Os mais lidos em Janeiro
Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]
Albano, o excêntrico, é o coração dos Encontros de Fotografia de Coimbra. É o director do CAV, Centro de Artes Visuais, instalado no renovado Pátio da Inquisição em Coimbra. É fotógrafo e viajante apaixonado. Planta orquídeas, conhece todos os bons vinhos, fascina-se com o vagar da existência Dogon (uma tribo do Mali que visita amiúde). Vive numa casa onde se chega por caminhos de cabras em Vale de Colmeias. A casa respira entre obras de arte africanas, cadeiras de Charles Eames, fotografias dos maiores vultos da cena mundial. Guia com perícia extrema entre Lisboa e Coimbra.
A sua proveniência é o cinema, onde foi assistente de Manoel de Oliveira. António Pedro Vasconcelos apresentou-lhe, entre outras coisas, o Gambrinus, onde é tratado como uma pessoa da casa. É razoavelmente louco e tem um tom desconcertante. É um agente cultural como poucos num país pouco dado ao fazer. A entrevista que se segue conta algumas das suas histórias e aposta numa decifração do universo da arte contemporânea. É pai do Sebastião.
Tem ali ao canto uma fotografia que o Robert Frank lhe dedicou na qual aparece o Jack Kerouac enroscado num cobertor, a dormir. Como é que conheceu o Robert Frank?
Se há um mito na fotografia contemporânea, esse mito chama-se Robert Frank. Não só pela grande importância que tem na história moderna da fotografia – é um homem de ruptura, de coragem, com um olhar tremendo –, mas sobretudo pelo seu desaparecimento. É muito reservado, avesso à ribalta, relativamente ácido, mas terno e generoso. Robert Frank teve uma ligação fortíssima ao vídeo e ao cinema. Há uma fase, no fim dos anos 70/80 de alguma distância e ruptura com a fotografia. Ele dizia-me, (venho a conhecê-lo em 86), que a fotografia era o passado. Retomou a colagem, com os fotogramas do vídeo, construindo outros objectos que não a fotografia avulsa.
O que é que o fez afastar-se das multidões e tornar-se um eremita? Quando o vejo na série «Waiting for mushroom», aparece num casebre...
Um eremita, ele não é. De há vinte anos para cá surgiram tragédias na vida do Frank. A morte dos filhos... A fotografia de que me fala é da série «On the road», quando atravessa a América com o Jack [Kerouac] a dormir atrás, e um conjunto de amigos ligados às artes e à escrita. É uma geração pioneira, beat. Embora não tão envolvido com as drogas e com o álcool, como o Jack, passou por lá... Conheço-o quando assumi a direcção dos Encontros [de Fotografia de Coimbra].
Mas como é que chega ao Frank?
Não é fácil encontrá-lo. Ele vive isolado entre Bleecker Street (Nova Iorque) e Mabou, uma enseada de pescadores numa ilha da Nova Escócia onde neva sete meses por ano. Mesmo as pessoas do meio, em Paris, Nova Iorque ou Roma, não têm acesso ao Frank. Uma história engraçadíssima: contou-me o Julião Sarmento que na inauguração da sua exposição em Nova Iorque, onde estava a Cindy Sherman, entrou o Frank, que conheceu o Julião através de mim. Imagine uma galeria da moda, o mundo da arte contemporânea, a ver entrar esta figura simplória... A Cindy Sherman ficou maravilhada, queria conhecê-lo. E todos pensavam que ele já tinha morrido. Realmente não está interessado em publicidade, não está interessado em dinheiro.
O que é que pensa que o faz correr?
É a sua própria natureza, a sua relação com a morte. O prazer do criador é fazer coisas. Ele trabalha muito pouco. Mas aquilo que faz tem uma uma força tremenda. É um indivíduo que mastiga, sofre, e depois, com uma atitude de grande esforço e coragem, consegue.
Nas fotografias de Robert Frank há uma quietude, uma depuração que fazem que as coisas pareçam absolutas. Ele nunca é aproximativo, é final. É nisto que podemos reconhecê-lo como um artista excepcional?
Ele tem um olhar sobre a vida depurado, com uma densidade tremenda. As fotografias dele não são nem bonitas, nem feias. São autênticas. Não é a autenticidade da reprodução da realidade; é a construção de uma outra realidade, a partir da sua própria vida. Todo o trabalho dele tem uma forte componente de identidade, de relação com o mundo e com as coisas.
Tem incontáveis cartas do Frank, coisas que lhe são dedicadas. Como é que se conquista a atenção e a estima de um artista como o Robert Frank?
Com muito sossego, calma, e sobretudo não falseando a realidade. O Frank gosta de pessoas simples que tenham cuidado com ele, que gostem dele. A relação comigo e com o Vicente [Todolí] – conheceram-se em 83 – é semelhante. Independentemente da relação estética, há uma nova família que ele cria, depois da morte dos filhos. As cartas, as pequeninas peças únicas do tamanho de cartas que nos envia, a mim e ao Vicente, são de uma extrema generosidade.
Ora os artistas têm fama justamente de não ser muito generosos...
Os Encontros de Fotografia fizeram grande parte da sua produção devido à generosidade dos fotógrafos e artistas. Não tenho nada de que me queixar, pelo contrário. Mas queria dizer o seguinte: um homem com a carreira do Vicente Todolí (que criou a dimensão internacional desse grande projecto que é a Fundação de Serralves, director da Tate Modern, que é uma “multinacional da arte contemporânea” em Londres), é significativo que a primeira exposição do programa como director da Tate seja exactamente do Robert Frank. A componente afectiva no mundo do Robert Frank, como no de outros artistas, é imprescindível e inseparável da estética.
São afinidades electivas.
Eu não sou amigo de um conjunto de personagens, seja o Rui Chafes, seja o Vicente Todolí, seja o Pedro Cabrita Reis só por questões estéticas. São questões éticas, antes de tudo, de simpatia, de sensibilidade, de cortesia, de cuidado.
Há 20 anos, Portugal tinha uma democracia em consolidação, resquícios de um período em que fora «orgulhosamente só», e não constava do mapa da arte contemporânea. Quando então assume a direcção dos Encontros, percebeu que o festival não podia estar desinserido da cena internacional. O seu propósito assentava em dois vectores: divulgação e internacionalização.
Era importante fazer a divulgação da fotografia portuguesa. Peguei na obra nuclear do Manuel Alvarez Bravo, romântica, poética. E na modernidade, transgressão e interdisciplinariedade (com o vídeo) do Frankie. Em arte, em particular na arte contemporânea, o elemento essencial para a afirmação de uma identidade (é isso que fabricam as instituições: o seu património e a sua identidade), é a comunicação internacional. Tem que se ser muito criterioso nos passos que se dão. Não se pode falhar, senão entra-se pela porta grande e sai-se pela pequenina no dia a seguir. A rede, a teia de cumplicidades, é fabricada primeiro pela ética, pelo profissionalismo, depois pela estética. Temos que saber o que é que nos identifica e o que é que temos a ver uns com os outros.
Temos sobre a mesa álbuns de Araki, Gabriel Orozco, Robert Frank, vi em sua casa uma imagem da Diane Arbus. São diferentes universos; mas, apesar da sua heterogeneidade, confluem numa identidade comum? Como é que se relacionam estes autores? O que é o que o faz olhar e perceber «este sim, este sim, este sim, este não, este não, este não»?
É um sistema, vivemos de sistemas integrados. Sabe onde é que descobri o Nobuyoshi Araki? Se olhar para a obra do Robert Frank e para a obra do Araki, não há nada em comum. No entanto, o primeiro livro que vi do Araki, no princípio dos anos 90, foi em casa do Robert Frank. Na desarrumação imensa que é a casa do Robert, latas de cinema no chão..., de repente vejo um livro carmesim, luxuriante, erótico, peça única. «O que é isto, Robert?» E ele disse-me logo: «Acho que deves mostrar o Araki».
E o Gabriel Orozco, que expôs recentemente?
Se tenho a pretensão de tornar esta instituição [CAV, Centro de Artes Visuais] internacional não poderia deixar de, devido à minha relação com a Chantal Crousel, uma das galeristas incontornáveis em França, que trabalha com o Gabriel Orozco...
Toda a cena se desenrola entre x galerias, x museus, x curators e respectivos artistas? Pode fazer uma descrição simples do funcionamento do meio da arte contemporânea?
Obviamente há um sistema. Um sistema de sensibilidades diferentes, assente no rigor e na coerência. A estratégia de uma instituição faz que ela aposte numa linha de projectos. Temos uma exposição neste momento, «Em Jogo»; eu sabia que havia quatro ou cinco artistas a quem tinha de fazer encomendas.
Sabia como?
É esse o nosso trabalho: a observação e a reflexão acerca do trabalho dos artistas que aparecem todos os dias. Depois há uma gestão do objecto que se vai trabalhar entre o comissário e o artista. Lá em baixo, [na exposição] há um cruzamento de obras de grandes artistas internacionais: o Orozco, o Andreas Gursky, o Jeff Koons, o Vik Muniz, e há um conjunto de encomendas, à Adriana Molder, ao Paulo Catrica, ao João Pedro Vale... A construção da exposição faz-se em função do orçamento, do espaço e do trabalho dos artistas. São olhares diferentes, são objectos diferentes, pode gostar-se ou não, compreender-se ou não, mas há uma coerência e trabalho de qualidade.
Insisto na decifração do sistema. Como é que se pode situar a importância de um Gabriel Orozco? Dizendo que tem neste momento uma exposição na Serpentine, que é uma galeria no Hyde Park, em Londres? Posso inferir que é uma galeria importante porque uma artista como a Cindy Sherman expôs lá o ano passado? Trata-se afinal de prestígio? O CAV já teve exposições com um artista consagrado como o Orozco ou com a participação do Jeff Koons. É possível aferir a importância ou reputação de uma instituição ou artista a partir de sinais como estes?
Ela constrói-se exactamente assim. Entre galerias, mercado, criadores, instituições museológicas, projectos de festivais e bienais, por aí adiante. Para se afirmar, primeiro que tudo, é preciso trabalhar.
Especifique a estratégia que adopta.
É-me importante trabalhar com galerias de qualidade. Obviamente, os artistas que trabalham com Marian Goodman ou a Sonnabend vão consagrar, em termos institucionais, esta pequena instituição que existe em Coimbra.
Que garantias exigem galerias de peso internacional, como essas que apontou?
É imprescindível para trabalhar no circuito internacional não falhar nos seguros, nos transportes, ter uma equipa profissional. É uma mais valia ter trabalhado com artistas da mais alta qualidade mundial. Uma instituição que trabalha com o Gabriel Orozco ou, em Portugal, com o Julião Sarmento, não precisa de dizer mais nada. Isso permite, a seguir, alguma segurança para se trabalhar com gente nova. A afirmação de um artista faz-se através da sua obra, se expõe no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque ou é representado pela Lisson Gallery – que são a consagração completa. É evidente que o Centro de Artes Visuais não é uma instituição de referência em termos internacionais, mas sê-lo-á, com certeza. Já eram os Encontros de Fotografia, pelo critério, pelo rigor da escolha dos fotógrafos.
O critério da escolha é o vector fundamental? Em si, é definidor da identidade de quem escolhe. Por exemplo, quem escolhe Diane Arbus, não escolhe o Sebastião Salgado. Certo?
É evidente. Não escolho a World Press Photo, nem pensar, por mais que tenha 300 ou 400 mil [espectadores]. Os números são um fenómeno terrível que tem liquidado muitas instituições – são o mais importante para as administrações. Isto é como a telenovela...
Está a dizer que o Word Press Photo é telenovela? No sentido de ser para consumo de massas.
Obviamente. Tem todos os valores: a miséria, a tragédia, a sensibilidade primária, a ilusão da realidade – porque o fotógrafo, como artista, modifica.
Não há nada que redima uma realidade miserável?, não é possível encontrar qualquer beleza numa realidade miserável?
De maneira nenhuma. Aquilo é outro mundo, um mundo que não me interessa. Acho que é perverso, para não dizer obsceno, alguém ter uma máquina fotográfica e fotografar um mutilado que depois vai para o salão, para o espaço da arte. Causa-me uma grande impressão.
O Araki tem fotografias de mulheres amarradas, seminuas, dependuradas em árvores, como se fossem animais.
Não tem só mulheres, tem também gatos. Esse é o quotidiano do Araki.
Mas porque é que isto não é chocante e é chocante a situação de um mutilado de guerra ou de um miúdo etíope?
O Araki tem exactamente o efeito contrário. Do outro lado há a demagogia, a presa fácil, o ceguinho, o aleijado, a violência, a sede. São documentos que funcionam muito bem nos jornais, denunciam a tragédia, a guerra, a fome. Mas, num espaço de exposição, é malicioso!
E qual é a substancial diferença?
O propósito. Não se trata da denúncia do sofrimento, trata-se do número de visitantes que a exposições tem.
Portanto, não gosta desses fotógrafos.
Não é não gostar. É como falar em comer gafanhotos: não faz parte da minha cultura. O Sebastião Salgado é um indivíduo que não tem nada a ver com a minha filosofia de vida. Eu não seria nunca capaz de fotografar uma criança a morrer de sede, plastificar a fotografia e mostrá-la no Terreiro do Paço ou numa Feira qualquer.
Como é que atribui valor a uma peça e não a outra?
Os valores da minha selecção estão assentes numa escala e num sistema que é o meu, que foi construído.
Mas porque é que este artista é bom e o outro não? Como reconhecê-lo? Exemplifico com o Julião Sarmento, que vai expôr no CAV em Outubro, e o Pedro Cabrita Reis, que apresentou aqui o projecto que levou à última Bienal de Veneza.
Cabrita Reis, Julião Sarmento, Jorge Molder, Rui Chafes, [José] Pedro Croft, Michael Biberstein, Helena de Almeida, Ernesto de Sousa: são artistas incontornáveis. Não é só a minha opinião, é a opinião unânime, baseada num dado concreto: a obra.
Recuemos duas décadas. Encontros de Coimbra. Apostou em nomes como os de Paulo Nozolino ou Jorge Molder. Porquê?
Têm uma obra consistente, coerente. Há pouco falava na atitude crítica, na escala de valores: é evidente que é importante conhecer a obra do artista. Num jovem é mais difícil que num consagrado, mas um crítico, um comissário, um director de uma instituição sabe reconhecer, tem um bom sistema de filtragem. Um avaliador da Christies olha para uma peça do século XVII e sabe se aquilo é uma peça boa ou não, única, rara. E estabelece um valor. Há uma métrica, há dados e factos indesmentíveis. Não estou a discutir se se gosta ou não se gosta.
Ou seja, é preciso reconhecer num artista originalidade (voz própria) e coerência na obra que vai desenvolvendo.
E a importância que a obra tem num determinado contexto. Julião Sarmento, Pedro Cabrita Reis, Paula Rego e Vieira da Silva, e agora Chafes, Croft, Helena Almeida: são os únicos portugueses credenciados internacionalmente.
O que é que torna o facto indesmentível?
Por exemplo, ser representado em termos comerciais por uma galeria prestigiada em todo mundo. Se a obra não for importante, nenhuma galeria aceita um artista português ou quem quer que seja. A transversalidade da obra do Julião, a utilização de diferentes suportes, a experimentação, o desenvolvimento, pode gostar-se menos desta fase ou daquela, como em qualquer escritor, mas é inegável que tem uma obra.
O que é que faz que a arte contemporânea seja tão valiosa?
Esse é o mito eterno da beleza.
Na exposição «Em Jogo» está uma bola de futebol do Jeff Koons...
Isso é outra história. A concepção decorativa da arte alterou-se. Há alguns anos imensos artistas construiram objectos de arte à volta do vazio e do lixo.
O que se compra, então, é uma ideia? Compra-se o universo íntimo e criativo de um autor expresso num determinado objecto?
Não se esqueça da atitude ideológica e de intervenção. Há uma forte componente política e de combate, seja feminista, seja ecológica, por aí adiante. O valor de mercado, a cotação, tem que ver com vários aspectos: se é uma obra única, qual o suporte utilizado... A premissa indiscutível é a obra do artista, a qualidade do seu currículo.
Em 2005 os Encontros de Fotografia completam em 25 anos. Foram expostas milhares e milhares de fotografias. O que é que acontece a todo esse espólio? As fotografias são cedidas, algumas são compradas, entram no mercado de alguma maneira, transitam para outro espaço expositivo noutro ponto do planeta?
Depende. Se são peças com numeração, (um número de exemplares restrito), que já está vendido, terá que ser o coleccionador ou instituição a emprestá-la. No entanto, quando falamos em Arte Contemporânea, o quadro da fotografia é diferente na medida em que há séries exclusivamente produzidas para exposições, sem valor comercial. Se são exemplares vendidos, fazem-se seguros consoante o seu valor. Para dar um pequeno exemplo, as fotografias do Andreas Gursky custam 30 mil contos, 150 mil euros e mais.
Tem uma na exposição. Foi cedida?
Cedida pelo próprio Andreas Gursky, segundo seguros absolutamente rigorosos, com transporte e embalagem que não lhe passam pela cabeça. As embalagens destas peças são muitas vezes mais caras que os seguros e o transporte tem de ser feito por profissionais do sector. Como a bola de bronze do Jeff Koons. Era uma peça nuclear, alusiva ao futebol [tema da exposição]. Penso que existem quatro exemplares e o valor é exorbitante. É uma felicidade imensa que galerias e artistas com esta qualidade emprestem obras ao Centro de Artes Visuais. Enriquece o olhar da exposição e prestigia internacionalmente. Os jovens artistas podem dizer amanhã que participaram numa exposição comissariada por A ou B com os artistas A, B e C. Lá esta a tal legitimação.
Voltemos ao espólio. Como recapitular e conhecer o essencial destes 25 anos de Encontros?
Há três fases claras, como se pode confirmar nos catálogos, livros e património. A primeira é uma fase de sobrevivência e afirmação de um festival que cita referências internacionais – a mais evidente é o Festival de Arles, central na difusão da fotografia na Europa e no mundo nos anos 80. Nos primeiros anos os Encontros de Fotografia viveram de um grande voluntarismo dos seus fundadores, (ligados ao Centro de Estudos de Fotografia da Associação Académica, enquanto organismo autónomo), num estado de debilidade extrema. Quando estavam a agonizar, e coincidentemente com a minha ruptura com o cinema, tomei a coordenação do festival. Percebi rapidamente que importava definir um critério e não estar dependente do adido cultural ou da embaixada A ou B, dos seus gostos ou da fotografia oficial. Procurei não descurar as vanguardas, (o Ernesto de Sousa e a Helena Almeida, na altura), divulgar obras que eu entendia nucleares e apostar na nova fotografia portuguesa. A pedagogia da fotografia em Portugal era extremamente frágil, como ainda hoje é, apesar da grande homenagem que faço ao Ar.Co.
Quando é que se pode dizer de um criador que ele é fotógrafo ou artista plástico? A Cindy Sherman usa preferencialmente o suporte fotográfico, mas ninguém se refere a ela como sendo uma fotógrafa. O Jorge Molder ou a Helena Almeida, são artistas plásticos ou fotógrafos?
Há alguma ambiguidade. Os especialistas quando teorizam sobre a obra da Cindy Sherman dizem que não é uma fotógrafa no conceito académico, tradicional, que é uma artista. Pode dizer-se que a Helena Almeida é fotógrafa porque utiliza o suporte fotográfico; mas ela utiliza muito mais do que isso, ela utiliza a fotografia para expressar e sintetizar diferentes disciplinas. A fotografia reside fundamentalmente num objecto único. Tem a ver com a atitude do fotógrafo através da sua máquina fotográfica em papel. Convencionou-se chamar-lhe straight photography. Mas o Robert Frank, por exemplo, aborrece-se e responde com agressividade quando lhe chamam artista.
