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Anabela Mota Ribeiro

António Bagão Félix (2003)

17.12.14

Este ministro vai almoçar a casa todos os dias. Nos almoços da sua infância, a televisão não ocupava o espaço que hoje ocupa. Era uma família tradicional. Comunicava-se através de olhares. Sabiam entre si do afecto que os unia.

Este ministro ocupa um 16º andar na Praça de Londres. Tem uma vista soberba sobre a cidade. As pessoas formigam à sua volta. O seu ministério diz respeito aos dez milhões de portugueses. Ele entende-o como uma missão. Depois, calça as botas e entrega-se à sua paixão, a Botânica, no Alentejo.

António Bagão Félix é o Ministro do Trabalho e Segurança Social. Nasceu em 1948 em Ílhavo.

 

... Sou um obcecado pelo método, na altura também era. Quando tinha um exame, nunca estudava no dia anterior. Acabava 48 horas antes e ia ao cinema ou jogar futebol. Para decantar a memória.

 

Decantar a memória é uma óptima expressão. Faz-me pensar nas ampulhetas, pelas quais tem fascínio, na decantação do tempo e das emoções.

Tenho um total fascínio pela memória. É o nosso principal património genético, afectivo, moral. Vergílio Ferreira dizia que «A memória é onde tudo acontece para nos pertencer». Uma espécie de cofre-forte. Por isso tenho especial atracção pelo passado. O presente não existe, porque se esgota no momento em que se diz que é. O futuro assume uma característica religiosa, na medida em que, como pessoa de fé, acredito na vida para além desta vida. O passado é um caleidoscópio de sensações, e alisa as situações. Situações de há 10, 20, 30 anos, que então foram dramáticas, vistas retrospectivamente tem suavidade.

 

O Tempo, esse grande escultor.

É também uma forma de exercitar a tristeza.

 

O que quer dizer com isso? Percebo em si esse fio melancólico, mas não sei o que é que o constitui.

Tristeza é um estado de alma que tem uma forma sinfónica, no sentido grego de coabitação entre a maneira de ser e de estar. Não é depressão, amargura, medo. Consegue mais a beleza da vida pela tristeza do que pela euforia. A alegria normalmente é efemera.

 

E não permite contemplação, é isso?

Não permite contemplação. E não permite alguma resignação. A nossa vida é um confronto contínuo entre a ideia da inquietude e a ideia da resignação.

 

Deixe-me voltar aos encontros de família. Gostava de saber com quem se moldou assim, de quem herdou essa melancolia.

Isso é claramente transmitido do ADN do meu pai, não da minha mãe. A minha mãe era mais afectuosa, éramos mais cúmplices. Mas o testemunho do meu pai foi muito importante. Em casa resolveu-se bem uma equação dificil: criar liberdade com responsabilidade. Dou-lhe um exemplo: o meu pai fumava bastante, já não fuma, e nunca nos disse para não fumarmos. Eu e os meus irmãos nunca fumámos. Nunca fumei um cigarro na vida.

 

Não havia sabor a fruto proibido.

Nesse aspecto não. Mas frutos proibidos...

 

Falaria mais facilmente de frutos proibidos com o seu pai ou com a sua mãe?

Dificilmente falaria sobre essa matéria. Há 40 anos, falar dos tais frutos proibidos... As televisões não suscitavam essas questões. Lia-mos o «Cavaleiro Andante», o jornal desportivo e jogávamos ao berlinde.

 

Portanto, nem sequer teve as clássicas conversas de pais para filhos...

Era uma questão que não se punha. Havia um biombo natural. Transportei-o para mim, mesmo em relação às minhas filhas. Essa questão, não tenho facilidade em falar-lhes.

 

Então, quem era o seu cúmplice? Pelo menos até aos 17 anos, porque depois vem para Lisboa e é uma outra vida.

Os meus irmãos, sobretudo o mais velho. Também os meus amigos. A amizade escolar era muito arreigada, profunda. Passados 50 anos alguns desses amigos fazem ainda parte do meu núcleo duro. Hoje, o tempo trucida as amizades. Há sobretudo amizades técnicas, que resultam do encontro no emprego, numa organização.

 

Havia uma relação de profunda intimidade com esses amigos? Era uma amizade expressa, ou imperava o não dito?

Era uma amizade que estava para além das circunstâncias. Não precisava de ser dita. Era vivida.

 

O «Manhã Submersa» do Vergílio Ferreira, que é o autor da sua eleição, traduz bem essa amizade.

Tenho um profundo respeito por ele. Pelos seus dramas, as suas buscas, a sua inquietude. Era um agnóstico crente, passe o paradoxo. A «Manhã Submersa» é um livro notável; ando a relê-lo, curiosamente. Traz à luz do dia os temores da nossa infância, os nossos imaginários... Ainda hoje sonho que me falta fazer um exame, que não estudei, que tenho um professor... Depois acordo e fico aliviado, afinal já acabei o curso.

 

A quem queria mostrar que era um menino organizado, bem comportado?

A mim próprio. Não sei se sabe, ganhei o prémio no Liceu Nacional de Aveiro de melhor carácter. Foi o prémio que mais gostei de ganhar. É o único que tenho emoldurado lá em casa.

 

O que é para si um bom carácter?

Em abstracto, o bom carácter compagina na perfeição direitos com obrigações. Como sabe são simétricas. Não há direitos sem deveres, não há deveres sem obrigações. O melhor carácter deve tentar contrariar aquilo que é uma tendência natural nas sociedades: uma visão tendencionalmente individualista das coisas. Por isso considero que Gandhi é o grande carácter do sec. XX.

 

É muito curioso que diga isso, porque não é um católico.

É um religioso. Gandhi exprimiu a perfeição da renúncia. Dizia, aliás, que a renúncia é um modo de vida nobre. O desleixo é um modo de morte. A partir de determinada altura o objectivo não pode ser ter mais; pelo contrário, querer menos. O ter mais gera mais infelicidade; quando se tem mais, a fasquia é cada vez mais alta. O querer menos corresponde à ideia de quietude, de dever cumprido, de paz interior.

 

Recentemente, numa entrevista a José Tolentino Mendonça, o poeta Tonino Guerra começava por falar de pobreza, um valor que deixou de ser considerado. Guerra considera que o retorno à pobreza, no sentido de despojamento e concentração no que é essencial, é qualquer coisa que é preciso retomar.

Voltando à minha infância: a alegria que eu tinha quando acordava no dia 25 de Dezembro para receber dois chocolates e um pequeno brinquedo... E a dispersão e a insatisfação que têm hoje as crianças quando deparam com dez brinquedos, e estragam nove logo no primeiro dia, e escolhem sempre aquele que tem menos valor material... Acho interessantíssimo. Roberto Benigni, quando recebeu o óscar na academia, agradeceu aos pais por lhe terem dado o maior dom, o da pobreza.

 

O seu pai era um industrial numa pequena localidade. O senhor pôde viver com relativo desafogo.

Mas com austeridade. A austeridade era intrínseca à vida de então. A oferta digamos que não era muita. E depois, os meus pais ensinaram-me a ética do mérito, da responsabildade. Nada se consegue sem esforço. Tive uma educação religiosa muito intensa. Alguém dizia que a minha vocação era ser padre... Eu andava sempre na igreja.

Sentiu essa vocação?

Não. Estava sempre a confessar-me. Uma vez confessei-me, saí da igreja e discuti com um colega meu, uma coisa qualquer; passados cinco minutos estava outra vez a confessar-me porque achava que tinha cometido um pecado! A fronteira entre pecados mortais e veniais não se pode objectivar. Em meu entender, o pecado depende da intenção, não depende do resultado. Mas vivíamos de modo diferente. O padre era uma autoridade. O professor primário era uma autoridade. Vivíamos num mundo de autoridades.

 

A austeridade era encontrada em cada um destes polos?

Era. Mas também numa coisa que de certo modo desapareceu: a ideia do exemplo. O exemplo é o elemento fundamental de qualquer autoridade. Séneca dizia que «Longo e penoso é o caminho através de normas e leis, curto e eficaz é através do exemplo».

 

Falávamos no equilíbrio entre a austeridade e um certo desafogo. Foi com certeza marcante ver meninos à volta a passar fome.

Não notávamos. Não havia o contraste brutal que há hoje. A pobreza é sempre chocante. Mas são sobretudo chocantes os desníveis sociais, a exteriorização patética da riqueza. Éramos todos relativamente pobres. Íamos para a escola com duas pedras quentes embrulhadas em jornal para aquecer as mãos.

 

Nem os filhos de um industrial tinham luvas?

Não. Não se esqueça que sou do tempo em que não havia plástico. Recordo que aos 12 anos fui ao Porto com o meu pai, parámos em Estarreja e foi a primeira vez que fui a um restaurante. Comemos filetes de pescada. Na minha memória, estavam bem bons. Tenho uma memória de elefante. Sei o que comi com a minha mulher no dia tal, como é que ela estava vestida.

 

Quando é que a viu pela primeira vez?

21 de Agosto. Como era muito tímido, escrevi-lhe uma carta a dizer que gostava dela. Mas não disse o meu nome. Disse que era o aluno número 64 do sexto ano da alínea G de Económicas. Ela teve de ir à pauta ver quem era.

 

Fez isso para perceber se ela se dava ao trabalho de ir ver quem era. Se fosse, poderia querer dizer que tinha interesse.

Era isso mesmo. Aos sete anos fui apanhado a escrever uma carta de amor à Judite...

 

Estou a ver que nunca pensou em ser padre porque desde pequeno havia aí um coração palpitante...

Absolutamente. Tive vários casos platónicos. Tão platónicos que não chegavam a ser verbalizados.

 

O que é que o fazia reparar nessas raparigas? Para lá da beleza, mais ou menos canónica, há qualquer coisa que as pessoas exalam. Uma inocência, uma jovialidade, uma melancolia.

Citou em último lugar a que é para mim mais cativante. Tem mais a ver comigo.

 

Ainda não lhe perguntei como descobriu Deus na sua vida. Uma coisa é ter tido uma formação religiosa; outra é a convicção profunda de Deus.

Em termos factuais, com a catequese. Em termos mais profundos, descobri-O, já teenager, como a nossa intimidade absoluta. Tenho os meus tabus e preconceitos, com os outros, com a minha mulher, as minhas filhas, os meus amigos. E tenho comigo próprio. Só me liberto desses tabus quando estou em relação com Deus. Deus significa a minha intimidade absoluta. Madre Teresa de Calcutá dizia que rezar não é falar a Deus, é conseguir que Deus fale connosco.

 

Presumo que tenha sido uma descoberta solitária.

A minha convicção profunda da existência de Deus foi por mim próprio, sem padres. Foi também através da vida, e até de pessoas que não são católicas – Vergílio Ferreira, Gandhi. A nossa relação com Deus pode-se fortalecer dentro de uma hierarquia organizada, que é a Igreja. Mas o espaço da relação com Deus está para além dessa relação hierárquica.

 

O senhor tem horror à rotina. Diz que ela é dissolvente das almas e diluente dos comportamentos. Como é que se contraria esta modorra em que as nossas vidas estão habitualmente instaladas? É no individual, para começar?

É uma boa pergunta. Se tivesse a resposta... Volto a Gandhi. O nosso grande desafio é lutar contra os sete pecados sociais: política sem princípios, riqueza sem trabalho, comércio sem moral, educação sem carácter, ciência sem humanidade, prazer sem consciência e religião sem sacrifício. Estão aqui aspectos sociais, comportamentais. Este último é muito interessante. Hoje há a moda do «católico não praticante»; o católico não praticante o que é? É meias tintas, é o descafeinado, é e não é? Praticante não no sentido de ir à missa, mas no sentido de o integrar na sua vida. Sou católico praticante aqui, nesta entrevista.

 

Tem uma colecção de ampulhetas. A coisa extraordinária é que o tempo escorre em contínuo. Não pode cristalizar um momento.

Tenho a obsessão da exactidão. No tempo, no espaço. A matemática é a única linguagem humana que não tem ruído de fundo. É a abstracção total. Por isso adoro a música rigorosa. No caso dos relógios, das ampulhetas, já reparou que o tempo é o único factor de produção que não é reprodutível? Tenho tanta preocupação com o tempo que não sou pontual! Em vez de ser retardatário, sou adiantado! Chego antes.

 

O contraste da exactidão...

É o futebol. É um espaço de evasão, onde posso ser mais instintivo, menos cerebral, onde assumo o meu facciosismo, não como doença mas como expressão de saúde. Eu nunca vejo um penalty bem marcado contra o Benfica! O Benfica ganha, por exemplo, ao Marítimo, 2-1; nessa noite, várias vezes acordei e vi outra vez o golo do Nuno Gomes. Fazemos slow motion na nossa cabeça.

 

Imagino que seja irreconhecível a ver a bola.

Já fui mais. A minha mulher diz que há 20 anos era impossível. Se o Benfica perdia estava cinco horas sem falar com ninguém! Digo normalmente umas asneiras, se estiver em casa, e se for um penalty mal marcado, dou um pontapé no sofá, se for golo atiro-me ao chão.

 

Esse momento em que se descontrola é de profunda intimidade. Nem todos o podem ver desse modo...

Quando foi o Sporting-Benfica em Alvalade, (o Benfica ganhou 2-0), fui convidado muito gentilmente pela direcção a assistir. Agradeci mas não fui. Disse: «Ou o Sporting ganha, saio com uma cara irreconhecível e digo uns disparates, ou o Benfica marca um golo e tenho de dar um salto e gritar». Ali, tenho de estar institucionalmente, quieto, surdo e mudo. Ir para o futebol para ser igual àquilo que tenho de ser aqui...

 

É o constrangimento pelo cargo que ocupa?

Não. Continha-me sempre, não é lá pelo cargo. O cargo reforça. Não posso perder a cabeça, chegar lá e chamar uns nomes.

 

Não pode dar mau exemplo.

Mas tenho a minha tertúlia de futebol. Temos uma associação da qual sou presidente: HABAB, «Honrosa Associação de Benfiquistas Amigos do Benfica». Uma coisa que me irrita é ir para o meio dos sócios e, uma vez contei, 23 segundos depois já estão a dizer mal da equipa! Há uma norma dos estatutos que diz que só muda o presidente quando o Benfica for campeão! Mas há sete anos que ando nisto!

 

Como é que os seus amigos da tertúlia lhe chamam? António, Bagão, Ministro?

O João Botelho e a Leonor Pinhão chamam-me Tio Tó. [risos] Ao Francisco Cunha Leal chamamos Dr. Chico.

 

Gosta de ser ministro?

Gosto da missão que estou aqui a desempenhar em nome de valores e convicções em que acredito. Não tenho qualquer interesse em ser ministro. Nem material, nem familiar.

 

Sei que está a ganhar apenas 20% do que ganhava antes.

Sabia isso no momento em que aceitei. Não faço lamúrias sobre isso. Aceitei, não fui obrigado.

 

O dinheiro não tem grande importância na sua vida?

Até permitiu coisas muito boas. Por exemplo, ter de optar mais vezes. Sou mais selectivo nos cd’s, nos dvd’s, nos livros. Essa selectividade é um esforço positivo. Permite fazer mais o exercício da renúncia. Tem desvantagens, claro, sobretudo nesta fase em que podia ajudar mais a minha filha... Estou para ser avô, dentro de dias. Vou amanhã para a Grécia, provavelmente a Joana vai nascer enquanto estiver fora... Fico grego!

 

É o tipo de coisa que realmente o atormenta? Não estar aqui quando nasce a sua primeira neta?

É. Eu não falo muito com as minhas filhas... A mais velha tem 29 anos, é veterinária. Esta tem 26 anos, é publicitária, está casada há dois anos. Os silêncios são muito importantes entre nós. Os olhares. Isto é uma confissão intimista, mas não me importo. Não falo muito, mas elas percebem-me perfeitamente. Elas também são assim. Quando querem dizer que gostam do pai, escrevem, não dizem. A minha filha escreveu-me uma carta que trago sempre comigo. Faz parte da minha pasta.

 

E se lho dissesse, olhos nos olhos?

Ela tem o meu código genético, é incapaz de dizer. É capaz de o expressar de outra maneira. Escreveu-me no Natal a dizer que tem muito orgulho no pai. Que o pai tem sido o grande exemplo para ela. Eduquei as minhas filhas numa perspectiva de as apoiar nos momentos difíceis, nunca nos momentos fáceis. É raro dar prendas às minhas filhas. Mas quando a mais velha chumbou a uma cadeira para a qual estava muito bem preparada, fui comprar-lhe uma prenda. Uma excelente aguarela. «É nesses momentos que estou ao teu lado».

 

Escreveu cartas ao seu pai ou à sua mãe? Alguma vez lhes disse que gostava muito deles?

Directamente creio que não. Apenas lhes disse... A morte, a aproximação da morte, é a quebra completa de tabus. Ou, como dizia a Agustina Bessa Luís, «Perto da morte somos todos afectuosos». Não temos barreiras, biombos.

 

Há uma expressão popular que diz que «Trabalhar é honra». Que comentário é que isto lhe suscita?

Trabalhar é honra porque dignifica a pessoa. É um modo de realização, de valorização, é uma expressão de carácter. «Foi o trabalho que foi feito para o homem e não o homem que foi feito para o trabalho», como diz uma expressão da doutrina social da igreja, que apesar de não se cumprir, funciona como utopia, como farol Há uns que consideram que o trabalho faz parte da santificação. Não quero dar-lhe essa conotação tão de religiosidade, mas dou-lhe uma conotação de humanidade. Ou seja, de dignificação.

 

Optou pelas Finanças e preteriu Económicas porque preferia qualquer coisa que o pusesse mais em contacto com as pessoas. A Economia é, nesse sentido, mais árida. A noção de fazer obra é entendida como uma missão?

Isto aqui, [Ministério], encaro-o como uma missão. Este Ministério trata das pessoas que trabalham, das que querem trabalhar e não conseguem, das famílias, dos velhos, dos novos, dos 10 milhões de portugueses. Não tem intermediação. Essa ligação directa é, para usar linguagem fellinniana, uma cruz e uma delícia. É uma cruz porque é difícil, porque é impossível satisfazer toda a gente. A política é a arte do compromisso, a arte de gerir recursos escassos perante desejos infinitos. Por outro lado, é uma delícia porque é tratar com as pessoas. Podemos influenciar a vida das famílias, das comunidades.

 

É mesmo verdade que depois disto quer ir para o Alentejo, «ouvir o seu ser», na sua quinta?

É. Sou um apaixonado pela Botânica, que estudo há 30. Deve ter resultado da frustração de não ser engenheiro agrónomo.

 

Porque é que não foi para engenharia agrónoma?

