Cá custa 250. Porque é que hei-de dar tanto dinheiro por uma coisa que posso comprar por muito menos?

 

Não compraria se a qualidade fosse inferior, certo? Não me diga que não há a preocupação da qualidade.

Há. O tecido do casaco que trago vestido hoje, por exemplo, é bom. E é de Macau. Até a camisa é de Macau.

 

Então o dinheiro serve para quê?       

Para comprar coisas e para dar gozo, claro. Não me importo nada de comprar um computador para cada um dos meus filhos. Entre o mês passado e este mês vou comprar duas casas para dois filhos. Aí está para que serve o dinheiro.

 

Vai obrigá-los a pagar a Sisa?

É difícil pôr um filho que ganha 110 contos por mês a pagar seja o que for...

 

Faz-lhe espécie ter um filho que ganha tão mal?

Gostava que ganhasse bem. Mas sou incapaz de meter cunhas para que ganhe mais. De maneira que há-de ganhar aquilo e depois há-de com certeza subir e ganhar mais. A minha filha mais velha a mesma coisa. As casas ficam em nome deles, mas fico usufrutuário. Não é que eles a vão alienar, que são muito certinhos. Mas é um princípio, para todos.

 

Confiança?

Não é confiança. É talvez por pensar também na geração que se segue – os meus netos que já são quatro...

 

Fale-me do primeiro encontro com o Stanley Ho.

Da primeira vez que o vi não sabia quem era.

 

O encontro com ele mudou a sua vida?

Não! Porque é que havia de ter mudado a minha vida?

 

Porque tenho a impressão que a relação com o Oriente mudou a sua vida. Foi uma orientação nova que se tornou dominante.

Sim, mas isso não tem nada a ver com o Stanley. Tem a ver com a decisão de ir para Macau, perceber o que é que era a política – o bom e o mau.

 

Mas foi porquê? Já não lhe dava um gozo supremo ganhar dinheiro e continuar a subir nos bancos?

Queria enfrentar algo que nunca tinha enfrentado. O doutor Soares já me tinha convidado duas vezes para ir para o governo e eu tinha dito que não. Numa terceira vez perguntou-me se queria ir para Macau e fui. O Stanley: conheci-o em 67, 68, num dia em que a minha sogra me pediu para receber lá em casa uns senhores chineses que estavam interessados em comprar um terreno na Marinha; era suposto que lhes mostrasse a zona.

 

Qual era a ligação da sua sogra com eles?

A minha sogra tinha um primo que era casado com uma meia-irmã da mulher do Stanley!

 

É incrível.

Meti os senhores no carro e eles andaram a ver a Marinha. Fui falar com os Champalimauds e ele comprou um terreno muito perto da minha casa. E assim conheci o Stanley Ho.

 

Nesse primeiro contacto, ele impressionou-o?

Não! Vim a conhecê-lo um dia antes da minha posse cá. Apareceu por aí, pediu para falar comigo, falou de Macau, eu disse-lhe que conhecia mal Macau.

 

Havia já aquela aura de corrupção sobre o território e portanto toda a suspeição à volta do personagem?

Havia. Do personagem não. Do personagem havia a ligação ao jogo, que é evidente. Ele era obviamente a pessoa que mais poder tinha em Macau. Era e é. Tivemos uma conversa simpática. As pessoas escandalizavam-se muito com coisas parvas. Por exemplo, um dia ele pediu para ser recebido lá no Palácio, e depois íamos para o mesmo almoço. Em vez de estar a gastar gasolina do meu carro, ele tinha o Rolls Royce à porta do palácio, perguntei-lhe «Dá-me uma boleia?» Nunca ninguém do governo tinha ousado ir num carro com o Stanley para onde quer que fosse!

 

Não temia que o colassem a ele?

Eu estava lá para administrar o Território, queria lá saber se não era suposto andar de carro com o Stanley Ho! Ainda por cima ele andava de Rolls Royce, que é um carro lindo. Claro que depois as pessoas falavam, mas não estava nada ralado. Se tivesse querido ganhar dinheiro bastava... bastava ser o braço-direito dele.

 

O testa de ferro.

Nunca poderia ser testa de ferro de quem quer que fosse. Não tenho feitio.

 

O que é que impressiona num homem como Stanley Ho? E o senhor, chegado ao território, ainda jovem, como é que tentou impressioná-lo?