O seu percurso começa no cinema, onde foi, por exemplo, assistente de Manoel de Oliveira. Transita para a fotografia, faz exposições com alguma importância, mas o que o afirma neste universo é sobretudo o seu lado de agente cultural.
Numa análise muito pragmática: o que é que adiantava ser fotógrafo se a fotografia não existia em Portugal? A fotografia tinha um corpus reduzidíssimo: era o Victor Palla, o Gerard Castello-Lopes, o Sena da Silva, o Jorge Molder, o Paulo Nozolino. Nos anos 80 existia uma pequena galeria em Lisboa, aberta devido à paixão e voluntarismo do António Sena, e uma galeria aqui na Associação Académica, de cinco metros por três. A difusão, as galerias, a edição, não existiam. O Jorge Molder trabalhava nas prisões. O Paulo Nozolino emigrou, o Jorge Guerra emigrou, o Gerard Castello-Lopes era rico. A fotografia não existia em Portugal. Só há dois anos se concluiu o trabalho de um fotógrafo lapidar na fotografia portuguesa que é o Carlos Relvas.
Sacrificou a sua obra e investiu todo o seu arrojo e know how nos Encontros. Em nome de quê? O que é que o faz correr?
Eu tenho um grande prazer em produzir. De outro modo não tinha feito os dois livros com o Daniel Blaufuks, o «London Diaries» e o «San Petersburgo»; não tinha feito o «Quatre Mouvements de la Peur» com o Julião Sarmento. Essa também é a minha obra. Há de facto imensos riscos, mas gosto de correr riscos. Há riscos que são especialmente cansativos, na medida em que são sempre os mesmos...
E que têm que ver com dinheiro. De onde é que vem dinheiro para isto tudo?
Através de um protocolo que data de 2001/2002 foi feito um investimento pelo Estado e pela Autarquia no sentido de uma organização do património e desenvolvimento dos Encontros de Fotografia. Foi projectado um equipamento específico para os Encontros, (que não tinham casa). Definiu-se um programa de sustentação financeira, com a participação a 60% do Ministério da Cultura e a 40% da Autarquia. Funcionou relativamente bem no ano passado, este ano está a funcionar muito mal.
Ou seja, o equilibrio é periclitante. A instituição não tem força para funcionar autonomamente.
Não é possível. Se se desequilibra em 40%, então é um desastre. Quando se trabalha com instituições nacionais, internacionais ou artistas e se estabelecem contratos, é forçoso cumpri-los. Quando se ultrapassam meses e meses, a credibilidade vai ao fundo. Todo o investimento que foi feito, com tanto rigor, com tanta emoção, correndo tantos riscos, fica em perigo. Desde que a instituição está viva, sistematicamente, eu, Albano Silva Pereira, para cumprir com esses compromissos, tive que recorrer a empréstimos bancários. Como deve imaginar, eles não são elásticos... A situação torna-se mais difícil, e há um cansaço tremendo, uma desilusão tremenda.
Isto é a sua vida.
É a minha vida, a minha família. Passo mais tempo aqui do que com o meu filho.
E a afluência do público? Quando venho às inaugurações, encontro os artistas plásticos consagrados e emergentes, os críticos conceituados, toda a fauna que frequenta o meio. Mas quem é que vem cá todos os dias ver, por exemplo, a Jemima Stehli?
No ano passado o Centro de Artes Visuais teve cerca de 27, 30 mil visitantes. A primeira exposição teve números extraordinários, cerca de 11 mil pessoas; penso que estavam convencidas de que vinham ver os Encontros de Fotografia. Essa vertente é extremamente importante para mim, não quero fazer arte para espaços vazios e para elites. Há que desenvolver o trabalho com as escolas e formar novos públicos. A única coisa que tem funcionado em termos de mecenato é a comunicação social, particularmente com o Público, e há anos atrás com o DNa e outros.
Qual é a importância da arte na sua vida, para que serve?
Eu comecei com 20 anos a fazer cinema. Tenho 54 anos e em 34 não fiz outra coisa. Arrisquei tudo o que se possa imaginar. Sem rede. Talvez seja um tonto. Qualquer outro director, qualquer outra equipa já teria fechado as portas. Mas tenho um grande orgulho no meu trabalho. O património é de tal modo rico que não há nenhum espaço em Coimbra para mostrá-lo. Nem os três espaços de exposição do CCB, calculo, chegariam para expor a colecção dos Encontros de Fotografia. Vamos ser objectivos: nunca tive verbas de aquisição. É devido ao meu relacionamento com os artistas e com os fotógrafos que o espólio se consolidou. Os fotógrafos não são obrigados, quando se faz a encomenda, a deixar as obras. E se olhar para as publicações, há de facto alguma vaidade, algum prazer.
É muito passional.
Claro que sim, mas também racional. Quando está em causa a sobrevivência de uma instituição e de um projecto, o que é que se pode fazer, como é que se age? Eu nunca falhei com nenhum compromisso, e isso não é só passional. Um elemento decisivo na facilidade e no privilégio no trabalho, quer na esfera internacional quer na esfera nacional, está na confiança e no respeito que as instituições e os artistas têm por mim.
O gozo maior tem que ver com o fazer?
Fazer, produzir, concretizar. Este património vai ficar para a posteridade. Há amigos que dizem: «Tens estas sobras todas, por que é que não as tens em casa?». Eu não roubo a família, não roubo os filhos. Isto é o testemunho, o coração da história desta instituição. O que mais anseio é mostrar esta colecção de uma forma digna, porque conta a história da fotografia em Portugal e dos Encontros de Fotografia. É uma tese de contemporaneidade, rigor, ética. E essa ninguém ma rouba.
Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2004
Suzana, a preferida. Filha de Vinicius, o Seu Darling, como lhe chamava uma babá. E de Tati, a moça fina que casa com um poeta por procuração. Nasceu em 1940. Foi uma precocíssima amante do cinema e do jazz, bagunceira de colégios católicos do Rio, mulher de diplomata aos 18 anos, protegée de João Cabral de Melo Neto ou Rubem Braga. Tônia Carrero decidiu que ela podia ser actriz, uma vez que não sabia fazer nada. Foi actriz de novela. Foi militante clandestina. Consumiu drogas. Fez contrabando de tapetes. Marginalizou tanto quanto pôde os seus dias. É cineasta. Cuida do espólio do pai. É uma mulher sofisticadíssima, que viveu no mundo e que tem um mundo imenso dentro dela. Ser filha de Vinicius é só uma parte. Durante anos, Suzana não quis que fosse a mais importante.
Começamos pelo quarto de vestir de Carmen Miranda?
Tive esse privilégio na infância: brincar no closet de Carmen. Fui com seis anos para Los Angeles. Vinicius conseguiu no Itamaraty [Ministério das Relações Exteriores] que Los Angeles fosse o primeiro posto. Ele foi crítico de cinema, fundou um cineclube, foi amigo do grande cineasta inaugural Mário Peixoto e de um grupo de intelectuais. Eram estetas do cinema, defendiam o cinema mudo. Ao mesmo tempo, quando o Orson Welles veio filmar no Brasil, ficou muito amigo do Orson Welles.
Mudaram-se em 1946. Carmen Miranda era uma estrela de cinema, nesses anos.
Carmen Miranda era a embaixatriz de uma pequena colónia brasileira. Ela não tinha filhos, e dava bola para criança, para mim e meu irmão. A piscina da Carmen, foi onde aprendi a nadar.Era uma piscinona Hollywood. De vez em quando, tinha esse prémio, que era ver os closets [armários]...
Como eram?
Impecáveis. O sapato em baixo, o costume [fato, roupa] e o chapéu.Tudo pronto-a-vestir, tudo combinado. Essa baiana estilizada, essa brasileira louca que ela inventou, para mim era uma coisa de sonho.
Em que é que o closet da Carmen Miranda diferia do closet da sua mãe?
Minha mãe era paulista, de uma família tradicional, rica. Era muito elegante e vestia-se discretamente. Era mais ou menos o contrário de Carmen, que era kitsch, cafonésima. Apesar da síntese genial que ela encontrou e que passou a representar o Brasil. Era muito boa cantora. Em casa, cantava fados. Sabia muito das origens da música popular brasileira, e Vinicius também. Ficavam ali num bate bola... “Você lembra de tal? De Pixinguinha? Você lembra de…”.
A sua mãe não teve ciúmes? Uma encarnava a liberdade e a luxúria, a outra o recato e a família.
Minha mãe acabou ficando confidente dela. Virou um apoio para Carmen numa época em que estava brigando muito no casamento, com o David. Engraçado: Carmen falava mal dele, em português com ele presente! Eu tinha uns sete, oito anos, e ficava morrendo de medo... Que ele entendesse alguma coisa.
Ou seja, vivia entre os adultos e os seus assuntos eram as relações matrimoniais e os closets...
Todas essas histórias, eu ouvia, adorava. Ficava brincando, quietinha, fazendo bolinho de terra, mas na verdade ouvindo. E maravilha das maravilhas, Vinicius, como fazia crítica de cinema, era convidado para as previews [ante-estreias], nos estúdios. Algumas vezes, fui com ele. Acho que a minha relação com o cinema vem disso.
Lembra-se da primeira ida ao cinema?
A primeira, não lembro. Lembro de uma em que encontrei no corredor Montgomery Clift! Tinha nove anos, fazia colecção de PhotoPlay, que era uma revista de cinema tradicional, e as minhas paixões eram Montgomery Clift e Ava Gardner. Quase desmaiei, saí de perna mole...
Como perceber essa precocidade, esse interesse por figuras como o Montgomery Clift?
Tinha a ver com a educação modernista que tive. E por conviver com tantos artistas desde cedo. O MacCarthismo estava com todo o poder e frequentavam minha casa roteiristas de esquerda, que tinham sido “black listed”; eram amigos de meu pai via Orson Welles.
Conheceu o Orson Welles?
Uma vez fui no set d’“A Dama de Shanghai”. Meu pai disse alguma coisa como: “Ahh, essa é minha filha”, e ele nem ligou...
Orson Welles tinha a Rita Hayworth no set…
Rita Hayworth era a paixão do meu pai! Tudo isso é muito consanguíneo. Mas eu era tão apaixonada pelo cinema, pelas estrelas, que não me ocorreria ter ciúmes. Meu pai não era uma pessoa famosa. Sabia que meu pai era poeta, e logo, logo, aprendi que não era muito bom dizer que ele era poeta.
Porquê?
É uma profissão, para uma criança americana, bem estranha. Era melhor dizer que era diplomata, que é uma coisa respeitável, confiável. [Em] paralelo a essa coisa do cinema, teve a paixão de Vinicius por jazz, que foi fundamental na minha formação. Tem uns “riffs” de Charlie Parker que sei nota por nota, de tantas vezes que ouvi. E fui duas vezes a New Orleans, para ouvir fulano ou sicrano.
Era uma criança. Vinicius levava-a para os bares para ouvir jazz?
Como ficava com medo de ficar sozinha no hotel, ele me levava. A gente entrava pela porta dos fundos, eu em geral enrolada num casacão qualquer. Dormia e acordava, e ouvia um pouco da conversa, um pouco da música… Aquilo era uma forma de educar. Meu pai nunca me levou no dentista; só me levava... na boite! Minha mãe, mais do que meu pai, lia para mim.
O inglês foi a língua materna?
Eles falavam português connosco e o meu irmão e eu respondíamos em inglês. Sofri muito quando voltei para o Brasil; passei um ano falando com sotaque, e não sabia uma porção de palavras. A minha mãe tinha sido do colégio Sion, frequentado por todas as meninas daquele nível social; e me pôs lá. [Transitei] do colégio público americano, onde eu jogava baseball, para um colégio de freiras, no Rio.
Fala de uma maneira vívida do período americano, como se fossem os primeiros anos da sua vida. O que está para trás tem um peso significativo?
Eu me lembro muito pouco do que está para trás. Me lembro da nossa casa, no Leblon. Me lembro de meu irmão... Tinha um pátio no fundo da casa, com um laguinho de peixes; um dia, ele caiu dentro do laguinho. Fiquei olhando. A empregada é que o salvou. Fiquei brincando com as bonecas, com as perninhas dele para fora...
A fazer de conta que não estava a acontecer nada…
Com 80 mil anos de psicanálise é fácil desvendar esse projecto assassino de uma menina de cinco anos, que teve um irmão. Meus pais se separaram nesse momento. Fiquei bagunceira, revoltada, fui expulsa de uns três colégios. Vinicius foi embora, para Paris. Estabeleci uma relação muito forte com um tio que era artista plástico. Foi quem me deu os primeiros livros.
Foi um pai putativo, na ausência desse pai que, a dada altura, passou a ser o Vinicius de Moraes?
Ainda não, estou falando dos anos 50. O que aconteceu foi que ele casou de novo. E não contou para gente! Nós nos escrevíamos e ele telefonava para o colégio interno; eu adorava isso! Estava na classe, vinha a professora e dizia: “Seu pai está telefonando de Paris”.
E ia a correr?
Não. Fazia uma pose, para humilhar as minhas colegas, que não tinham um pai em Paris, que telefonasse! Tinha muita saudade. Nesse meio tempo, casou, teve uma filha. Quando voltou, em 56, eu já estava com 16 anos. A gente ia almoçar juntos; ele estava no [Hotel] Copacabana Palace, era suposto eu ir depois da aula, e, cheia de ansiedade, fui mais cedo. Bati, a porta se abriu, e tinha [minha irmã] Georgiana, com três anos e pouco, e Lila bem grávida... Eu pirei. Fiquei muito desiludida. Por causa da mentira.
E ciumenta.
Claro. De ter uma irmã que eu nem sabia que existia. Mas sobretudo, porque mentira era um tabu. Aquilo desmoronou o meu mundo.
Questionou o que estava para trás?
É. Como se tudo fosse fake [falso]. Passei a olhar os adultos de outra forma. Criei um super-ouvido para as nuances das mentiras, da conversa social superficial. Para não ser mais desiludida.
E a relação com os da sua idade?
Eu era muito solitária. Tinha um sentimento de ser diferente e superior. Sabia quem era Dostoiévski, falava inglês, tinha brincado no closet da Carmen Miranda!
Contava essas coisas?
Não. Elas não faziam sucesso. Nem muita gente sabia da importância de Carmen Miranda, muito menos de Jazz. Nem conheciam o Montgomery Clif, ou o Carlos Drummond de Andrade. Era um discurso tão diferente do discurso burguês das meninas do colégio... O que aconteceu foi que minha vida virou esquizofrénica. Tive uma vida de praia.
A praia era o espaço para socializar, normalizar?
Extremamente democrático. E aí, não esperava que ninguém soubesse quem eram os Impressionistas. Jogava volley, pegava surf, tinha amigos com nomes estranhos. Frequentava muito uma favela que tinha no Leblon, porque uma empregada que a gente teve morava lá. Era um outro departamento. O que estava para trás ficou frozen [congelado] e nostálgico.
Fisicamente, distinguia-se, também. Não tinha o ar da brasileira cabocla. Era magra e refinada.
Sou de todas essas misturas. A família da minha mãe, antiga e aristocrática, já tinha misturado muito. A família de Vinicius é toda mais branca, porque tem suecos que emigraram; era uma família bem pequeno-burguesa. Daí ter sido um drama, esse casamento. Ele era um pé rapado. Minha mãe estava noiva de um paulista rico, com enxoval pronto, os lençóis bordados com os monogramas, num fino linho. Conheceu Vinicius aqui no Rio e desfez o noivado; mas os lençóis ficaram! [risos]
Vinicius dormiu nos lençóis do outro?
Toda a minha infância tinha aqueles monogramas, do noivo que foi abandonado! Os lençóis de linho: maravilhosos!
O que é que Vinicius esperava de si?
Nem ele nem minha mãe predeterminaram alguma coisa. Mas uma frase voltou muitas vezes na minha cabeça, em sessões de análise… “Não sei o que é que quero fazer”. Tinha 17 anos. A barreira era muito alta. Para fazer alguma coisa, tinha que ser genial. Não me dava possibilidade de falhar ou de fazer coisas medíocres. Minha mãe me disse: “Não se preocupe, qualquer coisa que você for fazer, vai fazer bem.” Que medo... Resolvi isso casando com 18 anos, com um amigo do meu pai, que também era diplomata, 20 anos mais velho do que eu.
Freud explains: na impossibilidade de casar com o pai, casou com uma encarnação do pai.
Esse pobre homem! Eu, que casei com ele! Eu, que quis ele! Fui morar na Europa e comecei a me estruturar como uma pessoa independente.
O seu marido era parecido com o seu pai? Era o homem que abandona? Era estável? Era fiável?
Eu era tão menina que nem sei. Os meus namorados anteriores eram, no máximo, pessoas que sabiam quem eram os Impressionistas; ele era um homem de 38 anos, que tinha sido diplomata na Índia, culto, muito elegante, do mundo. Fiquei apaixonadíssima por ele. E ele morrendo de medo de mim!
Porquê?
Porque eu era muito menina. Comecei a paquerar ele e ele dizia: “Não faça isso, seu pai vai me matar!!!”. Mas finquei, finquei, até que ganhei! Minha mãe ficou apavorada, detestou aquilo. Vinicius ficou contra; mas Vinicius era mais easy going [descontraído]. Casei, fui no dia seguinte para Paris, e no aeroporto, Vinicius chegou p’ra mim, me beijando, disse assim: “Tchau, tchau. Não vai durar muito.” [gargalhada] E uma tia minha disse: “Sobretudo, não tenha filhos.” Parti para minha lua de mel com estas duas frases...
O seu pai estava em que casamento nessa altura?
Estava com Lucinha Proença, a terceira mulher.
Coincidiu com a explosão de popularidade?
Foi o comecinho. “Orfeu [Negro]” é de 56. Eu vinha dessa desilusão muito grande [da mentira]; então ele puxou meu saco e me dedicou a peça. Fez o que pôde para me ganhar de volta.
Quanto tempo é que demorou a sua zanga com ele?
Essa zanga durou para sempre. Tenho isso até hoje. Passou a raiva. Tenho 68 anos, já falei muito sobre esse assunto. Detesto mentiras.
O prognóstico do seu pai estava certo?
O casamento durou cinco para seis anos, e fiquei grávida rápido. Estava morando perto de Marselha, no campo, e nessa época João Cabral de Melo Neto era o outro cônsul. Me deu a ler Valéry, Mallarmé, coisas que nem entendi inteiramente.
Quem era o seu interlocutor para os assuntos do coração e do físico?
Minha mãe. Depois de casada, e depois que tive meu filho – uma alegria – percebi que não ia querer aquela vida; portanto, não deveria ter mais filhos. Iam só complicar uma manobra inevitável: me separar.
Porque é que aquela vida não era para si?
Foi maravilhosa por um lado; viajei, fui aos museus, virei uma pessoa mais civilizada e mais culta. Fui morar na Tunísia, no final da guerra da Argélia, e aquilo foi uma porta que se abriu na minha vida. Tunes parecia “O Quarteto de Alexandria” [Lawrence Durrell]. Mas a coisa mais formal do corpo diplomático, achava muito chata. Eu me entediava nas festinhas, sentar com gente que era interessada em coisas que não eram as minhas. Rubem Braga, o cronista brasileiro, era embaixador de Marrocos, e ficou muito meu amigo. Quando o casamento estava piorando, me mandava para Marrocos, passava 15 dias com o Rubem.
Escrevia cartas?
Muitas. Pró meu pai, no outro dia, achei um bolo de cartas. E dele para mim. Também me escrevia com minha mãe.