O meu pai achou que era melhor ir para Económicas. Na altura aquilo era indiscutível. Considero-me realizado e feliz. Dou graças a Deus e à minha família porque me ajudaram a construir o meu futuro. Mas a minha vocação, nas entranhas da alma, é a agronomia. A minha ida para o Alentejo é fazer mais tarde o que não pude fazer antes. Meter as mãos na terra. Tenho tractor, essa coisa toda. Sei os nomes científicos das plantas, das árvores... Direi que é a minha reforma mínima garantida: o regresso aos meus desejos originários.

 

 

Publicada na revista das Selecções do Reader’s Digest, em 2003

 

Horácio Roque

15.12.14

O cenário: um fim de tarde rosa, uma vista sobre o bairro financeiro de Londres. Os edifícios espelhados, o passo acelerado nos passeios, os taxis. A cúpula da catedral de S. Paulo onde casou a Princesa Diana com o Príncipe Carlos; como um bolo de noiva onde apetece meter o dedo. Mas não falámos desse casal, Horácio Roque e eu. Falámos do casal Sarkozy e Cecília. E falámos pouco do casal que ele formou com Fátima (Roque), membro da UNITA, de quem se divorciou há sete ou oito anos. Foi também há sete ou oito anos que se emborrachou pela última vez. Não se especifica se os factos estão ligados.

Horácio Roque é um banqueiro que não se envergonha de assumir que já apanhou borracheiras de caixão à cova. Ou que diz que trair de corpo não é a mesma coisa que trair de coração. E que foi capaz da primeira, mas não da segunda. Porque é que isto parece suculento e o puxo para a introdução à entrevista? Porque é que isto, que é quotidiano e humano, nunca aparece nas biografias dos grandes homens? Por pudor, podem responder-me. Não consta do código de conduta. Mas a verdade é que o coração, o sexo, o desejo foram erradicados das conversas sérias – masculinas, leia-se. Saber que a mulher do presidente da França teve uma relação adúltera parece um detalhe folhetinesco. Mas será? Presumimos mais do carácter de Sarkozy, daquilo que o move e o perde, se olharmos para Cecília?

Roque, o Horácio Roque, não tem, ou não falou de uma Cecília na sua vida. Falou das traições nos negócios, ou das da carne que ele mesmo praticou. Falou das raparigas em flor, lindas, lindas, que frequentavam os seus colégios em Angola. De nunca se ter metido com nenhuma delas. Falou de coisas de que não estávamos à espera num homem da sua condição. Contudo, olhamos para o seu passado na aldeia, para a origem familiar, e percebemos que não está com grandes peneiras. Gostam, gostam, não gostam, comem menos. Tem dinheiro suficiente para impôr isto e o que ele quiser.

Na entrevista, tentou pôr em evidência o lado sério e responsável. Quase pomposo. De quem sabe que tem mesmo poder. Já agora, veste-lhe a pele. Do bom nome e da confiança no líder do grupo. Do que pensam dele. Do que conseguiu fazer com a vida. Entregou-se à entrevista com “o coração nas mãos”.

Como é Horácio Roque sem máscaras? É um homem que construiu um império chamado Banif em 20 anos, depois de ter construído e assistido à desconstrução de outros impérios. Não falámos do banco. Ainda que o pretexto para o nosso encontro fosse a abertura da delegação em Victoria Station. Dois dias antes, tinha-o cumprimentado no cimo das escadas. E na festa, tinha-me perguntado em que estaria, deveras, a pensar. Que significado teria tudo aquilo.

No dia da entrevista, estava pior da garganta. Chupou rebuçados durante a conversa. Comoveu-se duas vezes. Uma, disse-me que era da constipação. Outra, foi quando falou do pai e da sua relação com a terra... O pai morreu em 77. Ele não quer morrer! Tem 63 anos.

 

... E porque é que saiu do conforto da casa, para usar as suas palvras, e foi à procura de uma nova vida?

Porque já era ambicioso. Reconhecia que o ambiente em que estava inserido não era o que queria para o resto da vida. E arrisquei.

 

Descreva-me a casa da sua infância. Fale-me desse mundo, para poder perceber o que veio a seguir.

Nasci num povoado chamado Mogadouro, onde viviam cerca de 80/90 pessoas. A casa dos meus pais era a maior e considerada a mais rica da região. De qualquer modo, para ir à escola primária fazia cinco kms a pé num sentido e noutro. Pertenciamos à freguesia e concelho de Oleiros. Nasci em 44. O fenómeno da emigração ainda não se tinha dado. Os meus pais viviam da casa agrícola e davam emprego a bastantes pessoas.

 

Tem uma casa nesse sítio?

Conservo a casa dos meus pais, onde vive uma senhora de 96 anos. Trata de uma pequena horta e de coelhos e galinhas. Manda-me todos os anos uma cesta de cerejas. Normalmente chegam podres a Lisboa, mas ela não deixa de as mandar. E mel. Esta senhora foi trabalhar lá para casa aos dez, 11 anos.

 

Esta senhora, o professor primário, os seus pais e irmãos... Fale-me das pessoas que marcaram esta fase da sua vida. Anos mais tarde, diria numa entrevista uma coisa de uma força enorme: «Sei que só posso contar comigo».

Estes marcaram positivamente. Dentro da vida de aldeia, fui um privilegiado. Nunca passei frio nem fome, nunca andei descalço. A casa era farta. O meu pai era um homem de prestígio na região. Basta dizer que depois da escola, ia almoçar a casa do padre. Produzia-se cereal, vinho, azeite, havia os animais que trabalhavam a terra, cabras, ovelhas, muitas galinhas, muitos coelhos. Todos os anos se vendia uma parte da produção. E vendia-se resina.

 

Como é que nesse quadro de abundância se revela ambicioso e sedento de sair?

Todos os meus irmãos sairam depois da escola primária. O meu irmão mais velho tem mais 20 anos do que eu – sou o mais novo de cinco. A minha mãe já tinha 44, 45 anos quando nasci. Era o único que estava em casa e recebi os mimos de toda a gente.

 

Que figura, mais do que qualquer outra, marcou a sua infância?

A maior identificação seria com a minha mãe, que me compreendia melhor, que tinha mais cuidado comigo. Quando chovia muito, havia uma ribeira que eu tinha de passar e que tinha apenas umas tábuas... Ela levava-me a passar a ribeira... Uma história interessante: quando se falou de ir para Angola – tinha lá família – o meu pai disse que não mo permitia!

 

Porque é que se opôs?

Ele tinha um sonho: que alguém continuasse a obra que tinha realizado. E todos os outros tinham já partido. Mas a minha mãe disse: «Fazes muito bem em ir, meu filho, que isto aqui não é vida para ninguém». Ora, são duas maneiras completamente diferentes de ver o futuro e de ver o futuro de um filho. Convenceu-se o meu pai e ele pagou-me o bilhete, veio trazer-me a Lisboa. Parti do Cais da Rocha, parei na Madeira pela primeira vez.

 

A sua mãe, que o atirou para a frente, morreu em 1966. Cedo, portanto. Assistiu pouco ao seu sucesso.

Não desfrutou do sucesso que vim a ter. Mas sempre tivemos uma relação muito chegada.

 

Descreva-me a chegada a Angola, o começo da sua ascensão.

Comecei por ficar em casa da minha irmã e a trabalhar numa charcutaria. Só tive dois empregos e dois patrões na vida. Em 1959, o meu primeiro patrão prometeu-me 800 escudos e no fim do mês deu-me 1000 escudos. A minha primeira poupança foram 200 escudos por mês. No fim do ano, comprei uma mota, de que precisava para me deslocar, para ir trabalhar e estudar à noite. Mudei de emprego, passei a ganhar muito mais. Até que aos 18 anos, fui desafiado para abrir um restaurante e cervejaria em conjunto. Chamava-se Munique. Quando voltei a Luanda, nos anos 90, ainda existia.

 

Fez-se homem em Angola. Começou a namorar em Angola? Isto ocorre-me porque no outro dia vi uma imagem sua na televisão com duas mulheres lindíssimas, altíssimas, uma de cada lado.

Tenho a impressão de que uma era a minha filha Teresa, que é alta e bonita.

 

Aquele quadro era muito provocatório. Só era possível numa franja específica: a de homens com confiança em si próprios.

Quando olho para o meu passado e para a minha vida, isso dá-me legitimidade para ter confiança em mim próprio. Não tenho preconceitos em tirar fotografias seja com quem for. Casei novo, aos 23 anos, e estive casado 30 anos. Tenho duas filhas, amorosas. Divorciei-me há sete, oito anos. Tive uma vida muito cheia em Luanda, tive muitas namoradas. A minha actividade era muito visível, fui muito conhecido.

 

Traduzindo: tinha poder.

Tinha alguma influência. Era jovem, tinha bons carros, dava nas vistas. As pessoas tinham um bom conceito a meu respeito. Preocupo-me com aquilo que os outros pensam de mim. Não preciso que gostem de mim. Mas preocupa-me que não haja uma grande divergência entre o que pensam de mim e o que sou.

 

Pensei que fosse mais seguro de si próprio...

E sou, mas gosto de ter um bom nome. Que saibam que sou sumpridor das minhas obrigações, que sou correcto, que gosto de tratar bem as pessoas. Eu tenho responsabilidades. Para começar, com os cinco, seis, sete mil que o grupo hoje emprega. É fundamental para o estímulo e para o orgulho em pertencer ao grupo a boa imagem e a confiança no líder.

 

Os carros, a influência, dar nas vistas: perguntava-se se as mulheres estavam consigo porque tinha essas coisas todas? Porque abria portas? Quando se tem muito dinheiro, essa dúvida - porque estão connosco? –, fica sempre?

Não. O facto de a pessoa ser conhecida, homem ou mulher, é atractivo. O facto de a pessoa ter poder é afrodisíaco. É difícil fugir a isso. Mas é só o cartão de visita.

 

Nunca perdeu a cabeça?

Tento controlar-me... Já perdi várias vezes a cabeça. Mas nunca a parti!

 

Já voltamos às mulheres. Há dois dias, no fim da sessão de lançamento do Banif em Victoria, Teresa Salgueiro cantou uma música angolana. E percebi, no modo como falou, que aquela é a sua caixa delicada... Algures entre a emoção e a ferida...

Felizmente consigo libertar-me do passado. Nunca transporto esqueletos no armário. Vivi em Angola dos 14 aos 32 anos. A sociedade angolana era diferente da europeia, da americana... Foi construída por nós, à nossa maneira. O surto de desenvolvimento foi incrível no princípio dos anos 60. Cresceu em pessoas, riqueza, em tudo. Eu cresci com ela. Fazia parte de algo que tinha ajudado a construir.

 

Como uma casa?

Como uma casa. Novas estradas, ruas, edifícios, bairros, escolas, hospitais. Se nascemos em Lisboa ou no Porto, enquadramo-nos numa sociedade que já tem os seus hábitos e costumes. Ali, as pessoas criaram os seus costumes: ir ao cinema, à praia, a determinados restaurantes, à esplanada.

 

As descrições de Angola são muito sensoriais. E sensuais. A dança, as viagens, o café.

O clima contribuía muito para isso. A informalidade na relação: as pessoas não tinham de telefonar antes de ir a casa de alguém. Batiam à porta e entravam.

 

Deixou de acontecer na sua vida? Tocarem à campainha e entrarem?

Acontece com algumas pessoas. Na minha casa de Lisboa e na de Joanesburgo tento manter essa informalidade de Angola. Os almoços combinados à última da hora, este e aquele que também se juntam. Mas foi um tempo que acabou. Tudo deslizava melhor. Nem se perdia tempo com o trânsito, nem havia a burocracia que há hoje. Nunca precisei de advogados para fazer contratos: era olhos nos olhos e apertos de mão. A palavra bastava. Já não se pode funcionar assim. Essa vida apaixonava-nos. Luanda tinha 36 cabarés.

 

Serviam para quê? Dançar, beber, namorar?

Eram centros de encontro. Onde as pessoas se divertiam.

 

A liamba tinha uma presença forte?

Não, nem se notava. Mesmo o tabaco.

 

A bebida, nunca o tentou?

Sempre fui controlado. Já me embebedei, não tenho vergonha de o dizer. E já me senti muitas vezes quente.

 

Há quanto tempo não apanha uma borracheira?

Dessas de caixão à cova, sete ou oito anos. Não é só por causa do controlo e da disciplina que não bebo... O álcool não me dá grande prazer. Posso beber uma garrafa de champanhe ou de whiskey com amigos. Mas sozinho, nunca bebo álcool.

Sempre foi controlado porque tinha um objectivo e não queria perder o foco. Era isso?

É verdade. Dou-lhe um exemplo: desde os 21, 22 anos tive colégios em Angola. Havia raparigas muito bonitas. Mas devo dizer que nunca na vida me meti com uma aluna ou permiti que uma aluna se metesse comigo. Isto revela o sentido de responsabilidade e o interesse no projecto.

 

Uma coisa dessas deita a perder um nome e uma reputação. Quem tem colégios não pode arriscar a que se diga que o dono do colégio ou os professores se deitam com alunas.

É evidente.

 

O negócio dos colégios foi frutuoso...

O Eurico Mota Veiga era uma das pessoas mais influentes e ricas de Angola; quando eu tinha 19 anos, contava-lhe que estava muito feliz, que estava a ganhar dinheiro, que os negócios me corriam bem. E ele disse-me isto que nunca esqueci: «Não te esqueças que vais ter sempre que devolver algum». Ou porque o negócio seguinte não corre bem, ou porque vamos ter de pagar qualquer coisa por ele... É fundamental que a pessoa pense que nada do que ganhou é limpo.

 

Tem sempre isso na cabeça? O que é líquido e o que é ilíquido? Quanto é que custa na verdade? Em quanto tempo? Quando vai ganhar, e de que maneira?

Tenho, permanentemente. Como tenho o espírito de poupança. Ter sempre uma reserva. Princípio que me advém...

 

Do desastre de 1976?

Não. Dos 200 escudos que poupei todos os meses. O meu pai dizia que temos de poupar – pôr de lado para um problema de saúde ou para a educação dos filhos.

 

Se fosse apenas o espírito de poupança do seu pai, se não fosse também o espírito de aventura da sua mãe, eu não estaria aqui a falar consigo... Provavelmente, seria um lavrador bem sucedido. Acontece pensar que a sua vida podia ter sido outra?

Não. E não poderia ser bem sucedido. Nos últimos sete anos em que o meu pai explorou a casa, eu cobri-lhe o défice – uns dez, 15, 20 contos por ano.... O meu pai recusava-se a vender terreno e os produtos que vendia já não eram suficientes para pagar aos trabalhadores.

 

Fale-me desse gesto.

O meu pai devia algum dinheiro, 60 ou 70 contos – do défice que se ia acumulando. Sugeri-lhe que se vendesse uma parte da terra e se pagasse aquele valor. E o meu pai começou a chorar. As lágrimas corriam-lhe pela cara abaixo. Dizia: «Vocês são todos iguais», aquelas críticas que saem... Senti que tinha uma obrigação para com o meu pai.

 

Foi a única vez que o viu chorar?

Foi. Tocou-me, é evidente que me tocou. A minha mãe já não era viva, isto foi no princípio dos anos 70. Procurei saber a dimensão do problema. Perguntei aos meus irmãos se queriam participar, mas eles achavam que o meu pai devia era vender uma parcela de terreno. E eu fi-lo, sozinho. Paguei todas as dívidas do meu pai.

 

O seu pai sentiu-se humilhado porque o filho lhe pagou as dívidas?

De maneira nenhuma. O meu pai tinha tinha um orgulho enorme em mim e contava a toda a gente do meu gesto.

 

Para um homem como ele, vender um pedaço de terra era como perder um dedo... Uma quase amputação.

Exactamente. Mas em termos práticos, não fazia sentido nenhum. Vendia uma parcela, pagava as dívidas e vivia melhor, porque nem tinha de trabalhar tantas horas por dia. Mas não. A vontade de manter aquilo que construiu ao longo da vida era tão grande que era incapaz de se desfazer do que quer que fosse. Achava, ainda, que aquilo seria o futuro dos filhos! Embora nenhum deles estivesse lá. Apercebi-me de que seria uma humilhação tremenda vender uma parte da terra.

 

É dos gestos da sua vida de que mais se orgulha?

Orgulho não é a palavra. Cumpri a minha obrigação de filho. Embora o meu pai não quisesse que eu fosse para Angola. Não era para me travar... Era porque na cabeça dele, o meu futuro seria continuar a obra que ele criou...

 

Naquele tempo, e naquele quadro social, a herança, o que se deixa aos filhos, e que passa quase sempre pela terra e pela honra, eram coisas essenciais.

Não o censuro. Naquelas terras, ainda hoje, o Senhor Roque era um homem muito respeitado e estimado. Isso marcou-me na vida. A sua maneira de ser e de estar deu-me bases.

 

Durante o jantar, num espaço nobre da City, muito elegante, quando tudo corria muito bem, perguntava-me em que pessoas estaria intimamente a pensar... Se pensaria no seu pai, na sua mãe...

Não. Uma parte substancial das minhas energias vão para o grupo e penso mesmo nas pessoas que trabalham comigo, e no contributo que elas dão. O que este grupo fez me 20 anos? Não posso pensar só em si. Sei que assumi sempre a liderança, a dianteira, que corri os riscos em termos de investimento, mas isto foi feito por um grupo.

 

Estava à espera que fosse mais vaidoso do que se está a revelar! Tem uma aparência mais vaidosa.

[gargalhada] Estou a falar-lhe com o coração nas mãos. Não tenho máscara nenhuma.

 

Quando diz que se preocupa com o grupo, fala como um pai que quer envolver os que estão consigo, entusiasmá-los. Deixou de ser filho. Já não é o miúdo que quer que os crescidos digam: «Correu bem, venceste». Sabe que venceu, quer outra coisa.

A sua análise está correcta. Quando saí do jantar, no carro, com a Paula, a minha mulher, e a Teresa, a minha filha, perguntei-lhes: «O que é que acham que correu mal?» Não sinto necessidade que me digam: «És bestial, és o melhor».

 

Quando é que deixou de sentir necessidade desse reforço? Todos nós precisamos da nossa plateiazinha...

Todos precisamos, sim. Como lhe disse, preocupo-me com o que pensam de mim. Não quero que pensem que sou uma estrela. Quero que pensem em mim como uma pessoa normal. Quero ser respeitado. Uma frase que uso muito: quero que as pessoas que estão perto de mim me digam aquilo que pensam, e não aquilo que eu quero ouvir.

 

Pode ir atrás da sua intuição e contrariar aquilo que seria mais razoável?

Posso, posso. E por causa disso já errei muita vez.

 

Um homem que diz que só pode contar consigo, é fácil presumir que foi abandonado. Ou traído.

