Kiluanji Kia Henda
Kiluanji Kia Henda. Que quer dizer este nome? Nascido em 1979, em Angola. Como é viver num país onde o improviso é uma condição se sobrevivência? A memória de um país que não teve tempo para olhar para si, a reflexão sobre anos de instabilidade, hordas de mutilados, o horror do guerra, está no seu trabalho.
Os pais acharam que quando crescesse não precisaria de ir para a guerra. Não foi. Mas a guerra só acabou quando já era adulto. Viveu num país em guerra civil desde que tem memória de si. Cresceu com um país que oscilou entre a experiência comunista e a abertura ao mercado. Aprendeu um novo hino, mitificou, como todos da sua geração, Agostinho Neto. O pai, político, a mãe, mulher de político, empenharam-se na construção de uma nova Angola. Que não é exactamente esta onde Kiluanji Kia Henda vive.
Esta, feita de musseques e kuduro, estabelecimentos comerciais onde se paga em dólares e murais revolucionários nas paredes, é a que aparece no trabalho que faz. A fotografia é uma arma? O fundo do seu trabalho é político, sim. Mas sem perder de vista a poesia.
Fez da fotografia o seu suporte preferencial. A instalação e o vídeo são modalidades que também pratica. No princípio, quis ser músico. Fez residências artísticas e expôs em cidades como Nova Iorque ou S. Paulo, em países como Itália ou África do Sul. Tem a base em Luanda, imensa babel onde se sente em casa.
Entrevista há uma semana, na véspera da inauguração do BES Photo, no CCB, de que é um dos finalistas. Quatro da tarde de domingo, num hotel em frente ao rio. Cabelo apanhado em rastas, jeans e t-shirt, a voz nunca se emociona ou exalta.
Kiluanji?
Significa guerrilheiro. Era o nome de um dos reis do Ndongo, Ngola Kiluanji. Foi dado pelo meu pai. Todos na minha família temos nomes em kimbundo [uma das línguas de Angola], desde o tempo colonial.
Porque é que era importante para o seu pai dar estes nomes aos filhos?
Era o seu lado revolucionário. Foi uma das figuras que combateram pela independência. Fez parte da luta na clandestinidade. Nunca foi guerrilheiro nas matas. No tempo colonial, uma das estratégias era apagar a herança tradicional. Havia um estatuto – chamavam-lhe “assimilado” – e só com ele é que se podia frequentar a escola, ter oportunidades dentro da sociedade. Os pais faziam questão de que os filhos usufruíssem desse estatuto. Para se ser “assimilado” tinha de se deixar muita coisa para trás; deixar de falar kimbundo, deixar certos hábitos.
Esse estatuto obrigava a quê, a falar português?
Sim. A estar ligado à Igreja Católica. E até pequenas coisas, como comer com talheres. Era uma maneira de as pessoas entrarem para a cultura ocidental.
O que é que o seu pai contava dos seus avós, do que era essa marca mais angolana e menos ocidental?
O pai dele trabalhava como advogado e foi defensor de várias causas. Daí também parte essa coisa da luta, da resistência. Se calhar por ter nascido no interior de Angola, sempre houve a preocupação de deixar viva a marca da nossa tradição. Devia ter oito anos quando se mudou para Luanda. A minha mãe nasceu no Kwanza-Norte. Luanda é uma cidade que desde há muito tempo vem albergando o resto do país.
Pertence a uma geração que nasceu com o país (nasceu em 1979, a independência é de 1975). Mas não se pode compreender quem é, nem o país, sem compreender o que está para trás. Em casa, contava-se muita coisa do passado?
Já não conheci os meus avós. Sou o último de seis filhos. Há um gap geracional. Muita dessa história passou-me ao lado. Cresci num meio onde sempre se debateu muito sobre política, numa casa que foi frequentada por vários políticos angolanos, fins-de-semana de discussões acesas. Tinha tios que eram de outros partidos (do FNLA, por exemplo). O meu pai sempre esteve ligado ao MPLA. Tinha o Fidel Castro como ídolo, era comunista ferrenho. Se calhar, tudo isso influencia o meu trabalho, o meu interesse como artista.
A sua mãe e a família da sua mãe, como é que se posicionavam?
Era muito uma questão regional. Muita gente da parte centro e litoral de Angola estava mais ligada a MPLA. Até hoje. Kwanza-Norte ou Malanje são bastiões muito fortes do MPLA. Era impossível viver com alguém que estivesse comprometido politicamente sem estar também comprometido. Sendo mulher de revolucionário, sempre teve de acompanhar [a causa política]. O meu pai: até final dos anos 80 esteve a trabalhar no partido, mas depois cortou.