Com o seu pai não podia falar dos desaires do casamento… Se tinha casado com um igual…
Seria falar mal dele para ele mesmo! As cartas eram sobre a Bossa Nova, o sucesso de “Orfeu”. Ele virou um “pop star”.
Lamentou não estar no Brasil, nesse período?
Muito. Fazia esse discurso para mim própria: “Sei que estou ganhando uma porção de coisas aqui, mas tem uma outra coisa acontecendo no Brasil”. Levei um tempo para dizer: “Mesmo que não saiba fazer nada, vou arrumar um emprego e voltar para o Brasil”.
Separou-se e voltou ao Brasil. Para usar uma expressão sua, como é que se virou?
Fui morar com minha mãe. Tônia Carrero disse assim: “Não sabe fazer nada? Pode ser actriz!” Estreei numa peça no Copacabana Palace, com Madame Morineau e Ziembinski, que era um grande produtor polonês [polaco]. Inacreditavelmente, deu certo! Tive boas críticas. Eu me achava uma fraude, sempre esperava alguém se levantar da plateia e dizer: “Vem cá! Que é que você está fazendo aí?” O próprio Ziembinski e Madame Morineau me olharam com a maior desconfiança. Porque fui posta ali por Tônia Carrero, amiga da mãe... Sujeira.
Era actriz e não sabia? Como é que seu certo?
Se você tem uma determinada energia e é razoavelmente bonitinha, vai aprendendo. Foi o que aconteceu comigo. Depois disso fui fazer o [musical] “Opinião”, entre Nara [Leão] e Maria Bethânia.
Chegou a pensar em ser cantora?
Não. Isso seria um sonho como voar. Minha carreira foi indo, foi indo. Fiz amizade com Glauber [Rocha, cineasta do Cinema Novo], com Joaquim Pedro de Andrade. Comecei a andar com a turma de cinema, mais do que com a turma de teatro. Teatro tinha um lado meio opressivo; era uma família, com todos os problemas de família. Eu estava fazendo um Tchekov, que é um autor que adoro, ganhei um prémio, e me chamaram da TV Globo para fazer novela. Fiquei com a maior de vontade de fazer, por causa de aquilo ser filmado.
Já era claro que queria ser realizadora?
Para mim, o cinema era Sunset Boulevard [Billy Wilder]. E obviamente não sabia fazer, nem ia fazer. Quando na França comecei a ver a Nouvelle Vague, e Godard em particular, pensei: “Isso, acho que posso fazer.” Os filmes do Cinema Novo, que meus amigos faziam, podia aprender a fazer. Era uma forma de expressão mais pessoal. Sem o aparato, a produção, o “know-how” técnico e dramatúrgico que um director americano tinha que ter. Era outra linguagem que tinha surgido, e isso era mais perto de mim.
Que coisas queria dizer nos seus filmes?
Não sabia ainda. Mas aquilo foi mais atraente do que ser actriz. Na verdade nunca gostei muito de ser actriz. Porque alguém me mandava fazer coisas... E me incomodava ser [uma figura] tão pública. Naturalmente não gostava dos textos que tinha que dizer nas novelas, aquilo era ruim. Mas aprendi muito na televisão: gravava a cena e subia para ver a montagem.
Quanto tempo é que fez novela?
Uns três ou quatro anos, no começo da TV Globo. Na primeira novela, eu fazia uma muda, cortavam minha língua! Foi maravilhoso porque não tinha que decorar texto, e um freak sempre faz sucesso! Ainda estava fazendo novela quando fiz a primeira curta-metragem sobre meu tio. Vendi um quadro de Di Cavalcanti, e fiz um filme de dez minutos.
Era a Suzana ou a filha do Vinicius? A sua luta foi ser a Suzana e não a filha do Vinicius?
É a luta de todo o mundo, de alguma forma. Você se constituir. Se seu pai é uma pessoa tão famosa, é mais difícil. Por isso é que radicalizei tantas coisas na minha vida – para me entender, para saber quem eu era. Via muitos exemplos à minha roda de filhos de pessoas famosas, que ficavam castradas, a ponto da imobilidade. Nessa fase em que fui actriz, eu avisava, quando dava entrevista, que não falaria sobre meu pai.
Quase sempre lhe chama Vinicius. Às vezes diz meu pai. Que distinção é que há na sua cabeça?
Eu chamava meu pai de “darling”. Meus pais se casaram por procuração, minha mãe foi deserdada, vendeu as jóias, e tal. Vinicius estava fazendo uma bolsa em Oxford, ficaram lá dois anos e eles se chamavam de “darling”. Teve uma babá, num determinado momento, que chamava meu pai de “Seu Darling”! [risos] Sempre o chamei de “darling”, e depois comecei a achar isso um pouco íntimo, ridículo na frente dos outros, e comecei a chamá-lo de Vinicius.
Caetano e Bethânia eram seus amigos íntimos. Andar com os baianos foi mais um rompimento com o seu pai e os seus amigos?
Foi a minha emancipação. Assim como a militância política. Assim como as drogas. Fumava maconha, depois cheirava cocaína. Vivi essa contracultura. Parei de trabalhar, saí da TV Globo, vivia muito apertada de dinheiro, me marginalizei o máximo que pude. Comecei a fazer psicanálise.
Fez com o Hélio Pellegrino, o mais famoso psicanalista desse tempo?
Não. Hélio era muito amigo do meu pai... Fiz com psicanalista lacaniano.
Não se pode falar daquela geração sem falar do consumo de drogas, não é verdade?
É. Glauber [Rocha] foi a primeira pessoa com quem tomei um ácido. Eu tinha lido o Huxley, as pessoas tomavam droga como um aprendizado… Era um desinibidor em busca de um aumento de percepção. Já no final dos anos 70, anos 80, veio muito pesada a coisa da cocaína, da qual participei durante um tempo. Depois, enjoei.
Como quem enjoa de bifes?
Enjoei das conversas, de ouvir as mesmas histórias. Substâncias são substâncias, interessa é o que elas produzem. A cocaína a partir de um certo momento me produziu tédio. Tomei muito ácido na época, e nunca fiz uma viagem em que perdesse completamente o controle – tão grande é meu espírito de autocrítica e meu superego.
Como ficou a sua relação com o seu pai nessa longa travessia?
Óptima. Ele sabia, eu fumava maconha na frente dele. Vinicius era de uma geração de alcoólatras e bebia excepcionalmente bem. Fui presa na altura da militância. Quando aquilo começou a desmoronar, tive muita sorte que ninguém me dedou [denunciou]. Tenho esta imagem na minha cabeça: um menino para quem fui levar instruções, papéis, num quartinho num subúrbio no Rio, só tinha um colchão, a arma dele, e num canto pilhas de dinheiro. Era admirável: esses meninos abriram mão de tudo por idealismo.
Está a dizer que, no fundo, não abriu mão de tudo… Continuava com a sua vida de actriz de novela.
Tinha essas duas vidas paralelas. Mas mudei muitíssimo, só de ver aquilo se dando. Por exemplo: conversava com chefes sindicais em várias fábricas, e a resposta dessa gente, em nome de quem estava se fazendo sacrifícios e arriscando a pele, era tão realista. Sujeito que é operário diz assim: “Se me pegarem, fodeu! Vocês são uns meninos que têm pais, que têm dinheiro para advogados. A barra aqui é muito mais pesada e o buraco é muito mais em baixo.”
Coisa que sabia: se corresse mal, tinha os seus pais, e dinheiro para advogado, ou um amigo dos pais que era advogado…
Sim. Tanto que fui presa, me deram uns tapas, mas não fui torturada, e acabei saindo. Três amigos meus, uma gente mais simples, sem minhas costas quentes, foram torturados e assassinados, barbaramente. Claro que eles estavam fazendo um tipo de acção que eu não estava fazendo – assaltando banco. Não era possível fazer novela e assaltar banco! Mas quando o embaixador americano foi raptado [1969], quem guardou uma das meninas directamente implicada fui eu.
Como é que acabou essa fase transgressora? Como é que se transforma na cineasta?
Saí da TV Globo. Ficando, não ia ter credibilidade para fazer outros projectos. Fiquei desempregada, paupérrima. Durante o tempo que trabalhei na Globo, ganhei muito dinheiro e comprei um apartamento – na rua não ia ficar. Comecei a pedir emprego prós meus amigos: “Quero ser assistente”. Tinha trinta e tal anos. Trabalhei um pouco com os super-underground, trabalhei muito com Joaquim Pedro. Fui fazendo as curtas-metragens até um ponto em que quis fazer longa.
Assinou a longa Mil e Uma, com a qual esteve no Festival de Veneza. Simultaneamente começou a trabalhar na organização da obra de Vinicius. Como é que viveu a morte de seu pai?
Foi muito, muito, muito triste. E também um alívio. Sou a mais velha, fiquei cuidando das coisas, do inventário, dessas mulheres todas, com esses filhos todos. Fazer disso uma coisa justa e elegante foi difícil. Ele não ligava para os contratos: assinava qualquer coisa.
Olhando para toda a produção de Vinicius, quer músicas, quer livros, podemos pensar que o dinheiro dos direitos e autor não acaba.
Mas não rola. É um mundo que dá margem para muita roubalheira. Lido constantemente com advogados na França, nos Estados Unidos, no mundo inteiro. Me senti na obrigação de fazer isso. Vinicius virou um personagem muito folclórico.
E por isso foi alívio a morte dele?
Não. O alívio é muito mais complexo. A dor foi muito maior do que o alívio. Começou a me dar uma aflição de ver que a obra poética e a importância artística estavam diminuídas em relação ao folclore das nove mulheres e do copo de whisky. Comecei a trabalhar seriamente em trazer à tona a importância dele como escritor, a coragem que teve nessas mudanças da literatura canónica para a canção popular, os preconceitos que estão implícitos nessas críticas, a qualidade e a feitura da poesia.
Convidou dois amigos seus, os poetas António Cícero e Eucanaã Ferraz, que são de outra geração, para fazer uma releitura da obra. O documentário sobre Vinicius foi também organizado e produzido por si.
É o documentário mais visto no Brasil, junto com o do Pelé. E fiz um site com a obra completa – um banco de dados, corrigido, perfeito e de graça, disponível. Tem três mil entradas por dia, e gente do interior, da puta que o pariu, onde não tem dinheiro para comprar um livro, tem acesso, ali. Acho que ele gostaria muito disso. Estou há anos principalmente dedicada a isso. O documentário mudou a imagem dele; agora tem não sei quantas teses académicas sendo feitas.
Que coisas se permitiu fazer depois da morte dele, como escrever ou realizar, que não se permitia quando ele era vivo?
Esse é um lado que vem com a palavra alívio. É terrível de dizer, mas é verdade. São sentimentos contraditórios bem complexos...
Toda a sua luta foi para deixar de ser a filha de Vinicius. E acaba sendo a filha de Vinicius.
Eu falei isso no outro dia. É uma história grega, no sentido de destino. Um destino que só pude cumprir a partir de eu virar eu mesma. Isso foi bacana. Isso é bacana.
Publicado originalmente no Público em 2008
Suzana de Moraes morreu a 27 de Janeiro de 2015
Kiluanji Kia Henda. Que quer dizer este nome? Nascido em 1979, em Angola. Como é viver num país onde o improviso é uma condição se sobrevivência? A memória de um país que não teve tempo para olhar para si, a reflexão sobre anos de instabilidade, hordas de mutilados, o horror do guerra, está no seu trabalho.
Os pais acharam que quando crescesse não precisaria de ir para a guerra. Não foi. Mas a guerra só acabou quando já era adulto. Viveu num país em guerra civil desde que tem memória de si. Cresceu com um país que oscilou entre a experiência comunista e a abertura ao mercado. Aprendeu um novo hino, mitificou, como todos da sua geração, Agostinho Neto. O pai, político, a mãe, mulher de político, empenharam-se na construção de uma nova Angola. Que não é exactamente esta onde Kiluanji Kia Henda vive.
Esta, feita de musseques e kuduro, estabelecimentos comerciais onde se paga em dólares e murais revolucionários nas paredes, é a que aparece no trabalho que faz. A fotografia é uma arma? O fundo do seu trabalho é político, sim. Mas sem perder de vista a poesia.
Fez da fotografia o seu suporte preferencial. A instalação e o vídeo são modalidades que também pratica. No princípio, quis ser músico. Fez residências artísticas e expôs em cidades como Nova Iorque ou S. Paulo, em países como Itália ou África do Sul. Tem a base em Luanda, imensa babel onde se sente em casa.
Entrevista há uma semana, na véspera da inauguração do BES Photo, no CCB, de que é um dos finalistas. Quatro da tarde de domingo, num hotel em frente ao rio. Cabelo apanhado em rastas, jeans e t-shirt, a voz nunca se emociona ou exalta.
Kiluanji?
Significa guerrilheiro. Era o nome de um dos reis do Ndongo, Ngola Kiluanji. Foi dado pelo meu pai. Todos na minha família temos nomes em kimbundo [uma das línguas de Angola], desde o tempo colonial.
Porque é que era importante para o seu pai dar estes nomes aos filhos?
Era o seu lado revolucionário. Foi uma das figuras que combateram pela independência. Fez parte da luta na clandestinidade. Nunca foi guerrilheiro nas matas. No tempo colonial, uma das estratégias era apagar a herança tradicional. Havia um estatuto – chamavam-lhe “assimilado” – e só com ele é que se podia frequentar a escola, ter oportunidades dentro da sociedade. Os pais faziam questão de que os filhos usufruíssem desse estatuto. Para se ser “assimilado” tinha de se deixar muita coisa para trás; deixar de falar kimbundo, deixar certos hábitos.
Esse estatuto obrigava a quê, a falar português?
Sim. A estar ligado à Igreja Católica. E até pequenas coisas, como comer com talheres. Era uma maneira de as pessoas entrarem para a cultura ocidental.
O que é que o seu pai contava dos seus avós, do que era essa marca mais angolana e menos ocidental?
O pai dele trabalhava como advogado e foi defensor de várias causas. Daí também parte essa coisa da luta, da resistência. Se calhar por ter nascido no interior de Angola, sempre houve a preocupação de deixar viva a marca da nossa tradição. Devia ter oito anos quando se mudou para Luanda. A minha mãe nasceu no Kwanza-Norte. Luanda é uma cidade que desde há muito tempo vem albergando o resto do país.
Pertence a uma geração que nasceu com o país (nasceu em 1979, a independência é de 1975). Mas não se pode compreender quem é, nem o país, sem compreender o que está para trás. Em casa, contava-se muita coisa do passado?
Já não conheci os meus avós. Sou o último de seis filhos. Há um gap geracional. Muita dessa história passou-me ao lado. Cresci num meio onde sempre se debateu muito sobre política, numa casa que foi frequentada por vários políticos angolanos, fins-de-semana de discussões acesas. Tinha tios que eram de outros partidos (do FNLA, por exemplo). O meu pai sempre esteve ligado ao MPLA. Tinha o Fidel Castro como ídolo, era comunista ferrenho. Se calhar, tudo isso influencia o meu trabalho, o meu interesse como artista.
A sua mãe e a família da sua mãe, como é que se posicionavam?
Era muito uma questão regional. Muita gente da parte centro e litoral de Angola estava mais ligada a MPLA. Até hoje. Kwanza-Norte ou Malanje são bastiões muito fortes do MPLA. Era impossível viver com alguém que estivesse comprometido politicamente sem estar também comprometido. Sendo mulher de revolucionário, sempre teve de acompanhar [a causa política]. O meu pai: até final dos anos 80 esteve a trabalhar no partido, mas depois cortou.
Com o que é que se desencantou?
Daquela geração, vários militantes se desencantaram. Aquilo por que lutaram, que julgavam que iam conquistar, como Angola independente… Houve várias desilusões, com o sistema, com o que se passava no país. No caso dele, houve outros nomes da política de quem, lentamente, se foi separando. O próprio país mudou. Vivemos uma tentativa de comunismo, que aconteceu durante uma década. Depois tivemos que entrar para a ideia de democracia, economia de mercado. Para pessoas que defendiam certos ideais, não era compatível com aquilo em que o país se tinha tornado. Também foi por isso que se afastou.
A visão política do seu pai, que nunca deixou de ser comunista, marcou-o muito?
Esse envolvimento dele, claro que marcou. Sempre teve interesse na política internacional, e fazia questão de que estivéssemos atentos à vida política do país e à situação internacional.
Uma fotografia sua: uma criança está sentada, de perna cruzada, num espaço em escombros, e o título é “Side effects of cold war” [2005]. É uma obra grandemente política.
Sempre houve uma estratégia global na qual Angola estava incluída. Aquilo que vivíamos não era simplesmente responsabilidade do país ou de quem dirigia o país. Foi assim que aprendi a ver o meu país. Angola sempre sofreu muito a ingerência de poderes internacionais. Caso da África do Sul, da União Soviética, dos Estados Unidos. É costume dizer que Angola era o campo quente da Guerra Fria. Se bem que muitos dos factos do que se passava em Angola eram omitidos. Quem estava em Nova Iorque não devia imaginar o que se passava no Cuando-Cubango, as batalhas que ali se travavam.
O seu trabalho procura olhar e compreender a vossa história?
Sempre foi importante ter essa compreensão. Durante a época de conflito não houve tempo para reflectir. A guerra exige um grande esforço físico, humano; no final do dia ninguém está disposto a pensar sobre o que é que viveu. Mas com a paz, lentamente, vai-se pensando sobre isso. Há resquícios, até hoje, dessa ingerência estrangeira, daquilo que fez de Angola um campo de batalha, de experimentações, de armamentos, e que implicou várias potências mundiais.
As suas memórias estão ligadas a isso e a um clima de guerra civil. Já era adulto quando a paz foi assinada.
Cresci nesse clima. Luanda sempre esteve protegida de guerra propriamente dita. Mas quando um país está em guerra há certas circunstâncias que são próprias dessa situação. Mesmo assim considero-me um privilegiado. Onde me senti mais afectado foi no ter a família a emigrar. Vários tias e tios que tiveram de vir para a Europa, para o Canadá. Por causa do medo de estar num país em guerra, de um dia ser afectado directamente pela guerra. Depois de 1975, o cenário podia ter tomado várias repercussões, depois de os portugueses terem saído. Certas pessoas preferiram abandonar mesmo o país.
Os seus pais puseram essa hipótese?
Não, nunca. Incrível foi terem achado que, com a idade que eu tinha, nunca chegaria a altura de ir para a guerra. Acreditavam que nessa altura a guerra havia de estar acabada. Mas ainda tive que fugir das rusgas. Quando a guerra acabou, tinha 23 anos.
Fugir das rusgas, como?
Havia rusgas na cidade, para recrutar novos mancebos. Contudo, o que mais me afligia nesse período era a falta de circulação pelo meu próprio país. Ficávamos muito fechados em Luanda, quando viajávamos era de férias para a Europa. Conhecer o país – isso foi-nos roubado durante muito tempo. Quando penso em pessoas como a minha mãe… Quando a guerra pela independência começou, ela tinha 21 anos; quando a guerra civil acabou, tinha 62 anos. Ficou 40 anos nessa vida, instável, num país com limitações de circulação por questões de segurança. No noticiário estávamos sempre a assistir a imagens da brutalidade que se passava no interior do país.
Como é que a sua vida era marcada por isso?, a sua cidade, a sua rua?
