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Anabela Mota Ribeiro

Augusto Mateus

19.01.15

“Tenho uma necessidade de mudar desde sempre. Não me consigo consolidar sobre coisas boas, êxitos, tranquilidades. A vida precisa de desafios. Precisamos de estudar e pensar coisas novas. Não podemos pensar sempre o mesmo, senão estiolamos”. Augusto Mateus está nesta frase. É o tipo de pessoa que imaginamos sempre de mãos nos bolsos. Como sinal de timidez e reserva. E que usa palavras dos livros como “estiolar”. Ele é também aquele que diz: “Para mim não faz sentido interrogarmo-nos porque é que coisas más existem sem pensar em como é que as podemos resolver”. As duas coisas estão ligadas. Tudo na vida nele assenta nessa dupla valência: saber e fazer.

Sentir é outro plano, outra esfera.

Usa expressões como: “numa lógica de”, “no sentido em que”. As palavras são “lógica” e “sentido” – o que deve ser sinal de qualquer coisa.

É tido como um académico. Foi Ministro da Economia, Indústria e Turismo do Governo de Guterres. Tem uma empresa de consultadoria. É professor catedrático convidado do ISEG. Interessa-me por História, Arqueologia, Fotografia. Aprendeu a ler e a escrever em francês. Talvez tenha começado aí uma apetência por ler em várias línguas, por conhecer vários países. Viaja desde pequeno, começou com os pais. Fala pouco da família.

Tem duas filhas. Fala muito depressa e num tom de voz constante, quase monocórdico. É muito articulado. Por vezes sorri e a cara muda um pouco. Não se descompõe. O seu lema poderia ser: correr sem se despistar.

 

Porque é que não fez uma carreira política?

Porque, para mim, a actividade política só é atractiva numa lógica de cidadania, e não numa lógica de carreira. A actividade política pode ser vivida como actividade principal ou como colaboração pontual em momentos em que, no conjunto dos problemas e desafios do país, temos um papel positivo a desempenhar. Habituei-me a ver o meu sucesso em função do sucesso do país, da comunidade em que me insiro.

 

Quando é que se habituou a ver assim? Porquê essa identificação quase fusional?

Não escolhemos o ano em que nascemos, não escolhemos o tempo em que vivemos. Eu tinha 18 anos no Maio de 68. Tinha 20 anos no ano em que a polícia invadiu a minha faculdade e eu estava no terceiro ano da licenciatura. Tinha 24 anos no 25 de Abril. A minha formação académica e o meu despertar para o exercício da cidadania coexistem com uma enorme transformação em Portugal e no mundo.

 

Um exemplo concreto desse cruzamento. Uma opção pessoal marcada pelo tempo que se vivia.

Tinha decidido fazer o doutoramento em Economia numa Universidade inglesa (estava a escolher entre Oxford e Cambridge) e recebi a carta de aceitação da minha candidatura alguns dias depois do 25 de Abril de 74. Tomei a decisão de não ir e de ficar em Portugal.

 

Para muitos da sua geração, a carreira política era quase um desígnio. Porque é que, nem nessa altura, essa dimensão se impôs?

Fui criticado por, para além de fazer o que muitos jovens fizeram (combater o colonialismo, lutar pela democracia), interessar-me por teoremas, teorias. Fui criticado por ser pedagogista, por prestar muita atenção ao estudo. Não acredito em transformações políticas que não passem por transformações educacionais. Gosto muito de pensar, de estudar. Acredito na política, não como a arte do possível, mas como a capacidade de transformar o necessário em realizável. Não vejo nenhum problema em que se faça uma carreira política, em que se faça disso a actividade central. A mim, não me diz, não é a minha maneira de ser.

 

Falemos da construção da sua identidade, das razões porque é assim. Frequentou o Liceu Francês, na turma de Ferro Rodrigues e Isabel Alçada.

Todos os liceus, todas as turmas, têm pessoas excelentes que são conhecidas e outras que não são conhecidas. Hesitei muito entre ser médico, arquitecto, arqueólogo, economista. São coisas que não têm que ver umas com as outras. Tudo por uma coisa que ainda hoje me marca: o desafio do conhecimento. (Interesso-me por coisas onde há muito para explicar, onde há dúvidas e mistérios, descobertas). E pela ideia de que o conhecimento tem de ser útil. O conhecimento não se esgota em quem o obtém ou exibe. O conhecimento que interessa é o que muda a vida das pessoas – muitas, poucas, todas.

 

Porquê? Quem é que o ensinou a olhar assim?

Se calhar porque tenho a noção (não sei se é verdade, nós também mentimos a nós próprios) de que gosto mais de dar do que de receber. Sobretudo, há um conjunto de interrogações a que é preciso responder. Porque é que as sociedades não são mais organizadas?, porque é que há tanta infelicidade no mundo?, porque é que permanecem certos problemas que parecem eternos (como a fome ou a pobreza)?

 

Quando é que se levantaram essas questões?

Na minha adolescência li muito. O meu pai tinha uma excelente biblioteca e passei férias grandes a ler centenas, milhares de livros, variadíssimos. Eu era um pouco solitário, tímido. Não quer dizer que estivesse fechado; tinha uma vida normalíssima. Encontrei o que se encontra nos livros. Ficando em minha casa, andava pelo mundo, andava pelos problemas, andava pelos entusiasmos.

 

Três livros ou autores de que se lembre imediatamente e que tenham tido um efeito detonador.

Eça de Queirós, que li com 16, 17 anos, e que não consegui parar de ler. Jorge de Sena. E algumas coisas do Marx que ninguém lê e que me entusiasmaram.

 

O que há nesses autores, em diferentes registos, é uma dissecação da sociedade.

Sim.

 

Nos anos 60, existia um contraste social mais marcado. Não podemos escamotear o facto de pertencer a uma burguesa bem instalada – vamos dizer assim.

Ao que é verdadeiramente classe média. “Burguesia” tem muito que ver com propriedade ou com formas de empreendedorismo. O meu pai era um profissional. Vivíamos muitíssimo bem, comparado com a esmagadora maioria da população, mas sem rendimentos de propriedade. Nasci na Lisboa que se transformava numa sociedade grande, em casa, na Praça Pasteur, junto à Praça de Londres. Fui o primeiro bebé a nascer naquelas casas de renda limitada, casas de um conto, cento e dez – que marcam uma geração e uma certa definição de classe média. Esse é o meu ambiente. Nunca consegui ser muito localista.

 

Localista?

Nunca consegui pensar as realidades a partir do meu bairro, da minha cidade ou do meu país. Sempre fui cosmopolita, sempre fui habitante do planeta Terra. (O interesse pela História e pela Arqueologia vêm daí). Tive a oportunidade de viajar muito. Nos livros, para começar. Depois, com os meus pais. O meu pai tinha o hábito de organizar uma viagem por ano. A partir dos cinco, seis anos, viajei por toda a Europa. Depois viajei, como todos os jovens, para “fugir” da família, para ganhar autonomia. E depois viajei com a minha família. Casei relativamente cedo, tinha 22 anos; e continuei a viajar. Fui prestando atenção no mundo às coisas que me interessavam. A formação das cidades e o seu desenvolvimento, a organização das empresas, a dimensão da pobreza.