Normalmente as pessoas têm com o Stanley uma relação de interesse. Eu queria que ele percebesse claramente que não teria nunca essa relação com ele. Isso veio a verificar-se numa história rocambolesca no início da nossa relação. Logo que cheguei a Macau, sofri pressões para não assinar o contrato do jogo a não ser que houvesse outras contrapartidas. Disse que não e recebi alguns amargos de boca por causa disso. Depois disse-lhe a ele: «Quero dizer-lhe que fui pressionado desta forma. Não faço o contrato nestas condições. As condições são estas e não há aqui nada que condicione o contrato a não ser as contrapartidas para o Território».

 

A suspeição é como uma névoa. Paira sobre a vida da pessoa e transforma-se numa coisa peganhenta.

É incómodo. Mas a vida é o que é, encontrei na vida as pessoas que encontrei, não posso dizer que não tive negociações com este ou aquele porque tive e tinha de ter_ fazia parte das minhas funções.

 

O que é que não seria capaz de fazer? Qual é o seu limite?

Em termos de quê?

 

De uma coisa de que se arrependesse a seguir.

Não favoreço amigos meus. Seja em Macau, seja aqui, seja onde for. Ainda no outro dia apareceu aí um pedido que não podia aceitar no seio da Fundação, mas que era feito por uma pessoa que me merecia simpatia e admiração; de modo que peguei num cheque meu e dei. É frequente isto acontecer. Entalam-me, mas paciência.

 

Foi por causa da sua amizade com Mário Soares, que conhece desde criança...

Desde os cinco anos.

 

Tinham uma relação de amizade ou a relação foi estreitada quando Soares estava no exílio em Paris?

Foi estreitada em Paris, mas já o conhecia muito bem. Foi, até, meu professor no Colégio Moderno. Ensinava História.

 

Foi mercê dessa relação próxima com Mário Soares que foi para Macau.

Foi.

 

Quando foi para Macau, ainda que a sua função fosse a de secretário, tinha a ambição de ser governador?

O primeiro convite que tive para ir, depois de convidarem Fraústo da Silva, que não aceitou, foi para ir como governador. Não foi o Dr. Soares que me fez o convite, foi uma terceira pessoa. Passado semanas disseram-me: «Olhe, dá mais jeito que seja uma pessoa com um perfil assim e assim e que você vá como número dois». Depois houve desentendimentos ao nível do Governo e polémicas, nomeadamente, com o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa.

 

Essa polémica com Marcelo Rebelo de Sousa foi sobretudo dolorosa por causa da sua mulher? Depois disso, ela não quis permanecer no território.

Foi. E por mim. Achei que era um injustiça, como de resto se veio a provar.

 

Porque é que a sua mulher ficou tão afectada?

Era a nossa imagem. Ela conhecia a história toda, era das poucas pessoas com quem podia falar. Em Macau não se podia falar com ninguém. A seguir há uma demissão no Governo. O governador solidariza-se e demite-se também. A partir do momento em que se demite o governador, cai toda a equipa. Aí, toda a gente começou a especular se ficava como governador ou não. Presumo que o PS não tenha querido que ficasse.

 

Fazia todo o sentido que ficasse, ou não?

Não. Fazia todo o sentido que determinadas forças dentro do PS não quisessem que ficasse. Não se esqueça que mandei prender uma pessoa que foi buscar dinheiro para o PS... Como calcula, o PS não ficou muito bem disposto comigo.

 

Está bem. Mas quem é que mandava no PS? Não era Mário Soares?

Na altura não. Foi uma das razões principais para não ter sido sequer equacionado seriamente para ser governador de Macau. Ao que respondo que eu e a Ana já tínhamos decidido que não íamos ficar a Macau.

 

Quer-me dizer que foi muito empolado o sentimento de ter sido preterido?

Para já, fui governador durante uma série de tempo...


Ainda que o fosse na prática, não era realmente o governador.

Quero lá saber!

 

Não quer mesmo? Não é significativo estar empossado, o reconhecimento público?

Não. Deu-me gozo ter lançado e ter tornado irreversível a ideia do aeroporto, deu-me gozo acabar finalmente o chamado porto de águas profundas, o terminal, lançar a construção da nova ponte. Todas as grandes obras de infra-estrutura foram lançadas no meu tempo. Deu-me um gozo monumental em 14 meses tudo o que consegui fazer. Macau marcou-me muito, como é evidente. Mas isto que faço hoje, e que faço há 15 anos, não trocava por nada deste mundo.

 

Antes de sair de Macau, dessa vivência tão intensa, queria justamente saber porque é que foi tão intensa? Como é que se pode aprender tanto em 14 meses, como é que a vida pode mudar tanto em 14 meses?