Luanda também se foi alterando. A explosão demográfica, a cidade em que se tornou, é resultado de muitos anos de conflito. As pessoas fugiam da guerra e viviam nas ruas de Luanda, crianças, jovens. Era o único porto seguro. Nasci e cresci numa rua que tinha um centro ortopédico onde iam parar grande parte dos mutilados e feridos de guerra, e que era o único centro onde se fabricavam próteses. Era impressionante a quantidade de pessoas sem pernas, sem braços que circulavam pela cidade. Depois de tanto viver com esse sofrimento, o que acontece é que começamos a tornar-nos imunes. De repente, já não nos abala tanto ver uma pessoa a viver numa miséria extrema. Essa é a parte mais perigosa de viver uma situação de guerra, essa perda de sensibilidade. Corremos todos esse risco.
Ainda que tenha assistido de perto a essa realidade, sentia que aquilo lhe podia acontecer? Sentia uma ameaça sobre a sua vida, sobre a sua integridade física?
Vivi num período em que também podia ter sido incorporado. Tenho amigos que tiveram de ir para a frente de combate. Amigos que cresceram comigo estiveram em acidentes com minas. De maneira alguma senti que estava isolado daquilo. Também era susceptível de algum dia ir para uma frente de combate.
O seu pai revolucionário, aquele que lutou pela independência do país, teria querido que fosse para a guerra, que se empenhasse mais politicamente?
Não, porque chegou um ponto em que a guerra perdeu o seu sentido. As pessoas já não acreditavam naquilo por que estavam a lutar. Tornou-se numa guerra de angolanos contra angolanos. Quando a África do Sul tentou invadir Angola, um primo, o Cristiano, que nem tinha que ir para a guerra, era engenheiro mecânico, largou tudo e foi para a frente de combate. Tratava-se de um país a invadir o outro – implicava outro sentimento.
Depois das primeiras eleições de 1992, as pessoas deram-se conta que estavam a entrar numa guerra estúpida. Quando chegou a minha altura de ser recrutado, houve muitas mães que saíram à rua e se manifestaram.
A sua mãe manifestou-se?
Não, mas ela partilhava do mesmo sentimento. Fez várias tentativas no sentido de conseguir um adiamento para mim. As pessoas já não estavam dispostas a fazer parte de uma guerra numa zona longínqua do país, já não se sentia esse dever patriótico.
Na escola tinham informação política, cantavam o hino, tinham de ir fardados, havia fotografias nas paredes?
Tínhamos de cantar o hino. [Canta] “Heróis do mar”… Não, é o outro [riso].
Justamente, queria saber qual é que lhe ocorria primeiro.
[canta] “Ó pátria, nunca mais esqueceremos os heróis de 4 de Fevereiro, ó pátria, saudamos os teus filhos tombados pela nossa independência, honramos o passado, a nossa história, construímos para o futuro um homem novo…”. Cantávamos todos os dias. Havia muito essa ideia do poder popular. Inspirava-se nas marchas e era revolucionário.
Porque é que brincou e começou por cantar “Heróis do mar”? O seu pai ainda teve que cantar na escola o hino português.
Estudavam os rios, a história de Portugal, era muito mais do que o hino. Para mim, sempre foi engraçada a ideia de um país, 15 vezes maior que Portugal, ser simplesmente uma província. Esses malabarismos políticos… Hoje, se ouvimos falar, até parece uma coisa utópica.
Quando foi para a escola, Angola era um país soberano há meia dúzia de anos. O hino não podia ser outro senão o angolano.
Sim. A questão de ser artista em Angola: sempre foi esse desafio de viver num país experimental, que estava a acabar de nascer. A realidade em Angola consegue superar o criativo. Há sempre esse lado da improvisação, que até hoje foi necessário para que o país não caísse. Na Europa, os jovens nasceram num país onde está quase tudo estabelecido, pensado, sólido; isso às vezes é muito frustrante para quem está numa área criativa. Em Angola estava tudo em constante mutação.
Estava ou está?
Está. Novo hino, nova bandeira. O homem novo.
O que é que representava para uma criança Agostinho Neto, primeiro presidente do país?
Morreu dois meses depois de eu nascer. Era uma figura numa câmara de vidro, dentro de um mausoléu, conservado, já sem bigode. Eu pertencia à OPA, a Organização dos Pioneiros de Agostinho Neto. Sempre houve uma ligação muito forte entre a ideia do pioneiro e a imagem do Agostinho Neto. O poder sempre tentou passar esse lado.
Como é que era a vossa escola?
Tinha áreas grandes, pátios, mista. Durante os anos 80, não havia uma separação social. Desde o filho do presidente ao filho do contínuo na mesma sala. Começou a haver depois, na mudança para o capitalismo.
Sentiu-se no dia-a-dia uma viragem depois de 1992?
Sentiu. Estávamos a viver num país onde podíamos ser presos por ter dólares no bolso, e de repente tínhamos pessoas a trocar dinheiro na rua. Hoje pode-se entrar num estabelecimento comercial e pagar em dólares. É uma grande mudança.
[Na escola, tínhamos aquilo a que] chamávamos “trabalho voluntário obrigatório”. Limpar a escola, participar nos comícios. É sempre bom fazer parte dessas organizações, mas sempre fugi às tarefas mais partidárias. Normalmente era aos fins-de-semana, e não dispensava a cama. Nunca senti uma presença política forte. Era uma ideia de comunismo que nunca chegou a ser comunismo. Era mais a ideia de uma economia centralizada. Tive a sorte de ter ido a Cuba com oito anos, e aí sim, senti outra coisa.
Que família era a sua e que estatuto económico tinha para lhe permitir viagens à Europa, a Cuba? Havia dinheiro.
Havia muitas coisas que eram subsidiadas pelo Estado. Se vendesse duas grades de gasosa na rua, e tivesse a oportunidade de trocar esse dinheiro dentro de um banco, podia comprar uma passagem para Lisboa. O meu pai trabalhou muitos anos como topógrafo, e depois da independência ocupou cargos no Governo. Chegou a ser ministro do Comércio. Adriano dos Santos Júnior. Quando cortou com a política, em 1986/87, trabalhou no Ministério da Indústria. Tinha o curso superior de Economia. Trabalha como consultor.
Os murais, todo o tipo de propaganda política, que ainda se encontra nas paredes de Luanda, são uma constante do seu trabalho. Muitos datam do período em que o seu pai era ministro.
A instabilidade que se viveu, a falta de documentação, de livros, espoletou o meu interesse em recuperar resquícios dessa fase. Houve quase um genocídio cultural em Angola nos anos 80 causado pela situação de guerra. Existe alguma música, mas tudo o que era ligado à indústria [cultural], morreu. Eu tinha um interesse grande pela música, mas não se encontrava à venda uma guitarra eléctrica.
As pessoas não têm as coisas bem resolvidas. Vai ser preciso algum tempo até podermos falar destes assuntos de forma mais livre. Ao mesmo tempo, é urgente a reflexão sobre o que vivíamos antes. Mesmo as perguntas que me fez, de como era a escola, são coisas em que não tinha pensado. A palavra de ordem, “estudar é um dever revolucionário”, “a caneta é a arma do pioneiro”, que estava nas paredes, nos livros, era de uma escola marxista, que já não influencia a realidade angolana. Tudo copiado da revolução russa. Ainda é difícil fazer um quadro do que foi o país nestes 35 anos. Um balanço. Faltam depoimentos, faltam imagens. O meu trabalho liga com isso. Tentar recuperar o que está presente dessa história passada.
Foi claro que aquilo que queria fotografar era um país a ser erguido? Com os seus paradoxos, magias do quotidiano, contradições.
No início, não tinha uma visão tão politizada sobre as coisas. Era mais explorar o meio técnico do que as histórias que fotografava. Essa preocupação surgiu mais tarde.
Foi um encontrar da sua narrativa, no fundo.
Sim. Já tinha dentro de mim essa ligação à história. Quando comecei a viajar e a perceber melhor o mundo foi necessário entender o quanto tínhamos dos outros em nós. De onde sou influenciado. Quantos fragmentos de outros sítios há em mim. Angola é um país muito permeável a outras culturas. Por não termos indústria, consumimos tudo o que vem de fora. Roupas, sapatos, pente. O epicentro da minha ideia está em Angola, mas a ideia é bem global. Às vezes disfarçamos, mas existe uma interdependência entre os países. Essa interdependência não é só física, é também genética. Eu tenho um avô português.
O recíproco também é verdadeiro.
Claro. O que é que representa Angola no mundo? Desde os escravos que foram para as Américas – em que é que influenciaram a cultura? A grande música americana: quantos desses músicos negros saíram dos portos de escravos de Angola? O meu trabalho é entender essas relações, essa dinâmica, que é bem visível no Atlântico, e que traz uma cultura híbrida, universal. Não tem bandeiras, não tem nações, não tem raças.
Já me perguntaram na África do Sul: “Porque é que gostas de rock?, rock é música de branco”. O meu trabalho ronda por aí. Ajuda a encurtar distâncias, a melhorar o diálogo.
Ocorre-me a fotografia que fez de um homem, com o corpo pintado de branco. Tem um carácter tribal muito acentuado.
Mas tem umas sapatilhas Puma. Essa foto traduz o que é Luanda neste momento. Remete para a cultura suburbana, para a mistura do high-tech com o animismo. Muitas das pessoas que vivem nos musseques nasceram no interior e transportam em si os ritmos tribais; o choque disso com a tecnologia que se encontra na grande cidade resulta no kuduro. Que é um dos maiores e melhores fenómenos culturais que aconteceram em Angola nos últimos 20 anos.
Luanda tem essa hibridez de que falava, e uma enorme contradição. Há bairros cujo metro quadrado custa 7500 dólares, e isto coexiste com o curandeiro na outra esquina.
Eu não gosto do discurso da angolanidade. Mas se há alguma coisa próxima de angolanidade é o que sai dos musseques. Se há coisa que posso reconhecer como sendo nacional é o que sai dos guetos de Luanda. O semba [e não samba, estilo musical angolano]: contam-se as bandas que há em Luanda e deve haver mais algumas noutras províncias. O kuduro está em tudo o que é província. Não falo só da música, mas da atitude, do vestir. Luanda convive com estes dois mundos. E depois tem o mundo do centro da cidade, mais conservador, onde as pessoas têm melhor qualidade de vida.
Não sente esse lado conservador nos musseques?
Não. Por exemplo, o problema da homossexualidade, nos subúrbios das grandes cidades da África do Sul, é violento. Todos os dias uma lésbica é violada, matam um gay. Fiz até um trabalho sobre isso. Em Luanda, não. Nos meios suburbanos há uma… nem usaria a palavra tolerância, que acho que não se encaixa; há uma liberdade na maneira de ser. Para falar de homossexualidade: há pessoas que dizem que quem levou a homossexualidade para África foram os europeus!, que homossexualidade é coisa de branco.
Com a religião, acontece o mesmo: no meio suburbano de Luanda tem muçulmanos, protestantes, católicos…
A grande Luanda é uma imensa babel onde coincide tudo isso?
E de forma pacífica.
Então, o que é que provoca as grandes tensões na cidade? As diferentes condições de vida, a distribuição iníqua da riqueza?
Não sinto que a cidade esteja a viver uma grande tensão. O que acho é que toda a mudança profunda, em Angola, envolveu banhos de sangue. Há esse medo. É normal que haja, está ligado à história do país. Foram 14 anos de guerra para chegar a uma independência. Foi uma semente de conflito aí lançada. Uma dissidência no partido no final dos anos 70, outro banho de sangue. Para haver eleições, outro banho de sangue, para deixar de ser um país de tendência comunista para passar a ser um país democrata. A tensão existe por causa do caos social, da diferença radical entre ricos e pobres. Mas há uma grande vitória: é o respeito pela integridade física. O que a sociedade civil quer, acima de tudo, é poder preservá-la. Consciente de que o país vai ter que sofrer mudanças.
Essas mudanças podem ser iminentes? Pode haver um contágio do que se está a viver no norte de África?
No norte de África: estamos a falar da segunda e da terceira economias de África. Estamos a falar de países como o Egipto que tem 20 milhões de usuários de internet. Podem criar-se paralelos quanto ao poder político no norte de África e em Angola. Mas o contexto histórico é completamente diferente e não temos uma população tão preparada para cobrar aquilo que quer ter, ter aquela consciência.
Na Tunísia, tiraram um ditador; mas não quer dizer que tenham acabado com a ditadura. Fazer rolar a cabeça deste ou daquele político não resolve a situação. Temos de ver até onde as sociedades estão preparadas para essas mudanças. Não adianta sair à rua e gritar pela democracia quando não fazemos nem ideia do que é isso de democracia. O que vejo em Angola, desde há anos, é que grande parte da população não é nada politizada. Simplesmente vive. Quer é paz para poder trabalhar e produzir o seu bem estar. Nas matas, onde a guerra foi sangrenta, as pessoas não sabem o que é capitalismo ou socialismo, não sabem o que é a Guerra Fria ou bloco comunista. Quer novas oportunidades de vida. Até traduzir isso em poder político, até achar que o político é que vai mudar isso… Não penso que as pessoas vejam essa responsabilidade nas mãos dos políticos. Eu, como artista, acho que devíamos dar menos importância aos políticos. Muitas pessoas, a iniciativa privada, fazem mais do que certos políticos. Há pessoas que, na sua iniciativa, promovem muito mais a cultura do que o Estado. Em África tem de se consolidar melhor a sociedade civil. Prefiro dar mais atenção àqueles que trazem mais soluções para a sociedade civil do que dirigir-me aos políticos.
Não pensa, então, que haja a possibilidade de se fazer um levantamento em Angola, como se fizeram em países como a Tunísia, Egipto, Líbia? Houve movimentações no país depois do que sucedeu no norte de África.
É difícil falar sobre isso. Por uma questão ética, não gosto de falar sobre a situação política em Angola fora de Angola. Prefiro falar quando estou em Angola. Coíbo-me de fazer certos comentários. Podemos manifestar-nos, a Constituição permite-o. Mas não dei muito crédito [a essas movimentações]. Era uma petição sem figura, anónima, e isso não resulta em nada. As pessoas têm de dar a cara pelas lutas que querem levar em frente. Angola tem muita coisa para mudar. Mas tão pouco queremos uma coisa que crie apenas um alarme. Sabemos bem quais são as consequências disso. Se acontecesse alguma coisa em Angola, seria mais parecido com o que se passa na Líbia.
No seu trabalho, apesar do fundo político, procura sobretudo cartografar o seu país e os seus habitantes. Já falou do que faz como sendo uma “poesia ausente de palavras”. Como é que chegou, enquanto auto-didacta, a esta forma de fazer poesia?
Antes de fotografar, fiz o exercício de ler imagens. Cresci num meio em que a fotografia estava presente (o meu irmão mais velho tem um estúdio em casa). Vivi dois anos em casa de um fotógrafo sul-africano, uma das pessoas que mais me ensinaram sobre Angola, através das suas fotografias. A fotografia é uma forma de materializar aquilo que penso ([e que me interessa] mais do que o rigor técnico). Sou um contador de histórias. O meu trabalho é político porque essa materialização envolve um pensamento, uma vontade, um ponto onde chegar. Ao mesmo tempo tem a ironia, o humor. Não me interessa ser um artista que tem um ponto de vista documental. Pelo contrário; gosto de manipular o que é documental para que isso possa ser usado na minha narrativa.
É uma forma de ficção.
É. Na sociedade onde cresci, as pessoas perderam um pouco a capacidade de fantasiar. É o que sinto também na arte portuguesa. Uma certa formalidade. Perdeu-se a vontade de entrar nos territórios da ficção. Para mim, é do mais essencial para um artista. É o nosso filtro, a nossa opinião sobre as coisas. Encontrar a contestação nas artes plásticas não é tão claro quanto no hip hop, em que tudo é mais denunciado. Há uma intervenção política no que faço, sim. Sou fã de Jimmy Hendrix, Bob Dylan; havia neles uma lírica de intervenção, mas sem deixar para trás a poesia.
Dá-se com o establishment artístico de Luanda?
Sim. Foi onde apareci. Luanda e Cape Town são os sítios onde trabalho mais em projectos colectivos.
As coisas estão aí muito entrincheiradas? De um lado estão artistas que se dão com o sistema e que estão representadas nas grandes colecções; do outro, estão os que não se dão.
As coisas são assim em todo o lado. Mas não sinto especialmente isso. Os artistas que pertencem a colecções e têm tido mais oportunidade de expor conseguem ser mais interventivos. Reflectem sobre o que é a sociedade hoje, são muito críticos. Há artistas que conheço, que não estão nas grandes colecções, e que se contentam com pintar o pôr-do-sol e os embondeiros, as máscaras e as nossas tradições.
Estar representado na colecção de Sindika Dokolo, um dos maiores coleccionadores africanos, marido de Isabel dos Santos, e por isso genro do presidente, não o inibe de fazer crítica política no seu trabalho?
De maneira nenhuma. A crítica política está no meu trabalho. Não sou um radical. Mas uma das fotografias que expus no BES Photo foi de uma estátua desmontada do Paulo Dias de Novais. É uma metáfora do desmantelamento do colonialismo. Cheguei a afirmar que as estátuas portuguesas que estão em Luanda são estátuas de cidadãos que têm visto caducado; e não deixei de expor aqui, num meio algo oficial. As pessoas têm de ter a capacidade de incorporar a crítica sobre a sua própria sociedade. Para Itália fiz obras sobre a guerra que foram consideradas muito leves. Existe uma subtileza no meu trabalho. São fotografias sobre a guerra que se podem pôr na sala de jantar e não tiram o apetite. Mas que nos levam à reflexão. O meu problema não é com indivíduos, políticos. O espírito colectivo é que tem de ser mais forte – essa é a minha luta.
Publicado originalmente no Público em 2011
A conversa tem um tracejado errático, caótico, com digressões permanentes. Estávamos na infância e logo avançámos para a Microsoft. Estávamos em Seattle e logo avançámos para os pescadores da Fonte da Telha. Estivemos no mundo todo. E na vida toda. Num emaranhado sem fim. Com alegria. A viagem tem de ser simpática. Uma cena catita. Vivemos, logo existimos, logo temos de nos mexer – Rodrigo Costa dixit.
E isto, posto assim, parece de uma displicência que na verdade não existe. Rodrigo Costa sabe bem que sobre a vida dele, decide ele. É só pés na terra e mãos na enxada. Ou no remo. Ou no teclado. “A vida é um bocadinho como o barco, o vento e o mar. Não vale a pena andar muito contra o vento e a corrente.”
O vento que lhe corria de feição era o dos sistemas de informação. Hoje, é CEO da ZON. Passaram 30 anos, entre uma coisa e outra. As tais viagens, o mapa todo riscado. Uma aventura. “Há momentos de maior sacrifício. Viajar de país para país, encontrar casa, trocar de casa, vender a casa, tirar a mobília, visitar os amigos, abandonar amigos, arranjar novos amigos, perder amigos…”.
É casado com a Luísa, têm três filhas adolescentes. Percebe-se que é feliz. “Sou um sortudo”.
Um sortudo que fala, fala, fala. Com uma energia que contagia. Às vezes com uma energia feroz. Mas não chega a morder. Nem por isso é menos impiedoso. É o que tem que ser. Não tem corrido mal.
Quando se despediu da Microsoft, os seus colegas prepararam-lhe um álbum de fotografias, assinalando os momentos da sua vida na empresa. Há “capítulos” subordinados a temas como “Vision”, “Ambition”, “Dream”, “Power”.
Sonhar e Visão têm mais que ver comigo do que Poder e Ambição. O Poder não me move. Não faz parte das coisas que me fazem mexer. Gosto de [ter] influência. Sou teimoso, sou uma pessoa de projectos. Gosto de criar coisas novas e gosto de agarrar projectos já existentes, mas onde acho que posso…
Deixar a sua assinatura?