De que tipo de traição está a falar? Por pessoas? Ah, já, já. Por mulheres, não sei! [risos]

 

Já que fala disso, seria insuportável e ignominioso para si ser traído pela mulher? No seu meio, seria penoso socialmente.

Temos de ser postos perante factos... Há duas maneiras de traição. Uma é fisicamente e outra é afectivamente. Mas sabe, ainda esta manhã li um artigo sobre o Sarkozy e a mulher, a Cecília..., e é o presidente de França. Em termos sociais, não dou relevância nenhuma a isso.

 

Habitualmente não se fala do sexo, ou do desejo. Como se fosse uma realidade separada daquela em que o sujeito vive. Mas o caso Sarkozy ilustra, justamente, como o sexo está presente nas vidas públicas, mais do que queremos admitir ou dizemos.

Eu também já traí. Mas só fisicamente. Não o fiz sentimentalmente. Se é que isso é considerado traição... Já fui traído. Não tem nada a ver com amor ou sexo. Homens, negócios. Há três pessoas com quem cortei relações para o resto da vida.

 

O que é que lhe custou mais nesses casos?

O desapontamento em relação às pessoas. Não era o dinheiro que estava em causa. E já saí a perder em muitos negócios.

 

Já alguma vez traiu?

Desse género? Creio que não. Não sou santo, procuro defender os meus interesses, mas nunca fui acusado por ninguém de uma coisa dessa natureza. É um dos grandes activos que tenho: as pessoas confiam em mim.

 

O que é que se compra, o que é que não está à venda?

Nunca se pode comprar respeitabilidade. As pessoas ou têm respeito por nós ou não.

 

Que presentes é que gosta de dar? Uma vez que os pode dar todos...

Gosto de ver as pessoas felizes. Gosto de oferecer flores às senhoras.

 

As senhoras gostas mais de receber diamantes! Diamonds are a girl’s best friend.

And diamonds are forever. Não se pode dar diamantes a toda a gente e a toda a hora. Mas já dei diamantes a algumas mulheres. Às minhas filhas, dou tudo o que gostam.

 

Ainda sabe o valor do dinheiro miúdo? Ainda sabe quando custa um pacote de leite?

Não tenho ideia. Não sei o preço das coisas, mas sei o valor do dinheiro. Se não dou às minhas filhas, vou dar a quem? Se elas querem viajar, valorizar-se... Estudaram nas melhores escolas; as duas fizeram o St Julians em Carcavelos. A mais velha foi para Oxford, Itália, Washington. A mais nova fez Antropologia Social em Lisboa e depois uma pós-graduação na London School of Economics. Enfim, dei-lhes todas as armas.

 

Com uma mesada certa, para aprenderem a gerir o dinheiro, a saberem o que custa a vida?

Não, confesso esse como um dos meus falhanços. Não lhes controlo as contas. Mas não são perdulárias. Não gosto de pessoas perdulárias.

 

Porque isso contraria a sua vida toda? A sua vida fez-se pelo trabalho.

Não gosto quando a pessoa se impõe pelo dinheiro. O show off do “tenho tantos milhões, posso comprar o mundo”... Não sou apologista da exibição permanente da riqueza.

 

Mas é também o banqueiro que não prescinde de uma nota exuberante. Usa uma inesperada camisa verde alface!

Comprei há dias para ir ver o Sporting! Hoje é casual Friday, em Londres... Acho que a camisa verde me fica bem.

 

Estou só a sublinhar o código de conduta do meio...

Gosto do que é bom, gosto de viajar da melhor maneira, gosto dos melhores hotéis e dos melhores restaurantes, gosto da melhor vida. Mas não sou exibicionista em termos materiais. Sou capaz de ser exibicionista se for dançar.

 

Mas aí, é a marca de Angola.

É.

 

Quando comprou esse relógio de ouro, pensou nesse exibicionismo?

Sabe quantos anos tem este relógio de ouro? Comprei-o aos 19 anos. Gosto muito de usar este relógio.

 

Porque é que decidiu oferecer-se de presente um relógio de ouro aos 19 anos? Foi a materialização de um novo estatuto?

Eu tinha feito um negócio simpático, umas casas nas quais fui intermediário. Foi a primeira extravagância da minha vida, a compra deste relógio, no Natal de 63. Não era um sonho, não. Achei que era um bom investimento.

 

Não é Tio Patinhas que amealha na casa forte...

Não, uma parte é para usar. Comprei um Rolex algum tempo depois, um Rolls Royce em 79, um Ferrari em 80. Na África do Sul tenho um Rolls, em Portugal não, porque é muito... visível.

 

Quando vai à sua terra, que carro leva?

Quando nasci, os carros não chegavam à minha terra. E agora, vou lá de Ferrari.

 

Um regresso triunfante...

Não... Até porque ninguém aprecia.

 

Eles nem sabem ver quanto é que aquilo custa nem o que é que simboliza?

A pessoa mais nova que vive na minha terra tem, talvez, 75 anos. Uso-o ao fim de semana, ou quando vou para fora. Com o motorista, não ando de Ferrari.

 

É muito de si para si. Vai à terra de Ferrari porque, mesmo que os outros não fiquem impressionados, sabe quando é que aquilo vale e o que fez para o conseguir. Já não há pessoas ali que queira impressionar.

Gostava de impressionar os outros pelas minhas qualidades. Gostava de ter mais qualidades para impressionar as pessoas. Não posso impressionar com um carro...

 

Impressionou muito mais com o gesto de ajudar o seu pai do que por chegar de Ferrari?

Sim. O dinheiro é um instrumento. Pode contribuir para a nossa felicidade. Pode proporcionar-nos uma vida desafogada – ou seja, não temos que nos preocupar com o dia de amanhã. E depois tem outra componente, para mim a mais importante: serve para fazer coisas. Empresas, fazer crescer as empresas, reunir-me de pessoas para fazer coisas. É para isso que o dinheiro me serve, é para isso que gosto de ter dinheiro.

 

No fundo, para ser um líder. Do que gosta, é de ser um líder.

Não gosto que as empresas não dêem dinheiro, e porquê?

 

Porque é sinal de falhanço.

Falhanço absoluto.

 

É capaz de me contar um momento da sua vida em que se sentiu um falhado?

O pior momento da minha vida foi quando saí de Angola, em 76. Toda a minha vida estava orientada para Angola.

 

Nessa altura, queria morrer em Angola.

Achava que ia morrer em Angola. Que Angola era a maior terra do mundo. De um momento para o outro, senti-me de mãos a abanar. De um momento para o outro, olho para trás e vejo o desmoronar de toda uma vida.

 

É a sequência do dominó? Vai tudo por arrasto?

É. Até me começou a cair o cabelo. Mas acho que tomei a atitude certa. Já tinha aberto um colégio na África do Sul. A Fátima, minha mulher na altura, tinha ido com as nossas filhas para Joanesburgo – estavam em segurança. Angola estava num estado infernal, parecia o Líbano. Fiquei mais uns sete, oito meses. Normalmente ia passar os fins de semana – eram três horas de avião.

 

Seis meses antes estava convencido de que não precisava trabalhar nunca mais...

Achava que era mais rico do que na verdade era.

 

Havia uma certa megalomania de um jovem que se deslumbra com o que consegue em tão pouco tempo?

Não existia uma megalomania, existia uma realidade.

 

Não estou a duvidar dela, estou a pensar no tamanho da queda.

Pois. Só me apercebi disso depois. Condenei-me por ter feito uma análise errada. Devia ter olhado para os outros países africanos... Falhei, e fiquei apanhado. Tive um acto de alguma coragem e de um pragmatismo à toda a prova: sair de Angola e cortar com Angola.

 

Saiu para nunca mais?

Foi em março de 76 e disse a uma pessoa que nos dez anos seguintes não queria saber de Angola para nada. «Quando vim para Angola não tinha nem dinheiro nem experiência. Hoje, dinheiro não tenho muito, mas experiência e amigos tenho». Já lá vão 30 anos e continuo a pensar o mesmo. Voltei 16 anos depois, em 92. A Fátima [ligada à UNITA] teve um problema político: foi eleita deputada e proibida de sair de Angola. Estive lá por causa dela. Depois disso, não voltei.

 

África do Sul é o começo de um livro novo. Não só era uma língua nova, como era uma nova maneira de pensar e de estar. A sociedade era muito estratificada, não só racialmente, mas também financeiramente.

Fui para a uma sociedade que já estava madura, depois de ter participado na construção da angolana. Em 76, pôs-se-me ainda um dilema: onde ficar. Andei pelo Brasil, Canadá, Argentina, Portugal, embora tivesse uma base na África do Sul. Um colégio e um pequeno escritório com três pessoas.

 

Foi um ano de vacas magras, mas com uma rectaguarda razoável.

Eu não perdi nada em Angola, levei 500 escudos e vim embora com 500 escudos e os juros. Consegui meter isso na minha cabeça. Nunca ninguém me viu em ajuntamentos para a devolução dos bens de Angola... Parti para outra.

 

Deu uma “volta ao mundo” para perceber onde podia começar outra vez. Não é tão diferente assim fazer negócios na África do Sul ou em Portugal? Sabe ganhar dinheiro em todo o lado?

É preciso encontrar as pessoas certas. Negócios são pessoas. Temos de nos integrar na mentalidade e nos costumes dos locais.

 

Em Roma sê romano.

É o que faço.

 

Como é que nunca soçobrou? Como é que conseguiu essa confiança para seguir em frente?

Tenho auto-confiança. Sempre apliquei as minhas energias no sítio certo. Foco, e ponho as outras coisas de lado, para não me dispersar. Não me importo de fazer sacrifícios.

 

O que são sacrifícios quando se tem a vida que tem?

Um sacrifício: querer passar um fim de semana com a família e não poder. Interromper as férias porque alguma coisa importante acontece e vamos lá. Ter um jantar marcado e de repente há algo que consideramos mais importante.

 

Sacrifício? Adora a excitação dos planos alterados à última hora... Momentaneamente, pode até parecer desagradável, mas traz uma dimensão aventureira e emocionante à sua vida.

Para mim, não é um sacrifício, de facto. Para mim, o trabalho é um prazer. Quem corre por gosto não cansa. Tenho às vezes dias em que me apetecia dormir mais um bocado. E sinto-me infelicíssimo quando me levanto. «Para que é que tenho de me levantar? Porquê é que vou aturar aqueles tipos?». Mas depois de tomar um café, fico pronto para atravessar a montanha.

 

E não pode emperrar a máquina.

Sou disciplinado e gosto de dar o exemplo.

 

A primeira coisa em que pensei, quando cheguei a este 18º andar, foi nas cenas dos filmes da Grande Depressão. Quando os banqueiros se matavam porque o mundo ruía. E perguntei-se se essas ideias se lhe podem atravessar.

De maneira nenhuma! Não tenho esses pensamentos. E depois, quem já passou pelo que passei em Angola... A casa onde vivia, (que já estava meia vazia, mas que era a minha casa), estava ocupada! Estavam miúdos a brincar no quintal. Falo de Outubro, Novembro de 75. Quando vê a sua casa ocupada por alguém com quem não tem relação nenhuma, é tomado por um sentimento de injustiça. É uma invasão. Vivi situações muito dramáticas. Mas tive, apesar de tudo, o privilégio de ir a Joanesburgo sempre que quis.

 

Pausa

 

... Vi ao espelho a minha camisa... De facto, não está de acordo... [gargalhada] Mas leia isto como informalidade.

 

Li também como gesto de excentricidade! Uma última questão: o fantasma de 76, de perder tudo e ter de recomeçar do zero, persegue-o?

Não. Já não tenho 32 anos, seria mais difícil recomeçar tudo outra vez... Mas esta minha história de Angola ilustra bem como os valores materiais são transitórios. Não podemos basear a nossa vida nisso. Os grandes impérios, de um dia para o o outro, caem.

 

Se tudo desaparecer, o que é que gostava de manter?

Mantenho a casa da aldeia por respeito aos meus pais. Realizo as obras necessárias para que a senhora que lá está viva com todo o conforto.

 

E ela reconhece isso e retribui com cerejas e mel.

Mas se alguma coisa me acontecesse, gostaria de manter a minha saúde física e mental. E a minha capacidade para o optimismo e para me rir de mim próprio.

 

Onde quer ser enterrado?

Em parte nenhuma! Não quero morrer! [gargalhada].

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2007

Horácio Roque morreu em 2013

 

 

Fátima Barros

14.12.14

Veste um fato de bom corte que a faz parecer uma advogada da série Boston Legal. Fátima Barros ri desta sugestão. Tem uma noção apurada do que implica ser a directora da Católica Lisbon School of Business and Economics. O que, evidentemente, contempla dar entrevistas nas quais se traça o perfil, sorrir de forma espontânea como se fosse fácil fazer tudo ao mesmo tempo (ou, pelo menos, possível), envolver os colegas que passam e assistem ao aparato das fotografias para que sintam que eles são parte do que ali acontece.

Não, ela não é individualista. Mas sim, foi ela que chegou ao topo. Que é um modo de dizer que pôs a Católica no Mapa.

Como? “É muito importante a qualidade e a dedicação dos professores. É muito importante a ligação às empresas, que traz para dentro da escola uma componente prática que é muito valorizada pelos alunos, e que ajuda à colocação no mercado de trabalho. Temos um número de empregabilidade altíssimo porque temos um departamento que se chama career service, de desenvolvimento de carreiras, que prepara os alunos para a sua inserção no mercado de trabalho.” A Católica integra pelo quinto ano consecutivo o ranking do Financial Times das melhores escolas de formação de executivos (45º lugar numa lista de 50), e aparece no quarto lugar no ranking de empregabilidade.

No princípio, Fátima Barros queria ser arqueóloga. Antes de a entrevista começar, a assistente chega com água e café. Pousa sobre a mesa um cartão que diz que ela é Dean da CLSBE.

  

… estava a dizer que esta entrevista é para si mais arriscada. Pelo facto de ser uma entrevista pessoal?

Não é arriscada, é mais difícil. No dia-a-dia, estou com o meu chapéu de directora da Católica Lisbon [School of Business and Economics]. Estou preparada para falar sobre o que fazemos, sobre os nossos sucessos, as nossas dificuldades. Não estou preparada para falar de mim.

 

Esbarrei num muro de artigos sobre a directora da Católica Lisbon. Não sei sequer em que ano nasceu.

Nasci em 1963. Tenho 47 anos.

 

A informação sobre si de que disponho resume-se ao doutoramento em Lovaina, a passagem pela London School of Economics (LSE), os pontos curriculares mais marcantes. Queria conhecer a mulher que tem este percurso.

Nasci em Castelo Branco. Sou uma mulher da Beira, como gosto de dizer. Vivi até aos nove anos nas Termas de Monfortinho.

 

Come-se aí bela caça.

Estudei em colégios internos, porque para se ter acesso a uma boa educação, nas zonas do interior do país, não havia outra solução. Tive que ganhar uma certa autonomia cedo. Fiz o meu percurso, em Abrantes, em Castelo Branco, em colégio de religiosas, internos. Vim para a Universidade Católica quando tinha 17 anos.

 

O que fazia o seu pai?

Era natural de Castelo Branco. Geria a Companhia das Águas da Fonte Santa, todo o complexo hoteleiro e de águas minerais.

 

Era formado em Gestão?

Não, tinha o liceu.

 

Mas fez-se.

Completamente. Foi uma pessoa com uma vida difícil. Perdeu o pai muito cedo, quando tinha 18 anos. Era o mais velho de cinco irmãos, teve que trabalhar.

 

Segue o seu percurso?

Não, morreu tinha eu 25 anos, estava em Inglaterra.

 

Dê-me o quadro familiar para perceber porque é que não é estranho que tenham ido para colégios internos estudar.

Os primos, os netos, fizemos todos o mesmo percurso. Eu tinha uma expectativa extraordinária do que era um colégio interno, lia os livros da Enid Blyton. Mas não foi fácil. Três filhos a estudar fora, uma educação privada, com internato. Foi claro desde o início que era o melhor investimento que podiam fazer para nós. E foi, de facto.

 

Mas não havia qualquer indicador de que estavam a formar e a investir numa futura líder. O que é que se dizia, o que é que se pensava?

A minha mãe ainda era viva quando assumi estas funções. Creio que para ela, que acompanhou o meu percurso, não foi estranho. O meu pai, não sei o que é que pensava. Quando decidi sair de Portugal, quando tinha 24 anos, para fazer o doutoramento, já isso era uma ruptura, uma aventura. Eu própria não tinha a noção de que alguma vez ia ficar à frente da faculdade.

Se me perguntar o que é que pensei, desde miúda, pensei que queria fazer a diferença. A Madame Curie, por exemplo: tenho imensa pena de não ter sabido Química, de não ter gostado de Química. Foi alguém que conseguiu marcar a diferença. Eu li muito.

 

Era isso que a tomava, o desejo de ser como Madame Curie, como os protagonistas dos livros que lia?

Não sei explicar, mas sempre achei que queria fazer a diferença. Ter sido boa aluna ajudou a ter a noção de que podia chegar onde queria. Mas as coisas foram sempre acontecendo, nunca planeei.

 

Estamos a falar de coisas que são essenciais à liderança, que são fundamentais para os vossos alunos: como é que se ensina a fazer a diferença, a ser um líder motivado e motivador das suas equipas? Estou a pensar nisto a partir de si.

Eu era uma académica que dava aulas e fazia investigação. Quando fui convidada para ser directora da Católica [CLSBE], não estava nada à espera. Quando comecei a estudar Economia talvez tenha pensado que um dia gostava de trabalhar numa empresa, e que gostava de nessa empresa ter responsabilidades. Nunca gostei de planear o futuro, gosto de ser surpreendida.

 

É preciso conforto e confiança para gostar disso, para lidar com o imprevisto.

Não queria ter problemas financeiros, preocupar-me se no final do mês o ordenado ia chegar ou não. Não tendo esse sobressalto, tudo o resto aconteceu sem ser planeado.

 

Vamos voltar à menina que foi para colégios internos.

A menina que se portava mal [riso].

 

Tem um ar tão bem comportado que não consigo pensar que alguma vez foi destravada.

Fazia muitas partidas. As nossas tropelias eram muito infantis e inocentes, mas demos algum trabalho.

 

Como é que aquilo a marcou? É diferente estar num colégio interno, é uma forma de socialização diferente, de integração num grupo.

Habituei-me a viver em comunidade. Quando me tornei directora das licenciaturas, em 2001, que foi a minha primeira experiência de gestão, criei o Fim-de-semana do Caloiro, que hoje é uma instituição. Resolvi organizar um fim-de-semana na Serra da Estrela em que os alunos convivem uns com os outros. (Adoro passear na montanha. Ir para os Alpes no Verão, com a família. Este ano fizemos o tour do Mont Blanc, sete dias de mochila às costas, da França para a Suíça, da Suíça para a Itália.) Dormem em camaratas, fazem actividades desportivas em conjunto, e isso cria um laço entre eles. É completamente diferente ver este grupo na sexta-feira e vê-los na segunda-feira. Tento transmitir-lhes duas coisas importantes: para a montanha ninguém vai sozinho, e na montanha o mais forte ajuda o mais fraco. É isso que quero que percebam. Durante a vida de universidade, vão ter que trabalhar em conjunto, e os mais fortes vão ajudar os mais fracos.