Com o que é que se desencantou?
Daquela geração, vários militantes se desencantaram. Aquilo por que lutaram, que julgavam que iam conquistar, como Angola independente… Houve várias desilusões, com o sistema, com o que se passava no país. No caso dele, houve outros nomes da política de quem, lentamente, se foi separando. O próprio país mudou. Vivemos uma tentativa de comunismo, que aconteceu durante uma década. Depois tivemos que entrar para a ideia de democracia, economia de mercado. Para pessoas que defendiam certos ideais, não era compatível com aquilo em que o país se tinha tornado. Também foi por isso que se afastou.
A visão política do seu pai, que nunca deixou de ser comunista, marcou-o muito?
Esse envolvimento dele, claro que marcou. Sempre teve interesse na política internacional, e fazia questão de que estivéssemos atentos à vida política do país e à situação internacional.
Uma fotografia sua: uma criança está sentada, de perna cruzada, num espaço em escombros, e o título é “Side effects of cold war” [2005]. É uma obra grandemente política.
Sempre houve uma estratégia global na qual Angola estava incluída. Aquilo que vivíamos não era simplesmente responsabilidade do país ou de quem dirigia o país. Foi assim que aprendi a ver o meu país. Angola sempre sofreu muito a ingerência de poderes internacionais. Caso da África do Sul, da União Soviética, dos Estados Unidos. É costume dizer que Angola era o campo quente da Guerra Fria. Se bem que muitos dos factos do que se passava em Angola eram omitidos. Quem estava em Nova Iorque não devia imaginar o que se passava no Cuando-Cubango, as batalhas que ali se travavam.
O seu trabalho procura olhar e compreender a vossa história?
Sempre foi importante ter essa compreensão. Durante a época de conflito não houve tempo para reflectir. A guerra exige um grande esforço físico, humano; no final do dia ninguém está disposto a pensar sobre o que é que viveu. Mas com a paz, lentamente, vai-se pensando sobre isso. Há resquícios, até hoje, dessa ingerência estrangeira, daquilo que fez de Angola um campo de batalha, de experimentações, de armamentos, e que implicou várias potências mundiais.
As suas memórias estão ligadas a isso e a um clima de guerra civil. Já era adulto quando a paz foi assinada.
Cresci nesse clima. Luanda sempre esteve protegida de guerra propriamente dita. Mas quando um país está em guerra há certas circunstâncias que são próprias dessa situação. Mesmo assim considero-me um privilegiado. Onde me senti mais afectado foi no ter a família a emigrar. Vários tias e tios que tiveram de vir para a Europa, para o Canadá. Por causa do medo de estar num país em guerra, de um dia ser afectado directamente pela guerra. Depois de 1975, o cenário podia ter tomado várias repercussões, depois de os portugueses terem saído. Certas pessoas preferiram abandonar mesmo o país.
Os seus pais puseram essa hipótese?
Não, nunca. Incrível foi terem achado que, com a idade que eu tinha, nunca chegaria a altura de ir para a guerra. Acreditavam que nessa altura a guerra havia de estar acabada. Mas ainda tive que fugir das rusgas. Quando a guerra acabou, tinha 23 anos.
Fugir das rusgas, como?
Havia rusgas na cidade, para recrutar novos mancebos. Contudo, o que mais me afligia nesse período era a falta de circulação pelo meu próprio país. Ficávamos muito fechados em Luanda, quando viajávamos era de férias para a Europa. Conhecer o país – isso foi-nos roubado durante muito tempo. Quando penso em pessoas como a minha mãe… Quando a guerra pela independência começou, ela tinha 21 anos; quando a guerra civil acabou, tinha 62 anos. Ficou 40 anos nessa vida, instável, num país com limitações de circulação por questões de segurança. No noticiário estávamos sempre a assistir a imagens da brutalidade que se passava no interior do país.
Como é que a sua vida era marcada por isso?, a sua cidade, a sua rua?