Não é tanto isso. É fazer parte do grupo que muda. Não sou de rasgos solitários, sou uma pessoa de equipa. Aquele golpe de asa de, do zero, fazer um milhão, não sou desse tipo. Não tenho fortuna, nem nada que me faça dizer: sou fantástico. Sou regular, gosto de trabalhar, tento fazer as coisas bem feitas. Gosto de desafios complicados. Quanto menos chances tenho de vencer, mais motivado estou. Gosto de competir. Motiva-me muito andar à frente dos outros, apanhar os outros, ultrapassar os outros.
Como se isto fosse uma corrida permanente?
É. Mas a vida tem de ser uma corrida simpática. Não gosto de confronto com sangue.
O que é que gosta que esteja em jogo nessa competição?
Talvez que seja reconhecido o trabalho que essa equipa faz. A notoriedade da equipa: a diferença, o vencer quando vencer é difícil, o ganhar quando as apostas em nós são mais pequenas.
O que é que o faz ir a jogo? Como é que se envolve num projecto? No fundo, pergunto pelos critérios e mecanismos da escolha.
Dou um exemplo: estive 11 anos em Portugal na Microsoft. Tive o prazer de fazer o lançamento e vivi a dificuldade de criar motivação, contratar pessoas, despedir pessoas. Vivi o ciclo completo da vida de uma empresa. Fartei-me. Eu repetia ciclos, e a empresa precisava que viesse uma pessoa diferente. Precisamos de ruptura. E decidi sair antes de saber para onde é que ia.
Para um português, o quadro da estabilidade é um sonho que os nossos pais nos incutem.
Não vamos ser hipócritas: quando temos uma vida profissional que corre bem, quando sentimos que já temos algum conforto financeiro, o risco é reduzido. Podia estar um ano, cinco anos sem trabalhar. Podiam correr mal um ou dois projectos. Não sou um aventureiro.
O primeiro milhão já lá estava. Não me refiro ao quantitativo, mas a uma base a partir da qual é sempre possível multiplicar.
Sempre vivi com o que tenho. Não gasto o que não tenho. Nunca mais me esquece que comprei a minha primeira casa, com a minha mulher, no início da minha vida profissional. Era um apartamento em Carcavelos. Houve qualquer coisa que correu mal no timing da concessão do empréstimo; eu tinha de fazer a escritura e não tinha o empréstimo garantido. O meu pai acabou por me ajudar a resolver o problema. Em 1986, ganhava 38 contos por mês e isto foi um momento decisivo.
Porquê?
Porque vivi atrapalhado três ou quatro semanas com a ansiedade de saber se ia conseguir o empréstimo para comprar a casa. Serviu-me de lição: não posso, não faço.
Voltemos à necessidade de mudança e aos mecanismos da escolha. O dinheiro determina a escolha?
Fui para a Microsoft em 1990 ganhar bastante menos do que ganhava. Fui porque acreditei que me ia dar bem. Gostei das pessoas que conheci. Deram-me (quase) carta branca.
Era a primeira vez que lhe davam carta branca?
Era. Era um salto no escuro. Eu estava à procura de uma coisa diferente
Como é que percebe a sua necessidade de mudança?
O maior risco é ficarmos cansados. Cansados de fazer uma coisa, cansados de um relacionamento, cansados de olharmos uns para os outros todos os dias. É um detalhe, e é muito, muito importante: saber qual é o momento certo para sair – antes que seja tarde demais.
É um processo intuitivo? Disse que é um racional.
Confio na minha intuição. Não me engano muito na avaliação das pessoas. Ao longo da vida, já contratei centenas e centenas de pessoas, também já despedi centenas de pessoas, de todas as raças, de todos os feitios, de muitas culturas diferentes. E a avaliação das pessoas é uma coisa que acho que faço bem.
Se são mais Power e Ambition ou mais Vision e Dream?
Pois. Não acredito que as empresas possam ser feitas só de Rolls-Royce. O ambiente tem de ser muito eclético. A mecânica das relações é uma coisa fascinante.
Gosta de teatro?
Gosto.
Gosta de pôr em cena, fazer contracenar personagens.
Mas a vida é um teatro. É cenários, produção…, nós actuamos todos os dias.
Olhando para o seu passado, deixe-me entender porque é que esta é a sua peça de teatro. Porque é que este é o enredo.
A nossa família é bastante tradicional. Vivíamos no Porto – ainda me lembro da casa onde vivíamos. Nasci em Viatodos, porque a minha mãe decidiu que eu ia nascer a casa da minha avó, numa quinta entre Barcelos e Famalicão. O meu pai trabalhava na agência Abreu e veio abrir a agência de Lisboa. Portanto, com quatro anos vim para Lisboa. O meu irmão já nasceu em Lisboa, a minha irmã nasceu no Porto. Somos todos diferentes, com percursos profissionais diferentes. O meu pai e a minha mãe estão vivos, têm 80 anos. O meu pai trabalhou sempre muito. Olho para a minha história e vejo os mesmos defeitos: uma pessoa envolve-se na parte profissional de tal maneira que acaba por encontrar nisto…
Uma razão de existir?
De maneira nenhuma. A razão de existir? A gente está viva, logo existe, logo tem que se mexer. Não vivo para trabalhar. Se tiver que trabalhar 16 horas por dia, trabalho. Mas se pudesse não trabalhar 16 horas por dia, não trabalhava. Se tiver que viajar metade do ano – como já aconteceu – viajo. Mas se puder não viajar metade do ano, não viajo. Faço o que tenho a fazer para cumprir com as minhas obrigações.
O seu pai foi um trabalhador incansável, dizia.
O meu pai, enquanto estudava, foi aprendiz de um tio nosso na fábrica de cerâmica. Aprendeu a arte da pintura à moda antiga – trabalhando com o mestre. Mais tarde decidiu ir para o seminário, depois decidiu sair, depois foi para a tropa. O seu percurso fez-se na área das viagens. Reformou-se aos 60 e tal anos e voltou a pintar. Uma coisa que me marcou muito foi a sua obsessão pela honestidade. Honestidade é a palavra certa; porque não se trata, apenas, de não roubar ou de falta de transparência. É uma obsessão em ser sério, e que toda a gente entenda que somos sérios.
Deduzo que seria ignominiosa qualquer mancha que pudesse cair sobre a sua reputação…
A coisa que mais me satisfaz é pensar que vou fazer 50 anos e que nunca fiz uma vigarice. Conseguir ser bem sucedido empresarialmente sem cometer desonestidades é uma das minhas maiores satisfações. Nunca tive de ferir os meus valores. Os meus pilares, as raízes, são muito fortes.
O seu pai sente mais orgulho em si por ser um cumpridor e continuador desse princípio de honestidade do que pelo seu sucesso profissional?
Nunca falo por ninguém. O orgulho que eu tenho nele é o orgulho que ele terá em mim. Somos pessoas simples e não há essa preocupação de saber o que é que o outro sente nessas matérias.
É um dado adquirido?
É. Mas não tenho dúvida que ele sente prazer em saber que o filho é sério. Como eu tenho um grande prazer em olhar para os quadros que ele pinta, ou para o seu percurso profissional.
Talvez a transparência que reclama às suas equipas radique aí, nesse princípio de lisura.
Tenho uma necessidade obsessiva de transparência em relação àquilo que se faz, obrigo as pessoas que trabalham comigo a criar uma cultura de comunicação aberta. Não me coíbo de dizer nada, e às vezes sou rude. Vivi muitos anos numa empresa onde o estatuto não é um impedimento da comunicação aberta. Desde que haja respeito, uma pessoa pode dizer o que quiser. Ponho muita energia naquilo que faço. E com os anos percebi que isso quase amedronta… Muitas vezes, acabo a conversa a dizer: “Ouça, não se assuste. Isto não é nada contra si. Não mordo”.
É feroz, mas não morde.
É uma boa definição. É óbvio que isto é mais fácil de dizer do que de acontecer. As pessoas inibem-se.
Em Portugal, onde há a cultura da subserviência, mais do que na América?
Não. Em todo o mundo somos todos iguais, respondemos da mesma maneira aos mesmos estímulos. Toda a gente aprecia seriedade, todas as pessoas gostam de falar, todas as pessoas gostam de ser ouvidas. Nada como uma experiência de vários países para cimentar isso que é tão importante – saber ouvir.
Somos todos iguais? E os mitos sobre as especificidades de um povo?
Um suíço é mais reservado, um alemão é mais mecânico, um latino é mais gestual, um chinês é mais desconfiado, um japonês é mais rigoroso, um coreano é mais ambicioso. Há muitas coisas diferentes, de país para país, mas a realidade é que competência é competência. Um bom engenheiro de tele-comunicações é um bom engenheiro de tele-comunicações em qualquer uma destas regiões – ponto final. Um vigarista é um vigarista em todo o lado. Roubar é roubar, enganar é enganar, passar a perna é passar a perna. Independentemente da cor, da raça, do credo, somos mais parecidos uns com os outros do que se imagina. Somos mais iguais do que pensei que éramos.
Lembrei-me novamente das fotografias que me mostrou antes de começarmos a gravar. Aquelas pessoas integram um grupo de elite.
Há pessoas que têm jeito para correr, há pessoas que têm jeito para Física ou Medicina. A palavra elite não é a mais adequada. Umas estão bem preparadas, outras não. Eu, em termos académicos, não tenho o percurso convencional.
Não ser licenciado pesa-lhe?
De que é que me posso queixar? Francamente não vou estar aqui a queixar-me. Trabalhei muito? Trabalhei. Se tivesse feito a minha licenciatura podia fazer as mesmas coisas e trabalhar as mesmas horas. Não vou dizer que foi um drama não ter feito a licenciatura. Há pessoas que têm consciência de qual é o seu talento e aos 16 já sabem o que vão ser aos 80. O curso que gostaria de ter feito quando acabei o liceu era Geologia.
Que inesperado.
Os movimentos tectónicos, os tremores de terra, as mudanças no clima: sempre me fascinaram. Mas apanhei os anos do propedêutico. Ia ter um ano de hiato que não era compatível com a minha maneira de ser. Não tinha a consciência disto assim, mas sou inquieto, não sei o que é estar parado. O meu liceu foi ocupado, as passagens foram administrativas, estava mal preparado na Física e na Matemática. Por coincidência, uma amiga ia fazer um curso de programação de computadores. Decidi que ia fazer também. Para ter uma ocupação.
Uma coincidência que mudou o curso da sua vida.
Nessa formação, em 1978, descobri que havia ali uma coisa de que gostava muito – computadores.
O que mais o fascinava era a programação. Ou seja, a ideia de construção de uma rede.
Era uma ciência nova. Ser programador de computadores em 78/79 era fazer parte de uma classe à parte. Programar um computador, há 30 anos como hoje, trata-se de passar uma ideia concreta que se tem na cabeça para imagens, números, cálculos, análise, estatística. Saber explicar, saber programar é um desafio intelectual fabuloso. A nossa inteligência não é senão um software muito sofisticado e com vida própria – é a única diferença que tem das máquinas. O meu trabalho é ter a certeza de que temos o grupo de pessoas certo, que no conjunto das suas competências consegue desenhar um caminho e construí-lo. Como, no fundo, é programar.
Há nisto uma dinâmica teatral… Personagens, enredos, comunicação, interacção.
Hum… A nossa vida é previsível. É fácil, se estamos num determinado lugar, se dispomos de certas ferramentas, levá-la para determinado caminho.
Está a dizer que é o autor do seu enredo… Voltemos a 78 e ao início de uma vida fulgurante para si.
Uma vida normal – a sério.
Em 77, todo o seu percurso era imprevisível.
Fulgurante? Vamos lá ver: vidas especiais são as das pessoas que mudaram o mundo.
Esses são quem? O Churchill?
Tantos. Cientistas. Os grandes pintores. Os grandes escritores. Um ou outro muito grande empresário – é menos sobre o dinheiro e mais sobre mudar paradigmas.
O Bill Gates é uma pessoa especial por mudar o paradigma e não pelo seu dinheiro?
Sem qualquer dúvida. O dinheiro é uma consequência de uma pessoa ter mudado o mundo numa área que produz dinheiro. Outros mudaram o mundo numa área cultural. O Leonardo Da Vinci: ninguém pensa se era rico ou não era rico. Daqui a 1000 anos ainda se falará de Rafael ou de Beethoven; não sei se daqui a 1000 anos se falará do Bill Gates. Pode-se falar que enriqueceu por ter mudado o paradigma, mas o paradigma é que é importante.
Ser o homem mais rico do mundo parece o cognome do Bill Gates.
Nesta matéria sou suspeito. Quando o conheci, ele não era o homem mais rico do mundo. Ser o mais rico do mundo não o fez vibrar em nenhum minuto. O que o faz vibrar é a influência na mudança de um paradigma. Esse é o grande drive do Bill. Como agora é estabelecer-se como paradigma em matéria de filantropia. Fulgurante? Uns ganham mais dinheiro, outros ganham menos, uns têm mais visibilidade, outros têm menos.
É uma noção que tem agora?
Sempre a tive.
Era bastante normal existir um certo deslumbramento. Por estar num grupo de elite (ainda que não goste da expressão), viajar pelo mundo.
Convivo com gente que tem experiências de vida tão diversas e abrangentes como a minha.
É one of them.
Sim. Mas não é uma elite. São muitos milhões de gestores a quem a vida profissional correu bem. Não meço o sucesso pelo sucesso financeiro. É preciso manter os pés na terra.
Como é que era em criança?
Devia ser uma criança normal. Não tenho memórias de eventos muito antigos. Sou um ser normal, sem grandes histórias para contar. De que é que me lembro? Que sempre fui irrequieto, que gostava de estar fora de casa, que gostava de estar em grupo. Há um episódio que me deu uma grande lição: tinha 16 anos quando deixámos a casa de Campo de Ourique (que foi emprestada a um tio) e fomos viver dois anos para a Costa [da Caparica]. Ia para a praia e como estou sempre a dar à língua acabei por meter conversa com os pescadores de Fonte da Telha. Fizemos uma grande amizade e ao fim de uma semana ou duas convidaram-me a pescar com eles no Verão. Disse ao meu pai que ia ser pescador. E nos meus 16, 17 e 18 anos pesquei.
Porque é que um rapaz de classe média, de quem se espera uma carreira académica, decide passar os Verões a pescar?
Foi um desejo de querer ser diferente, de não percorrer os mesmos caminhos que todos percorriam. Os meus amigos, o que queriam era sair à noite, com as namoradas, ir para as festas; mas eu queria ser pescador. Se calhar, era uma forma de rebeldia. No primeiro ano, era um ajudante de pescador; depois achei que puxar as redes era monótono, e um trabalho de segunda categoria. No ano seguinte, pedi para remar…
Porque é que essa aprendizagem foi tão marcante?
Sempre fui pesado, tinha um corpo que se ajustava às necessidades de um remador. A minha actividade de tempos livres acabou por tornar-se, quase, profissional. A lição é a seguinte: a partir do momento em que o barco passa o início da rebentação das águas, não se pode desistir. Não se pode dizer: “Quero desistir”. Um remador não pode dizer: “Dói-me o braço”. Quando o mar está bravo, se o barco vira, as pessoas ficam enroladas nas redes e morrem. Ou seja, há coisas que quando a pessoa se mete a fazê-las não pode desistir, tem de levá-las até ao fim. [Aprendi ali] o esforço, a coordenação, o trabalho de equipa, a coragem, o não desistir, o ver beleza em qualquer tipo de pessoa…
Sobre que é que falava com esses homens do mar?
Não faço ideia. Imagino que estas pessoas falassem da sua vida. Imagino que eu tenha também aprendido a não falar de nada.
Referiu o facto de os seus amigos saírem e estarem com namoradas enquanto ia para o mar. Ser pesado, ter este físico, teve que ver com isso?
Não!! Sempre tive namoradas, e casei-me e divorciei-me, e casei-me outra vez. Gostava se ser mais magro, mas vivo feliz como sou.
Nem inconscientemente isso interveio?
Não, sempre consegui conciliar tudo bem.
Para se decidir, na adolescência, seguir um caminho alternativo e não fazer o caminho do carneiro, é preciso estar seguro de si, ter auto-estima.
Vai-se construindo, a auto-estima. A confiança nunca é total. Mas, ou nos resignamos ao pão com manteiga, e fazemos tudo igual, sem riscos ou mudanças; ou então somos inquietos e estamos atentos aos sinais exteriores de monotonia. Quando fomos para o Brasil, não foi porque quisesse ganhar mais e ser um ás da gestão. Foi, pura e simplesmente, porque queria fazer qualquer coisa diferente.
Queria pão com queijo.
Ou fruta. Mudar de ares enriqueceu muito a nossa vida. Nos primeiros seis meses de Brasil, estive sozinho. Porque as miúdas tinham escola e não podiam mudar naquela altura. Nunca fiquei um fim de semana lá! Apanhava um avião à sexta, às seis e meia da tarde, e vinha a Lisboa. Fazia a vida com os meus amigos, jogava o meu golf, estava em casa com a família. Segunda de manhã apanhava o avião para S. Paulo. Chegava às quatro da tarde e depois trabalhava dia e noite; às vezes apanhava o helicóptero de uma ponta da cidade a outra para poder trabalhar mais umas horas. As pessoas perguntam-me como é possível… O contrário, não poder vir a casa e fazer aquilo que o instinto me mandava fazer, isso é que me ia custar muito.
Como é que foi de S. Paulo para Seattle?
Fui fazer um projecto de transição em S. Paulo, de dois ou três anos. E viajava muito. Decidi a sucessão, e estava preparado para voltar a Portugal. Foi então que me convidaram a ir para os Estados Unidos.
Imagino que na América se tenha sentido em casa.
Particularmente em Seattle. É uma terra bonita, organizada, com gente com quem tive muita amizade. Saímos há três anos e vamos lá visitar os nossos amigos. Fiquei com uma filha a estudar na Califórnia. Em termos profissionais, foi muito gratificante.
No seu mapa entram sobretudo três cidades: Lisboa, S. Paulo, Seattle. E viagens constantes pelo mundo todo. A sua vida é uma viagem permanente?
Não. Tudo tem timings ideais para acontecer. Tenho pena de não ter ido para fora mais cedo. Passei demasiados anos a fazer a mesma coisa. Sou um emigrante tardio. Fui para o Brasil com 42 anos. Em 2001 tinha a estabilidade que me permitia assumir alguns riscos, as miúdas estavam com a idade certa para viajar. A minha filha que tem 10 anos já viveu em três países diferentes. É uma sorte. Eu, aos 10 anos, ainda não tinha saído do país.
O seu discurso é muito positivo, efusivo até. Nunca teve uma depressão?
Não. Às vezes tenho raiva, às vezes estou chateado.
O que é que o enraivece?
A injustiça. A desigualdade social aflige-me, a incompetência exaspera-me, a falta de profissionalismo irrita-me. Gostava, no futuro, de dar um contributo maior em relação ao que nos envolve.
O que é que o pode deitar abaixo?
A coisa que mais me deitou abaixo foi perder pessoas. Mas tenho um grande auto-controlo. Tenho um amigo que diz: “Só me chateio se quero”. Eu sou um bocado assim. Quase sempre consigo desligar-me. Umas férias boas podem ser de um dia.
A sucessão de Henrique Granadeiro: deixou-o enraivecido ou infeliz?
A mim? De maneira nenhuma.
Falava-se muito da disputa fratricida entre si e o Zeinal Bava.
Somos pessoas muito diferentes. Não o conheço muito bem nem ele me conhece bem a mim. Tenho imenso respeito por ele – e não há nisto qualquer cinismo ou hipocrisia. No dia em que foi eleito dei-lhe os parabéns pela nomeação. Como lhe disse, a minha vida não é feita de lugares ou de promoções ou de querer ser isto ou aquilo. A vida ensinou-me que, se fizermos as coisas bem feitas, o reconhecimento acontece. Não é só o cargo, não é só o dinheiro.