 

Isso mais do que a organização familiar ou do grupo no qual estamos inseridos? A sua escala é outra?

Sim.  

 

Era uma forma de fugir de si, de se evadir?

Não tenho essa noção. Gosto pouco de tribos. Há pessoas que gostam de construir o seu grupo em função das semelhanças. Eu gosto de grupos cujo cimento, cuja coesão, advém de serem muito diferentes uns dos outros. Não gosto de pertencer a um grupo em que todos se vestem de azul ou gostam de jazz.

Ferro Rodrigues, que reencontrou mais tarde no MES e no percurso político, é uma pessoa com quem se dá desde a infância.

Fomos colegas desde o liceu, e tivemos algumas aulas juntos na instrução primária. As turmas eram pequenas. Falávamos todos os dias, fomos construindo uma amizade, que perdura. Mas o Ferro tinha o seu grupo de amigos. Eu estava muitas vezes com eles, mas não pertencia a esse grupo.

 

Verdadeiramente pertenceu a algum grupo, alguma vez?

No sentido de partilha colectiva de muita coisa, sim. No sentido de clube ou de tribo, não. Nunca tive dificuldades em estar sozinho, em estar comigo próprio. Sou o meu principal crítico – é pelo menos isso que sinto. Às vezes posso parecer arrogante. Auto-suficiente. Mas vivo bem assim.

 

Essa auto-suficiência: houve com certeza um tempo em que foi mais vulnerável, em que precisava de confirmação exterior.

Precisamos sempre. Somos sempre vulneráveis, cada vez mais. Sabemos que quanto mais sabemos mais sabemos o que não sabemos. Suprema vulnerabilidade: percebemos que o nosso saber é limitado. Toda a vida me caracterizei por isto: quando tenho uma sensação forte (quando leio um livro muito interessante, quando vejo um espectáculo muito interessante), a minha motivação é que outros passem por essa experiência.

 

Numa palavra: partilha.

E difusão. Garantir que não sou só eu que tenho acesso àquilo. Eu, ou privilegiados como eu.

 

O desejo de partilha e o sentimento de ser um privilegiado estão ligados? Quase como se fosse uma culpabilização.

Nunca tive esse complexo. Nascemos como nascemos, vivemos como vivemos. Os problemas sociais não são problemas pessoais. Não tenho nenhum complexo em relação a quem vive pior do que eu. Eu tenho é urgência em viver em sociedades mais justas. As minhas motivações não são para aliviar penas, pesos da minha consciência. São para, dentro do possível, mudar para melhor o quadro das organizações económicas e sociais.

 

Como é que se aprende a lidar com a crítica?

Como bem dizia, precisamos que nos batam palmas. De socialização. Passeio público. Reconhecimento. Precisamos de orientação. Não é possível ter sucesso no trabalho científico, técnico, de investigação, a não ser numa lógica de comunidade que se critica. É mais interessante ter uma comunidade em que aquilo que apresentamos é criticado do que ter uma comunidade em que aquilo que apresentamos é aplaudido.

Um exemplo: a economia portuguesa não cresce há dez anos. Pode haver uma explicação política – tem governado o partido A, não tem governado o partido B; é pobre [enquanto explicação]. Explicação convencional: os portugueses são da Europa do Sul. Os portugueses são pouco eficientes. Encontrar uma explicação para a razão pela qual a economia portuguesa não cresce há dez anos é muito estimulante. Isso só se faz trabalhando, apresentando conclusões perante outros que nos critiquem, e não perante outros que nos aplaudam ou reajam silenciosamente. A partir do momento em que se prova a crítica, não se pode dispensá-la.

 

Quem é que foi o seu primeiro crítico?

Alguns dos meus professores de liceu. Exigiam-me que eu fosse bom aluno o tempo todo. As críticas dos alunos – utilíssimas. Comecei a dar aulas com 21 anos, numa disciplina do quinto ano. Os meus primeiros alunos eram todos mais velhos do que eu. Devemos usar as críticas para estarmos mais seguros do que estamos a fazer, dos caminhos que estamos a trilhar.

 

Nunca foi inseguro?

Acho que somos todos. Mas comparativamente acho que não sou. Olhando à volta, sempre fui das pessoas mais seguras. Sou calmo, tranquilo. Tive os meus momentos de reconhecimento. Uma vez numa conferência na América Latina, um grande vulto da Economia mundial começou a ouvir a minha comunicação na última fila, veio sentar-se na primeira, no fim pediu para falar e fez-me um elogio tremendo; penitenciou-se de estar fechado na América Latina e não conhecer jovens economistas europeus como eu. Naturalmente isso ajuda a que ganhemos confiança, não é? Essas matérias dão-nos confiança para sermos mais arrojados, para pensarmos pela nossa cabeça, para irmos mais longe no que dizemos.

 

Quando falou das críticas, falou de casos exteriores à família, que não são do domínio do afectivo. Existia uma clivagem entre o que era do domínio do social e do pessoal?

São tudo facetas de uma vida. Somos nós próprios, a nossa família, a nossa casa, a rua, o país.

 

Não disse: “O primeiro crítico foi o meu pai”. Como se essa parte estivesse garantida.

Não estava necessariamente garantida, mas tive uma vida familiar calma. Facilmente cumpria. Era bom aluno, não fazia grandes disparates. Alguns dos disparates que fiz, correram bem. A primeira noção de liberdade física que tenho foi quando me aventurei pelas traseiras. Deve ter sido com quatro, cinco anos. Dei uma volta ao quarteirão, sempre pelo passeio, cheio de medo. Era a primeira volta que eu dava longe da casa e do jardim e da rua próxima. Não contei isso aos meus pais. Fiz. Tive chave de casa com 12 anos. A educação que me deram foi a de que há direitos e deveres. Responsabilidades. Que a liberdade se conquista e exerce respeitando o que os outros pensam. Não tive conflitos familiares. Tive o que desejava: apoio, liberdade, autonomia. Nunca fui linguareiro, não tenho grande capacidade nem necessidade de exteriorizar os meus feitos.

 

Nem os feitos nem os seus sentimentos.

Os sentimentos exteriorizam-se com um número determinado de pessoas. Reconheço que isso é verdade. Choro muito pouco. Não quer dizer que não sofra. Sou uma pessoa relativamente fechada.

 

O que é que queria para a sua vida? Voltemos ao 25 de Abril, que muda a sua vida toda.

A nossa.

 

Até pelo que disse: ficar, ao invés de ir para Inglaterra doutorar-se.

Teria vivido dois ou três anos lá e teria regressado, sim.

 

Que grandes projectos tinha? Havia algum desejo de heroicidade? Tudo o que descreve é um projecto equilibrado. Há amigos meus que dizem que sou muito certinho, que penso sempre tudo bem, que digo as coisas mais inteligentes ou mais certeiras. Não tenho ideia que se possam ter projectos de heroicidade. Acho que se têm projectos de vida. E as pessoas fazem os acontecimentos, os acontecimentos fazem as pessoas. Os heróis são, muitas vezes, as pessoas que têm a oportunidade de o ser. Há aquela expressão: “O cobarde foge para trás, o herói foge para a frente”. Os heróis e os cobardes são os que fogem. O pelotão não foge.