Luanda também se foi alterando. A explosão demográfica, a cidade em que se tornou, é resultado de muitos anos de conflito. As pessoas fugiam da guerra e viviam nas ruas de Luanda, crianças, jovens. Era o único porto seguro. Nasci e cresci numa rua que tinha um centro ortopédico onde iam parar grande parte dos mutilados e feridos de guerra, e que era o único centro onde se fabricavam próteses. Era impressionante a quantidade de pessoas sem pernas, sem braços que circulavam pela cidade. Depois de tanto viver com esse sofrimento, o que acontece é que começamos a tornar-nos imunes. De repente, já não nos abala tanto ver uma pessoa a viver numa miséria extrema. Essa é a parte mais perigosa de viver uma situação de guerra, essa perda de sensibilidade. Corremos todos esse risco.
Ainda que tenha assistido de perto a essa realidade, sentia que aquilo lhe podia acontecer? Sentia uma ameaça sobre a sua vida, sobre a sua integridade física?
Vivi num período em que também podia ter sido incorporado. Tenho amigos que tiveram de ir para a frente de combate. Amigos que cresceram comigo estiveram em acidentes com minas. De maneira alguma senti que estava isolado daquilo. Também era susceptível de algum dia ir para uma frente de combate.
O seu pai revolucionário, aquele que lutou pela independência do país, teria querido que fosse para a guerra, que se empenhasse mais politicamente?
Não, porque chegou um ponto em que a guerra perdeu o seu sentido. As pessoas já não acreditavam naquilo por que estavam a lutar. Tornou-se numa guerra de angolanos contra angolanos. Quando a África do Sul tentou invadir Angola, um primo, o Cristiano, que nem tinha que ir para a guerra, era engenheiro mecânico, largou tudo e foi para a frente de combate. Tratava-se de um país a invadir o outro – implicava outro sentimento.
Depois das primeiras eleições de 1992, as pessoas deram-se conta que estavam a entrar numa guerra estúpida. Quando chegou a minha altura de ser recrutado, houve muitas mães que saíram à rua e se manifestaram.
A sua mãe manifestou-se?
Não, mas ela partilhava do mesmo sentimento. Fez várias tentativas no sentido de conseguir um adiamento para mim. As pessoas já não estavam dispostas a fazer parte de uma guerra numa zona longínqua do país, já não se sentia esse dever patriótico.
Na escola tinham informação política, cantavam o hino, tinham de ir fardados, havia fotografias nas paredes?
Tínhamos de cantar o hino. [Canta] “Heróis do mar”… Não, é o outro [riso].
Justamente, queria saber qual é que lhe ocorria primeiro.
[canta] “Ó pátria, nunca mais esqueceremos os heróis de 4 de Fevereiro, ó pátria, saudamos os teus filhos tombados pela nossa independência, honramos o passado, a nossa história, construímos para o futuro um homem novo…”. Cantávamos todos os dias. Havia muito essa ideia do poder popular. Inspirava-se nas marchas e era revolucionário.
Porque é que brincou e começou por cantar “Heróis do mar”? O seu pai ainda teve que cantar na escola o hino português.
Estudavam os rios, a história de Portugal, era muito mais do que o hino. Para mim, sempre foi engraçada a ideia de um país, 15 vezes maior que Portugal, ser simplesmente uma província. Esses malabarismos políticos… Hoje, se ouvimos falar, até parece uma coisa utópica.
Quando foi para a escola, Angola era um país soberano há meia dúzia de anos. O hino não podia ser outro senão o angolano.
Sim. A questão de ser artista em Angola: sempre foi esse desafio de viver num país experimental, que estava a acabar de nascer. A realidade em Angola consegue superar o criativo. Há sempre esse lado da improvisação, que até hoje foi necessário para que o país não caísse. Na Europa, os jovens nasceram num país onde está quase tudo estabelecido, pensado, sólido; isso às vezes é muito frustrante para quem está numa área criativa. Em Angola estava tudo em constante mutação.
Estava ou está?
Está. Novo hino, nova bandeira. O homem novo.
O que é que representava para uma criança Agostinho Neto, primeiro presidente do país?
Morreu dois meses depois de eu nascer. Era uma figura numa câmara de vidro, dentro de um mausoléu, conservado, já sem bigode. Eu pertencia à OPA, a Organização dos Pioneiros de Agostinho Neto. Sempre houve uma ligação muito forte entre a ideia do pioneiro e a imagem do Agostinho Neto. O poder sempre tentou passar esse lado.
Como é que era a vossa escola?
Tinha áreas grandes, pátios, mista. Durante os anos 80, não havia uma separação social. Desde o filho do presidente ao filho do contínuo na mesma sala. Começou a haver depois, na mudança para o capitalismo.
Sentiu-se no dia-a-dia uma viragem depois de 1992?