O que persegue, então?
O que importa é a satisfação. Eu estou aqui por opção. Não estou aqui por despromoção, ou porque era o que havia, ou porque precisava. Houve um convite, mas eu mando na minha vida. Eu decido o que faço. É óbvio que decidi porque a oportunidade existiu, e tenho muito reconhecimento por quem me convidou para estar aqui. Mas, com toda a franqueza, nunca me propus para um lugar numa empresa. Começámos a conversa por Ambição, Poder, Sonho e…
Visão.
Sonho, sim. Visão, sim. Alegria, sim. O querer ser? Não vou atrás de coisa nenhuma. Vivo bem com o que tenho. Possivelmente é o meu mecanismo de auto-defesa a funcionar… E por isso não tenho depressões. Acho que devemos ser boas pessoas, que devemos ajudar. Temos de aceitar que não controlamos tudo na vida. Temos de aceitar que somos muito mais comuns do que imaginaríamos. Há colegas meus que vivem os sucessos da carreira de outra maneira… Eu não.
É um normal one e não um special one.
Completamente normal one! Sou um fraco conjugador do “eu”, sou um melhor conjugador do “nós”. A vida é mais divertida quando temos com quem partilhar e celebrar. É mais divertido do que o pedestal. Isso também deve ter que ver com o tamanho do ego. Eu tenho algum, mas não é tão grande quanto isso.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2008
Algumas palavras que usa muito: provável, talvez, dimensão. A atitude: evasiva, de quem só uma vez olha nos olhos ao longo de uma hora e meia de entrevista. E de quem não gosta de falar de si.
Vieira da Silva não fala como um homem que leu muito. Usa frases longas, recorre a orações subordinadas, integrantes, a detalhes que complicam a oração. A exposição não é linear. Os pormenores em que se detém podem ser os de um romance – o gabinete de Sócrates quando trabalhou com ele pela primeira vez, por exemplo. Ou detém-se em questões existenciais, mesmo que não esteja para psicologismos de trazer por casa. De quem somos e da nossa relação com o Tempo. O tal grande escultor. Da imagem que projectamos e de estarmos bem na nossa pele.
As palavras que é inesperado que vão bem com ele: apaixonado, romântico, inflamado.
Não tem paciência para fotografias. Seria fácil dizer que não convive bem com a imagem. É um homem cuja vaidade não precisa que lhe puxem o lustro numa entrevista. Ainda pensou que ia falar de sustentabilidade… No fundo, sabia que não.
Talvez – uma das tais palavras que usa muito – tenha gostado de ser visto de perto, através de uma lupa. Olha, afinal de perto ele tem mais graça do que se espera, não é o chatarrão, tecnocrata, a figura anódina que alguns pensam que é… Pode ter pensado isto. É provável. Ele tem dimensões imprevistas.
O braço esquerdo do Primeiro-Ministro – o braço direito, como soe dizer-se, é Pedro Silva Pereira – é também a sua consciência social de esquerda. Não gostaria que dissessem que é de direita.
Tem uma voz surpreendente. Não é áspera, nem afirmativa. É mansa, por vezes doce. Fala para dentro. Pelo menos até fim de Setembro é Ministro do Trabalho e da Segurança Social. No futuro, ele gostava de ter um programa de rádio! Mas isso é no futuro, daqui a anos, depois de esgotar o seu ciclo político. Até onde irá entretanto? Até onde irá Vieira da Silva?
Em que circunstâncias se deu o seu encontro com José Sócrates?
Como é que o conheci? As primeiras vezes em que convivi com ele de forma mais próxima terão sido em 1997.
Houve uma especial empatia? Como é que se constrói uma relação de confiança entre os dois?
Trabalhámos de uma forma eficaz. Tive algumas reuniões no gabinete dele; não me recordo onde era, mas era interessante sob um ponto de vista estético. Houve uma sintonia numa certa perspectiva de olhar os problemas. Com esta preocupação: serem resolvidos. Havia pragmatismo, concentração na eficácia da resposta. Talvez tenha sido isso que começou a consolidar uma relação de trabalho, que se prolonga até ao presente.
É verdade que as condições em que foram marcadas eleições foram particulares, algo inesperadas. De qualquer modo, tinha a expectativa de ser ministro de Sócrates?
Expectativa, não posso dizer que tivesse. Fui Secretário de Estado de duas pastas no Governo de António Guterres. De certa forma, ser membro do Governo não era uma novidade, não era uma coisa que caísse de surpresa.
Começa-se por ser Secretário de Estado. É um caminho.
Também é. O José Sócrates tinha-me convidado, depois do congresso do PS em 2004, em que não apoiei nenhum dos candidatos, para fazer parte da equipa. Uma equipa pequena, de uma dúzia de pessoas, do Secretariado Nacional do PS. Isto antes de estarem previstas eleições, como veio a aconteceu, num prazo muito curto [de tempo]. Não sei se pensei que era provável, ou possível, mas admiti… não sou capaz de recuar e refazer o meu quadro mental da altura.
Era um cenário plausível.
Era um cenário plausível.
Estou a perguntar-lhe também até onde é ambicioso. E se era uma coisa que queria.
Essa pergunta dificilmente pode ser respondida pelo próprio. Tenho bem a noção de como a nossa visão de nós próprios é algo em que temos dificuldade em ser isentos. Quando olhamos para nós próprios nem sempre é fácil dizer o que pretendemos. Há um conflito entre o que somos e a imagem que queremos ter de nós próprios.
E a imagem que os outros têm de nós.
Exactamente. Suponho, mas é apenas uma suposição, que as pessoas que me conhecem melhor diriam que eu não tinha essa ambição. Das coisas que fiz na vida política, uma coisa que correspondeu a uma expectativa que tinha desde jovem, foi ser deputado. Pode parecer estranho: ser deputado é pouco considerado. Mal. Mas é pouco considerado. Era uma coisa que sempre pensei que gostaria de fazer. Ser membro de governo, não fazia parte dos meus sonhos ou expectativas juvenis.
Porquê? Onde radica esse sonho?
Era uma coisa que me atraía. Era uma visão juvenil, de quem olha o mundo sobretudo para a frente, e não para trás. O que me atraiu fortemente no parlamento foi o debate, a esgrima da argumentação, a contraposição de posições. Quando era mais novo, e não posso dizer que mantenha a mesma posição, tinha uma grande empatia com o modelo britânico de organização de vida. Sempre fui anglófilo.
Pensei que ia dizer que a empatia era com o modelo judicial, e não com a organização da vida.
Isso não. Os filmes e livros de advogados nunca me influenciaram muito. Mas o parlamento como instituição, à imagem dos britânicos, sim. As vidas dos parlamentares ilustres, a intensidade do debate, o uso das várias formas de defender ideias (com mais agressividade, com mais ironia) eram muito apelativos.
De onde chega esse fascínio?
Pelos livros. Faço parte de uma geração que viveu num país marcado por dicotomias. Ou se era a favor deste ou se era a favor daquele. Deste desportista ou do outro. Na minha primeira infância, e é uma memória longínqua, em Portugal apoiava-se o Nicolau ou o Trindade [ciclistas]. A Simone de Oliveira ou a Madalena Iglésias.
Apoiava qual?
Claramente a Simone de Oliveira.
São diferentes tipos de mulher. Simone era mais fogosa, arrebatada.
Apaixonada. A outra, na sua expressão artística, era mais superficial. Eu tendia, talvez por ter uma dimensão romântica, para canções como o “Sol de Inverno”.
Ainda se ouviam cantores como o Tony de Matos e o Carlos Ramos?
A minha mãe cantava canções do Carlos Ramos. Cantava quando estava a passar a ferro. Gostava muito de a ouvir cantar as canções do Carlos Ramos quando estava a passar a ferro. Mas isto era a propósito das grandes dicotomias e das influências que se viviam antes de uma certa americanização do mundo. Eu era anglófilo.
Na sua geração as pessoas eram mais francófonas e francófilas.
É verdade. Mas sou da geração dos Beatles e do Jacques Brel. O meu fascínio pelo modelo inglês também tem a ver com o vanguardismo da experiência democrática britânica. Sempre achei que aquilo era de uma grande nobreza.
Só foi deputado depois de ter sido Secretário de Estado.
Certo. Lembro-me de ir para o Parlamento com uma certa excitação.
Foi pelo seu domínio das matérias que acedeu ao Governo? Entrou como um técnico? Começou por ser Secretário de Estado da Segurança Social.
Vim trabalhar com o Ferro Rodrigues, com quem já trabalhava na Universidade.
É um pouco o que faz com os seus Secretários de Estado e colaboradores: conhece-os da universidade. São técnicos.
Não creio que o Ferro Rodrigues me tenha convidado pelo meu domínio dos conteúdos técnicos.
Porque é que ele o convidou?
Porque me conhecia. Do ponto de vista do meu trabalho, das minhas capacidades e incapacidades.
O que é que quer dizer com “conhecia-me”? Conhecia a sua atitude política, as suas convicções?
Também. Conheço o Ferro Rodrigues desde a minha juventude; fui colega dele na universidade e na vida política da altura. Algumas das áreas deste ministério, de facto, eu trabalhava nelas; outras, não.
Por isso falei de domínio técnico.
Não sou um tecnocrata.
Não foi isso que insinuei. Tem esse fantasma, que as pessoas olhem para si como um tecnocrata?
De maneira nenhuma. Já não tenho fantasmas, desde pequenino. A imagem que fazem de mim, com toda a sinceridade, não é uma coisa que me tire o sono. Dizem que sou discreto, que sou isto e aquilo… Não é isso que condiciona significativamente a minha atitude na vida e a forma de exercer as minhas responsabilidades políticas e públicas. Como é que lhe hei-de dizer? Tenho responsabilidades, penso que sei o que tenho que fazer e tento fazê-lo da melhor maneira possível. Tenho eventualmente um defeito: quando estou a acabar uma coisa, estou logo a pensar na seguinte. Não vivo angustiado a revisitar uma coisa que fiz. Ou então não a revisito por causa da angústia de não a ter feito tão bem quando deveria.
Parece angustiado e introvertido. Pela sua maneira de falar, de olhar…
Angustiado, não…
Ou então é por saber que gosta de Pessoa. Já lá vamos.
[Sou] angustiado no sentido de ter maior preocupação com as coisas que vêm do que com aquelas que foram. Pode parecer arrogante – como agora está na moda dizer –, mas a minha principal recompensa é sentir-me bem com o que faço. Obviamente preocupo-me com o que os outros pensam – quem está num cargo público não pode deixar de ser preocupar. Mas a minha principal preocupação é a maneira como sou capaz de conviver com o que fiz.
Conte-me quem é. Que pessoa é esta que não tem fantasmas desde pequenino? Nasceu na Marinha Grande em 53. Não sei mais nada.
Sobre isso não há muito a dizer, nem gosto de falar disso.
Que criança era, que sonhos tinha, porque é que era como era?
Quem é que sabe por que é que é como é? Talvez fosse uma criança introvertida. Talvez tenha mantido essa característica. Tenho irmãs, sou o mais novo da família e o único rapaz. Os meus pais estavam avançados na idade quando nasci. Fui o esperado rapaz. Isso acompanhou-me toda a vida.
Quantas raparigas tinha tido a sua mãe?
Duas. Nasci quando a minha mãe tinha 39 anos, o meu pai 40 e poucos. Eu tive um filho com 25 anos.
Sentiu-se desejado e esperado. Mencionou que essa sensação o acompanhou a vida toda. Ter sido querido é normalmente acompanhado de um sentimento de sermos gostados.
[Transmite] uma sensação de segurança. Não quero entrar em psicologismo barato, nunca tive atracção pela interpretação psicológica dos comportamentos. Mas sentirmo-nos alvo de muita atenção, reforça a nossa auto-confiança
Era um ambiente de gineceu, o seu.
Um bocadinho. Vivi muito rodeado de mulheres. Mas não sei se isso tem influência na forma como exerço as minhas actividades públicas.
Estou a tentar conhecer esta pessoa. Como é que as coisas se ligam? Por exemplo, não sei por que é que a Segurança Social e o Trabalho são temas que lhe interessam. Estará esse interesse desligado…
… da minha maneira de ser? Não, não está. A minha vida não tem nada de extraordinário: vivi os anos de formação cívica num período forte da nossa vida colectiva. Tinha pouco mais do que 20 anos quando se deu o 25 de Abril. Isto vai reforçar a sua ideia, que não corresponde à verdade, de ser uma pessoa introvertida e angustiada…, mas li um livro famoso de um escritor francês que começa assim: “Eu tinha 20 anos e não permitia a ninguém dizer que era essa a mais bela idade da vida”.
Porque é que isso o marcou?
Tem-se a ideia, que eu detesto, de que a juventude é uma idade em que tudo é glorioso. Num certo sentido, é. Mas é também um momento em que as pessoas vivem de forma mais intensa as suas dúvidas e angústias. Eu vivi isso.
Isso coincidiu com a saída de casa e a vinda para a universidade? O momento em que ficou por sua conta?
Sim. Foi uma transição sem sobressalto. Não parti com a insegurança de quem está a largar uma coisa; por ser o filho que fui, sabia que tinha sempre [esse recuo].
Veio para Lisboa estudar. Viveu até essa altura na Marinha Grande?
Não. Os meus pais mudaram de cidade; fiz a terceira classe na Marinha Grande e o resto em Alcanena. Vim para Lisboa em 71, um dos picos da contestação estudantil. Foi aí que fiz a minha iniciação à vida política.
Havia algum indício nesse sentido? O seu pai era politicamente empenhado?
O meu pai era muito interessado. A política, num sentido lato, sempre esteve presente nas conversas familiares. Não vivia num ambiente em que se dizia: não podemos falar, que podem estar a ouvir-nos.
O que fazia o seu pai?
Teve várias actividades. Foi pequeno industrial uma parte da vida, e depois trabalhou [por conta de outrem]. Morreu relativamente cedo. Eu tinha 27 anos.
Significa que não assistiu ao seu crescimento pessoal, profissional, político.
Não. A minha mãe, sim. Morreu em 2004, pouco antes de ter ido para ministro.
Foi neles que pensou quando assinou o livro na tomada de posse?
Não. Não pensei em nada de especial. Devo ter pensado que estava a assinar o livro. Ou se me tinha esquecido dos óculos – qualquer coisa mais prosaica.
Não pensou em nenhum momento no orgulho que teriam em si? Que era uma pena não assistirem aquilo.
Tenho uma memória afectiva forte dos meus pais, mas não tenho essa reflexão. Não me atravessa. O meu pai gostava de mim, e eu dele, e chega. Não gostaria mais ou menos por eu ser ministro ou outra coisa qualquer.
Ouvi raras vezes a resposta que acaba de me dar. Que denota a consciência de que importa mais a relação do que a situação.
É verdade. Admito que a minha mãe tenha pensado: “O teu pai gostaria de te ver”. Mas eu nunca pensei nisso. Não considero a política uma carreira.
Mesmo que ande nela há uns anos.
Sim. Tenho a noção, ou quero ter, que o exercício de cargos públicos é mesmo um exercício de serviço público. Atrai-me a noção de coisa pública.
Está implícito o dever de retribuir o que a sociedade lhe deu? Porquê esse gosto em servir os outros?
Não lhe chamo servir os outros. Não tenho uma visão de serviço no sentido de dádiva, mas de responsabilidade cívica. Só está nestes cargos quem quer. Não acredito nos que dizem que estão nestes cargos com ganhos de espírito ou missão de sacrifício. Quem está a desempenhar cargos públicos como quem está a cumprir um castigo, não o faz bem. Mas o prazer que dá ajudar a resolver um problema, ajudar a encontrar uma solução diferente, uma síntese adequada para as diferentes realidades que estão em jogo... Isto tem muito a ver com o que somos, como crescemos, como nos formámos.
Isso que o alimenta tem ainda a ver com o que viveu na universidade, com o espírito do 25 de Abril?
É provável que sim.
O que é que sentiu? Abriu-se um mundo? Encontrou iguais? Sentiu-se pertença de um grupo?
Tudo isso e mais algumas coisas. Quando um jovem vem daquilo a que se chama “a província” e entra na faculdade – eu entrei em Económicas – sente um choque grande. Entrei numa espécie de zona libertada! As paredes estavam cheias de cartazes, escritos à mão, a falar das mais diferentes coisas, da Guerra do Vietname à greve na TAP. A pessoa sente que está a passar uma fronteira. E encontra pessoas, muito mais pessoas, com quem se identifica.
Os grandes interlocutores, até ter vindo para Lisboa, eram os livros?
Seguramente. A sua pergunta tem uma resposta claramente afirmativa. Não quer dizer que não falasse com pessoas, que não fizesse o que faziam todos os jovens da minha idade. Mas os livros eram a minha vida. Encontrar outros, muitos outros, mais próximos de nós do que suporíamos, é uma grande ruptura. É a passagem para uma realidade em que se ganha muito mais consciência dessa realidade. E pensamos, muitas vezes erradamente, que percebemos melhor o que nos rodeia. O que estava longe de ser um exercício de pacificação. Pelo contrário. (Não gosto de falar destes assuntos, mas você é que faz as perguntas).
Porque é que adensou a angústia?
Porque a pessoa tem a consciência que se vive num mundo fechado, ameaçado, que se está a caminho de uma guerra que não se compreende.
Pairava o fantasma da Guerra Colonial…
Não conheço nenhum jovem dessa altura que não o tivesse.
Quando era miúdo lembro-me dos dias da inspecção. Eram uns senhores que iam pelos concelhos seleccionar os mancebos que estavam preparados para servir as Forças Armadas. Depois havia sempre um baile em que as pessoas afogavam as suas mágoas… Sentimento estranho: os felizardos eram os que eram rejeitados. Lembro-me de pessoas que tinham problemas, físicos, intelectuais, e por isso eram “livres” – era a expressão que se usava – e recebiam os parabéns de toda a gente. É um universo de pernas para o ar, era um filme do Fellini, era uma situação absurda.
O que é que pensava que lhe ia acontecer?
Quando o vivi, já tinha uma consciência política. Nem tinha a certeza de que iria para a guerra. Havia outras possibilidades. A guerra era um desafio político. O que discutíamos era o que é que cada um de nós faria se… Eu não tinha a certeza, não sei o que teria feito se não viesse o 25 de Abril e me tivesse libertado desta questão.
Estudou Economia. Porque é que não escolheu Letras, sendo o amante dos livros que era?
Quando tinha 16, 17 anos, achei que a questão social era mais urgente. Saí de casa pensando inscrever-me numa alínea de Letras; tive de fazer uma viagem de 20, 30 minutos de autocarro; cheguei lá e inscrevi-me na alínea que praticamente só dava acesso a Economia.
E isso sozinho?
Sim. Chegavam-se os ecos de Económicas ser uma escola muito politizada, onde o movimento estudantil era forte. Fui para um curso que tinha a ver com essas preocupações e não para um curso que tinha a ver com a minha evolução. Em casa não tinha qualquer pressão para ser isto ou aquilo.
Por que via chegaram os livros à sua vida?
Lia tudo o que me aparecia à frente, em minha casa sempre houve muitos livros. E havia as bibliotecas itinerantes da Gulbenkian; umas carrinhas Citroen, de chapa ondulada; subia-se as escadinhas e era só livros à volta!, uma coisa fantástica. Desde os meus cinco, seis anos que ia lá. Depois passou a ser uma biblioteca fixa. Na época complicada dos 14, 15 anos, ia de três em três dias buscar quatro ou cinco livros para ler.
Escrevia?
Tinha que escrever! [riso] Mas não são coisas – infelizmente para mim – que tivessem qualidade.