 

Foi para o colégio com que idade?

Fizemos a primária em Monfortinho. Tínhamos uma escola primária onde estavam todas as crianças da povoação, algumas com dificuldades muito grandes, económicas. Talvez na altura não tivesse tanta consciência, mas havia uma diferença de tratamento.

 

Era a filha do senhor director.

Exactamente.

 

Qual foi a primeira coisa que conquistou pelos seus méritos?

Foi ter boas notas e o meu avô dizer aos amigos, muito feliz: “Ela é melhor que os rapazes”. Foi o melhor elogio que tive na vida.

 

O seu avô diria hoje: “Ela é melhor que os professores homens”. A verdade é que durante muito tempo teve que lidar com a circunstância de ser uma ela entre muitos eles.

Mas fui sempre bem tratada. Senti mais o facto de ser mais nova que a maior parte dos meus colegas, do que o facto de ser mulher. Ser mulher nunca foi um factor que sentisse que pesava.

 

No dia em que falamos foi conhecido o Nobel da Economia.

Muito poucas mulheres foram galardoadas. Isto quer dizer qualquer coisa.

Muitas das economistas que estão hoje no topo têm uma vida pessoal bastante singular. Raramente tiveram uma família.

 

E isso é regra.

Infelizmente é regra. É um ambiente competitivo onde a dedicação tem que ser grande. Torna-se difícil na altura em que é preciso escolher. E já sabe o que é que as mulheres escolhem.

 

Gostava de voltar ao comentário do seu avô e perguntar se foi educada para ser uma igual.

Não havia razão para se esperar que um rapaz fosse mais longe ou tivesse mais sucesso. Sempre recebemos os maiores incentivos, para ir o mais longe possível. Mesmo no colégio de freiras, extremamente conservador, nunca senti que estávamos a ser educadas para ser donas de casa, e não para ser profissionais de sucesso. Lembro-me de a minha avó ter algum desgosto de não fazermos croché [riso].

 

Como é que eram as mulheres da sua família?

Eram mulheres com muita garra. Se for ver a minha irmã, a minha prima, vai encontrar profissionais de sucesso. O meu pai teve uma doença prolongada, um cancro, e a minha mãe foi a força motora. Se o meu pai sobreviveu dez anos foi graças a ela, os médicos nunca lhe deram tanta esperança de vida. Imagino o que deve ter sido para a minha mãe a incerteza; como é que ia criar, educar três filhos, que tinham de ir para a universidade? Felizmente o meu pai sobreviveu até ao meu doutoramento, e a minha irmã mais nova estava na faculdade, já avançada.

 

Nunca viu a sua mãe baixar os braços? A vulnerabilidade dela era qual?

Fisicamente era muito doente. Tinha uma doença reumática, deve ter tido dores horrorosas, e nunca demonstrou isso. Depois de o meu pai falecer foi-se abaixo. Foi a grande quebra. Mas depois vieram os netos.

 

Quando é que baixou os braços no seu percurso?

Isso nunca senti. Há sempre batalhas para lutar. O ano em que o meu pai faleceu, o ano em que vivi em Londres, foi muito difícil para mim. Partilhava um quarto com uma colega, e nem sequer tinha um momento para estar sozinha. Da saída do metro até casa, chorava. [comove-se] Ao fim destes anos todos, ainda fico desta maneira.

 

Estava a fazer o seu luto.

Estava numa das melhores universidades do mundo, tinha tudo à minha frente, mas foi um ano muito triste.

Temos uma evidência, que não é baseada em estudos, que nos indica que muitas vezes os melhores alunos do curso, aqueles que se destacam, têm no seu passado uma história de perda do pai ou da mãe. Há uma orfandade que os leva a ganhar uma maturidade mais cedo, a combater mais.

 

Sente que envelheceu de um dia para o outro com a perda dos seus pais?

Sim. Sofre-se uma amputação.

 

Isso dá uma tenacidade diferente. E aprende-se a lidar com a adversidade de uma maneira diferente. O que é importante, depois, na maneira como se está profissionalmente.

Creio que sim. E aprende-se a aproveitar muito os momentos que são bons, e a relativizar os problemas.

 

Permite-se emocionar-se porque na sua geração as mulheres já podem ser líderes e sensíveis ao mesmo tempo? Já não têm de ser damas de ferro?

Absolutamente. Já chorei à frente dos meus colegas. Não de todos, de alguns. Chorei de raiva, mais do que de outra coisa. Costumava dizer assim: “A grande vantagem dos homens é que não choram”.

 

Mas é verdade ou não que as mulheres já têm permissão para se emocionarem sem serem olhadas de viés?

Hoje as mulheres não precisam de ter uma carapaça de agressividade para desempenhar funções de liderança. A Dama de Ferro, como era conhecida a Margaret Thatcher, precisava dessa agressividade para sobreviver num mundo que é tipicamente masculino. Não sinto nem nunca senti isso. Pelo contrário, até sou uma pessoa pouco agressiva. O que não quer dizer que em certos momentos não tenha também que adoptar uma posição mais firme.

 

Usou o cabelo curto. Perguntei-me se precisaria de mostrar um visual mais tipicamente executivo, com blazer, apagando traços de feminilidade que desviam a atenção da competência pura e dura.

Toda a vida tive o cabelo curto. O meu marido gostava muito de me ver com o cabelo curto. O que é que mudou com o facto de ser executiva? Alguns quilos a mais. A instituição que represento exige uma certa apresentação, do blazer ao cabelo.

 

A Católica, no fundo, mantém-na num ambiente relativamente fechado. Nunca esteve numa escola ou numa universidade pública, num ambiente marcadamente heterogéneo.

Estive. Formei-me na Católica, fiz o mestrado na Universidade Nova. Lovaina, apesar de ser a universidade Católica, tem todas as características de uma universidade pública na Bélgica. E a London School of Economics é uma escola pública. Pode dizer-me que são escolas de uma elite intelectual, sem dúvida. Mas repare que tínhamos meios sócio-económicos muito diversificados.

 

Tendemos a entrevistar as pessoas quando estão na sua fase madura, mas é preciso perceber que percurso fizeram até chegar onde as encontramos. Que coisas marcaram os seus anos formativos?

O mais importante foi uma certa orientação. A minha professora de francês deu-me um livro para ler, o Cem Anos de Solidão. Pouca gente conhecia esse livro.

 

Achei que ela lhe ia dar a Simone de Beauvoir, Memórias de Uma Menina Bem Comportada, título irónico para a mãe do feminismo.

Há alturas em que se lê Sartre, os Existencialistas e por aí fora, mas o García Márquez é que foi diferente naquela fase minha vida. Mais tarde, a passagem por Lovaina deu-me uma diversidade multicultural, muito enriquecedora. Talvez seja uma das razões pelas quais motivo estes jovens a sair de Portugal.

 

É uma das suas frases que fazem títulos. Quando todos falam da fixação de talentos, fala da importância de terem uma experiência internacional.

Tendo livros à sua volta, tem abertura para o mundo. Mas há no português um grande provincianismo, mesmo hoje. Somos poucos, conhecemo-nos todos. As pessoas neste país valem pelo nome que têm, pela família de onde vêm, pelos sinais que ostentam. Quando saímos para fora de Portugal somos confrontados connosco próprios.

 

E com o mérito, nosso e alheio.

Valemos apenas pelo que somos e pelo que fazemos. Aprendi sobretudo a humildade. Em Portugal estávamos num ambiente privilegiado, no sentido em que éramos a franja educada da população.

 

Uns happy few.

Muito poucos e com muitos privilégios. Ser licenciado ainda representava um certo privilégio. Ouvi de um professor extraordinário, na Bélgica (que todos os anos é um dos candidatos ao Prémio Nobel), que éramos uns privilegiados por termos tido a possibilidade de estudar; e que em vez da arrogância, porque éramos mais educados do que outros, devíamos ter a humildade de reconhecer que a sociedade tinha investido em nós. Foi uma mensagem importante e que gosto de recordar aos meus alunos.

 

Foi em Lovaina que começou a acreditar que ia longe?

Não, em Lovaina comecei a acreditar que os outros sabiam muito mais que eu. A sensação de que estava no meio de gente muito boa, de que ia ter que trabalhar muito para conseguir estar ao nível de todos... (Não havia Skype, não havia Internet, havia correio, o telefone era muito caro. Aquele que hoje é meu marido, na altura era meu namorado, e ficou cá. Encorajou-me imenso a partir e estivemos quase quatro anos separados, casando a meio.

 

Ouviu nessa altura o seu avô. Se era melhor do que os rapazes, porque é que havia de ficar?

Isso nunca teria aceite. Foi ele a encorajar que saísse. Já tinha uma grande experiência internacional. É italiano.

 

Ah! Estava a pensar que português seria esse que, há 20 anos, estimulava a mulher a sair do país, sem ele…

Já tinha vivido na Bélgica, não tinha grandes saudades de viver na Bélgica.)

 

Então, quando é que começou a acreditar que podia chegar onde quisesse?

Fazer um doutoramento é uma prova muito difícil, sobretudo há 20 anos. Escrever uma tese significa escrever um trabalho original, acreditar que vamos conseguir ser originais, e desenvolver isso. É um trabalho com momentos de grande frustração, em que todo o trabalho de dias vai para ao caixote do lixo. E é preciso recomeçar. Tinha dias em que achava que a minha vida era uma miséria [riso]. Fui dando um passo de cada vez.

Há um desenvolvimento pessoal fantástico. Em Lovaina, não sei com quantos Prémios Nobel me cruzei – quando se tem 24 anos, é um deslumbramento. Era um ambiente muito democrático entre professores, secretárias, alunos de doutoramento, o que tem influência na pessoa que sou hoje. As hierarquias existiam, mas não eram estanques. Ninguém se importava com o que o outro vestia, qual era a história que trazia. Tínhamos um objectivo comum: chegar ao fim.

 

Vou fazer novamente a pergunta. Quando é que acreditou que podia chegar longe? Estou a perguntar por uma injecção de confiança que a faz perceber que fazia a diferença.

Quando defendi a tese fiquei felicíssima. Quantas mulheres tinham doutoramento em Economia em Portugal? Pouquíssimas. Quando volto para Portugal sinto-me uma pessoa que já fez uma coisa extraordinária. Que já fez qualquer coisa de diferente. E depois tudo são pequenas conquistas. Quando começamos a conseguir publicar os nossos trabalhos internacionalmente, cada uma dessas publicações é um feito.

 

Uma pergunta muito americana: “What makes you run?”. Para algumas pessoas é o dinheiro, para outras é o prestígio, o reconhecimento. No seu caso não foi o dinheiro, ou teria ido para as empresas.

Quando vim para a universidade, não foi o dinheiro [que me fez optar], mas o salário era muito competitivo em relação ao que se pagava no mercado. Ganhava 90 contos. Era muito bom para alguém que estava a começar. Ser assistente, que era muito prestigiante, dava-me uma liberdade enorme. Foi durante esses dois anos que decidi que queria sair, e a maneira era fazer o doutoramento. Os Estados Unidos não foram uma opção; era longe, o meu pai estava doente, o meu namorado estava em Lisboa.

 

A vida pessoal a intrometer-se nas decisões.

Sem dúvida. Quando emigrei, a Universidade Católica apoiou o meu doutoramento. Meu e dos meus colegas – pagava o nosso ordenado de assistente. Em Lovaina, partilhava um apartamento, não vivia em condições de luxo, mas vivia razoavelmente. Em Londres, o custo de vida é altíssimo, o escudo desvalorizava todos os meses, e cheguei a levar sandes para a universidade porque comer na cantina era demasiado caro. Nesse mesmo ano ganhei uma bolsa da Comissão Europeia, e aí fiquei rica!, tão rica quanto um estudante de doutoramento pode ser. Fiquei com condições para viver sem preocupações.

 

E o catolicismo era um lar? No sentido em que há sempre esse ambiente em que é educada, e que investe em si. Primeiro é um investimento dos seus pais, quando a põem em colégios internos com religiosas. Depois, da Universidade Católica.

O mais importante, em cada instituição em que estive, é a existência de um quadro de valores de referência. Em Lovaina isso sente-se menos, estamos num ambiente mais heterogéneo. Na LSE o ambiente é agnóstico. Na Bélgica ia muitas vezes à igreja quando sentia solidão, à procura da tal área de conforto.

 

Estava a pensar o que seria a sua carreira, e também a pessoa que é, se não fosse essa espécie de casa em que sempre se reconhece – o ambiente católico.

Não sei se teria sido muito diferente. A minha mãe era muito católica, o meu pai não tanto. Os colégios acentuaram isso. Nem sempre de uma forma positiva. Mas essa dimensão continua a ser importante. E todos precisamos, não necessariamente do catolicismo, mas de um quadro de referência.

 

No princípio estávamos a falar do que faz uma pessoa líder. Quais são as suas características pessoais e profissionais que fazem de si líder (além deste percurso que já detalhámos)?

Nunca quis ser chefe de turma. Sempre vi as pessoas que queriam ser líderes como as pessoas que na escola queriam ser os chefes de turma. Talvez tenha tido, sem me aperceber disso, comportamentos de liderança, no sentido de influenciar os colegas, de querer mudar coisas. Sempre tive um sentimento muito forte contra a injustiça, no dia-a-dia, no colégio, no liceu. Sempre fiz coisas com entusiasmo e paixão. Encontro sempre uma forma de me motivar, recarregar energias, ganhar coragem de ir para a frente. Não sei se foi essa a característica que fez de mim uma líder.

 

A determinação?

Talvez. Sempre fiz tudo o que tinha para fazer o melhor que podia.

 

Quem é que nunca quis desiludir?

Certamente os meus pais. E hoje os meus filhos.

 

Tem dois filhos.

Um rapaz com 16 anos, o Vasco, e uma rapariga com 14 anos, a Laura.

 

Como é que consegue ser uma mulher casada, mãe de dois adolescentes, directora de uma das melhores escolas do mundo, viajar o tempo todo, e ainda ter tempo de escolher o pó-de-arroz certo?

Uma das minhas principais dificuldades em aceitar este cargo em 2004, e já vou no terceiro mandato, foi considerar que os meus filhos eram muito pequenos, e que deveria dar-lhes mais atenção. Quando o reitor me dizia que conseguia ir para casa às seis da tarde, sabia que não ia conseguir. Assim que me embrenhasse nisto as coisas iam tornar-se mais complicadas. Mas aceitei também porque fui muito encorajada pelo meu marido. Os miúdos eram pequenos, a minha mãe já estava doente (nos últimos tempos estava connosco), e tive que equilibrar várias coisas ao mesmo tempo. Mas quando olho para trás vejo uma filha que tem um orgulho enorme em eu ter as funções que tenho. O meu filho uma vez, pequenino ainda, fez um desenho com uma flor e disse: “Mãe, gosto de ti porque tu gostas de trabalhar”. Do lado deles há este reconhecimento, faço uma coisa de que gosto.

 

E que não é uma coisa qualquer.

Exactamente. O meu marido dá-lhes bastante apoio, há alturas do ano em que tem mais disponibilidade que eu. Por outro lado, quando não estou na faculdade, estou em casa. Sentem que estou presente. Apesar de às vezes estar a trabalhar, estou presente.

 

Há cinco anos que a Católica está nos rankings e é consensual que deu um grande salto consigo. Foi uma determinação sua, decidiu que a escola ia estar no ranking? Ou foi uma consequência de um trabalho que foi desenvolvendo?

O meu mérito é fazer o que os meus colegas me dizem para fazer.

 

Está a fazer género.

Não é. Nós somos uma equipa. Posso ser um bocadinho a força que empurra, o rosto da equipa, mas os resultados que conseguimos foram os resultados de um trabalho de equipa. Quando comecei, os meus antecessores já tinham feito um trabalho extraordinário, de preparar o terreno para aquilo que viríamos a fazer depois. Começámos a trabalhar nas acreditações internacionais, e todos nos incentivámos uns aos outros. A grande força desta escola é a união que existe entre as pessoas.

 

E a rivalidade com a Nova, também funciona como uma força motora?

Completamente. E para eles a mesma coisa. A rivalidade com a Nova é, para ambas as escolas, a chave do nosso sucesso. Se não competíssemos tão ferozmente não teríamos atingido as posições que atingimos hoje internacionalmente. É aquilo a que se chama os benefícios da concorrência.

 

Concorrência que é uma das suas áreas de estudo, desde o doutoramento.

Teoria de jogos – é o que usamos muito, e que nos ajuda a tentar antecipar o próximo movimento do nosso concorrente. Mas também somos parceiros [da Nova], temos um programa de doutoramento em conjunto.

 

É um número de equilibrismo entre a concorrência e a parceria.

É. E funciona bem, tem sido uma força de grande desenvolvimento para as escolas.

 

Com que impressão é que acha que as pessoas vão ficar depois de conhecerem esta Fátima Barros?

Muitas vezes estou a falar sem reflectir muito sobre o que estou a dizer. Não sei. Muita gente que me conhece, os meus colegas, conhece as minhas histórias. Fora da universidade, não sei se as pessoas terão interesse em saber. Tenho dificuldade em achar que alguém tem interesse em conhecer a minha vida, por isso é que é tão difícil falar dela.

 

Pessoalmente tinha interesse em saber como é que esta mulher, tão nova, tinha conquistado isto. O que é que a fez assim.

Uma das características que me têm ajudado em alguns dos sucessos que temos alcançado é que não tenho medo de falhar. Muitas vezes as decisões são arriscadas. Um bocadinho de loucura ou de coragem, não sei qual será mais forte... Mas não tenho medo de falhar. Tenho sempre a perspectiva do tentar. Não tenho medo de receber um “não”. No limite recebo um “não”, mas não sinto que isso seja uma derrota para mim. Essa é a grande diferença, por exemplo, entre os homens, que na sua tomada de decisão estão sempre em jogos de poder. Receber um “não” ou não conseguir atingir um determinado objectivo é visto como uma derrota pessoal. Posso sofrer, mas não vejo isso como uma derrota pessoal. E felizmente temos tentado e temos conseguido. Muitas vezes, isto falta em Portugal.

 

Monta. Como é que se chama a sua égua?

Princesa da Graciosa [riso]. Um nome muito pomposo.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em  2010

 

Carlos Monjardino (2002)

11.12.14

A sua ligação ao Oriente fez-me começar por falar de jogo. De póquer. Este homem enigmático, Carlos Monjardino, ensinou-me a jogar póquer. O suficiente para entender o póquer como uma metáfora do jogo social, da tessitura das relações. A sageza, a ousadia, a virtù de que falava Maquiavel, são fios essenciais à trama.