Sentiu. Estávamos a viver num país onde podíamos ser presos por ter dólares no bolso, e de repente tínhamos pessoas a trocar dinheiro na rua. Hoje pode-se entrar num estabelecimento comercial e pagar em dólares. É uma grande mudança.
[Na escola, tínhamos aquilo a que] chamávamos “trabalho voluntário obrigatório”. Limpar a escola, participar nos comícios. É sempre bom fazer parte dessas organizações, mas sempre fugi às tarefas mais partidárias. Normalmente era aos fins-de-semana, e não dispensava a cama. Nunca senti uma presença política forte. Era uma ideia de comunismo que nunca chegou a ser comunismo. Era mais a ideia de uma economia centralizada. Tive a sorte de ter ido a Cuba com oito anos, e aí sim, senti outra coisa.
Que família era a sua e que estatuto económico tinha para lhe permitir viagens à Europa, a Cuba? Havia dinheiro.
Havia muitas coisas que eram subsidiadas pelo Estado. Se vendesse duas grades de gasosa na rua, e tivesse a oportunidade de trocar esse dinheiro dentro de um banco, podia comprar uma passagem para Lisboa. O meu pai trabalhou muitos anos como topógrafo, e depois da independência ocupou cargos no Governo. Chegou a ser ministro do Comércio. Adriano dos Santos Júnior. Quando cortou com a política, em 1986/87, trabalhou no Ministério da Indústria. Tinha o curso superior de Economia. Trabalha como consultor.
Os murais, todo o tipo de propaganda política, que ainda se encontra nas paredes de Luanda, são uma constante do seu trabalho. Muitos datam do período em que o seu pai era ministro.
A instabilidade que se viveu, a falta de documentação, de livros, espoletou o meu interesse em recuperar resquícios dessa fase. Houve quase um genocídio cultural em Angola nos anos 80 causado pela situação de guerra. Existe alguma música, mas tudo o que era ligado à indústria [cultural], morreu. Eu tinha um interesse grande pela música, mas não se encontrava à venda uma guitarra eléctrica.
As pessoas não têm as coisas bem resolvidas. Vai ser preciso algum tempo até podermos falar destes assuntos de forma mais livre. Ao mesmo tempo, é urgente a reflexão sobre o que vivíamos antes. Mesmo as perguntas que me fez, de como era a escola, são coisas em que não tinha pensado. A palavra de ordem, “estudar é um dever revolucionário”, “a caneta é a arma do pioneiro”, que estava nas paredes, nos livros, era de uma escola marxista, que já não influencia a realidade angolana. Tudo copiado da revolução russa. Ainda é difícil fazer um quadro do que foi o país nestes 35 anos. Um balanço. Faltam depoimentos, faltam imagens. O meu trabalho liga com isso. Tentar recuperar o que está presente dessa história passada.
Foi claro que aquilo que queria fotografar era um país a ser erguido? Com os seus paradoxos, magias do quotidiano, contradições.
No início, não tinha uma visão tão politizada sobre as coisas. Era mais explorar o meio técnico do que as histórias que fotografava. Essa preocupação surgiu mais tarde.
Foi um encontrar da sua narrativa, no fundo.
Sim. Já tinha dentro de mim essa ligação à história. Quando comecei a viajar e a perceber melhor o mundo foi necessário entender o quanto tínhamos dos outros em nós. De onde sou influenciado. Quantos fragmentos de outros sítios há em mim. Angola é um país muito permeável a outras culturas. Por não termos indústria, consumimos tudo o que vem de fora. Roupas, sapatos, pente. O epicentro da minha ideia está em Angola, mas a ideia é bem global. Às vezes disfarçamos, mas existe uma interdependência entre os países. Essa interdependência não é só física, é também genética. Eu tenho um avô português.
O recíproco também é verdadeiro.
Claro. O que é que representa Angola no mundo? Desde os escravos que foram para as Américas – em que é que influenciaram a cultura? A grande música americana: quantos desses músicos negros saíram dos portos de escravos de Angola? O meu trabalho é entender essas relações, essa dinâmica, que é bem visível no Atlântico, e que traz uma cultura híbrida, universal. Não tem bandeiras, não tem nações, não tem raças.
Já me perguntaram na África do Sul: “Porque é que gostas de rock?, rock é música de branco”. O meu trabalho ronda por aí. Ajuda a encurtar distâncias, a melhorar o diálogo.
Ocorre-me a fotografia que fez de um homem, com o corpo pintado de branco. Tem um carácter tribal muito acentuado.