Quando é que percebeu que não tinham qualidade?
Nunca percebi, mas gosto de dizer isto! [riso] Não é essa a minha vida e essas coisas, mesmo que eu tivesse talento, só se fazem com opções, com trabalho.
Portanto, estudou Economia.
Na área da Economia, tenho uma vocação mais forte para as questões do Território. Por isso é que, quando desempenhei funções nas Obras Públicas [Secretário de Estado] gostei imenso.
Curioso. Não lhe conhecia essa ligação. Quando me detive no seu currículo e tentei perceber por que foi Secretário de Estado das Obras Públicas, achei que era um tacho político.
Não acho que o determinante no exercício de um cargo público seja o conhecimento técnico dos dossiers; ou melhor, a preparação prévia. Um cargo político é um cargo político, em que é preciso tomar decisões políticas. Hoje, não tenho tempo para usar as minhas eventuais competências técnicas para me ajudar a tomar decisões; tenho de ter outras pessoas a fazer isso para mim. Nos países nórdicos, é comum os ministros transitarem de umas pastas para as outras, da Educação para as Finanças. Aliás, já aconteceu também em Portugal.
Estava só a provocá-lo, dizendo que parecia um tacho, e a perceber como reagia. Porquê a proximidade com o Trabalho e a Segurança Social?
Eu gostava, gosto, de uma visão de síntese. Sou mais da Economia Aplicada. É por aí que chego a estas questões. Tenho esse gosto. Tive a vantagem de trabalhar anos como dirigente aqui no ministério, em cargos mais técnicos. Nesta máquina, eu já fui um deles, e as pessoas reconhecem-me como tal.
O Partido Socialista é uma segunda casa? É um homem do PS há anos.
Não tantos.
O primeiro cargo político é de 99. Tem pelo menos dez anos de proximidade.
Sim. Assumo com muita tranquilidade a pertença a essa família política. Não foi a minha família de origem. Formei-me politicamente na extrema-esquerda, na esquerda radical. Militei apenas no Movimento de Esquerda Socialista. Quando ultrapassei essa fase, em 70 e muitos, a minha aproximação ideológica foi ao PS. Nunca me passou pela cabeça outra alternativa.
Quando ouve dizer, a seu respeito, que é a consciência de esquerda de José Sócrates…
Ah, não ligo nenhuma. Não dou a mínima importância. Não me incomoda nada que digam que sou da ala esquerda. Incomodar-me-ia se dissessem que sou de direita.
Voltando ao período em que foi Secretário de Estado de Ferro Rodrigues: pensou que poderia ser ministro?
Ministro da pasta em que ele estava? Nunca.
Houve um momento em que percebeu que aquele lugar, se Ferro saísse, ia ser para Paulo Pedroso e não para si?
Ahhh, não penso nesses termos. Não tenho essa capacidade de cenarização.
Não é ambicioso dessa maneira?
Não, não sou. Tenho a ambição de fazer bem feitas as coisas em que estou envolvido. Se as pessoas cuja opinião aprecio, e que trabalham comigo, me dizem: “Essa solução é um disparate”, eu, por muito que esteja convencido, penso que alguma coisa deve estar a correr mal na minha cabeça…
As pessoas têm à vontade para lhe dizer: essa solução é um disparate?
Espero que sim. Acho que sim. Trabalho com muita abertura.
Mesmo sendo pessoas muito jovens, pupilos seus?
Talvez seja por isso. As pessoas jovens têm mais capacidade de contestar os argumentos da autoridade vinda da idade.
Considera-os como um igual, e não discípulos?
Claro. Ainda ontem comentava com um Secretário de Estado – quando lhe fiz o convite nem sabia bem a idade dele – “Pensava que era mais velho”.
O senhor é relativamente novo. Tem 56.
“Relativamente”: agradeço a sua gentileza! [risos]
Tem imensos cabelos brancos. Talvez por isso pareça mais velho.
(Pode parecer pretensioso, tantas citações…) Há um romancista português, que diz: “Depois dos 30 é-se inevitavelmente velho”. Peço desculpa se lhe diz respeito também a si. Quantos anos é que já passei depois dos 30?
Sente-se com que idade?
Ahhhh, esse é que é o problema. [pausa] É a pergunta mais difícil que já me fizeram. Vou tentar explicar o conflito que isso me provoca, que é grande. Tenho uma grande noção da idade que tenho e dos limites que isso põe. Também tenho a noção que uma parte de nós funciona como se fôssemos eternamente jovens. Achamos que nunca mudamos, que a nossa voz é sempre a mesma… Mas não é verdade. Nós é que perdemos a noção da passagem do tempo. O Tempo é uma questão muito forte na minha existência.
Isso é também, e voltando à primeira parte da nossa conversa, a diferença entre olhar para trás e olhar para a frente. O que lhe falta fazer. O que já fez e não lhe interessa tanto assim.
Não é isso. Tenho vivido sempre com responsabilidades significativas. Sou ministro, serei mais uns meses, tenho funções a cumprir, assumi responsabilidades perante os outros. Não são coisas de pormenor. Gosto muito de chegar a casa, de fazer o jantar e que o jantar me saia bem. Mas isso não tem a relevância que tem, por exemplo, aceitar ser cabeça de lista do PS [por Setúbal]. Não posso desiludir os que confiaram em mim. Não posso desiludir-me a mim próprio, por ter aceite esta tarefa pensando que a podia fazer bem. É aí que concentro grande parte da minha vida.
O conflito que descreveu atira-nos para a questão do envelhecimento.
Não é nada original em pessoas da minha idade. O tema do envelhecimento e do Tempo está presente em muita da literatura contemporânea.
Philip Roth é um dos seus autores?
É a questão central dos últimos livros dele. Tenho-o lido com intensidade.
E Pessoa, foi um herói em algum momento da sua vida?
Isso começa a estar fora de moda… É uma coisa trágica, o sentimento colectivo de apoucarmos as coisas que são grandes. E agora, também Pessoa caiu na tragédia de ser considerado banal. Alguém disse que tanto Pessoa já enjoa. A mim não me enjoa. Não temos noção da felicidade que é para uma comunidade ou uma língua ter alguém que a use da forma tão magistral como ele a fez. O meu heterónimo? Depende das fases da vida. Quando era novo era Ricardo Reis. Agora não sou capaz de me fixar.
Lembra-se de ter pensado que queria que a sua vida fosse empolgante, vibrante, complexa, como as que lia nos livros?
Claro. Quem é que não? Quando tinha 12, 13 anos li todos os livros que uma criança lia. Tentei que os filhos lessem, e não consegui; percebi que já tinham passado alguns anos… Li todos os livros de Júlio Verne. Li-os com paixão, com essa paixão do romance, do impossível.
E daí que vem o lado romântico, a que aludiu no começo da entrevista?
Talvez.
Cá fora, não parece um romântico. Parece um homem discreto.
E sou. Toda a gente tem uma outra vida dentro dela. Nós é que não olhamos com atenção. Cada vez mais vivemos fechados. E é muito cómodo catalogar.
Quis que a sua vida, lida de fora, fosse um grande romance?
Não sei se é bem isso.
Ou que a sua vida, vivida por dentro, fosse muito interessante.
É mais isso. Eu tinha uma grande predilecção por ler os romances de Camilo Castelo Branco.
Inflamado. Quem é que havia à sua volta inflamado, dado a paixões avassaladoras?
Ninguém. Depois há sempre contrapontos. Há quem pense que eu sou muito racional; se calhar sou. Identifico essa fase da minha vida como uma fase interessante. Essas grandes decisões, o confronto com elas, reconforta-nos muito. Fazem-nos sentir que a vida precisa dessas coisas e que faz sentido ser vivida assim.
O seu estrabismo, e o modo como o viveu, sobretudo na adolescência, complexou-o e fechou-o nos livros?
Complexou, eventualmente. Fechar nos livros, não, que sempre tive uma vida exterior muito intensa. Quando cheguei à universidade assumi logo a vontade de participar na vida colectiva, intervir, falar nos plenários, ser eleito. Nunca fui um rato de biblioteca. Os meus amigos de juventude foram tanto os livros quanto os meus colegas com quem bebia cervejas – e bebi muitas!
Isso nunca o diminuiu?, nunca deixou que tivesse um peso significativo na sua vida?
Isso não posso dizer. Mas do que conheço da vida política, que é muito exposta, há muita gente que a faz como um contraponto a alguma timidez. É mais fácil vencer a timidez a falar para 500 pessoas do que numa entrevista.
É a primeira vez que me olha nos olhos, agora que está a dizer isso.
É por acaso.
Não gosta de falar de si porque eu sou jornalista ou normalmente é assim?
As duas coisas.
As pessoas à sua volta sabem que leu muito, nomeadamente um autor como Camilo Castelo Branco?
Poucas. Eu não falo de mim.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2009
Patrick Monteiro de Barros é o homem que defende que Portugal não pode prescindir do nuclear. Apesar do Japão e da terra e da gente devastada. (Mas o assunto, a exigir cuidados redobrados com a segurança, como o próprio diz, já foi tratado nas páginas deste jornal). Patrick – se se disser Patrick, em Portugal, subentende-se o Monteiro de Barros – é o milionário apaixonado pelo mar, velejador olímpico, que mostra a fotografia do seu barco como quem mostra uma fotografia de uma pessoa próxima por quem se tem muita estima. Não o mostra como um brinquedo, porque não parece que os barcos sejam para ele um brinquedo (como os carros devem ser um brinquedo).
Estava, aliás, a chegar da vela quando começámos a entrevista.
Chegou algo esbaforido, a desculpar-se pelos quatro minutos de atraso. Um pormenor que pode não querer dizer nada. Ou sim. Não acontece muito alguém desculpar-se por estar quatro minutos atrasado. E a chegar à sua própria casa.
Pelo sim pelo não, cheguei, não quatro minutos antes da hora, mas 40. Hábitos portugueses, já se vê. Sobretudo quando se vai encontrar um português que trabalha como os americanos e que põe fora jornalistas que se atrasam. A fama precede-o.
Deu tempo para ir comer gelados. Coisa que contei numa tentativa de fazer graça, e, mais do que tudo, para perceber se ele reagia com espanto ao facto de eu ter chegado 40 minutos antes da hora combinada. Como esperado, não reagiu. Fique a senhora a saber – não disse, mas podia ter dito – que não fez mais do que a sua obrigação em ter chegado a horas. De acordo. Vamos ao que interessa.
O que interessa: a vida de Patrick. Um mundo que existe e que se refaz praticamente do zero. Isto descontando as ferramentas, nada despiciendas, que se adquirem na infância (educação e relações). Um mundo parcialmente ilustrado nas fotografias dos móveis em frente. O filho, que vive em Londres (em Belgravia, claro). Bush-pai com quem caça todos os anos. A casa americana que evoca E tudo o vento levou. O barco de linhas elegantes no que pareciam ser os fiordes da Noruega. Maria João e Ricardo Salgado numa fotografia de há uns 30 anos. Ele, Patrick, quando a vida ia a meio. Os pais, a mulher. Mais amigos. Mais casas. Mais vida.
Acabámos a entrevista talvez uns 40 minutos além da hora combinada. “A culpa é sua!”, acusou. De acordo.
É mesmo verdade que guiou camiões, atestou depósitos e fez aquelas coisas que Manuel Bullosa o aconselhou a fazer, quando começou a trabalhar, para conhecer os cantos à casa?
Absolutamente verdade. Fico-lhe muito grato por isso. Conheci o Sr. Manuel Bullosa muito antes de acabar os meus estudos.
Como é que se conheceram?
Quando estava a estudar em França, na Associação de Alunos da minha Business School, era responsável pelos eventos. Com a ajuda do banco do Sr. Manuel Bullosa organizou-se um evento, um jogo do Benfica contra o Paris Saint-Germain. Os proveitos eram divididos entre a Business School e a Associação dos Portugueses em França. O evento deu lucro e o Sr. Manuel Bullosa disse: “Um dia você tem de vir trabalhar comigo”. Depois de uns anos voltei para Portugal.
O meu pai entretanto tinha falecido. A Fundação Monteiro de Barros era uma organização muito estática, não oferecia grandes challenges e havia um certo generation gap com os outros membros da família.
Era maioritário.
Sim, mas era ainda um jovem, e aquilo não correu muito bem. As relações eram tensas. Um dia encontrei o Sr. Manuel Bullosa, falei-lhe disso. “Porque é que não vem trabalhar comigo?”. Why not? “Você tem um diploma universitário, é quem é, se quiser pode entrar já para um lugar de chefia intermédia. Se quiser realmente aprender o métier, aconselhava que fizesse o estágio em profundidade”. Como o problema material não era fundamental, aceitei esse desafio. Estive nas refinarias, nas instalações de armazenagem, estações de serviço e abasteci navios no Tejo.
O que é que aprendeu humanamente no período em que fez essas tarefas?
Foi a minha primeira experiência de lidar com a classe operária.
Nunca tinha lidado, antes disso, com pessoal?
Tinha, na herdade e na quinta da família. Tínhamos uma herdade grande no Alentejo. O meu pai era uma pessoa que dava um enorme valor às relações humanas com os seus empregados. Tinha 12 anos e fui malcriado com uma empregada doméstica, o meu pai obrigou-me a apresentar-lhe desculpas.
Que é que tinha feito, lembra-se?
Chamei-lhe nomes. Estava com uns amigos, fomos passear a cavalo. Quando voltei, à hora de almoço, qual não é o meu espanto, vejo cerca de 100 pessoas no monte, tudo alinhado, e o meu pai: “Peça desculpa a esta senhora”.
Sentiu-se humilhado? Ou teve a noção de que aquilo era uma lição que o seu pai lhe estava a dar para a vida?
Foi uma lição, uma boa lição. Nunca mais fiz isso.
Com quem é que o seu pai aprendeu a ter essa consideração e respeito pelos subordinados? Convenhamos, é uma coisa que fica muito bem, mas nem toda a gente tem.
Tinha a ver com o seu feitio, e talvez com alguma tradição da família. Tivemos sempre no passado uma ala militar na família. Tive um tio e um tio-avô Almirantes. E altos funcionários, governadores ou vice-governadores de províncias ultramarinas.
Voltando a cabo Ruivo, quando começou a trabalhar com Bullosa: gostava de perceber como é que foi esse contacto no dia-a-dia.
Primeiro pensei: “Como é que vou para Cabo Ruivo? Não vou de fato e de camisa de seda, não vou no MG”. Achei por bem arranjar uma indumentária que não fosse a que usava no escritório. Apesar de a Sonap ser uma boa empresa, e de na época, as pessoas serem bem pagas, pela primeira vez apercebi-me de que havia problemas sociais, políticos e humanos, na sociedade portuguesa, que desconhecia totalmente. Até porque tinha estudado no estrangeiro.
Imagino que fosse a revelação de um mundo diferente para si. Pessoas que levavam a marmita.
Não tínhamos disso. Na Sonap tínhamos um excelente refeitório. Eram empresas majestáticas. Havia talvez um excesso de paternalismo na política de relações humanas. A festa de Natal, com todo o pessoal, os bairros residenciais, as colónias de férias. Mas para além dessa aparente harmonia, havia problemas latentes, que se sentiam ao falar com as pessoas, por exemplo, da guerra colonial. Comecei a trabalhar em 1968 – a discussão do tema estava no seu apogeu.
A revolução ainda demoraria a chegar. Só aconteceu seis anos depois.
Em 1968, o regime do Prof. Salazar durava há 40 anos. Antes do acidente que o afastou da liderança, eu tinha feito um estágio na Sonap em 1967, com o Eng. Jorge Jardim, que estava encarregue pelo Prof. Salazar de abrir uma frente diplomática confidencial com alguns países africanos. Admito que o Prof. Salazar tivesse a seguinte ideia: “Não podemos ceder à guerrilha, temos de ganhar militarmente no terreno e depois encontrar uma solução política”. Tinha ficado profundamente traumatizado pela perda da Índia. Quando veio o Prof. Marcelo Caetano para o governo, na minha geração houve uma enorme esperança. Era uma pessoa de bem, séria, trabalhadora, mas que infelizmente não tinha jeito nenhum para a política.
Do 25 de Abril há-de um dia escrever-se a verdadeira história. Ainda há muitas pessoas que são vivas e não lhes convém nada que a verdadeira história apareça. O 25 de Abril não foi à partida uma revolução popular. Começou por um golpe de militares descontentes e manipulados.
Manipulados por quem?
Pelo Partido Comunista. Hoje as coisas mudaram, mas é preciso reconhecer, e conheço alguns comunistas do antigamente, que há neles uma faceta parecida com a dos franceses que estiveram na Résistance, contra os ocupantes alemães. Era uma resistência contra o regime e não só uma afirmação doutrinária. Nessa altura o partido comunista era a única alternativa para quem quisesse manifestar activamente a sua oposição ao regime.
Houve um [levantamento] militar de oficiais descontentes, e alguns com razão para o descontentamento. Por volta do meio-dia, quando as duas facções se encontram face a face, nem de um lado nem do outro quiseram atirar. Eram colegas de curso, tinham estado juntos em comissões no Ultramar. Então meteram-se num táxi e foram buscar o General Spínola, que tinha aparecido como um mentor de uma evolução para o País, com o famoso livro Portugal e o Futuro. (Posso dizer isto porque o General Spínola era casado com uma prima minha). O General Spínola pensou que tinha chegado a sua hora e que ia salvar o País. Ficaria como presidente, e Marcelo Caetano tinha como ambição continuar como primeiro-ministro. “Não entrego o poder à rua, só entrego o poder a Spínola”, disse. Spínola pega num papel e num lápis, começa a fazer uma lista, e a primeira coisa é fazer uma Junta de Salvação Nacional. No fim do dia caem as máscaras e o Partido Comunista impõe-lhe uma série de nomes da sua confiança para a lista. Daí tudo o que aconteceu a seguir!
O encontro com o Manuel Bullosa foi fundamental?
O Sr. Manuel Bullosa foi um homem que me deu uma oportunidade excelente. Tinha por ele uma grande amizade, como se fosse um tio adoptivo. Nomeou-me administrador-delegado da Sonap mal tinha 30 anos, era o único naquela idade. Deu-me o baralho de cartas.
O que é o baralho de cartas?
Deu-me uma liberdade de acção que nunca tinha dado a ninguém naquela casa. E foi um grande mestre.
Existia em si um sentimento de orfandade? Tinha 18 anos quando o seu pai morreu.
Sou único filho de um matrimónio tardio do meu pai. Quando nasci, o meu pai tinha 45 anos e a minha mãe 44. Por mais que o meu pai e a minha mãe gostassem de mim, era quase um neto para eles. O meu pai tinha um papel importante na sociedade. Tinha negócios, viajava imenso, ia a África, aos Estados Unidos, tinha uma vida social muito activa, casa em Paris. Muito cedo passei a ser by myself. Via pouco os meus pais. Nunca fui interno, mas via mais a Madame Legal, a minha mademoiselle francesa, do que a minha mãe. Era assim naquela época. O meu pai gostava imenso que viajasse com ele. A partir dos dez anos viajávamos muito pelo Alentejo, quinta do Douro, França e vários países europeus e africanos. Quando faltava às aulas com estas viagens tinha sempre um tutor.
E depois fazia provas, para poder viajar?