Começámos pelo póquer para poder perceber rapidamente que aquilo que é, mais que um jogador, é um negociador. Um hábil negociador. O Avô Pulido Valente compreendeu a cena muito cedo, quando o viu afogueado a trocar ovos e perus entre as duas avós. Descansou-se quanto ao futuro do neto. O pai quis que não ficasse confinado à estreiteza da Pátria e mandou-o estudar para Inglaterra. Fez carreira na banca, entre Portugal e Paris. Instalou-se em Macau em meados dos anos 80, 14 meses. Não chegou a ser Governador do Território, mas iniciou obra de que ainda hoje se orgulha. Como justificação para a sua não-indigitação, há quem sustente a tese das boas relações que mantinha, e mantém, com Stanley Ho.

Tem 60 anos, 12 filhos, é casado. É o homem da Fundação Oriente.

 

Li algures que gosta de jogar póquer, a doer.

Gostei. Já não jogo há imenso tempo. Desde os meus 17, 18 anos que me entretinha a jogar póquer com um grupo de amigos. Não tínhamos muitas disponibilidades, mas jogávamos a dinheiro, claro, o póquer só se pode jogar a dinheiro. Começávamos às dez da noite e ficávamos até às 6 da manhã. Ao princípio jogava mal e entusiasmava-me. Talvez fosse mais pulsional. A pouco e pouco, fui aprendendo a ser cauteloso. Olhar para as pessoas e perceber que jogo é que têm, os tiques que têm...

 

Como é que se joga póquer?

Tem duas cartas fechadas na mão, e vão abrindo 5 cartas na mesa. Abre uma, as pessoas apostam, mais ou menos, conforme o jogo que têm ou que pensam que terão probabilidade de vir a ter. Às vezes até não apostam, quando têm bom jogo, para não dar indicações de que têm bom jogo, e seguem só os outros jogadores.

 

Como?

De acordo com as cartas que estão na mesa. Se tem um bom jogo, vai avançando. Se tem um jogo médio, vê até onde pode ir; quando começam a dobrar cartas, por exemplo, começa-se a ter alguns problemas. Também podem estar a fazer bluff, mas é um bluff muito arriscado. Quando já se tem uma sequência, aposta-se muito forte. Há pessoas que desistem. Porque têm menos do que sequência e não querem arriscar. E você ganha.

 

Na tensão do jogo, o que é alterado no comportamento? Que tiques e expressões se revelam?

Quando se joga póquer aberto, que é o meu preferido, pode-se observar melhor a reacção das pessoas de cada vez que as cartas vão sendo abertas. É preciso decorar as cartas que se tem na mão (o que não é difícil, porque são duas), ficar a olhar para os outros jogadores e depois apostar com um ar o mais indiferente possível. A maior parte das pessoas não consegue evitar um pequeno sinal, seja abrir os olhos, um sorriso, um tique qualquer quando sai uma carta que convém. Há pessoas que são esfíngicas e não se percebe absolutamente nada do que ali se está a passar. Esses são os grandes jogadores.

 

Aprenderam a ser assim?

Claro, aprenderam.Outra maneira de jogar é não apostar ao princípio, dando a entender que se tem um jogo corriqueiro. No final, na última aposta, quando se tem a certeza ou se sabe que se tem grandes probabilidades de ganhar, a pessoa que está a puxar pelo jogo, aposta, e você, em vez de igualar a aposta, aposta aquilo e mais o que tiver disponível. Apostam 10 e diz: «Esses 10 e mais 100». O outro, que está a puxar o jogo desde o princípio, já não quer sair. Há uma coisa que o empurra para ir até ao fim.

 

É um elemento muito misterioso: o já não poder recuar.

É muito difícil a uma pessoa que conduziu o jogo desde o princípio deixar de ir. É desistir. Muitas vezes, mesmo sabendo que há uma hipótese de haver um jogo maior, já não consegue segurar-se.

 

O que é tão excitante quando se joga póquer? Joga-se uma noite inteira e fica-se exaurido. A expectativa, o dinheiro, levam-se até ao limite.

O cansaço é relativo, sabe? Está-se de tal maneira entretido naquilo, em busca da sorte...

 

O que é que entretém tanto?

Para já, receber as cartas. A expectativa de ver que jogo é que se vai ter. Há pessoas que levantam uma, depois a outra, como se fizesse alguma diferença. São manias que têm que ver com superstições. Depois, o entusiasmo de perceber que jogo se vai fazer com as cartas que se tem na mão e com as cartas que estão a sair.

 

Porque é que deixou de jogar?

Não tenho vida para isso nem tenho amigos com quem possa jogar amigavelmente. A última vez que joguei foi em Macau, com o meu amigo dr. Carlos Assumpção. Eram uns póquer um tanto ou quanto clandestinos... Ele era o presidente da Assembleia Legislativa, e eu, na altura, encarregado do governo de Macau. Mas era um jogo entre amigos e bem divertido.

 

Era um encontro clandestino, algo bizarro. As pessoas ficam completamente destituídas das funções que exercem em encontros particulares?

Nesses jogos de pocker, ele e eu estávamos numa posição difícil. Tínhamos mais pessoas a jogar connosco, que não tinham necessariamente as mesmas disponibilidades financeiras.

 

Vai-me dizer que perdia de propósito?

Durante um bocado da noite, aquilo era a sério. O que fazia era começar a jogar e, por vezes, estando a ganhar razoavelmente, chegada a parte final do jogo, fazia de propósito para perder, e perdia tudo. O dinheiro voltava todo para o outro lado. O dr. Carlos Assumpção também se sentia muitas vezes nessa situação.

 

Quando não existem esse tipo de constrangimentos, ninguém gosta de perder nem a feijões. O que é que se ganha e o que é que se arrisca exactamente? Não é só dinheiro, pois não?

É um desafio. À memória: tem que se pensar no seu próprio jogo e no que se está provavelmente a construir nas mãos dos vários jogadores. À interpretação daquilo que pensamos que vai na cabeça das pessoas através de alguns sinais que possam dar. Joga-se muito com a cara das pessoas. Não é um jogo muito elaborado, não é o xadrez ou o bridge. Mas é um jogo interessante porque há uma enorme expectativa.

 

Nunca se sentiu dominado pelo jogo? Como Dostoievski descreve n’ «O Jogador», o indivíduo arrisca face ao destino, avança para o abismo, afundado numa pulsão que o domina, e sem uma réstia de racionalidade.

Eu acho que, como actividade, é uma actividade menor. Para passar o tempo pode ser agradável desde que não se leve o jogo demasiado a sério nem que se torne num modo de vida.

 

Tem respeito pela actividade?

Não particularmente. Até tenho uma história. Aos 17, 18 anos fui estudar para Inglaterra. Já jogava póquer nessa altura, e não jogava mal. O meu pai dava-me exactamente o dinheiro de que precisava para ter uma casa, comer e comprar livros. Que era muito pouco. Então, além de lavar pratos num restaurante, resolvi que tinha de sacrificar uma parte do meu tempo livre para fazer uma coisa que fazia bem: jogar. Jogava para ganhar. E ganhava! Porquê? Sabia exactamente o que queria, até onde podia ir, não me deixava levar por impulsos. Sexta-feira era a noite que reservava para jogar. Tinha meia dúzia de libras e com elas jogava muito cerebralmente.

 

Dava-lhe gozo, sendo tão cerebral?

Não me dava gozo nenhum. Mas como queria comprar um automóvel, melhorar a minha vida de todos os dias, ter um fim-de-semana simpático com a minha namorada e não tinha dinheiro para o fazer, tinha que o arranjar. Um amigo que vivia na mesma casa, que tinha muito mais dinheiro do que eu, deixava-se ir e perdia fortunas. Enquanto que ele apostava 100 libras, eu apostava uma.

 

Teria o mesmo respeito por si mesmo se se deixasse dominar?

Nem pouco mais ou menos. Em Macau havia pessoas que pediam para reunir comigo para dizer que na noite anterior tinham perdido a fortuna toda, que já não eram concessionários disto e daquilo, os prédios tinham ido, as fábricas tinham ido... Lamentável!

 

Pode compreender esse momento em que a pessoa já não pode voltar trás, já não é senhora de si?

Não. De maneira nenhuma. O jogo aparece como uma actividade que anula a vontade de fazer qualquer outra coisa. Ganhar qualquer coisa passa a ser uma obsessão. Se não é hoje é amanhã, se não é amanhã há-de ser depois, e vão-se deixando arrastar....

 

Quem é que o ensinou a jogar?

É capaz de ter sido o meu irmão, que é mais velho e jogava póquer. E também um amigo que tínhamos.

 

O senhor foi talhado para ser um homem de negócios. Uma coisa tem que ver com a outra, julgo. O jogo e o negócio. Trata-se de arrojo, e de esgrima.

Um bocado. O meu avô Pulido Valente dizia sempre que não tinha preocupações comigo. Que por pouco bom aluno que fosse, (e não era grande coisa), tinha a minha vida resolvida de qualquer maneira. Eu fazia uns negócios entre as minhas avós. O meu avô Pulido Valente era médico, tinha uns clientes que mandavam uns presentes de Natal bestiais, uns perus, e não sabia o que fazer aos perus. Eu vivia com a outra avó, que tinha uma quinta na Avenida Praia da Vitória, com patos, cabras e umas capoeiras enormes. O que fazia era pedir à minha avó Pulido Valente que me oferecesse os perus, e depois vendia-os à avó Monjardino.

 

Miúdo pequeno?

Teria oito ou nove anos. Pegava nos ovos das galinhas lá da quinta e ia vendê-los à outra avó, que não tinha galinhas, coitada, vivia num andar. Um dia, numa caixinha estavam 11 ovos. A minha avó, muito agarrada ao dinheiro, diz-me: «Aqui só estão 11!». E eu respondi: «Não, avó, estou a trazer 12. Um deles, como pode ver, é um ovo de duas gemas. Não lhe vou vender 12, porque senão fico eu a perder».

 

Onde é que ia arranjar essas histórias?

Eram uma coisa natural em mim

 

Se for o investimento destituído de risco, interessa-lhe?

Se não tiver componente de risco é muito menos interessante do que um investimento que tenha um poucochinho que seja de risco.

 

Posso voltar à infância e ao futuro que lhe prognosticavam? A sua família tem uma tradição ligada à medicina.

São quase todos médicos, menos eu. O primo Vasco [Pulido Valente] também não.

 

Davam-se em miúdos?

Crescemos juntos, ele é mais velho um ano.

 

Ele tinha já a argúcia que tem hoje?

Tinha, mas era muito nervoso, muito irritadiço.

 

Ainda tem a fama de ser irascível.

Tinha sempre de ser diferente dos outros. E era muito irreverente. O pai dele era engenheiro e director técnico da Robbialac e um dia, no liceu, achou graça em assinar um teste com o nome Robbialac. Não sei se foi expulso se suspenso. Sei que para ele os professores eram todos umas bestas que não sabiam nada. Eu não herdei totalmente isso.

 

Há uma característica que é atribuída ao seu primo Vasco: não condescender com a mediocridade. Também herdou essa parte?

Um bocado. Sou muitíssimo mais sensível à injustiça. Sou muitíssimo mais sensível à falta de solidariedade do que combativo ou pouco condescendente em relação à mediocridade, que também me incomoda, mas que não é uma bandeira.

 

Porque é que um menino de boas famílias, talhado para o sucesso, ficou particularmente sensível à desigualdade social?

Fui tendo essas preocupações por sentir que vivia num país que não evoluía em termos sociais. Que não conseguia satisfazer as necessidades básicas e constitucionais das pessoas, e que passava por cima disso (como continua a passar) de uma maneira um tanto ou quanto leviana. Ao mesmo tempo, o governo preocupa-se com coisas que me parecem laterais, querendo dar ao exterior a impressão de que somos uma coisa que já não somos. Os fundos públicos são escassos, muito escassos, e os poucos que temos são, muitas vezes, mal dirigidos. O papel do governo é preocupar-se com os direitos básicos dos cidadãos e ter a certeza de que esses direitos estão a ser contemplados.

 

Política é isso?

Para mim, a base da política de um país é isso. Não são as preocupações do deficit. O deficit podia não ser o que é se houvesse coragem. É uma coisa que falta neste país: coragem. A democracia já está razoavelmente arreigada no espírito das pessoas para se que possam tomar decisões corajosas, que se impõem.

 

Não se tem coragem por causa do apego ao poder? Os governantes têm um fascínio e um apego pelo poder que faz que, de um modo geral, sejam muito pouco audaciosos.

É. É um erro, e mais do que um erro, é estarem a subalternizar aquilo que é a principal característica que um governo deve ter: a capacidade de atacar os problemas que têm que ver com as pessoas. Isso passa rapidamente para 2º, 3º, 4º lugar. As preocupações são mais para consumo externo. E você tem toda a razão: o mal dos políticos e dos governantes em geral é esse apego ao poder. É muito raro encontrar um político em qualquer sítio do mundo que esteja disposto a perder o poder por uma boa causa.

 

O que é tão tentador assim? Uma boa resposta pode ser a sua, que é um homem de poder, sem ser exactamente um homem da política.

Quem passa por isso sabe. Sempre que aconteceu ter de tomar uma decisão, daquelas grandes que marcam etapas na vida, tomei a certa. Julgo que tenho tido muita sorte porque, às vezes, por mais que se pense nas coisas, pode não se acertar nas decisões.

 

E aí é o quê? Intuição?

Intuição. Não me importo se disserem que sou basicamente um intuitivo. Sou. Quando vim de Inglaterra, fui para o [Banco] Português do Atlântico. Foi uma escolha intuitiva, disse que não a outro banco onde ia ganhar um pouco mais. Fiz uma carreira meteórica no Atlântico por razões várias. Uma delas foi porque não fiz tropa e não tive aquele período morto que muitos tinham. Aos 27, 28 anos estava já a bater no topo da carreira, aquela a que podia aspirar – o mais era ser director-geral e isso nem sequer se punha. A seguir aparecem duas propostas, uma feita pelo senhor Cupertino de Miranda e outra pelo senhor Bulhosa. O Cupertino de Miranda perguntou-me: «Quer ir para o Algarve, tomar conta do banco do Algarve? E ainda fica com a Lusotur». Fui lá ver com a minha mulher, uma casa formidável com piscina. A alternativa era ir tomar conta de um banco falido em Paris, a Franco-Portugaise. Aceitei o desafio do senhor Bulhosa e escolhi a Franco-Portugaise.

 

O que o fez decidir-se?

«Vai ser mais duro, mais chato, mas paciência, é um desafio: são contactos internacionais e vou aproveitar». Resultado: aos 30 anos era director-geral da Franco-Portugaise.

 

Quando se dá a Revolução, permanece em Paris. É dada como certa a sua ligação ao Partido Socialista, mas a verdade é que nunca aderiu formalmente ao partido. A política nunca o excitou verdadeiramente?

Excitou, excitou! Mas sou suficientemente frio para perceber aquilo que sou capaz de fazer e aquilo que não sou capaz de fazer. E sei do incómodo que posso trazer a um partido, uma estrutura espartilhada, com o feitio que tenho. Não consigo ser obediente e só dizer o que é suposto. Pensei: vou trazer confusão ao partido, não gosto de algumas pessoas que, no meu entender, se estão a juntar ao partido claramente por motivos de oportunidade, portanto não vou.

 

O seu regresso dá-se em 85, para o BIC. Pouco depois surge a campanha do doutor Soares e a sua subsequente ida para Macau. Mas ainda antes de passar a essa fase da sua vida, gostaria de me deter no apego ao poder. O seu poder não é eminentemente político, mas é inegável que é um homem poderoso. Porque é que o poder é uma coisa tão tentadora para si?

É mais a assumpção plena das responsabilidades do que o poder como tal. Habituei-mem a ser completamente independente. Não sou muito colegial nas decisões. Fui obrigado a tomar decisões sozinho muito cedo, decisões complicadas. Tenho mesmo dificuldade em partilhar as decisões. Continuo a assinar todos os cheques da Fundação, todos os dias.

 

Bem!

Tenho que saber minimamente o que é que se passa! Há alguma descentralização, mas faço questão em assinar todos os cheques.

 

Porque é que tem dificuldade em delegar? É a confiança?

É a vontade de saber o que se passa. A Fundação Oriente é uma criança minha, que tem 15 anos de existência. Foi-me entregue um tal património e uma tal responsabilidade que não me sinto à vontade se não controlar o processo. Tudo o que a Fundação hoje representa são compromissos que assumi e que não posso deixar de controlar. Porque para mim fazem parte da génese da Fundação, mas, se calhar, para outras pessoas não.

 

O que é preciso para confiar absolutamente numa pessoa, se é que chega a confiar absolutamente numa pessoa?

Ui... Há pessoas dentro da Fundação Oriente em quem tenho a máxima confiança. A grande maioria está cá desde o início. São pessoas que perceberam o projecto e são elas que terão de tomar, um dia, as rédeas dos destinos da Fundação.

 

Eu não estava a pensar exclusivamente nas pessoas que trabalham consigo na Fundação ou no facto de não delegar responsabilidade aqui, mas na confiança em termos mais genéricos.

Há duas, três ou quatro pessoas em quem tenho absoluta confiança, nomeadamente as mais chegadas a mim.

 

Posso perguntar quem são?

O meu irmão, o Vasco Vieira de Almeida, o Henrique Medina Carreira, a minha assistente na Fundação é uma das pessoas em quem mais confio. Coitada, vai fazer 30 anos que trabalha comigo. Começou como minha secretária. Tenho total confiança nela, tenho total confiança no meu irmão, tenho confiança em todos os meus filhos.

 

Quantos filhos tem?

Tenho doze! Tenho 4 e mais 8. Tenho uma pequenina que tem agora 23 meses, a Carlota, filha da Maria Amália – por sinal muito bonita, sai à mãe. Tenho os outros que já tinha, que têm 22, 24 e 34. E depois tenho ainda os que adoptei e que têm entre 12 e 24.

 

São os meninos da Fundação.

Não são da Fundação, são meus. Esta semana já vou no segundo jantar com eles todos.

 

Diverte-se nesses jantares?

Divirto. Às vezes há problemas, trazem uma carga chata, e é preciso contrariar algumas coisas, hábitos, ideias que têm da vida. Muitos deles são irmãos. Esse era o projecto inicial: não separar irmãos biológicos.

 

A ideia de criar uma fundação que amparasse meninos carenciados materializou-se quando?