Mas tem umas sapatilhas Puma. Essa foto traduz o que é Luanda neste momento. Remete para a cultura suburbana, para a mistura do high-tech com o animismo. Muitas das pessoas que vivem nos musseques nasceram no interior e transportam em si os ritmos tribais; o choque disso com a tecnologia que se encontra na grande cidade resulta no kuduro. Que é um dos maiores e melhores fenómenos culturais que aconteceram em Angola nos últimos 20 anos.
Luanda tem essa hibridez de que falava, e uma enorme contradição. Há bairros cujo metro quadrado custa 7500 dólares, e isto coexiste com o curandeiro na outra esquina.
Eu não gosto do discurso da angolanidade. Mas se há alguma coisa próxima de angolanidade é o que sai dos musseques. Se há coisa que posso reconhecer como sendo nacional é o que sai dos guetos de Luanda. O semba [e não samba, estilo musical angolano]: contam-se as bandas que há em Luanda e deve haver mais algumas noutras províncias. O kuduro está em tudo o que é província. Não falo só da música, mas da atitude, do vestir. Luanda convive com estes dois mundos. E depois tem o mundo do centro da cidade, mais conservador, onde as pessoas têm melhor qualidade de vida.
Não sente esse lado conservador nos musseques?
Não. Por exemplo, o problema da homossexualidade, nos subúrbios das grandes cidades da África do Sul, é violento. Todos os dias uma lésbica é violada, matam um gay. Fiz até um trabalho sobre isso. Em Luanda, não. Nos meios suburbanos há uma… nem usaria a palavra tolerância, que acho que não se encaixa; há uma liberdade na maneira de ser. Para falar de homossexualidade: há pessoas que dizem que quem levou a homossexualidade para África foram os europeus!, que homossexualidade é coisa de branco.
Com a religião, acontece o mesmo: no meio suburbano de Luanda tem muçulmanos, protestantes, católicos…
A grande Luanda é uma imensa babel onde coincide tudo isso?
E de forma pacífica.
Então, o que é que provoca as grandes tensões na cidade? As diferentes condições de vida, a distribuição iníqua da riqueza?
Não sinto que a cidade esteja a viver uma grande tensão. O que acho é que toda a mudança profunda, em Angola, envolveu banhos de sangue. Há esse medo. É normal que haja, está ligado à história do país. Foram 14 anos de guerra para chegar a uma independência. Foi uma semente de conflito aí lançada. Uma dissidência no partido no final dos anos 70, outro banho de sangue. Para haver eleições, outro banho de sangue, para deixar de ser um país de tendência comunista para passar a ser um país democrata. A tensão existe por causa do caos social, da diferença radical entre ricos e pobres. Mas há uma grande vitória: é o respeito pela integridade física. O que a sociedade civil quer, acima de tudo, é poder preservá-la. Consciente de que o país vai ter que sofrer mudanças.
Essas mudanças podem ser iminentes? Pode haver um contágio do que se está a viver no norte de África?
No norte de África: estamos a falar da segunda e da terceira economias de África. Estamos a falar de países como o Egipto que tem 20 milhões de usuários de internet. Podem criar-se paralelos quanto ao poder político no norte de África e em Angola. Mas o contexto histórico é completamente diferente e não temos uma população tão preparada para cobrar aquilo que quer ter, ter aquela consciência.
Na Tunísia, tiraram um ditador; mas não quer dizer que tenham acabado com a ditadura. Fazer rolar a cabeça deste ou daquele político não resolve a situação. Temos de ver até onde as sociedades estão preparadas para essas mudanças. Não adianta sair à rua e gritar pela democracia quando não fazemos nem ideia do que é isso de democracia. O que vejo em Angola, desde há anos, é que grande parte da população não é nada politizada. Simplesmente vive. Quer é paz para poder trabalhar e produzir o seu bem estar. Nas matas, onde a guerra foi sangrenta, as pessoas não sabem o que é capitalismo ou socialismo, não sabem o que é a Guerra Fria ou bloco comunista. Quer novas oportunidades de vida. Até traduzir isso em poder político, até achar que o político é que vai mudar isso… Não penso que as pessoas vejam essa responsabilidade nas mãos dos políticos. Eu, como artista, acho que devíamos dar menos importância aos políticos. Muitas pessoas, a iniciativa privada, fazem mais do que certos políticos. Há pessoas que, na sua iniciativa, promovem muito mais a cultura do que o Estado. Em África tem de se consolidar melhor a sociedade civil. Prefiro dar mais atenção àqueles que trazem mais soluções para a sociedade civil do que dirigir-me aos políticos.