Exacto. Tinha problemas pulmonares, passava cerca de dois meses por ano no ski, ia com a Madame Legal e o tutor, depois voltava ao Liceu Francês. Tive uma educação totalmente francófona, jardim infantil, primária, secundário no Liceu Francês em Lisboa, depois na Universidade e “Business School” em Paris. Era um bom aluno. Desde pequeno tive uma vida mais mature, mais adulta. Quando o meu pai faleceu, foi um choque enorme, mas estava preparado para a vida. O meu pai tinha um homem de confiança, um braço direito, técnico de contas, o Sr. Delfim; disse-me: “O menino acabe os seus estudos”. Arranjei pessoas que tomaram a presidência e a vice-presidência da Fundação, e vinha cá todos os 15 dias. Aprendi a gerir por delegação e continuei a fazer os meus estudos. O meu pai fez muita falta, e morreu novo, com 65 anos.
Falava francês com a sua mãe e português com o seu pai?
Sim. Mas também aprendi inglês, em Inglaterra. Depois fui para a Alemanha, falava alemão. Pelo caminho aprendi outras línguas. Tive uma educação sui generis, mas excelente.
Foi educado para ser o quê?
Posso dizer, como se diz em inglês, que nasci with a golden spoon. Éramos uma família abastada. O meu pai aumentou essa fortuna de uma forma substancial. Nunca me faltou nada, mas aprendi cedo que um tostão é um tostão. Ensinou-me que o dinheiro respeita-se, não se esbanja.
Uma coisa que tenha querido ter, e que não lhe tenham dado, ou que tenha tido que merecer – lembra-se de alguma coisa?
Durante muitos anos quis ter uma bicicleta motorizada e a minha mãe era contra.
Mas isso era o medo que as mães sempre têm de que os filhos tenham desastres.
Não ma deram, por mais que a quisesse. Mais tarde o meu pai deu-me uma mota. Não me posso definir como um menino mimado. O meu pai dizia sempre que tudo na vida é relativo, e que as pessoas valem por si próprias, não pelo que está à sua volta ou que vem de trás.
Isso é um conceito muito americano.
Ele era assim. Nós, europeus de raiz latina, temos um sistema segundo o qual as heranças são divididas por todos. No sistema anglo-saxónico, um pai deixa aquilo que quer, a quem quer e como quer. Houve casos de filhos que herdaram a fortuna toda da família e de outro filho que recebeu dez libras. É o challenge da vida.
Sentiu esse challenge quando os bens da sua família foram nacionalizados e teve de recomeçar tudo do zero?
Não foi bem assim. No dia 12 de Março de 1975 tive de “dar o salto”. Tinha um mandado de captura passado pelo Otelo Saraiva de Carvalho, que os assinava em branco – os nomes vinham do Partido Comunista. A partir do golpe do 11 de Março, a estratégia dos elementos comunistas do MFA (uma santa aliança), era destruir o sistema capitalista português. A ideia foi nacionalizar tudo e mais alguma coisa. Chegou-se ao ponto de se nacionalizar a fábrica da cerveja e companhias de transportes públicos, camionetas. Está a ver onde é que isto ia parar. Estávamos numa luta de classes. Ou se fugia ou se ia preso.
Foi o que aconteceu. Muitos fugiram e muitos foram presos.
Os meus amigos e sócios da família Espírito Santo, muitos foram presos. A razão do meu mandado de captura foi que 15 dias antes tinha tido um problema na Sonap com a comissão de trabalhadores de esquerda, que foi posta em cheque numa assembleia-geral de trabalhadores. Isso não convinha. Conheci em Moçambique, nas minhas fainas com o Eng. Jorge Jardim, um militar que estava nas operações especiais, e nessa altura adstrito ao COPCON, que me disse: “Se vir alguma coisa que lhe diga respeito, aviso-o”. Tínhamos combinado um código e ele avisou-me. Eram duas e meia da manhã.
Porque é que ele o fez?
Foi por amizade. Fui ao terraço da minha casa, vejo os camiões, a minha mulher disse: “Põe-te a andar, como sou francesa não vai haver problemas e encontramo-nos em Paris”. Não tive tempo de fazer uma mala. Depois de uma aventura rocambolesca consegui sair de Lisboa nesse dia.
O que é que fez de madrugada, quando saiu de casa?
Primeiro falei com um amigo que me disse para não ir para perto das embaixadas, que estava tudo cercado. Lisboa estava fechada. Fui para casa de um grande amigo, e comecei a pensar como é que saía daqui.
Em Paris, foi trabalhar novamente com Bullosa, que entretanto saíra de Portugal.
O Sr. Bullosa tinha no seu império um banco em Paris no qual era administrador. Falava muito em vender o banco. Eu, francamente, não tinha ambição de ser banqueiro. Um dia apareceu-me um contacto de uma empresa de trading, com quem tinha feito negócios na Sonap, que me fez uma proposta de ir para os Estados Unidos. Contrato à experiência de seis meses para reforçar o departamento de trading dessa companhia, a Philipp Brothers, e com o objectivo principal de penetrar no mercado brasileiro.
E aí tinha a vantagem de falar português.
E conhecia algumas pessoas no Brasil. Falei com a minha mulher e disse-lhe que não via grande futuro na Europa. Falei com o Sr. Manuel Bullosa: “Se precisar de mim fico, se não precisar vou tentar isto”.
Quanto tempo depois foi para os Estados Unidos? Quanto tempo esteve em França?
Cheguei aos Estados Unidos no dia 24 de Setembro de 1975.
Que dinheiro tinha em França?
Nada. Vou explicar-lhe porque é que perdi tudo. A Fundação Monteiro de Barros era uma espécie de holding. As relações com os outros membros da família eram difíceis e resolvi tomar o controlo da Fundação. Repatriei todo o dinheiro que tinha lá fora e fiz um empréstimo em Portugal, em 1973. Quando veio a revolução as contas estavam todas congeladas e não pude pagar os juros. Tinha dado a minha garantia pessoal. Não tinha rendimentos, estava tudo de pantanas, e os juros, com a inflação, chegaram aos 18, 20 por cento. Não tinha hipótese. Perdi a casa de Lisboa, a casa de Cascais, e todo o resto foi nacionalizado ou expropriado. Não podia vir a Portugal. O Sr. Manuel Bullosa pagava-me um ordenado de administrador no banco, em Paris, mas não era uma mina de ouro!
E não dava para manter o nível de vida a que estava habituado.
Quando cheguei a Nova Iorque tinha 28 mil dólares no bolso.
Quanto tempo demorou até ficar outra vez milionário?
Não sei se sou milionário.
Depende dos parâmetros, portugueses, americanos.
Vou responder de outra maneira. Levei um ano e meio até voltar a ter uma qualidade de vida aceitável. Um ano e meio muito duro. Os americanos não são generosos. Além do ordenado modesto, pagavam-me 50 por cento da renda do apartamento que ocupava em Manhattan. Pus o meu filho a estudar no liceu francês em Nova Iorque. Só as propinas do Pascal eram mais de um terço do meu ordenado. Vivíamos num basement, tínhamos uma sala que era sala, cozinha, e um quarto e meio. Foi aí que aprendi que às vezes a pessoa tem que usar a camisa dois dias seguidos. Não estava habituado, confesso. Por não podermos sequer ter uma empregada doméstica, teve de ser a minha mulher a lavar o chão, fazer as compras, lavar a roupa. Foi duro para ela, mas nunca se queixou.
Já passaram anos suficientes para perceber que foi uma boa educação?
Foi uma experiência muito válida. E tenho a sorte de ter uma mulher extraordinária.
O que é que foi mais duro?, deixar de ter as coisas a que estava habituado?
Nunca tinha passado pela necessidade de verificar ao dólar o saldo da minha conta no banco. Chegava o fim do mês, aquilo estava tão justo...
Havia uma agravante: viajava intensamente pelo mundo. A minha pobre mulher passava duas e três semanas sozinha com o nosso filho. Chegava o fim do mês, ia à caixa da companhia e pedia um avanço para as viagens e também para equilibrar o orçamento familiar.
Viveu aquilo como sendo vexatório socialmente? Como se fosse um falhanço?
Nunca considerei aquilo um falhanço. Considerei uma adversidade. Nunca tive para com o meu país uma atitude de vingança. Passou, passou, vira a página. Sou dos que consideram que uma grande parte da responsabilidade daquilo que se passou cabe à elite económica de então, e da qual fazia um pouco parte.
Como assim? Como é que essa responsabilidade cabe a essa elite?
Uma elite económica tem o dever de participar na definição do destino do seu país. Infelizmente o que se passava e passa ainda em Portugal é que sistematicamente essa elite abdica dessa responsabilidade. Ainda há o que chamo “complexo do empresário”. Com o Salazar, não se discutiam ordens. Se olharmos para o que se passa em Espanha, país que conheço muito bem, a elite, o poder económico, dialoga de igual para igual com o poder político. Em Portugal, salvo raras excepções, o poder económico está de cócoras perante o poder político. Por isso é que estamos nesta situação.
Acha mesmo que é assim? O Jornal de Negócios publicou uma lista dos homens mais poderosos do país e Ricardo Salgado aparece à frente de José Sócrates. Existe uma certa paridade entre o poder político e o económico.
Foi o seu jornal que fez esta classificação. Conheço o Dr. Ricardo Salgado muito bem, é um amigo do peito e tenho o prazer de trabalhar com ele. Discordo totalmente desse tipo de classificação.
Porquê?
Como é que define o poder? Não pode misturar poder político com poder económico. No seu jornal fizeram uma salada russa. No tempo do Salazar havia a lei do condicionalismo industrial, as forças económicas foram criadas em simbiose com o poder político, e daí a sua subserviência.
Ou seja, quem dava a licença era o poder político.
Não estou a fazer uma crítica ao partido A ou B. Continua a verificar-se uma prepotência do poder político em relação às actividades económicas, que é inaceitável. E o poder económico ainda tem a mentalidade “não se pode partir a loiça, porque há retaliações”.
Retaliações?
Não tenha dúvidas. O poder político é indispensável numa democracia, mas o poder económico (o empresariado, a vontade de criar riqueza, de criar postos de trabalho) é aquele que faz andar o país. O poder político é para servir o país, o poder económico é para fazer crescer o país. Quando as coisas correm mal tem que haver um poder judicial, que não existe em Portugal. E por isso este país é de momento ingovernável.
Dito assim parece que está no nosso ADN, e que não é uma situação conjuntural.
É ingovernável num quadro democrático, pode ser governável fora de um quadro democrático – o que não queremos.
Numa ditadura, novamente?
Pode acontecer. Não se pode excluir esse risco. A regra de base numa democracia é simples: votos, eleições, deputados, governo, leis. Como é que querem governar o país se à cabeça toda a gente sabe que as leis não se cumprem? E se não se cumprirem não acontece nada, porque o sistema judicial não funciona.
É daqueles que começaria por fazer, antes de qualquer coisa, a reforma da justiça.
Absolutamente. É complicada, é uma série de remendos sobre remendos. Basta ver a morosidade dos processos e as prisões preventivas que podem durar mais de um ano. Não há sanções e as pessoas não respeitam as leis. Se não respeitam as leis, não se pode governar o país.
Gostava que explicasse melhor isso da democracia versus ditadura.
Veja a história da 1ª República, a confusão chegou a tal ponto que um dia houve um golpe de Estado.
O que está a dizer é que pode acontecer um golpe de Estado ou uma mudança de regime por estarmos numa situação ingovernável?
O poder político está de tal maneira difuso que nenhum partido pode chegar a uma maioria. Estamos em risco de entrar na espiral de governos a caírem uns atrás dos outros. O país precisa de uma certa estabilidade. Há um momento em que é preciso dizer: “Isto está tão mau que temos de salvar o navio”.
É apologista de um sistema que funcione. Mas não de uma ditadura.
Exacto. Não é preciso uma ditadura para nada. É preciso ter leis e ordem, "Law and Order”como se diz nos países anglo-saxónicos.
Vamos voltar a Nova Iorque. Em quanto tempo é que deu a volta?
O grande pulo foi ao fim de cinco anos, 1979/80.
Tinha confiança em si e não duvidava de que ia conseguir?
Temos sempre dúvidas, mas ao fim de uns anos pensava que tinha boas probabilidades de vingar.
Em nenhum momento falou do que sentia. A confiança, a felicidade, os sonhos, essas coisas que também fazem parte da vida do homem. Era um menino triste porque via mais vezes a mademoiselle do que a sua mãe? Sentia-se inseguro ou carente?
Não. Não tinha irmãos, mas tinha um primo muito próximo e tive a sorte de ter grandes amigos. Vivia perto de um deles, e penso que passei mais fins-de-semana, quando os meus pais não estavam, em casa dele do que na minha. Fazia parte da família, tinha o meu quarto, a minha cama.
Era o Ricardo Salgado?
Era o Nuno Brito e Cunha. Com o Ricardo tinha também uma grande amizade, fizemos juntos a nossa comunhão solene e brincávamos com o comboio eléctrico. Só que depois o Ricardo foi para a Suíça, para o colégio. Ficámos muito amigos, mas não nos víamos tanto. Só nas férias ou na vela. O meu amigo mais velho é o Nuno, ainda hoje falamos várias vezes por semana. Naquela época, as relações entre pais e filhos eram muito diferentes das de hoje. Eram muito mais formais. A mãe tinha o seu filho, tinha uma nanny, e via a criança antes de ir para um cocktail com o marido. Aos sete anos ia para um colégio interno. Eu tinha óptimas relações, mais com o meu pai do que com a minha mãe. A minha mãe tinha uma vida social muito activa. Com o meu pai era diferente íamos ao Alentejo e percorríamos a herdade a cavalo ou de jeep.
Que sonhos tinha? O que é que queria ser, o que é que queria vencer? Que challenges é que tinha?
Tive sempre uma enorme atracção pelo mar. Era obcecado pelo mar. Essa obsessão nasceu talvez dos passeios no iate do meu tio, que era Almirante. A primeira vez que fui num transatlântico tinha cinco, seis anos. Quando me perguntavam o que ia ser, dizia: “Vou ser armador”. Sempre ligado ao mar. O meu último quarto de jovem era decorado como se fosse a cabine de um barco. Tinha um beliche e tudo.
Mar. Fez duas voltas ao mundo.
Estou a acabar a terceira. É um projecto que nasceu depois da minha última campanha olímpica, Barcelona. Cheguei à conclusão de que já tinha idade para deixar. Um amigo meu, grande velejador, disse-me: “Porque é que não arranjas um barco menos atlético e vais fazer umas voltas ao mundo?”. E nasceu a ideia de um projecto que se chamava “Around the World in Eighty Months”. Encontrei este barco, apaixonei-me por ele, fizemos a primeira volta. Como tenho de trabalhar não posso fazer todas as etapas. A tripulação vai levando o barco, várias vezes por ano vamos ter com ele e fazemos cruzeiros pelo mundo fora.
Tem de trabalhar ou escolhe ter esse desafio para se sentir vivo? Tem dinheiro suficiente para não ter que se preocupar com isso.
Uma vez na minha Business School, em França, fizeram-me a seguinte pergunta: “Qual foi o seu melhor negócio?”, “Foi entrar em 1975 na empresa americana”. Nos Estados Unidos não há empregos garantidos, é preciso mostrar resultados. “Ao mesmo tempo ter feito quatro campanhas olímpicas, e ter conseguido conciliar isso com o trabalho”. Não ganhei nenhuma medalha, mas posso garantir que os meus pares, os grandes campeões olímpicos, sempre olharam para mim como um concorrente respeitável, e não como um turista olímpico. Mesmo assim conquistei um título mundial e um europeu.
Mas precisa de trabalhar? A sua cara muda quando fala dos barcos e do mar.
Estou a reduzir o meu campo de acção em Portugal. Tenho 66 anos, mas já vou na segunda batalha contra o cancro. Também conta. Foi há uns anos.
E isso muda a vida?
Não muda a vida, mudam os horizontes. Se me perguntar se posso deixar de trabalhar amanhã? Com certeza. Mas tenho responsabilidades. Sou accionista de um grupo e o mínimo que se pode dizer é que as coisas não são fáceis. Nos momentos em que as coisas não são fáceis temos a obrigação de dar o nosso melhor. Tenho uma companhia de trading, tenho colaboradores, alguns há 20 anos. Chegou a hora de tomarem conta da empresa. Isso leva tempo. Têm de a comprar, não a vou oferecer. Se correr tudo bem daqui a um ano, um ano e meio, está tudo resolvido. Tenho a Petroplus, onde sou chairman. Houve pessoas que investiram na companhia, e as coisas estão muito difíceis na área de refinação de petróleos. Reformar-me? Sim, num horizonte de dois, três anos.
Que horizontes mudaram com a doença? O que é que se relativiza?
Vamos todos morrer, é uma questão de timing. Fazia planos a dez anos, talvez hoje faça a cinco.
Teve medo de morrer?
Não, não tenho medo da morte. Já a vi duas ou três vezes bem perto. Uma vez no mar, outra em África. So what? Quando chegar a hora, peça a Deus que seja rápido e não doa muito.
Não recuperou nada do que tinha sido da sua família? Não sente apego por nenhuma das casas do seu passado, dos seus familiares?
No Alentejo recuperámos uma parte pequena da herdade, numas condições muito adversas. Vendi. Não me sentia com coragem de voltar ao monte do Marmelo, completamente diferente do que tinha conhecido. Pertence à Nutrinveste, dos Mellos. É o mais belo olival do país.
Conseguiu fazer mais dinheiro por si do que aquele que a sua família tinha no passado?
Não sei, nunca fiz as contas.
Porque é que isso nunca foi importante?
Tudo é relativo. A definição da fortuna de uma pessoa é o que se tem no bolso. E aquilo que pode ir ao banco levantar sem dar nada em caução. Já me têm perguntado: “Quanto é que o senhor vale?”. Já saí da lista [dos mais ricos], de uma revista mensal portuguesa, felizmente e a meu pedido.
Está a dizer isso com ironia, confesse. Toda a gente gosta de ter dinheiro.
Está completamente enganada. Não existe em Portugal, como existe nos Estados Unidos para a Forbes, a possibilidade de fazer essa listagem com alguma exactidão. Felizmente, ou infelizmente, depois do desaire da refinaria Vasco da Gama, resolvi desinvestir em Portugal, e criei a Petroplus. Falei com o director dessa revista e disse-lhe: “Já não sou residente em Portugal, o senhor faça o favor de me tirar da lista”.
Porque é que continua a sentir-se português? É Patrick, e não Patrício, que é o que vem no bilhete de identidade.
Patrício. Naquela altura não se permitia a um cidadão português ter um nome estrangeiro. A minha avó materna era irlandesa – eis o porquê do Patrick. É a minha terra, fui educado cá, o pai era português e tenho muita honra em ser português.
Estados Unidos, Virgínia. O que é que significa para si ter uma casa desenhada por Thomas Jefferson?
Foi a primeira casa que comprei depois de deixar Portugal. (Primeiro comprei um apartamento em Nova Iorque onde não tinha a ideia de ficar toda a vida – era um poiso.) De todas as minhas casas é aquela que considero “o meu lar”. Quando vi a casa pela primeira vez, disse: “Conheço esta casa”. Nunca lá tinha posto os pés. No dia seguinte, ao pequeno-almoço, disse à minha mulher que tinha sonhado que era um oficial do exército sulista, que ela era a filha dos donos daquela casa, e que casávamos naquela casa. Gone With the Wind. Comprámos a casa. Seis meses depois apareceu o presidente da associação histórica da Virgínia com um certificado de casamento de Aristides Monteiro de Barros, 1850, filho de Francisco Xavier Monteiro de Barros, que seria o irmão do meu tetravô, e que tinha emigrado para os Estados Unidos. Esse Aristides, durante a guerra civil, era o regimental surgeon do Coronel Mosby e casou com a sobrinha do primeiro proprietário da casa. Não tem fantasma. E está tudo documentado. Edgemont é um monumento nacional. Foi desenhada e construída pelo presidente Thomas Jefferson em 1946.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2011