 

Queria saber do rasgo.

Quando era adolescente, era campeão de mini-modelos, uns carrinhos eléctricos que andavam numas pistas. Quem é que ganhava as provas? Quem andava suficientemente depressa sem se despistar. Como era muito calmo, facilmente ganhava. Em ano e meio, ganhei 200 provas. Os “O Nosso Café” abriram pistas nas caves, aquilo atraía muita gente. Foi, fiz, passou. Ainda hoje encontro pessoas que conheci nessa altura e que se lembram de mim.

 

Pode ser uma boa analogia com a sua vida. Anda depressa e não se despista.

Sim. Outra coisa: a minha filha mais nova ainda não tinha um ano, eu estava nas praias ao pé de Peniche, e quando dei por mim, tinha sido arrastado para 300 ou 400 metros [longe da costa]. Ondas relativamente fortes. Não era propriamente um atleta, devo ter estado quarenta minutos a lutar com aquilo. Senti várias vezes que podia morrer. A corrente era fortíssima, tentava nadar e não saía do mesmo sítio; apanhava com ondas em cima. Por fim consegui regressar a terra, completamente extenuado. Para mim foi um momento de heroicidade: fui capaz de vencer aquela dificuldade. Venci-a pela capacidade de não me deixar dominar pelos acontecimentos.

 

É nisso que pensa: “Não posso deixar-me dominar pelos acontecimentos”?

No sentido da adversidade, sim. Gosto de me deixar dominar pelos acontecimentos no sentido das alegrias. Consigo definir objectivos (pessoais, profissionais, para as empresas que dinamizo, a que presido, ou que meramente ajudo), mas não o faço de forma pomposa. Acho que vale a pena, estou disponível, quero, não morro se, morro se, quero muito, pouco, assim-assim – vivemos todos assim.

 

Líder: quis ser? Do grupo, da associação académica, do partido.

Não procuro ser líder de nada, embora tenha liderado muita coisa. Não me atrapalho se me são confiadas essas funções. Querer ser presidente, secretário-geral, líder, é uma coisa que considero pequenina.

 

Como assim?

A liderança-cargo é pequenina. A liderança resultante de um processo social, colectivo, é enorme e interessante. Mas que não se deseja. Acontece. Claro que toda a gente gosta que lhe sejam reconhecidas características que preza: uns é a beleza, outros a inteligência, outros a força do pontapé. Essas características só nos podem ser reconhecidas, e não propagandeadas. A liderança é a mesma coisa. Eu não fui Ministro da Economia; o Ministro da Economia de Portugal durante dois anos fui eu. Quando entrei, sabia o que ia fazer; não me perguntei se o ME usava casacos azuis ou castanhos. Normalmente eu uso casacos azuis, portanto o ministro iria usar casacos azuis. Não vivi essa experiência como um cargo. Vivi-a como uma responsabilidade para a qual eu estava preparado, para a qual tinha ideias, e que procurei pôr em marcha.

 

Fale-me da sua passagem pelo MES.

O MES representou uma experiência política breve, heterogénea. Nasceu no período em que se abriu uma janela de transformação da sociedade portuguesa. Era uma organização em que se confiava no plano das ideias, das análises, mas não do exercício do poder. O MES surgia com uma fraquíssima intenção de voto como primeira opção, com altíssima votação como segunda. Qual é o primeiro partido, e o segundo? Como segundo, tinha 80 e tal por cento dos votos. Recolhia votos de um espectro muito alargado. Várias correntes diferentes associaram-se no MES; quando era preciso designar gente para exercer funções de liderança, votava-se. Quem tinha mais votos, ficava. Eu sempre tive muito votos.

 

Porquê? Porque pensa bem?

Fundamentalmente porque sou capaz de transmitir segurança, exprimir-me com clareza, (embora seja criticado por falar muito, por escrever parágrafos muito longos). Porque o que defendo e proponho é justificado, é pensado. Isso ajuda a que as pessoas confiem. Há-de haver outras características, porque não somos só cérebro. Há sentimentos, afectividade, estética.

 

E carisma. Isso, faltou-lhe? Poderia ter tido outro sucesso se, de certa maneira, fosse mais igual aos outros – se a identificação fosse mais fácil?

Se calhar.

 

Foi fácil decidir que não ia para Inglaterra fazer o doutoramento? Não ter, ainda hoje, o doutoramento, é uma pedra no sapato?

Não. A decisão foi rápida e natural. Fiz uma carreira académica centrada como professor e investigador. Aquilo que seria a minha dissertação de doutoramento foi partida em bocados e foi difundida. Uma parte ainda não a publiquei; por um lado não tive tempo, por outro pode ser um trabalho para [a reforma]. Não me vejo a envelhecer de uma maneira diferente daquela em que cresci. Quando tinha a dissertação quase pronta, estive doente e não a apresentei. Mas não é uma pedra no sapato. Não vejo a vida académica cingida aos muros da universidade. O que interessa é a capacidade de investigação, de publicação de trabalhos – e isso tenho feito.

 

Que doença? Que marca disso?

Tinha 30 e tal anos. Desenvolvi uma hiper-tensão essencial e um dia fui assinar um cheque e o cheque mexia-se. Tinha feito uma retinopatia, fiquei algum tempo sem ver, e depois estive sete ou oito meses parado. Passei a ter que viver de maneira diferente. Vivo com alguns medicamentos, sem problema. A regra é: uma vida calma, sem grandes enervamentos ou excitações.

 

Gostou de ser Ministro?

Gostei e não gostei. Foi um pequeno laboratório, aprendi bastante sobre o que são os governos, como funcionam, aprendi alguma coisa adicional sobre a natureza humana. Eu já tinha muitos anos de ensino de política económica; se nos dão a oportunidade de fazer, é estimulante. Permitiu-me acrescentar à minha experiência coisas que eu não tinha feito. Permitiu-me testar coisas que eu pensava intelectualmente e que pude praticar. Um exemplo: pude desenvolver um relacionamento com o mundo asiático, que penso que é muito importante para Portugal e que percebi que é possível.

 

E não gostou.

Não gostei porque ficou muita coisa por fazer, e foi pena. Não gostei porque provei bastante daquilo que é a ineficiência da administração pública e das dificuldades de governar. Vivemos num mundo em que a maior parte dos responsáveis políticos se portam como médicos que se esgotam no acto da prescrição. Governar, para mim, é diferente: a prescrição é muito importante, mas o que é fundamental é o doente. A prescrição pode estar errada, deve ser criticada, tem de ser testada, e medimos o sucesso de uma prescrição pelo que acontece ao doente. Cheguei à conclusão de que os governos têm menos poder do que se pensa nas áreas em que se pensa, e que têm mais poder noutras em que nunca se pensa.

 

Quais?