Quando fiz 50 anos. Passei pela vida com enorme dose de sorte e intuição. Só comecei a queixar-me da vida quando morreu o meu pai, que era a pessoa de quem mais gostava (ele tinha 58, eu tinha 24). Só vim a ter outro desgosto grande com a morte da minha mulher. Uma morte depois de 8 anos de um sofrimento brutal, de uma coragem fora de série. Há uma parte que morre connosco.

 

Voltando à constituição da Fundação Monjardino, a ideia materializou-se, então, quando fez 50 anos.

Era um projecto que eu e a minha mulher acalentávamos: tomar plenamente a cargo o acolhimento de crianças abandonadas ou retiradas às famílias, proporcionando-lhes uma estrutura de vida familiar e assegurando a sua educação e acompanhamento até à inserção na vida activa. Os miúdos: em vez de deixar separar irmãos, privilegiámos o acolhimento de grupos de irmãos. Para não perderem as poucas referências que tinham. Depois havia a questão: irão constituir uma família entre si?

 

Como é que se constrói uma família, quais são os laços?

Aparentemente nunca ninguém tinha experimentado isto. Começou com uma coisa básica: como é que nos iam chamar. Não íamos impor aos miúdos que nos chamassem mãe ou pai ou o que fosse. Não éramos, de facto, pais deles, eles tinham conhecido os pais. «Como é que vocês nos querem chamar? Inventem uma coisa qualquer, porque às vezes sentimos que é difícil falarem connosco». Eles devem ter falado entre eles e um dia disseram: «Já sabemos como é que vos havemos de chamar: mãe Ana e pai Carlos». Durante anos chamaram-nos assim. A minha mulher morreu, algumas das referências que eles tinham também desapareceram, e aqui há pouco tempo deixaram cair o Carlos. Hoje todos me tratam por pai.

 

Moram consigo?

Não tenho casa para meter 12! É impossível. Vivem na casa da Fundação, onde cada um tem o seu quarto, o seu espaço, um jardim e o enquadramento de que precisam. Os biológicos moram comigo.

 

Como é que conheceu a sua mulher (Ana Sofia)?

Por termos casa na Marinha, eu ia muitas vezes à praia a Cascais. Comecei a ver uma menina de fato-de-banho verde, muito bonita, e quis saber quem era. Tínhamos uns amigos comuns e começámos a falar. Eu passava a vida a ir à loja dos gelados oferecer-lhe um gelado! Tinha ela 12 anos e eu 15. Era um namoro muito contrariado pelos pais dela.

 

Porquê?

Eu era considerado um bocado anárquico, comuna e razoavelmente cábula. Eles eram uma família muito estrita. Mas as coisas foram andando. Aos 18 anos, antes de ir para fora, acabámos. Em Inglaterra arranjei uma quantidade de sarilhos sentimentais. A certa altura fixei-me numa pessoa e estivemos quase a casar. A mãe dela disse que não achava bem que ela viesse para minha casa – quando já estávamos a viver juntos há uma série de tempo... O que é que aconteceu? Vim a Portugal, encontrei a Ana Sofia na Praça da Figueira e ficámos a olhar um para o outro. Passado um dia estávamos no nosso namoro. Seguiram-se mais uns anos até casarmos e por fim estivemos casados 32 anos.

 

Disse-me que o jogo não tomou nunca conta de si. E o amor? Importa-se que tome?

Vou responder-lhe talvez o mais sinceramente que respondi a qualquer pessoa que me fez essa pergunta. Pode tomar-me. Toma, cá dentro toma. E muito. Amachuca-me bastante. Mas é difícil as pessoas perceberem que estou apanhado, não dou grandes sinais. Há quem se queixe que não exteriorizo muito aquilo que sinto... Nem sei porque é que sou assim.

 

Pode ser para dar de si a imagem de homem poderoso. O homem poderoso, supostamente, não é tão vulnerável ao amor.

Talvez, mas não olho para o poder dessa forma. Sei que tenho algum poder. Também sei que tenho mais do que alguma vez pensei que viria a ter, mas durante muitos anos não tive essa noção. Sou totalmente desprendido. Não visto uma carapaça, não me faço diferente para falar com o presidente da República ou com o porteiro da Fundação ou com alguém que está na rua a pedir.

 

É o complexo por ter sido um favorecido? É a culpa de ter nascido bem?

Talvez seja. Mas é também ter a noção do país em que se vive, das dificuldades, das carências... A maior parte das pessoas é egoísta e não liga nenhuma. Mas sempre tive essa preocupação e não concebo a possibilidade de passar pela vida sem dar à sociedade qualquer coisa do que tive a mais. Tive mais sorte que os outros. Há um equilíbrio que se deve tentar fazer.

 

Nessa preocupação ocupa-o também aquilo que ficará de si? O dinheiro e o poder, por muito inebriantes, dizem respeito à vida material. O que fica para além da morte é uma imagem, uma memória.

Não penso no que está para além da vida, mas sou capaz de ir pedir ao presidente da república, para dar uma condecoração, nem que seja póstuma, a alguém. Por exemplo, o meu pai é uma pessoa mal conhecida que sempre lutou muito para que Portugal se tornasse num país democrático. Tinha uma atitude de grande solidariedade com as pessoas que viviam na clandestinidade, sobretudo no exercício da sua profissão. Durante anos e anos, entravam na clínica com nomes postos, fazia-lhes o parto e saíam, claro está, sem pagar nada. Morreu em 1969. Estava muito ligado a Cascais e um dia deram o nome dele a uma praça.

 

Isso comoveu-o?

Comoveu. Sou piegas com a memória da minha mulher e do meu pai.

 

Qual é a melhor imagem que tem do seu pai? Essa relação deve tê-lo formado.

Completamente. A melhor imagem que tenho do meu pai é a da sua bonomia, amizade, e humanidade. Tenho mais o feitio do meu pai, embora, nalgumas coisas – teimosias, por exemplo – tenha herdado o lado Pulido Valente. Herdei do meu pai uma grande preocupação em relação aos outros – coisa que também existe na outra parte da família, mas de uma forma mais dura. Tinham uma preocupação social, que, na prática, se traduzia em pertencerem a partidos políticos muito de esquerda. Mas no terreno, directamente e não através da política, o meu pai era muito mais actuante.

 

Daí que tenha nascido consigo esse lado pragmático.

Exacto. Vou mostrar-lhe uma fotografia dele.

 

Mostre.

A ligação do meu pai comigo era tão grande, o carinho... Esta fotografia foi tirada no dia em que o meu pai comprou a casa da [Quinta da] Marinha, tinha eu cinco anos.

 

O seu pai, tendo um porte distinto e aristocrático, não tem um porte altivo.

Era um bonzarrão. Ainda hoje há pessoas que vêm ter comigo, «O senhor é tão parecido com o seu pai e tenho tal admiração pelo seu pai que não podia deixar de o cumprimentar». Entregou-se completamente à profissão, fez uma casa magnífica, o seu sonho, onde só viveu 3 anos antes de morrer.

 

Tiveram uma excelente vida fruto do trabalho dele? Havia heranças?

Havia uma herança da minha avó, mãe do meu pai, que era grande, mas a minha avó morreu em 62 e o meu pai em 69.

 

Usufruiram desse dinheiro muito pouco tempo.

E ainda houve uns problemas financeiros com uma tia...

 

A excelente vida foi, então, por esforço dele.

Claramente. Morreu por causa disso. Não tinha grande cuidado com a saúde, não descansava o mínimo, era chamado várias vezes durante a noite para assistir às suas doentes.

 

Isso perturba-o? A ideia de poder trabalhar demasiado, para ganhar demasiado e depois morrer de um momento para o outro?

Eu não penso no que ganho. Mas já vou pensando na morte e em ir deixando as coisas arrumadas...

 

Sabe quanto dinheiro tem?

Não. Tenho uma ideia aproximada, é evidente. Por acaso aqui há tempos estive a tentar saber por causa dos meus filhos. As pessoas dizem: «Não ligas porque tens dinheiro». É verdade. Não ligo ao meu dinheiro, ao da Fundação ligo e de que maneira! Tenho dinheiro, mas não tenho as fortunas que há para aí. Se quisesse seguir esse trajecto, quando vim para Portugal, tinha aceite uma proposta que o Stanley [Ho] me fez quando saí de Macau.

 

Que proposta?

Disse ao Stanley que não podia aceitar por muito tentadora que fosse a proposta, que eu nem sabia qual era. «Tenho uma boa relação consigo, você cumpriu sempre comigo como governante deste território em tudo e mais alguma coisa». Ele ultrapassava as contrapartidas ao território, bastava pedir-lhe: «Preciso de mais tanto para a construção do aeroporto». Para a ponte, para o terminal, para o turismo. Ele dava e não era obrigado a dar. Sempre se portou ao milímetro.

 

Estávamos a falar de não se interessar pelo dinheiro.

Tenho de admitir que não me interesso pelo dinheiro porque tenho o dinheiro suficiente para fazer aquilo que me dá na cabeça, que também não é nada de especial, a não ser os carros, e mesmo esses já há uns anos que não compro. Vestir-me, visto-me mal e visto-me na China.

 

É verdade aquela coisa de não comprar fatos em Lisboa, porque são muito caros, e depois recorrer aos alfaiates chineses?

É. Encomendei dois fatos na China, vou prová-los segunda-feira, quando lá chegar.

 

Mas isso é pura sovinice? Compõe um personagem com graça, o escusar-se a gastar dinheiro num bom alfaiate e preferir fazê-lo na China.

Não é tanto pelo dinheiro que gasto. É pelo valor que as coisas têm. Um fato em Macau custa-me 35 contos.

 

Num grande alfaiate, com um tecido extraordinário?

Fora de série. Chego cá e para o mesmo fato tenho de pagar 180 contos ou 190 contos! Sinceramente não consigo deixar de comprar os meus fatos lá. Um sobretudo de caxemira, neste momento em Macau, não chega a 50 contos. Uma casaca custou-me 30 contos. Cá custa 250. Porque é que hei-de dar tanto dinheiro por uma coisa que posso comprar por muito menos?

 

Não compraria se a qualidade fosse inferior, certo? Não me diga que não há a preocupação da qualidade.

Há. O tecido do casaco que trago vestido hoje, por exemplo, é bom. E é de Macau. Até a camisa é de Macau.

 

Então o dinheiro serve para quê?       

Para comprar coisas e para dar gozo, claro. Não me importo nada de comprar um computador para cada um dos meus filhos. Entre o mês passado e este mês vou comprar duas casas para dois filhos. Aí está para que serve o dinheiro.

 

Vai obrigá-los a pagar a Sisa?

É difícil pôr um filho que ganha 110 contos por mês a pagar seja o que for...

 

Faz-lhe espécie ter um filho que ganha tão mal?

Gostava que ganhasse bem. Mas sou incapaz de meter cunhas para que ganhe mais. De maneira que há-de ganhar aquilo e depois há-de com certeza subir e ganhar mais. A minha filha mais velha a mesma coisa. As casas ficam em nome deles, mas fico usufrutuário. Não é que eles a vão alienar, que são muito certinhos. Mas é um princípio, para todos.

 

Confiança?

Não é confiança. É talvez por pensar também na geração que se segue – os meus netos que já são quatro...

 

Fale-me do primeiro encontro com o Stanley Ho.

Da primeira vez que o vi não sabia quem era.

 

O encontro com ele mudou a sua vida?

Não! Porque é que havia de ter mudado a minha vida?

 

Porque tenho a impressão que a relação com o Oriente mudou a sua vida. Foi uma orientação nova que se tornou dominante.

Sim, mas isso não tem nada a ver com o Stanley. Tem a ver com a decisão de ir para Macau, perceber o que é que era a política – o bom e o mau.

 

Mas foi porquê? Já não lhe dava um gozo supremo ganhar dinheiro e continuar a subir nos bancos?

Queria enfrentar algo que nunca tinha enfrentado. O doutor Soares já me tinha convidado duas vezes para ir para o governo e eu tinha dito que não. Numa terceira vez perguntou-me se queria ir para Macau e fui. O Stanley: conheci-o em 67, 68, num dia em que a minha sogra me pediu para receber lá em casa uns senhores chineses que estavam interessados em comprar um terreno na Marinha; era suposto que lhes mostrasse a zona.

 

Qual era a ligação da sua sogra com eles?

A minha sogra tinha um primo que era casado com uma meia-irmã da mulher do Stanley!

 

É incrível.

Meti os senhores no carro e eles andaram a ver a Marinha. Fui falar com os Champalimauds e ele comprou um terreno muito perto da minha casa. E assim conheci o Stanley Ho.

 

Nesse primeiro contacto, ele impressionou-o?

Não! Vim a conhecê-lo um dia antes da minha posse cá. Apareceu por aí, pediu para falar comigo, falou de Macau, eu disse-lhe que conhecia mal Macau.

 

Havia já aquela aura de corrupção sobre o território e portanto toda a suspeição à volta do personagem?

Havia. Do personagem não. Do personagem havia a ligação ao jogo, que é evidente. Ele era obviamente a pessoa que mais poder tinha em Macau. Era e é. Tivemos uma conversa simpática. As pessoas escandalizavam-se muito com coisas parvas. Por exemplo, um dia ele pediu para ser recebido lá no Palácio, e depois íamos para o mesmo almoço. Em vez de estar a gastar gasolina do meu carro, ele tinha o Rolls Royce à porta do palácio, perguntei-lhe «Dá-me uma boleia?» Nunca ninguém do governo tinha ousado ir num carro com o Stanley para onde quer que fosse!

 

Não temia que o colassem a ele?

Eu estava lá para administrar o Território, queria lá saber se não era suposto andar de carro com o Stanley Ho! Ainda por cima ele andava de Rolls Royce, que é um carro lindo. Claro que depois as pessoas falavam, mas não estava nada ralado. Se tivesse querido ganhar dinheiro bastava... bastava ser o braço-direito dele.

 

O testa de ferro.

Nunca poderia ser testa de ferro de quem quer que fosse. Não tenho feitio.

 

O que é que impressiona num homem como Stanley Ho? E o senhor, chegado ao território, ainda jovem, como é que tentou impressioná-lo?

Normalmente as pessoas têm com o Stanley uma relação de interesse. Eu queria que ele percebesse claramente que não teria nunca essa relação com ele. Isso veio a verificar-se numa história rocambolesca no início da nossa relação. Logo que cheguei a Macau, sofri pressões para não assinar o contrato do jogo a não ser que houvesse outras contrapartidas. Disse que não e recebi alguns amargos de boca por causa disso. Depois disse-lhe a ele: «Quero dizer-lhe que fui pressionado desta forma. Não faço o contrato nestas condições. As condições são estas e não há aqui nada que condicione o contrato a não ser as contrapartidas para o Território».

 

A suspeição é como uma névoa. Paira sobre a vida da pessoa e transforma-se numa coisa peganhenta.

É incómodo. Mas a vida é o que é, encontrei na vida as pessoas que encontrei, não posso dizer que não tive negociações com este ou aquele porque tive e tinha de ter_ fazia parte das minhas funções.

 

O que é que não seria capaz de fazer? Qual é o seu limite?

Em termos de quê?

 

De uma coisa de que se arrependesse a seguir.

Não favoreço amigos meus. Seja em Macau, seja aqui, seja onde for. Ainda no outro dia apareceu aí um pedido que não podia aceitar no seio da Fundação, mas que era feito por uma pessoa que me merecia simpatia e admiração; de modo que peguei num cheque meu e dei. É frequente isto acontecer. Entalam-me, mas paciência.

 

Foi por causa da sua amizade com Mário Soares, que conhece desde criança...

Desde os cinco anos.

 

Tinham uma relação de amizade ou a relação foi estreitada quando Soares estava no exílio em Paris?

Foi estreitada em Paris, mas já o conhecia muito bem. Foi, até, meu professor no Colégio Moderno. Ensinava História.

 

Foi mercê dessa relação próxima com Mário Soares que foi para Macau.

Foi.

 

Quando foi para Macau, ainda que a sua função fosse a de secretário, tinha a ambição de ser governador?

O primeiro convite que tive para ir, depois de convidarem Fraústo da Silva, que não aceitou, foi para ir como governador. Não foi o Dr. Soares que me fez o convite, foi uma terceira pessoa. Passado semanas disseram-me: «Olhe, dá mais jeito que seja uma pessoa com um perfil assim e assim e que você vá como número dois». Depois houve desentendimentos ao nível do Governo e polémicas, nomeadamente, com o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa.

 

Essa polémica com Marcelo Rebelo de Sousa foi sobretudo dolorosa por causa da sua mulher? Depois disso, ela não quis permanecer no território.

Foi. E por mim. Achei que era um injustiça, como de resto se veio a provar.

 

Porque é que a sua mulher ficou tão afectada?

Era a nossa imagem. Ela conhecia a história toda, era das poucas pessoas com quem podia falar. Em Macau não se podia falar com ninguém. A seguir há uma demissão no Governo. O governador solidariza-se e demite-se também. A partir do momento em que se demite o governador, cai toda a equipa. Aí, toda a gente começou a especular se ficava como governador ou não. Presumo que o PS não tenha querido que ficasse.

 

Fazia todo o sentido que ficasse, ou não?

Não. Fazia todo o sentido que determinadas forças dentro do PS não quisessem que ficasse. Não se esqueça que mandei prender uma pessoa que foi buscar dinheiro para o PS... Como calcula, o PS não ficou muito bem disposto comigo.

 

Está bem. Mas quem é que mandava no PS? Não era Mário Soares?

Na altura não. Foi uma das razões principais para não ter sido sequer equacionado seriamente para ser governador de Macau. Ao que respondo que eu e a Ana já tínhamos decidido que não íamos ficar a Macau.

 

Quer-me dizer que foi muito empolado o sentimento de ter sido preterido?

Para já, fui governador durante uma série de tempo...


Ainda que o fosse na prática, não era realmente o governador.

Quero lá saber!

 

Não quer mesmo? Não é significativo estar empossado, o reconhecimento público?

Não. Deu-me gozo ter lançado e ter tornado irreversível a ideia do aeroporto, deu-me gozo acabar finalmente o chamado porto de águas profundas, o terminal, lançar a construção da nova ponte. Todas as grandes obras de infra-estrutura foram lançadas no meu tempo. Deu-me um gozo monumental em 14 meses tudo o que consegui fazer. Macau marcou-me muito, como é evidente. Mas isto que faço hoje, e que faço há 15 anos, não trocava por nada deste mundo.

 

Antes de sair de Macau, dessa vivência tão intensa, queria justamente saber porque é que foi tão intensa? Como é que se pode aprender tanto em 14 meses, como é que a vida pode mudar tanto em 14 meses?

Aprende-se muito. Eu ia um bocado imberbe em termos de política...

 

É assim tão diferente negociar em política e negociar em dinheiro?

É, é. As leis da negociação do dinheiro são muito mais estreitas.

 

As políticas são mais sinuosas?