Aprende-se muito. Eu ia um bocado imberbe em termos de política...

 

É assim tão diferente negociar em política e negociar em dinheiro?

É, é. As leis da negociação do dinheiro são muito mais estreitas.

 

As políticas são mais sinuosas?

Muito. E as cumplicidades que existem...

 

Chegámos a um ponto muito importante, que é o do envolvimento dos afectos e das pessoas nas negociações. Mas isso não é também válido para a alta finança?

Vou falar de uma pessoa que admiro e de quem sou amigo: o Ricardo Salgado. Basicamente tenho confiança nele e ele tem confiança em mim. Em qualquer operação que façamos em conjunto, o que é negociado é o que é integralmente cumprido. Cada um sabe exactamente onde está e não há surpresas. Na política não é assim. Na política o que é perverso é que estamos a discutir um determinado negócio e às duas por três começamos a ver que aquilo já é uma amálgama de interesses que não têm a ver com a política nem com nada. Têm a ver com os interesses de cada um.

 

Em Macau a teia é ainda mais intrincada.

É. E às vezes não sabemos onde acaba a teia...

 

Parece que estamos num filme de espionagem! Em última instância não se confia em ninguém?

Foi o que aconteceu comigo. A certa altura, quando o governador Pinto Machado saíu, o volume de trabalho era enorme. Às vezes estava a despachar até às 4 da manhã! Mesmo assim, pura e simplesmente não deleguei poderes. «Enquanto não vier o novo governador, as decisões passam todas por mim». Em vez de me deitar às 4 da manhã, passei a deitar-me às 7.

 

Quanto tempo demora a perceber a têmpera de uma pessoa que tem à sua frente? A perceber se ela é confiável ou não?

Normalmente faço um jogo. A maneira mais rápida de saber se a pessoa é confiável ou não, é, à cabeça, dar-lhe responsabilidades numa tarefa de média importância e ir controlando. A avaliação tem de ser rápida porque tenho pouco tempo.

 

Pouco tempo?

Para os projectos que me dão gozo. Ter uma rede de cuidados continuados com as misericórdias, fazer um grande fórum da sociedade civil...

 

Isso é para o seu pai se orgulhar de si, não é? Esse lado que mexe com crianças e idosos, tem um pouco que ver com a profissão do seu pai. Por acaso, é o lado que lhe dá mais gozo.

É, de longe.

 

Estava à espera que toda a sua postura fosse mais ansiosa e acidentada.

Não sou uma pessoa muito ansiosa. Tenho uma postura que me tem custado algumas críticas e ataques. Sou um bocado intransigente em relação a valores que considero muito importantes. No diálogo, normalmente decido sempre a favor dos mais fracos. Preocupo-me mais com um atraso no ordenado da pessoa que ganha menos do que na pessoa que ganha mais.

 

Porque é que não ensina os seus filhos, que ganham mal, a ganhar mais dinheiro? Imagino que não se ganhe dinheiro, à séria, trabalhando. Dinheiro à séria ganha-se multiplicando dinheiro, jogando com dinheiro.

As fortunas, a partir de uma certa altura, são sempre suspeitas. Há sempre um grão...

 

Menos escrupuloso?

Hum. O que aprendi foi a guardar dinheiro e a investir em coisas como casas, carros. Os meus filhos, por reacção à maneira como sou, são pessoas que se contentam com muito pouco. Esquisito. Há um que talvez me deixe ajudá-lo um bocadinho mais... Mas os outros, inclusivamente para não pensarem que há cunhas, quando vão a um emprego, põem só o nome da mãe. Ganham mal e vivem uma vida muito modesta no dia-a-dia.

 

Que valores são os que se transmitem aos filhos?

O valor da família. Vivíamos muito em circuito fechado. Havia uma cumplicidade permanente entre nós, que fez com que ficassem um bocado perdidos depois da mãe desaparecer. Mas o que ainda salva tudo isto é este espírito de família que temos.

 

Isso traduz-se em quê?

Mesmo a mais velha, que tem 34 anos, e os outros todos, telefonam-me a pedir conselho. De manhã, à tarde ou à noite. Entre eles acontecem algumas picardias de vez em quando, mas têm uma relação muito próxima.

 

Fala disso num tom embevecido. É o que realmente o enche de orgulho?

Sim. A minha filha mais nova, que tem vinte e três meses, fala comigo como se tivesse a idade dela. Chama-me Carlitos. E eu lá vou, com os meus sessenta anos.

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícas em Junho de 2002