O poder da influência, da mobilização, mudança das regras de jogo, o poder de juntar o que está separado, planear, estimular.

 

Nesse sentido, é muito diferente ser Secretário de Estado, como foi, ou Ministro?

É ligeiramente diferente. Depende da orgânica do Governo e das responsabilidades que se têm. Fui Secretário de Estado da Indústria poucos meses, não dá para fazer uma avaliação. Como Ministro da Economia tinha mais responsabilidades e mais campo de acção. A lógica de um SE é a de uma responsabilidade específica, parcial e intermediada por um ministro. O que foi mais rico na minha experiência: a possibilidade de fazer coisas transversais.

 

Foi Secretário de Estado querendo ser Ministro?

[riso] Não lhe sei dizer. Posso dizer, para ser sincero, que um número alargado de pessoas que procuraram convencer-me a aceitar usaram esse argumento. Não digo que não tivesse pensado nisso. Não tenho problemas em aceitar responsabilidades para as quais acho que estou preparado.

 

Quem o convidou para SE foi Guterres ou Daniel Bessa?

Foram os dois. Estas coisas têm a substância e a forma, e devo dizer que não liguei à forma, mas à substância. [Tratava-se] da relação que tinha com António Guterres.

 

A sua ligação ao Governo faz-se por via do PS, nomeadamente a António Guterres?

Ao PS, não tanto. Ao António Guterres, sim. Convidou-me para almoçar, falei com ele; lembro-me de ter comentado com os meus amigos que não tinha percebido para que é que era o almoço. Era alguém que anunciava a algumas pessoas, não propriamente que ia ser Primeiro-Ministro, mas que ia assumir caminhos que podiam conduzir a outras responsabilidades. Tive todo gosto em ajudá-lo na criação de condições de credibilidade para que as pessoas votassem no PS e nele. A ida para o Governo teve que ver com isso: não faz sentido colaborar no desenho de um projecto e depois dizer: “Está feito, outros que venham”.

 

Deixou de ser Ministro em Dezembro de 97.

Foi na pré-História! [riso]

 

Já passaram anos suficientes para falar de Guterres, Daniel Bessa e Pina Moura? Pessoas essenciais neste xadrez.

Do António Guterres já falei. Teve o grande mérito de protagonizar uma mudança necessária, de ter tido a coragem de formar um governo para o qual desafiou um conjunto de pessoas que não tinham carreira política, que pensam pela própria cabeça. (Quem não tem carreira política pode tomar medidas de forma mais livre, sobretudo quando estamos a falar de reformas. Podem estar disponíveis para pagar o preço individual por essas reformas). Teve uma segunda parte de Governo menos interessante, na minha opinião.

 

Daniel Bessa.

O Daniel Bessa é um colega. Não tenho especiais relações com ele. Quando fez o doutoramento, fez um trabalho muito interessante sobre inflação na revista ibero-americana, que promovia duas conferências anuais pelo mundo. Tive a oportunidade de o convidar e de lhe dar uma oportunidade de expor os seus trabalhos. Sempre me pareceu que não soube encontrar o seu lugar naquele Governo – não digo que tenha sido por culpa dele; daí, também, a sua saída.

 

A má relação e tensão que se atribuía aos dois é uma ficção?

Nunca existiu. Tenho a relação que sempre tive com o Daniel. De simpatia. É uma pessoa que prezo.

 

Pina Moura.

O Pina Moura foi o meu sucessor. Não falei, nem vou falar, nem tenho que falar. Foi meu aluno. Ajudei-o a fazer uma coisa que para ele foi importante, que foi refazer a vida a partir do regresso à universidade e da obtenção da licenciatura em Economia. Quando se é Ministro da Economia trabalha-se em articulação-chave com o Primeiro-Ministro. O Joaquim Pina Moura era o Secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro. Trabalhei com ele de forma aberta, clara. Quem estiver atento ao que os jornais publicaram fará a sua opinião. Tudo isso me parece secundário. Não gosto e não creio que as fulanizações tenham aqui algum papel. Em termos de Governo, o que conta são as políticas, o bem ou mal fundadas que são, o seu maior ou menor sucesso na melhoria do nível de vida das pessoas, na organização das sociedades, da competitividade das empresas (neste caso).

 

O que ficará de si é o Plano Mateus?

O Plano Mateus foi pensado por mim, desenhado por mim, escrito por mim, em colaboração com os meus colegas do Governo. Não fiz nada para que se chamasse Plano Mateus. Chama-se assim porque era preciso, se corresse mal, encontrar um nome que pagasse um preço por ele. Felizmente teve mais de 220 mil contribuintes que aderiram, e que pagaram as dívidas que permitiram que Portugal entrasse no Euro. É ainda hoje o momento mais alto [que permite] mostrar aos contribuintes cumpridores que não são parvos. Quem não tinha pago e tinha incorrido em dívidas, pagou. O êxito do Plano foi grande, já se passou a fasquia dos 95% na recuperação das dívidas que podiam ser recuperadas. Não convivo nada mal que fique isso da minha passagem pelo Governo. Mas há outras coisas. O balanço que faço? Fiz essa declaração à saída do Governo, na tomada de posse do meu sucessor: o balanço não sou eu que o vou fazer. São as pessoas, é a sociedade portuguesa.

 

Ainda se lembra muitas vezes de ter sido Ministro, ou parece-lhe uma realidade longínqua?

Acho que se lembram as pessoas mais do que eu. Lembramo-nos sempre do que fazemos com intensidade. Lembro-me de ser Ministro como me lembro do meu liceu, da universidade, de um aluno mais crítico e que marquei. Fui Ministro, não congelei a minha vida aí. Tenho sido útil ao meu país. Tive mais influência na evolução de certas coisas do que na altura em que era Ministro. Sem me estar a pôr em bicos de pés, tive alguma responsabilidade, como cidadão e como técnico, na decisão sobre a localização do novo aeroporto de Lisboa. Não precisei de ser Ministro para isso.

 

Disse que gostava mais de dar do que de receber. Um presente que tenha gostado de receber?

O que me veio à cabeça foi um almoço. Como Ministro visitei Angola três vezes; na segunda vez, quatro ex-alunos meus que tinham sido governadores do Banco Central de Angola organizaram-me um almoço secretamente. Foi um óptimo presente. Tinha seguido vagamente a carreira deles e foi bom revê-los.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2009

 

 

 

 

João Rendeiro

18.01.15

João Rendeiro tem os dentes demasiado certos, os sapatos demasiado engraxados, o sorriso demasiado cuidado. Ele mesmo diz que quer fazer boa figura, e não se coibe de posar no seu melhor ângulo. Demoro tempo até encontrar o que alguns podem considerar imperfeições. Ranhuras. Fissuras. Fragilidades do caminho. E essas são tão irremediavelmente trágicas, pungentes, e a revelação tão inopinada, que causam um efeito extraordinário. Como quando diz que não crê que alguém possa estar incondicionalmente ao seu lado. Ou que tem o sentido da urgência porque pode morrer no instante a seguir, atropelado.