Muito. E as cumplicidades que existem...

 

Chegámos a um ponto muito importante, que é o do envolvimento dos afectos e das pessoas nas negociações. Mas isso não é também válido para a alta finança?

Vou falar de uma pessoa que admiro e de quem sou amigo: o Ricardo Salgado. Basicamente tenho confiança nele e ele tem confiança em mim. Em qualquer operação que façamos em conjunto, o que é negociado é o que é integralmente cumprido. Cada um sabe exactamente onde está e não há surpresas. Na política não é assim. Na política o que é perverso é que estamos a discutir um determinado negócio e às duas por três começamos a ver que aquilo já é uma amálgama de interesses que não têm a ver com a política nem com nada. Têm a ver com os interesses de cada um.

 

Em Macau a teia é ainda mais intrincada.

É. E às vezes não sabemos onde acaba a teia...

 

Parece que estamos num filme de espionagem! Em última instância não se confia em ninguém?

Foi o que aconteceu comigo. A certa altura, quando o governador Pinto Machado saíu, o volume de trabalho era enorme. Às vezes estava a despachar até às 4 da manhã! Mesmo assim, pura e simplesmente não deleguei poderes. «Enquanto não vier o novo governador, as decisões passam todas por mim». Em vez de me deitar às 4 da manhã, passei a deitar-me às 7.

 

Quanto tempo demora a perceber a têmpera de uma pessoa que tem à sua frente? A perceber se ela é confiável ou não?

Normalmente faço um jogo. A maneira mais rápida de saber se a pessoa é confiável ou não, é, à cabeça, dar-lhe responsabilidades numa tarefa de média importância e ir controlando. A avaliação tem de ser rápida porque tenho pouco tempo.

 

Pouco tempo?

Para os projectos que me dão gozo. Ter uma rede de cuidados continuados com as misericórdias, fazer um grande fórum da sociedade civil...

 

Isso é para o seu pai se orgulhar de si, não é? Esse lado que mexe com crianças e idosos, tem um pouco que ver com a profissão do seu pai. Por acaso, é o lado que lhe dá mais gozo.

É, de longe.

 

Estava à espera que toda a sua postura fosse mais ansiosa e acidentada.

Não sou uma pessoa muito ansiosa. Tenho uma postura que me tem custado algumas críticas e ataques. Sou um bocado intransigente em relação a valores que considero muito importantes. No diálogo, normalmente decido sempre a favor dos mais fracos. Preocupo-me mais com um atraso no ordenado da pessoa que ganha menos do que na pessoa que ganha mais.

 

Porque é que não ensina os seus filhos, que ganham mal, a ganhar mais dinheiro? Imagino que não se ganhe dinheiro, à séria, trabalhando. Dinheiro à séria ganha-se multiplicando dinheiro, jogando com dinheiro.

As fortunas, a partir de uma certa altura, são sempre suspeitas. Há sempre um grão...

 

Menos escrupuloso?

Hum. O que aprendi foi a guardar dinheiro e a investir em coisas como casas, carros. Os meus filhos, por reacção à maneira como sou, são pessoas que se contentam com muito pouco. Esquisito. Há um que talvez me deixe ajudá-lo um bocadinho mais... Mas os outros, inclusivamente para não pensarem que há cunhas, quando vão a um emprego, põem só o nome da mãe. Ganham mal e vivem uma vida muito modesta no dia-a-dia.

 

Que valores são os que se transmitem aos filhos?

O valor da família. Vivíamos muito em circuito fechado. Havia uma cumplicidade permanente entre nós, que fez com que ficassem um bocado perdidos depois da mãe desaparecer. Mas o que ainda salva tudo isto é este espírito de família que temos.

 

Isso traduz-se em quê?

Mesmo a mais velha, que tem 34 anos, e os outros todos, telefonam-me a pedir conselho. De manhã, à tarde ou à noite. Entre eles acontecem algumas picardias de vez em quando, mas têm uma relação muito próxima.

 

Fala disso num tom embevecido. É o que realmente o enche de orgulho?

Sim. A minha filha mais nova, que tem vinte e três meses, fala comigo como se tivesse a idade dela. Chama-me Carlitos. E eu lá vou, com os meus sessenta anos.

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícas em Junho de 2002

Ed Motta

08.12.14

A mãe conta que quando era pequeno não gostava das músicas de que as outras crianças gostavam. Gostava de Stevie Wonder, e em particular de «You are the sunshine of my life», que foi gravado no ano em que nasceu, há cerca de 30 anos.

A referência a Stevie Wonder aparece nas primeiras linhas da biografia que escreveu para a sua página oficial na net (www.edmotta.com). «Nasci no bairro da Tijuca, em 71. Minha mãe conta». A história deste brasileiro podia ser começada de várias maneiras. Mas neste enunciado está, ainda, o essencial: a mãe, irmã mais velha de Tim Maia, por via de quem recebeu soul, funk e discos raros. O Brasil classe média, que vive na Tijuca. Stevie Wonder e a essência da música negra.

Ed Motta é brasileiro. Não é o cara convencional, que se arrasta sob o sol do calçadão, bebendo chope gelado em Copacabana; (ainda que na sua vida tudo caiba). Ele odeia essa imagem mitificada do Brasil uníssono, «dos discos que têm na capa meninos jogando bola», odeia. A sua música é uma outra fatia do Brasil que exporta samba e bossa nova. A sua música é como uma fatia de um bolo de chocolate! Está carregado de soul e de tudo o que é bom na música negra. O sabor será certamente o do chocolate. (Tim Maia, o tio, imortalizou «Chocolate», recriado por Marisa Monte em início de carreira. Mas a relação com o tio, como conta na entrevista, não era famosa; foi por causa da fama que deixou de ser famosa, como a seguir vão poder ler).

Do que ele fala é de leite-creme, de vinho. Dos vinis que tem em casa. Da cadeira estilizada que tem rente ao gira-discos. Dos filmes e da banda desenhada que tem junto a si. Do programa de rádio «Empoeirado», audível a partir do seu site. Do que precisa um homem para ser feliz? «Ou estou lendo, ou estou vendo um filme, ou estou namorando com a minha mulher». Antes de cada uma destas coisas, está ouvindo, está tocando, está compondo, está cantando.

«Dwitza» é o álbum que o resume. Eclético, conceptual. Caetano Veloso classificou o disco do seguinte modo: «Este é um marco na história de nossa música instrumental - mesmo que um dos principais instrumentos do grupo seja a própria voz de Ed». E sobre o autor: «Ed Motta é possivelmente o mais exuberante talento musical que se desenvolveu no Brasil nos anos 1990. Ligado no melhor da música negra (e não só negra) norte-americana dos anos setenta (ele é um verdadeiro erudito em repertório, gravações e técnicas do período), Ed soube alimentar-se do que havia de mais consistente na experiência brasileira de aproximação criativa a esses estilos».  

«Dwitza» foi lançado no Brasil no final do ano passado. Não há certezas quanto à sua edição em Portugal. Em Março o disco foi apresentado em Londres. Apresentar um disco como «Dwitza» significa algumas das seguintes coisas. Distribuição a cargo da WhatMusic, editora que aposta na reedição de raridades da música brasileira, jazz e soul. Encontro com DJ’s famosos, como Patrick Forge ou Alex Attias. Promoção junto da comunicação social. Concerto no Jazz Cafe.

Depois do concerto, aconteceu uma daquelas coisas. No apartamento de Cássia, correspondente da Globo em Londres, uma festa improvisada a que assistiu a comunidade brasileira, evocava os míticos anos 50 em Copacabana, os serões em que se dizia: «O que você está ouvindo é a batida sincopada da bossa nova».

Agarrado ao violão, Ed Motta fez uma apresentação intimista do seu disco. Ao lado, uma garrafa com o seu vinho francês.

  

O que é que o fez interessar-se pela música?

Senti curiosidade pela música bem criança, bem pequeno mesmo. Com cinco, seis anos de idade, minha mãe me levava nos shows do Tim Maia, seu irmão caçula [mais novo]. Quando ela estava me esperando, Tim Maia tinha um grupo com o Cassiano, chamado Sputnicks, e ensaiavam na casa do meu pai e da minha mãe. O meu contacto com a música começa por aí. Tem uma forte influência da teia familiar.

 

Lembra-se de pessoas que se davam com a família?

Na casa da minha tia, no subúrbio do Rio de Janeiro, tinha sempre uns churrascos, famosos churrascos. Ia o Robson Jorge, o Lincoln Olivetti, o Jamil Joanes, o baixista da Black Rio. Eu vinha da Tijuca; a Tijuca é aquela coisa que fica no meio: não é nem a zona sul, (o lado rico do Rio), nem é o subúrbio. Comecei brincando com o violão e com a bateria. No Clube Municipal do Rio de Janeiro tinha um concurso para crianças. Crianças actores, actrizes, crianças que tocavam, enfim, crianças que faziam coisas no campo da arte. Quando tinha oito anos, toquei bateria, com uma espécie de big band. Tinha um prémio, e ganhei o prémio! Eu era um King Kong importado!, um King Kong americano que se mexia, acendia o olho, (ficava vermelho), falava umas coisas. Daí, ganhei um violão do Tim Maia.

 

O Tim Maia é seu tio. Foi uma influência decisiva?

Foi. Infelizmente a gente não tinha um bom relacionamento pessoal depois que me tornei músico. Antes de ser Ed Motta, quando era Eduardo Motta, a gente se dava muito bem. Ele me adorava, muito por causa da música, dos discos. Deu todos os seus discos para a minha mãe, e foi aí, também, que eu comecei a ter interesse pela coisa de coleccionar, de comprar discos. Tinha Curtis Mayfield, Sly and Family Stone... Infelizmente, quando tinha onze, doze anos estava tocando guitarra, e o meu negócio era só hard rock e blues inglês; troquei todos esses discos de soul music, fiquei com pouquíssimos.

 

Quando passou a ser Ed Motta a relação degradou-se. Eram ciúmes musicais?

É, ciúmes. Ciúmes musicais, ciúmes da minha relação com a minha mãe – ele era muito apegado à minha mãe.

 

Tim Maia era conhecido por ter um temperamento difícil.

Também. Tinha a coisa da emoção, aquela emoção que o Brasil tem e que mistura África com a melancolia portuguesa, mistura o Fela Kuti [músico inventor do afro-beat] com as guitarras portuguesas! Aquele chororó que a gente tem, a gente adora chorar.

 

E a bossa nova, foi também uma influência?

Muito, muito, harmonicamente. Nunca fiz uma coisa, idiomaticamente falando, dentro da bossa nova. Mas aquilo que gravei hoje com o Alex Attias, por exemplo, a composição é completamente inspirada pela bossa nova, e pela visão que os americanos tinham da bossa nova – como os primeiros discos do Sérgio Mendes ou do Gary McFarland.

 

Quando nos encontrámos há uns anos, você disse-me que era o brasileiro mais europeu que conhecia. Ainda está afastado da brasilidade, da mais pura cultura brasileira?

São Paulo tem uma influência forte dos hábitos europeus, das metrópoles europeias. Diria que são hábitos cosmopolitas. Sempre estive mais ligado a isso. Sempre brinco e digo: uma loja de discos me emociona mais do que uma paisagem!, ou um bom leite-creme, ou um bom filme. S. Paulo tem prédio, é bastante industrial. O Rio tem essa relação com a natureza. A comparação é mais fácil se disser que o Rio é Roma e S. Paulo Milão, ou Lisboa e Porto. Faço esta distinção em função dos vinhos. No sul de Portugal, os vinhos, por mais encorpados que sejam, quando jovens, são mais frutados; os vinhos acima do Douro são mais austeros. A gastronomia também, tem as tripas e tal.

 

De onde vem o seu lado epicurista?

Tem uma história de família. O meu avô, pai do Tim Maia, era cozinheiro de hotel. Foi cozinheiro de um conde francês, fazia muito bem todos os molhos, o Sauce Hollandaise, o Demi-Glace... Não o conheci, meu avô morreu na década de 60. Minha mãe, contam, era a filha predilecta, e sempre cozinhou muito bem. Me ensinou a olhar a comida como uma obra de arte.

 

Consome vinhos e comida com a mesma atenção com que ouve música? A escolha é criteriosa?

Posso dizer que como comida como escuto música. Quando escuto música, posso ouvir Humble Pie, Free, The Who, Joni Mitchell, como posso ouvir jazz, rare funk, música erudita. A mesma coisa contece na comida; posso ter uma relação «Olha, vamos comer rapidinho», como uma relação artística, como se fosse assistir a um filme. Na minha vida tem de tudo.

 

O seu posicionamento na música reflecte também essa diversidade. O disco mais recente corta com os dois discos anteriores, discos pop. Este não é um disco de massas. Qual espera que seja a reacção do mercado brasileiro?

O mercado está reagindo de uma maneira que está me surpreendendo. Mas é uma reacção muito em função dos discos anteriores, que venderam muito, que tiveram um hit muito grande no rádio.

 

O seu sucesso rebentou em 97.

É. O meu primeiro disco foi super hit no Brasil e fiz muitos shows. Depois tive um hiato. Depois veio o estouro das duas músicas [álbum «Manuel prático para festas, bailes e afins», 1997]. Foi quando fui a Portugal pela primeira vez.

 

Como é que convenceu a editora a deixá-lo fazer este disco novo, tão conceptual, se já existe uma expectativa no mercado em relação a si?

Existe um acordo com a Universal. No Brasil os artistas têm aquilo que se chama «luva»; como se fosse um «advance». Tem gente que pede sei lá o quê! Um Audi que voa!, férias em Capri! Eu falei «Não, eu quero um disco, um disco com um orçamento pequeno, que vou fazer rápido, dentro de um tempo legal, um mês para gravar e mixar. Um disco altamente conceptual sem nenhum tipo de compromisso com um mercado específico».

 

A editora ficou surpreendida e assustada?

Não, não. Isso foi uma coisa de contrato. Isso foi o Audi que a cantora Y vai pedir.

 

Uma coisa é ter um Audi, outra coisa é ter um disco no mercado, com as pessoas a perguntarem-se «O que é que vem a seguir»?

Exactamente. Uma coisa boa para mim é que o disco vendeu 25 mil cópias no espaço de um mês e pouco. Dentro dos números da gravadora, vendeu mais ou menos igual ao que vende meu disco pop. Estou aqui, em Londres, fazendo isto tudo, e há um reflexo no Brasil, se fala nos jornais do Brasil. Se passo a fazer isso... É o meu sonho. Vir aqui na Europa, ir aos Estados Unidos, ir ao Japão onde nunca fui. Encontrar pessoas, tocar, fazer mais ou menos o que faço lá mas noutro território.

 

A Universal, que é uma «major», pressiona-o?

Para a Universal, que é a gravadora que mais vende no Brasil, a número um, isto é uma coisa «cult», é uma lata de caviar beluga: custa caro mas é chique servir, entendeu? É mais ou menos isso. Aqui em Londres teve o jantar com o pessoal do consulado, uma série de coisas acontecendo. Existe um interesse, fico muito honrado. O que vou falar é uma audácia: na década de 60 o Tom Jobim teve uma ajuda dos consulados americanos. O Tom é fora de série, um génio completo, um dos maiores compositores que o mundo já conheceu, em qualquer estilo, em qualquer país. Eu, coitado de mim, não chego nem. Mas, se a gente consegue uma coisa dessas, ia ser foda!, ia ser engraçado! Tem uma ajuda governamental para trabalhar aqui um lado do Brasil que não é o do estereótipo do Brasil.

 

Mas quem distribui o seu disco em Inglaterra é uma pequena editora, a WhatMusic.

Quis fazer o disco aqui pela WhatMusic. Eles estão lançando de tudo! Vão lançar um disco do Edson Machado, «Cobras», que é um disco de que eu nunca tinha ouvido falar. E você sabe que sou um coleccionador de milhares de discos. É meio snob, mas aqui, como nos Estados Unidos, sempre tem um disco que a gente não conhece.

 

Como é que a nova geração de consumidores brasileiros vê estas reedições e estes nomes? Estão atentos ou passa-lhes ao lado?

Tem muitas lojas vendendo vinil, vinil da Simple Vynil, vinil inglês.

 

Há um lado constante no seu discurso que remete para um universo mais americanizado. Porquê?

Sou um cara muito americanizado, sou um cara completamente influenciado pela cultura americana. Falando particularmente de música, o Brasil também é muito americanizado, tem essa coisa competitiva: quem é que vai tocar mais, quem é que sabe o melhor acorde. Tem de ser o melhor, você tem de ser o melhor. Todo o mundo tem de tocar prá caralho e ler muito e rápido e tudo, e tem que ser foda. Se não for, tem outra cara vindo na frente. Que nem uma guerra. Aqui em Inglaterra, por exemplo, não tem essa luta tecnicista, que eu acho interessante também, embora não seja um «shock player», não seja o Herbie Hancock. Sou um compositor, arranjador, produtor, faço as minhas coisas

 

Este disco novo é um reflexo do que ouve todos os dias, da sua faceta de coleccionador de discos?

Ah sim, com certeza.

 

Como é o seu dia a dia? Como é, no dia a dia, a relação com os seus discos?

De manhã geralmente toco piano. Violão tenho tocado pouco; toco nas viagens. Toco um pouquinho, mas não fico forçando nada. 95% das músicas que fiz na minha vida foram feitas de manhã cedo, bem cedo mesmo. Quando não estou fazendo shows, posso acordar às sete, oito da manhã, que é a hora a que mais gosto de tocar piano.

 

Quando está a tocar, tem por vezes o impulso de ouvir um disco, levanta-se e vai ouvi-lo?

O que eu escuto não me influencia na composição de um acorde. Estou a ouvir um disco do Doug Hammond, por exemplo, e tem uma atmosfera que a música me traz. Não vou copiar pensando naquilo que estava ouvindo. Não. Mas há um clima e às vezes me inspira a ir para o piano. Ou não. Posso simplesmente abrir uma garrafa de vinho, tomar e ouvir. O mesmo quando você lê muito: o que você fala é o que você lê, o que você é.

 

Quando se lê, lê-se, apenas, exige uma dedicação absoluta. A relação com a música, na maior parte das pessoas, não é exclusivista. No seu caso, quando ouve música, faz outras coisas ao mesmo tempo?

Tenho esse tratamento com a música: nunca estou fazendo outra coisa quando estou ouvindo música. Se acontecer, é muito raro, muito raro mesmo. Quando vêm amigos a casa... Demorei muito tempo a conseguir isso. Hoje em dia estou mais tranquilo, fiz 30 anos, estou menos radical. A grande mudança na minha vida, com os 30 anos, é que se vem alguém jantar na minha casa, boto um som de fundo e consigo conversar. Eu não conseguia fazer isso de jeito nenhum! Nunca consegui botar uma música e falar uma palavra em cima. Mas, cara, eu escuto muita, muita música, muito vinil. Ou estou tocando, ou estou vendo um filme, ou estou lendo. Ou estou namorando com a minha mulher. São as coisas que faço na minha vida.