Não pensa, então, que haja a possibilidade de se fazer um levantamento em Angola, como se fizeram em países como a Tunísia, Egipto, Líbia? Houve movimentações no país depois do que sucedeu no norte de África.
É difícil falar sobre isso. Por uma questão ética, não gosto de falar sobre a situação política em Angola fora de Angola. Prefiro falar quando estou em Angola. Coíbo-me de fazer certos comentários. Podemos manifestar-nos, a Constituição permite-o. Mas não dei muito crédito [a essas movimentações]. Era uma petição sem figura, anónima, e isso não resulta em nada. As pessoas têm de dar a cara pelas lutas que querem levar em frente. Angola tem muita coisa para mudar. Mas tão pouco queremos uma coisa que crie apenas um alarme. Sabemos bem quais são as consequências disso. Se acontecesse alguma coisa em Angola, seria mais parecido com o que se passa na Líbia.
No seu trabalho, apesar do fundo político, procura sobretudo cartografar o seu país e os seus habitantes. Já falou do que faz como sendo uma “poesia ausente de palavras”. Como é que chegou, enquanto auto-didacta, a esta forma de fazer poesia?
Antes de fotografar, fiz o exercício de ler imagens. Cresci num meio em que a fotografia estava presente (o meu irmão mais velho tem um estúdio em casa). Vivi dois anos em casa de um fotógrafo sul-africano, uma das pessoas que mais me ensinaram sobre Angola, através das suas fotografias. A fotografia é uma forma de materializar aquilo que penso ([e que me interessa] mais do que o rigor técnico). Sou um contador de histórias. O meu trabalho é político porque essa materialização envolve um pensamento, uma vontade, um ponto onde chegar. Ao mesmo tempo tem a ironia, o humor. Não me interessa ser um artista que tem um ponto de vista documental. Pelo contrário; gosto de manipular o que é documental para que isso possa ser usado na minha narrativa.
É uma forma de ficção.
É. Na sociedade onde cresci, as pessoas perderam um pouco a capacidade de fantasiar. É o que sinto também na arte portuguesa. Uma certa formalidade. Perdeu-se a vontade de entrar nos territórios da ficção. Para mim, é do mais essencial para um artista. É o nosso filtro, a nossa opinião sobre as coisas. Encontrar a contestação nas artes plásticas não é tão claro quanto no hip hop, em que tudo é mais denunciado. Há uma intervenção política no que faço, sim. Sou fã de Jimmy Hendrix, Bob Dylan; havia neles uma lírica de intervenção, mas sem deixar para trás a poesia.
Dá-se com o establishment artístico de Luanda?
Sim. Foi onde apareci. Luanda e Cape Town são os sítios onde trabalho mais em projectos colectivos.
As coisas estão aí muito entrincheiradas? De um lado estão artistas que se dão com o sistema e que estão representadas nas grandes colecções; do outro, estão os que não se dão.
As coisas são assim em todo o lado. Mas não sinto especialmente isso. Os artistas que pertencem a colecções e têm tido mais oportunidade de expor conseguem ser mais interventivos. Reflectem sobre o que é a sociedade hoje, são muito críticos. Há artistas que conheço, que não estão nas grandes colecções, e que se contentam com pintar o pôr-do-sol e os embondeiros, as máscaras e as nossas tradições.
Estar representado na colecção de Sindika Dokolo, um dos maiores coleccionadores africanos, marido de Isabel dos Santos, e por isso genro do presidente, não o inibe de fazer crítica política no seu trabalho?
De maneira nenhuma. A crítica política está no meu trabalho. Não sou um radical. Mas uma das fotografias que expus no BES Photo foi de uma estátua desmontada do Paulo Dias de Novais. É uma metáfora do desmantelamento do colonialismo. Cheguei a afirmar que as estátuas portuguesas que estão em Luanda são estátuas de cidadãos que têm visto caducado; e não deixei de expor aqui, num meio algo oficial. As pessoas têm de ter a capacidade de incorporar a crítica sobre a sua própria sociedade. Para Itália fiz obras sobre a guerra que foram consideradas muito leves. Existe uma subtileza no meu trabalho. São fotografias sobre a guerra que se podem pôr na sala de jantar e não tiram o apetite. Mas que nos levam à reflexão. O meu problema não é com indivíduos, políticos. O espírito colectivo é que tem de ser mais forte – essa é a minha luta.
Publicado originalmente no Público em 2011