Rendeiro, o provocador, cita Dostoievski, que não leu, ou leu mal, que falava dos “homens burros de acção”. E discorda, discorda. Ainda que saiba que o seu talento seja a obstinação, a acção, e não a equação exaustiva das possibilidades. Explica-me o significado da palavra tecnoestrutura, graceja que tinha de encontrar uma palavra que eu não conhecesse, eheheh. Em todo o caso, eu não me deixo convencer pela sua (aparente) esfuziante felicidade. Demasiado ostentatória. E digo-lhe que não parece muito feliz. E discorda, discorda. Que não o vi a dançar forró entre a multidão. E eu, eu sou feliz? Rendeiro sabe: a melhor defesa é o ataque.

Mas talvez seja feliz. Ele já experimentou outra vida, uma vida de tostões contados, e agora gosta muito desta – por que carga de água é que quereria mudar? É imensamente rico, mas confessa que no fundo, no fundo é um homem simples. Recorda que o pai o levava ao circo quando era pequeno e que temia o barulho dos leões. Mas são tópicos não desenvolvidos. O tópico mais desenvolvido é o que dá sentido à sua vida: ter conseguido.

Ele nunca seria um “loser”. Arrisco dizer que preferia morrer a ser um “loser”. A vida é um jogo, e não faz sentido se não for jogada. É incompreensível não ir a jogo. É um orgulhoso “self made man” que preside o Banco Privado Português.

  

O ponto de partida é saber o que fez de si aquilo que é hoje. Quer começar por Inglaterra?

Se quiser começar por aí... Vou para Inglaterra em 1976, 77. Não conheço melhor no mundo do que a cultura constitucional inglesa, a maneira como está estruturada, a representação dos eleitos e a sua responsabilidade perante os eleitores, a vivência democrática, a civilização.

 

Foi fazer um doutoramento para Sussex.

Os doutoramentos americanos são feitos por disciplinas às quais se tem exames específicos; em Inglaterra é dominante a linha tradicional de Oxford e Cambridge, que é “by research”, [ou seja], por investigação. O facto de ter feito um doutoramento deste tipo obrigou-me a um certo autodidatismo. O meu inglês era razoável, mas insuficiente, e tive alguma dificuldade nos primeiros momentos. Viver num país diferente e estudar “by research” foi ser lançado aos bichos e aguentar esse embate.

 

Alguma vez pensou desistir?

A palavra desistir não faz parte do meu vocabulário. Foi muito duro. Mas a persistência, a determinação fazem parte do ADN.

 

Por que é que foi para Inglaterra num período tão instingante quanto o pós-revolucionário em Portugal?

Era daquelas situações em que as pessoas têm pouco a perder. O período pós-revolucionário, e até pré-revolucionário, foi de caos e de falta de perspectivas. E no meu caso particular, de grande insatisfação em relação à formação que tinha tido na universidade.

 

Acabou o curso e não se empregou imediatamente?

Não, não, empreguei-me imediatamente. Aliás, empreguei-me antes de tirar o curso. Além de ter feito aqueles pequenos biscates que todos os estudantes fazem. Fiz entrevistas na rua, trabalhei no sindicato dos metalúrgicos, de onde fui demitido. Era demasiado rebelde para estar lá.

 

Foi a única vez que foi despedido?

Despedido a sério, foi.

 

É uma coisa muito estigmatizante, ser despedido.

Não ficou estigma para mim. Até achei divertido.


Sim, passados 30 anos é um pormenor engraçado a figurar no currículo. Mas quando as pessoas são jovens e imaginam uma carreira promissora, é estigmatizante.

A mim, o que me parece é que as pessoas têm sempre que tirar o lado positivo das situações. E ser despedido também pode ser visto como uma oportunidade. É certamente um trauma, é um fenómeno de rejeição. Mas se uma pessoa não é produtiva, não funciona, não me choca nada que seja despedida. Espero que seja um incentivo à melhoria.

 

Na cultura americana as pessoas são muito facilmente admitidas e despedidas. Isso não quer dizer que sejam incapazes; podem, simplesmente, ser desadequadas, e nesse sentido é uma oportunidade.

E vão funcionar melhor noutros enquadramentos. Conheço alguns casos de pessoas que eram disfuncionais e que, quando saíram desses enquadramentos, transformaram-se em pessoas motivadas e com outras perspectivas. O pior cenário é o do imobilismo, da falta de perspectivas, da desmotivação. De que é que serve ter emprego, desmotivado e pouco produtivo?

 

Desistir não consta do seu dicionário. Ser um “loser”, ser um derrotado, nunca foi um fantasma para si?

Mais do que perder ou ganhar, o que não admito é não tentar. Não ir a jogo é inaceitável. Depois, todos preferimos ganhar, como é óbvio. Mas perder, tendo tentado tudo o que podia, também faz parte do jogo.

 

Quantas vezes perdeu, já agora?

Ao basquetebol, perdi dezenas de vezes.

 

Também fica bem no currículo dizer que o mais importante é participar.

Mas eu estou aqui a querer fazer boa figura... Essa é a minha característica principal: ir a jogo, e aprender com o que corre menos bem ou mal, e tentar melhor e seguir em frente. Isso é que é importante.

 

Quando é que passou a não hesitar ir a jogo? Que é um modo de perguntar quando é que deixou de ter medo e passou a ter confiança em si.

Sim, é preciso ter auto-estima. Em termos históricos não lhe sei dizer. O facto de ser filho único e de ter tido dificuldades de relacionamento pelo facto de ser filho único...

 

Que idade tinham os seus pais quando nasceu?

Trinta e tal. Nessa altura era tarde. A minha mãe teve grandes dificuldades para me produzir, fez vários tratamentos. Fui jogador de basquetebol e era o capitão da equipa. Sempre houve uma certa tendência, diria que natural, já nascida, para liderar.

 

Então o basquete serviu para socializar este menino sozinho, filho de pais tardios. Não o consigo imaginar em criança.

Fui um menino mimado, filho único, muito mimado mesmo. Dava para dar uns beijinhos... Era gordinho, bem comportado. Mais ou menos isso.

 

Que projecto tinham os seus pais para si? Acontece com os filhos únicos e tardios haver uma expectativa enorme em relação ao seu futuro.

Os meus pais deixaram-me fazer o que quis. Não houve assim um pré-determinismo. Houve uma trajectória natural: fiz o liceu e depois a universidade. Quem escolheu o curso fui eu. Foi através dos livros dos meus colegas mais velhos [espalhados pelas mesas de café], que acabei por escolher. Achei que podia ter piada.

 

Um curso é uma ferramenta. Outra coisa é a vida que imaginava para si.

Uma vida burguesa. Uma vida de fazer vida, de trabalhar, ganhar dinheiro e ser uma pessoa normal.

 

Não acredito que tenha ambicionado tão pouco.

Sou ambicioso, isso pode pôr no currículo. As minhas ambições são “step by step”. Não são ambições que me pareçam irrealizáveis. Sobretudo o que me dá gosto é realizar projectos, sou um homem de acção. Como diria o Dostoievski, um “homem burro de acção”. Sou um daqueles burros que gostam de acção. Com toda a franqueza, até aos 30 anos, não tive empresas. Até aos 30 anos, nunca imaginei que pudesse ser o que sou hoje. As coisas acontecem por etapas, por ciclos.