 

Consegue adormecer ouvindo música?

Não! Não consigo dormir nem consigo transar. Se for a melhor música do mundo, concerteza vou falhar. Se for a pior, vou falhar também. Qualquer som que vier, eu vou falhar. Se vier um pássaro, piu piu piu, falho na hora!, acabou! A... Como é que se chama aquilo que a gente comeu no outro dia?

 

Alheira.

A alheira cai. [gargalhada] Um pouco de porno, «porno side». Uma alheira parece um big croquete.

 

Quais são as suas preferências?

Com quase tudo na vida, é difícil falar qual é o meu favorito. Igual à cor: eu não tenho uma cor favorita, eu gosto da combinação das cores.  

 

Tem interlocutor para falar sobre música? Pessoas a quem pode contar o entusiasmo pelas descobertas recentes?

Poucos, poucos. Finalmente consegui um pouco isso através do meu programa de rádio. Minha mulher, gosta muito; mas não fica com essa coisa que a gente fica, quem tocou, quem não tocou, o ano, o disco, a capa, bla bla. Ela adora desenhar ouvindo Weldon Irvine. Quando quis trocar os meus cd’s por vinil, ela falou «O Weldon Irvine não pode trocar». Tenho quatro amigos, cada um deles gosta especificamente de uma coisa. Eu gosto de tudo aquilo. Tenho um amigo que só escuta hard rock, blues e rock inglês; e a gente fica falando só sobre isso. Tenho um amigo que só gosta de jazz, é uma enciclopédia ambulante, vou falar o nome dele, Luis Fernando Borges, é um absurdo o que ele sabe. Tenho um amigo do colégio que só gosta de soul funk. Eu gosto de uma certa mistura. Do tipo, compro disco de banda militar inglesa, John Philip Sousa, e escuto mesmo! Não é negócio para samplear. É negócio para ouvir, para compreender como John Philip Sousa compõe.

 

Bom, não são muitos interlocutores.

Sempre fui meio assim, meio sozinho. A gente está falando de música, não é? Porque tenho meus amigos do vinho; encontramo-nos uma vez por semana para degustar vinhos. E tem a coisa dos quadrinhos, da banda desenhada, que adoro, e as pessoas da banda desenhada. Todos nós ensinamos coisas a todos nós, o tempo todo. Todos os meus amigos me trazem informações novas a respeito de cada um desses universos, e eu também tenho informações novas. Me interesso por cada um deles, profundamente: tenho de conhecer aquilo pra cacete, tenho de ser professor daquilo.

 

O seu conhecimento resulta muito apurado, sobretudo na música. Quando faz referências muito específicas, importa-se com o facto de as pessoas o acompanharem?

Não me ligo muito. Fico tentando que as pessoas tenham a curiosidade de saber o que é aquilo de que estou falando, (se não sabem). Muitas vezes soa a coisa snob, no Brasil é visto como coisa snob, «Esse cara esqueceu da gente».

 

De certo modo, é o sentimento que teve quando decidiu gravar o disco: se gostarem gostam, se não gostarem, paciência.

É. Se gostarem, puxa vida, agradeço eternamente a cada ser humano que pegou o dinheiro suado do trabalho e comprou esse disco. Mas a arte de verdade não pode ser feita pensando em agradar. Penso que nem Stravinsky pensava: pode ser bonito, pode ser feio, pode ser triste, pode ser rápido, pode ser para uma festa, pode ser para ouvir, pode ser para estudar, pode ser para um monte de coisas. Este disco tem um pouco essa pretensão. Tem uma música super-despretensiosa, quase uma brincadeira, e tem a última música, por exemplo, com uma harmonia intrincadíssima, parece que fui estudar harmonia na Toscânia! Mas eu nunca estudei, é tudo de ouvido.

 

Qual é o seu método? Como apresenta as suas ideias aos músicos?

Como dizia o Godard, «Um grande artista é um ditador potencial». Ou eu mando ou eu obedeço, nunca decido nada junto. Obedecer: «O que é que é?, ah é isso, vamos fazer». Nos meus discos, faço do meu jeito. Isso na música. Na vida, sou um cara nada intransigente.

 

Nunca teve nenhum produtor a trabalhar consigo?

Já tentei, mas não deu certo. Minha personalidade é de leonino, é «lion». Tem a coisa de controlar, capa, tudo.

 

A reacção das pessoas apoquenta-o?

Ah, sim. Não sou um egocêntrico que está cagando para os outros. Estou completamente aí: se tem 200 pessoas gostando e dois que não gostam, estou completamente preocupado com os dois que não gostaram. Fico sem dormir por causa desses dois. Preocupado.

 

Como é que vai apresentar este disco em palco?

No Brasil vai ter um mixing de algumas músicas pop mas com arranjos vertidos para esta estética. A banda vai ser eu tocando piano e guitarra, um baixo, bateria e um outro piano. Estou tentando ter uma banda menor para poder fazer excursão aqui na Europa. Posso dizer para vocês com toda a sinceridade, não tenho a mínima vergonha de dizer: estou muito feliz de estar aqui fazendo essas coisas todas. Por muitos anos me senti injustiçado, vendo um monte de gente fazendo coisas, um monte de babaca posando, «Ah, sou o cara da tal vez...». E eu no Brasil, fazendo o show de sempre em Petrópolis, sei lá onde. O que é exportado do Brasil, se na sua maioria fossem coisas que eu admirasse, talvez não sentisse isso.

 

Vamos ao que é exportado. Caetano Veloso, por exemplo, gosta?

Aí sim, é maravilhoso. Mas há coisas que são um estereótipo do que é o Brasil, discos com fotos de meninos de rua jogando futebol. O Brasil não é só isso, pelo amor de Deus! Irrita um pouco, quando se olha de lá. É um país extremamente sofisticado. Cada lugar tem a sua coisa boa e a sua coisa ruim. Eu me sinto um cidadão do planeta Terra. Infelizmente no planeta Terra se falam línguas diferentes, o que acho horrível. A gente podia falar uma língua só, e ter um só nome para as coisas _ é uma coisa bem universalista. Para dizer que agora estou bacana, mas demorou um pouco a estar assim.

 

Como é a sua vida social? Aparece, vai às festas, tira fotos para as revistas? Ou é um outsider?

Nunca vou. Vou falar uma coisa muito realista: aqui, em Londres, ninguém sabe quem é o Ed Motta. O que é que é? Ed Motta toma com água, remédio ou é um nome de uma bomba? No Brasil sou um cara realmente muito famoso, de ponta a ponta. Pode ser que daqui a 20 anos tudo mude. É preciso ter boa cabeça. O Ed Lincoln foi um cara que na década de 60 foi tão famoso quanto eu sou agora; hoje ninguém sabe quem é o Ed Lincoln. Tem a sua casa, lá em Teresópolis. Espero que não seja esse o meu destino, que não termine numa casa em Teresópolis. Queria estar tocando pelo mundo, que o mundo reconhecesse a minha música. Mas se tiver que rolar isso, tenho minha casa, meu estúdio, meus discos, tenho uma vida confortável.

 

O que é que significa Dwitza?

Eu queria botar um nome que não tivesse um significado literal, e que tivesse mundialmente uma sonoridade. Uma coisa meio russa, meio afro-jazz. É um negão, parente de italiano, com uma maneira russa de trabalhar.

 

 

Entrevista de AMR e Joaquim Paulo

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2002

 

 

Joana Vasconcelos (2005)

07.12.14

Joana Vasconcelos ocupa um armazém espaçoso na Fundição de Oeiras. As peças, algumas peças, estão dispostas entre as paredes brancas. Há cães de louça cobertos por naperons, há uma televisão revestida a renda que contém a estridência das Doce a cantar «Bem Bom». Hey! Ela fala da sua metalúrgica como quem fala do dentista e sabe os nomes dos senhores das retrosarias e drogarias. Ela sabe onde encontrar espanadores roxos para prestar tributo ao filme «Flor do meu desejo» de Pedro Almodovar. Sabe organizar um dossier e pedir à OB que patrocine um lustre de tampões que tem na ideia...

Joana Vasconcelos é artista plástica. O seu percurso acabou por ser bastante clássico, como ela concorda. Estudou entre a António Arroio, o Ar.Co, um primeiro ano no IADE em que ia morrendo de infelicidade, e o desejo de frequentar arquitectura! Fez coisas tão desvairadas quanto chapéus em esferovite, muito grandes, para as Manobras de Maio.

Até pode ser que tudo tenha começado no liceu, quando um senhor que desenhava notas e numismática, o senhor Isolino Vaz, achou que ela tinha imenso jeito para desenho e lhe incrementou as notas de modo a poder entrar na António Arroio. A António Arroio, para além de ser longe de casa, tinha muito má fama. Mas foi à mesma, e estudou joalharia e desenho. E depois tudo foi acontecendo, em catadupa.

Em Junho, a sua peça mais arrojada, o lustre «A Noiva» estará na Bienal de Veneza.

 

A primeira pergunta pode ser sobre a origem. De onde é que isto tudo vem?

Como é que comecei a ser artista? É uma coisa um bocado estranha de se ser. Não vem inscrita nas páginas amarelas ou nos anuários das profissões. É uma profissão que se encontra e que se cria. Cada um cria esta profissão para si próprio.

 

A designação “artista plástico” é muito abrangente; nela cabem disciplinas várias. Como é que olha para si: é mais escultora, é mais artista plástica, é mais inventora?

É no momento da burocracia que se descobrem algumas coisas engraçadas sobre a nossa vida. No Ar.Co, o curso que tirei foi joalharia, e depois desenho, e depois um curso avançado. Mas nunca fui joalheira. Também nunca desenhei. Quando comecei a receber cartas em casa para “escultora Joana Vasconcelos”, achei que, se calhar, era mesmo escultora. E [aquando da] minha participação no Project Room de Serralves, deram-me um cartão que dizia “artista”. Quando pedi um empréstimo ao banco, escrevi que a minha profissão era “artista plástica”.

 

Mas radica onde a consciência de que esta podia ser a sua vida?

Fiz um percurso bastante clássico para ser artista. Não sabia bem o que é que havia de fazer. O meu pai fez até ao terceiro ano de Arquitectura, mas foi para França e acabou fotógrafo. A minha mãe tirou o curso de decoração da Ricardo Espírito Santo. Eu conhecia o Palolo desde miúda. Nas férias ia a casa do René Bertholo. Conheço as pessoas todas desde miúda. Mas o problema das artes é uma pessoa encontrar a modalidade certa para se expressar. Testes psicotécnicos, eu fazia aos montes!

 

Para encontrar a solução?

Sim. Os meus pais, quando vieram de Paris, puseram-me no Liceu Francês.

 

Nasceu em Paris, onde viveu até aos quatro anos. Em Portugal, depois do Licei Francês, prosseguiu a sua formação no Liceu Marquês de Pombal, na António Arroio e no Ar.Co.

Quando cheguei ao Ar.Co é que me apercebi de que havia um outro mundo de pessoas. Mas aos 17 anos, ia às festas do Frágil com o meu primo Ricardo, cinco anos mais velho. Já tinha feito o Inter-rail até Paris e Berlim, rapado o cabelo, usava sapatos da Ana Salazar. A verdade é que muito depressa comecei a fazer parte de um núcleo de pessoas mais velhas do que eu, que tinham uma vida muito diferente. A coisa foi um bocado acontecendo...

 

A sua maleabilidade técnica deriva de anos de formação diversificada. Como foi a sua descoberta dos materiais?

No segundo ano [do Ar.Co] fiz umas peças de escultura em fibra de vidro. Quis fazer aquilo brilhante, shinning, e fui à procura de um atelier onde se trabalhasse fibra de vidro. De repente saio da escola, da protecção dos professores, e encontro-me no mundo do trabalho, no atelier de pessoas que fazem canoas, barcos e que não estão cá com tempo para aturar caprichos de meninas artistas. Vesti o meu fato-macaco e trabalhei todo o Verão. Ensinaram-me a fazer moldes, estrutura. Aprendi a elaborar um dossier e pedir patrocínio à fábrica das fibras. Passei o primeiro teste de esforço que estas coisas exigem. Foi um processo importantíssimo para a minha evolução.

 

Mas as suas peças, os materiais que utiliza e as suas dimensões são desde sempre originais. Para uma festa da escola fez uma mesa deveras singular...

As inaugurações [na escola] eram umas coisas com uns senhores de libret e umas bandejas que me irritavam sobremaneira.

 

O que é que a agredia?

Não coincidia com toda a aventura que era o trabalho artístico e a escola! Resultava sempre nuns naperons em papel, com croquetes e rissóis, parecia que se estava no Palácio de Queluz! Só que se estava nas caves da escola, com umas coisas expostas nas paredes. Fiz a “Plastic Party”: uma mesa preta, em ferro, com tupperwares, onde eram postas as comidas para a inauguração. O director da escola ficou zangado comigo para todo o sempre.

 

Mas a peça foi um sucesso e abriu-lhe as portas da Fundação de Serralves. Foi um privilégio.

Sim, mas Serralves ainda não era [o Museu de Arte Contemporânea de] Serralves. Isto passou-se há 12, 13 anos. Sou convidada pelo João Fernandes para a exposição “Mais tempo, menos história”, em Serralves. E sou convidada para uma exposição na Estufa Fria, chamada Green House Display, com o grupo da ESBAL.

 

As condições de uma e outra eram distintas.

No Green House Display não havia dinheiro, era tudo malta nova. Apresentei a peça “Flores do meu desejo”, feita com trezentos e tal espanadores, e pedi ao meu pai 48 contos para comprar os espanadores. Ele emprestou na condição de devolver o dinheiro no caso de vender a peça. A minha mãe ajudou-me a montá-la, não havia equipa.

 

Espanadores, valiuns, tampões, rendas. Aquilo que é aparentemente trash é transformado por si. Parte desta matéria-prima para reinventar objectos do quotidiano. João Fernandes, a propósito do seu trabalho, escreveu: “As coisas já não são o que eram”.

Um amigo meu, e intelectual, Jorge Lima Barreto, chamou-lhe “novo objectivismo”. É um conceito engraçado: dotar os objectos de uma nova dimensão.

 

A sua vida, o ambiente proporcionado pelos seus pais, não coincide com uma portugalidade kitsch que muitas das suas obras exibem. Não se imagina que na casa dos seus pais houvesse naperons sobre os sofás...

Costumo dizer que a minha família nunca foi uma família tradicional portuguesa. A primeira vez que fui à missa tinha 18 anos, nunca sequer tinha entrado numa igreja. Sou uma pessoa que tem um raccord ao que é português completamente diferente. A minha avó viveu na China, depois na Índia, depois em Macau, depois em África.

 

Com quem é que aprendeu a olhar o social?

Com ninguém. Aprendi a olhar o social pela diferença, pelo facto de não ter o raccord tradicionalista.

 

O vestido da comunhão e as tias chatas.

Não tive nada disso. E como não tenho essa família, todas essas coisas me pareceram sempre “ai que giro, tão diferente”. A família do meu namorado é a família tradicional portuguesa; quando me comecei a dar com eles, percebi que havia uma outra maneira de ser português.

 

Corresponde ao protótipo da rapariga do pós-25 de Abril? Pertence a uma geração para quem a Internet, o divórcio, viajar, estudar fora ou falar inglês são ferramentas vulgares. Nesse sentido, é uma filha da Revolução?

Sou completamente isso. Os meus pais faziam parte da Revolução. É por isso que nasço em Paris. Se não houvesse o 25 de Abril, não teríamos vindo embora e eu seria uma artista francesa.

 

Gostaria de ter ficado em França?

Não especialmente.

 

A sua carreira atravessa uma fase de expansão internacional. No início deste ano, fez sucesso em Paris, onde há 15 anos um artista português não expunha a título individual. Que peso tem, agora, a sua participação na Bienal de Veneza? Leva “A noiva”, a sua peça mais emblemática.

Veneza é um palco de vaidades e influências, é um palco político e artístico. É uma dimensão que não conhecia, de que não tinha tido experiência. Estes grandes eventos são importantes, mas também podem não acontecer na vida de um artista. Estou a ter uma sorte incrível porque o meu curator espanhol, (Rosa Martinez), ao pensar no curating do Arsenale, considerou que a peça que daria bem o mote para a exposição era a minha!

 

Quer dizer que logo à entrada do espaço expositivo, a peça que dá o mote e promove o discurso com outras peças é a sua. Mas como é que se lembrou de fazer um lustre com 14 mil tampões, que começou por ser exibido no Lux, em Lisboa?

Agora são mais, [na peça que vai estar em Veneza] são 25 mil.

 

Trabalhou noções como o branco, o luxo, a pureza.

O vestido de casamento é uma coisa obsoleta, porque já ninguém é virgem no dia do casamento. Mas é um objecto luxuoso, são cinco minutos de fama na vida de uma mulher. E o lustre é outro dos objectos que traduzem o luxo. Seja a casa pobre, seja a casa rica, seja em França, seja em Espanha, há sempre um raio do lustre, nem que seja deste tamanhinho. Há outras constantes: a rainha de Inglaterra ou a miúda de Freixo de Espada à Cinta continuam a vestir de branco. Agora até no Japão elas se casam de vestido de branco.

 

Todavia, o mundo em mudança é um dos seus pontos de partida.

Esta peça é sobre isso: a condição da mulher já não é o que era. Porque há os tampões, porque há a pílula.

 

As questões do feminino, assim como as da portugalidade, são os seus dois grandes corpos de trabalho.

O consumismo também. É a sociedade em geral. É toda uma série de coisas.

 

Como é que tudo acaba por ser vertido para o seu trabalho?

De todas as maneiras e feitios. Pode ser acordada, pode ser a sonhar, pode ser à noite, pode ser num desenho, pode ser num filme, pode ser num fado. O “Coração de Viana” que está no Restaurante Eleven é inspirado num fado de Amália. “Coração independente/coração que eu não comando/vive perdido entre a gente/teimosamente sangrando”.

 

O coração é feito de talheres de plástico!

O coração de Viana é um objecto de luxo. Eu reproduzo a filigrana através dos talheres de plástico. Parece feito de filigrana, mas não é. É exactamente esse ponto: parece, mas não é. Se calhar, até é. Depois da transformação, aquilo é um objecto de luxo.

 

Mesmo que não seja feito a ouro.

Consegue, apesar de ser feito com plástico, ganhar outra dimensão. O processo artístico faz isso: descontextualiza, mas recontextualiza noutro universo. É manter o luxo através da banalidade. A vida de todos os dias também pode ser luxuosa.

 

 

Publicado originalmente na revista Elle em 2005

 

 

 

 

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