 

Mas aos 40 anos já estava próximo de ser quem é hoje. Digamos que esta aventura tem...

No banco, em concreto, tem dez anos. Mas a minha vida empresarial tem 20 anos.

 

Há pouco estávamos a falar de Londres...

Fiz-lhe uma provocação pelo meio e você não reagiu. De eu me considerar burro.

 

Porque, ao ouvi-lo, estava a pensar que quem me falou dos “homens burros de acção” pela primeira vez foi Agustina Bessa-Luís. Agustina contou-me que citou Dostoievski num jantar para provocar o homem poderoso que tinha ao lado. Perguntou-lhe: “Se não fosse rico como é, se não fosse poderoso como é, acha que os outros, os seus filhos para começar, gostariam de si da mesma maneira?”. Por que é que essa frase o impressiona?

Impressiona por ser completamente errada. O que vejo, na maior parte dos homens de acção, não é nenhuma burrice, é uma inteligência prática, uma inteligência obstinada. Há uma obstinação na consecução de um objectivo, que pode parecer falta de inteligência. Mas é esse excesso de focalização que permite a obtenção de resultados. É a diferença entre um homem de acção e um intelectual. Um intelectual é um homem que não tem palas. Consegue ver todas as implicações, a multiplicidade de equações, de variáveis. O homem de acção fecha-se, a multiplicidade de equações passa a três ou quatro, as variáveis a duas ou três, e consegue ter uma solução. Pode não ser uma óptima solução, mas é uma solução.

 

Leu o Dostoievski?

Mal, mal. Isso foi mesmo só para a provocar.

 

Eu não tenho o seu talento para me concentrar em duas ou três coisas e fazer fortunas. Mas também é verdade que não gosto o suficiente de dinheiro e, por isso, provavelmente, nunca serei rica.

Você acha que os ricos gostam assim tanto de dinheiro?


Acho que gostam do que o dinheiro pode trazer, sim.

Mais como um instrumento. É uma forma de atingir certos objectivos. Para mim, não é certamente um objectivo em si mesmo. É um “benchmark”: as pessoas atingem certa posição financeira e isso significa que as coisas que fizeram foram bem-feitas. É o resultado de um percurso e uma forma de se poderem fazer outras coisas a seguir. É isso que é o dinheiro.

 

Para que é que lhe serve ter tanto dinheiro?

Serve-me para fazer coisas boas.

 

Para levar uma vida boa?

Evidentemente.

 

Quando falo em vida boa, não estou a pensar estritamente no conforto material. Mais que tudo, o dinheiro permite escolher.

O dinheiro permite escolher, mas não permite a variável mais crítica de todas estas, que é o tempo. Muitas vezes, as pessoas são escravas do dinheiro, no sentido em que não fazem aquilo que é mais importante na vida. A minha vida hoje não é só trabalhar para ganhar dinheiro, é também ajudar vários projectos, como a Fundação Luso-Brasileira, os Amigos do Museu do Chiado, a Fundação Ellipse, ou esta iniciativa mais recente dos Empresários pela Inclusão Social.

 

Esse trabalho permite uma nobilitação social, sem dúvida. As vias mais assertivas da nobilitação social são a beneficiência e a arte.

Isso era pensar que eu precisava dessa nobilitação social. Penso que já a tinha. E as pessoas que estão nos Empresários pela Inclusão Social, muitos deles prefeririam nem sequer aparecer. Fazem-no porque sentem que é um objectivo patriótico. Fazem-no porque sentem que estamos diante de um problema de gravidade nacional e é fundamental ir a jogo. Baixar os braços, ter uma perspectiva nihilista sobre o país, é o mais fácil. O mais fácil é ler o Vasco Pulido Valente todos os sábados e pronto.

 

Sextas, sábados e domingos. Lê?

Claro que leio, com muito gosto. É uma pessoa de uma inteligência apuradíssima e que escreve muito bem. Aqueles textos não fazem bem à auto-estima nacional. Pensar nessas actividades como uma nobilitação social, é legítimo, mas é extremamente redutor.

 

Deixe-me voltar à pergunta de Agustina ao homem do lado: «Se não fosse rico e poderoso, os seus filhos gostariam de si da mesma maneira?».

Se não fosse rico e poderoso? Não faço a mínima ideia. Eu não tenho filhos. É uma questão que não me coloco: como é que seria, se não fosse o que sou.

 

A questão é por que é que os outros estão ao seu lado. Por que é que é bom, num contexto não-profissional, estar consigo a jantar.

Não tenho a menor dúvida de que há muitas pessoas que gostam de estar ao pé de mim para usarem seja o que for. Estar perto de alguém que conhece muitas pessoas. Estar perto de alguém que pague o jantar. Estar perto de alguém que até pode contar umas anedotas.

 

E esses, reconhece-os logo? Sabe sempre ao que o outro vem?

Para mim, é fundamental ter uma perspectiva optimista sobre a natureza humana, embora já tenha visto o suficiente para perceber por que é que há outras perspectivas bem mais negativas.

 

Não há almoços grátis...

Não há almoços grátis, sem dúvida. Essa noção do “poderoso” diverte-me um bocado. Já não é a primeira pessoa que me diz que sou um homem poderoso.

 

Acha que não é?

Vamos lá a ver: o que é poder? Ainda não fiz uma reflexão para escrever um artigo, muito menos uma tese de doutoramento, sobre o que é o poder.

 

Vai fazendo as perguntas à própria vida?

Sim. O poder hierárquico certamente é um poder. O presidente manda no vice-presidente, o vice-presidente manda no não sei quantos. Outras fontes de poder: a influência. Uma jornalista é uma pessoa que tem o seu poder. A fonte de poder mais interessante, e aquela de que gosto mais, é a do poder das ideias. O poder dos conceitos.

 

O que é que isso quer dizer?

Tudo passa, a única coisa que fica são as ideias. Os presidentes passam, os presidentes das empresas passam, e o que é fica? Fica um quadro. O modelo de negócio numa empresa é algo que não passa. Os artistas, e de certa maneira os empresários, partilham o mesmo “common ground”, que é a importância do poder das ideias. É por isso que um grande número de empresários que conheço gostam de arte, de uma maneira pouco estruturada, pouco universitária. Instintivamente, as pessoas sentem uma proximidade e identificação.

 

Porque gostam do que fica?

Gostam do que fica, do que tem poder.

 

E do que não é efémero. O poder pode exercer-se sobre um subordinado, e é uma coisa que desaparece se a pessoa morre ou cai em desgraça. Uma obra de arte fica.

A obra de arte fica e as ideias que são boas ficam. São essas que são o verdadeiro poder. Vou dar-lhe um exemplo: empresários pela inclusão social. É uma ideia fortíssima, acho eu, tão simples, tão óbvia, mas simultaneamente tão poderosa: empresários, que são supostamente os homens que só se preocupam com o dinheiro, que se estão nas tintas para o social, para a esquerda, para os trabalhadores, estes senhores, de repente, deu-lhes na veneta e vão preocupar-se com os estudantes em abandono escolar. Aqui tem uma ideia extremamente poderosa. E revela um poder em si mesmo.

 

A ideia é poderosa, mas a questão é como ela é posta em prática. E aí estamos novamente no domínio fazer.

Mas ela vai ser posta em prática, realmente. Como o vamos fazer, neste momento, não sabemos. A única certeza que temos é que vamos encontrar os caminhos.

 

Quando foram apresentar o projecto ao Professor Cavaco Silva, a pessoa que mais apareceu, ainda que dele fizesse parte Eduardo Catroga, muito próximo do presidente, foi o senhor. Quando o vi na televisão a encabeçar o grupo já sabia que o ia entrevistar. E interroguei-me se era importante para si, porque era sinal de um inequívoco poder, ser o interlocutor daquele grupo, o veículo daquela ideia.

Não vejo isso como manifestação de poder em relação ao grupo. Certas circunstâncias (vai-me desculpar, mas não falo delas) fizeram com que fosse eu a pessoa a fazer aquilo.

 

Não lhe faria espécie nenhuma não se destacar no grupo?

Não, não. Naquele grupo certamente que não. Qualquer uma daquelas dez pessoas podia ter tido o papel que tive. Se fosse outra pessoa a ser o porta-voz, sentir-me-ia igualmente satisfeito.

 

Há pouco não respondeu completamente, quando falava das razões pelas quais as pessoas estão consigo. Pergunta-se se as pessoas estão consigo incondicionalmente? Tem a paranóia de ser abandonado?

Não tenho essa paranóia. Já vivi muitas situações em que as outras pessoas deixaram de estar comigo. Em última instância, estamos em presença de um contrato não-escrito que tem por base um interesse específico. Um interesse recíproco. Além das regras de interesse económico, vigoram regras de uma certa ética, de uma certa moral. Desde que as coisas sejam feitas de uma maneira correcta, compreenderei que uma pessoa que esteve comigo, por razões várias, deixou de estar. Não tenho uma visão incondicional...

 

“Incondicional” é uma palavra importante no seu dicionário?

Não. Incondicional até é uma má palavra no meu dicionário. Acho que as pessoas têm que estar sempre com condição, e estão enquanto estiverem bem.


Isso é válido para tudo? Não me estou a referir exclusivamente à sua esfera profissional.

Acho que sim, é válido para tudo. Eu não esperaria de ninguém que estivesse incondicional comigo, fizesse eu as asneiras que fizesse. Acharia isso completamente pateta.

 

É muito forte, isso que diz. Obriga-o a medir sempre o que faz, o que diz, implica uma vigilância permanente.

Não sou polícia. Mas não posso fazer o que me apetece. Cada um de nós tem que actuar responsavelmente. E pensar que os outros estão em condição é uma boa forma de nos auto-limitarmos.

 

Estive a ler umas entrevistas suas e reparei que usa muito a palavra “catalisador”. Essa sim, faz parte do seu léxico.

Isso é por causa do meio automóvel.

 

Que significado é que lhe atribui?

Um catalisador é um motivador, um elemento dinamizador. Um empresário fundador de uma empresa é eminentemente um catalisador. Sou uma pessoa de energia alta, felizmente, e o catalisador é um utilizador de energias.

 

Nos anos em que estava em Inglaterra era menos um catalisador, imagino. Estava numa fase de aprendizagem, e nessa fase está-se sobretudo a receber energia. E a organizar a própria energia.

Em Inglaterra, além de estudar, trabalhava. E apresentava projectos e tinha que inventar trabalho, para poder financiar a minha estadia lá.

 

Começou por ir sozinho. A sua mulher só se juntou a si passado um ano.

Justamente porque não tínhamos condições financeiras para ir os dois juntos. A bolsa que tinha do British Council não era suficiente para vivermos uma vida razoável. E tive que fazer, aliás, fi-lo com muito gosto, vários trabalhos de consultoria.


O meio em que se inseriu era muito elitista?

Eu era um estudante que faz trabalhos eventuais para ganhar dinheiro e era um estrangeiro. Tenho ideia de que há umas esferas em que o crivo é mais apertado. Não as frequentei, só posso saber a partir dos filmes e dos livros.

 

Quantos anos é que viveu assim? A contar o dinheiro?

Mesmo quando era estudante, os meus pais davam-me algum dinheiro, mas não era uma enormidade. Depois casei-me muito cedo, e até regressar de Inglaterra vivia com os tostões contados. Não havia nenhuma abundância de dinheiro.

 

Isso foi marcante? Ajudou-o a valorizar o dinheiro?

Claro. É fundamental que as pessoas valorizem, não o dinheiro, mas as suas situações em cada momento.

 

A conquista.

A conquista, tirou-me a palavra que eu queria. A conquista do dia-a-dia. Todo esse lado é altamente formador. A pior coisa que se pode fazer a um filho é não ensinar o caminho da conquista e das dificuldades. Todo esse período foi positivo.

 

Temos falado de diferentes etapas da sua vida, e não houve ninguém que tivesse nomeado. Não me disse: “Aprendi especialmente com o meu pai, com este professor, com este gestor”. Tudo, ao contrário, parece feito à sua medida, e conquistado sozinho.

Não é necessariamente verdade. Em cada momento houve personalidades que foram importantes. Por exemplo, no período em que estive em Inglaterra, a minha supervisora, que já faleceu, uma professora de Cambridge, foi fundamental.

 

O que é que ela lhe ensinou, o que é que aprendeu com ela?

É díficil dizer coisas concretas, mas foi sobretudo o modo de estar na vida, de estar aberto em relação às coisas. Estávamos semanas sem contactar-nos e depois, numa sessão, ela aparecia com um livro e dizia: “Lê isto”. Incentivava-me a procurar a resposta.

 

E que outras figuras o marcaram?

Na universidade, o professor Ernâni Lopes, que me introduziu a um nome de sociologia económica, Schumpeter. É um autor da escola austríaca que muitos anos mais tarde vim a adoptar. Outra pessoa importante foi o professor Cavaco Silva. Impressionou-me não só pela autoridade científica, mas também por uma certa austeridade pessoal.

 

E por ser um “self made man”?

Claro. Há uma certa identificação de percursos. As pessoas que se fazem por si identificam-se bastante umas com as outras, em detrimento das pessoas que herdam dinheiro, que têm heranças do trabalho dos outros.

 

Lembra-se do momento em que ganhou o seu primeiro milhão? É um número mágico para os ricos...

Não sei se corresponde ao primeiro milhão, mas o momento crítico da minha independência económica foi a venda da Gestifund e a venda da Deca, em 1990, 89, ao Banco Totta e Açores.

 

Tinha 38 anos. Foi uma ascensão galopante. Percebeu que, se pôde fazer um milhão, podia fazer muitos mais?

A questão não foi essa. A questão foi, mais uma vez, ciclos: fez-se uma venda, da Gestifund e da Deca ao grupo Totta. Fiquei com um contrato de gestão de cinco anos, que fazia parte das condições da operação; um período de cinco anos por que tinha de passar, numa gaiola dourada. E terminado aquele período, começou-se outro ciclo, o do banco.

 

Nessa gaiola dourada, trabalhava para terceiros. Não estava ainda sozinho, a viver a sua aventura.

Aprendi que é muito mau estar numa gaiola dourada.

 

O que é que lhe é difícil? É ser subordinado? É cumprir directivas impostas por outros?

São dois problemas. Quando, sendo subordinado, você acha que pode fazer melhor do que a pessoa que está a mandar. E o peso da tecnoestrutura.

 

Não sei o que quer dizer esse palavrão.

Eu tinha que encontrar aqui uma palavra que você não conhecesse, se não não tinha piada nenhuma!

 

Fiquei esmagada!, não consigo imaginar o que possa ser a tecnoestrutura.

São as equipas de gestão de uma empresa, são os decisores e a burocracia que se estabelece na gestão das empresas e das organizações. Essa burocracia é virada mais para os jogos políticos internos do que propriamente para a criação de valor. Essas tecnoestruturas são extremamente castrantes da iniciativa e do desenvolvimento. Uma pessoa que está habituada a liderar projectos, a decidir e a avançar com as situações, quando se vê a combater perante os homens sem rosto da tecnoestrutura fica frustrada.

 

Se agora começasse do zero sabia exactamente como fazer fortuna e realizar-se?

Certamente não iria ficar de braços cruzados.

 

Não há mesmo nada que o fizesse desistir?

Desistir é morrer. Para quê desistir? Mais vale uma pessoa morrer. A pessoa estar viva e não tentar, não faz sentido. As pessoas podem reconfigurar-se, reagir à adversidade de múltiplas maneiras, não necessariamente repetindo os modelos anteriores. Pensa-se em mim e pensa-se em dinheiro, poder, casas, carros. Mas eu sou uma pessoa muito simples.

 

Em que é que se sente um homem simples?

Sou uma pessoa simples porque gosto das coisas simples da vida. Se me quiser ver satisfeito é a dançar forró no meio da multidão.

 

Por acaso, não me parece muito feliz, sabe? É como se não distinguisse um brilho extraordinário no seu olhar, apesar de tudo o que tem.

Gostaria que me definisse a felicidade. Você é feliz, por exemplo?

 

Há uma expressão do Kundera em que me concentro cada vez mais, que é “uma súbita intensidade da vida”. Talvez a felicidade se aproxime disto. Para responder à sua pergunta, vou encontrando muitos momentos de súbita intensidade. E os seus?

Estou inteiramente de acordo com essa definição.

 

O que é que o faz correr? O que é que lhe provoca essa aceleração e súbita intensidade?

O que me faz correr é o exercício dos talentos. Para mim há sobretudo o sentido da urgência. Estou consciente de que posso morrer hoje. Há anos, uma pessoa por quem tinha uma grande admiração, o professor Alfredo Sousa, morreu atropelado. Quem iria dizer que aquele homem, na pujança da vida, iria ser atropelado de uma maneira tão estúpida, e morrer?

 

Pensa muito nesse episódio, que é um modo de pensar na precariedade da vida?

A precariedade das nossas vidas. Isso dá-me um sentido da urgência. E o que é o sentido da urgência? É achar que não posso fazer daqui uma semana, tenho que fazer hoje. O exercício dos talentos e o sentido da urgência são as duas motivações que levam a que as pessoas façam coisas. A minha experiência, aqui no banco, nas pessoas com quem lido, é que os limites das pessoas estão sempre muito, muito acima daquilo que elas pensam.

 

É mais frequente as pessoas subestimarem-se do que sobreestimarem-se?

Acho que sim.

 

Eu pensava que a maior parte das pessoas tem de si uma alta ideia...

Uma coisa é as pessoas terem de si uma alta ideia, outra coisa é o que conseguem concretizar. Na capacidade de concretização, subestimam-se permamentemente. Digo-lhe isto com toda a segurança porque para mim é uma evidência absoluta.

 

Descreveu-se como um homem simples. Num almoço de domingo em família, com os seus pais, fala de quê? E se está num almoço com amigos/clientes, de que é que fala?

Em família, falamos de tudo menos de negócios. E em negócios falamos de tudo menos de família. Não é verdade..., muitas vezes os clientes transformam-se em amigos. O meu pai é já um velhinho, tem 90 anos e fala sobretudo de quando me levava ao circo a comer cachorros. Já não temos grandes conversas.

 

Com as pessoas de negócios fala dos seus quadros, do prazer estético que é ter um Julião Sarmento, um Cabrita Reis no seu gabinete, ou fala do que isto vale?

Não falo do que isto vale, isso não tem grande piada. As pessoas sabem que é um prazer que eu tenho.

 

Encara a arte como um negócio?

Tenho uma resposta “standard” para isso: se pensar na arte como um negócio, normalmente não ganha dinheiro. A arte é sobretudo um bem de fruição e um estilo de vida; é uma maneira de estar num circo, de ir às feiras de arte, de ir a casa dos coleccionadores, de estar com os artistas.

 

Porque é que a arte muda a vida das pessoas?

Muda a vida das pessoas no sentido de lhes dar outras dimensões estéticas. Não tem necessariamente que mudar na sua dimensão empresarial. Não há uma substituição, há um alargamento, uma adição.

 

Nunca lhe apetece mudar completamente de vida? Por exemplo, mudar-se para o Brasil e ir para os forrós todas as noites.

Mas porquê é que havia de mudar de vida se gosto tanto desta? Isso está completamente fora de questão.

 

Este sofá é confortável.

É? Não adormeça.

 

Sabe quem é que o desenhou?

Sei, sei...

 

Este foi Corbusier, lá em baixo tem um cadeirão Charles Eames, e as cadeiras da outra sala são Mies van der Rohe. São peças de design fundamentais do século XX. São escolhidas por si ou tem uma equipa que escolhe?

Tenho equipas que trabalham comigo, quer no mobiliário, quer na arte contemporânea. Com excepção da Fundação Ellipse onde os curadores têm autonomia absoluta, as pessoas seleccionam várias hipóteses e sou eu que faço a escolha final.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2006

 

Pedro Lains

15.01.15

Então que temos? Um Governo cheio de revolucionários de direita, a fazer um PREC de direita. Tau, primeiro tiro.

A convicção de que a política tem que ser dos políticos, e não dos tecnocratas e dos professores universitários. Tau, segundo. Para ir directo à jugular: Vítor Gaspar era, e ainda é, o ideólogo deste Governo. Estamos situados.

Pedro Lains já foi considerado um economista neo-liberal. Agora acusam-no de ser um perigoso esquerdista.

A entrevista aconteceu em sua casa, numa manhã abafada. Sobre a mesa, e como pretexto, o seu livro “O Economista Suave Outra Vez” com ensaios sobre Portugal e a Grande Recessão, 2008-2013. “É a designação que está a pegar a nível internacional. Não é a grande depressão mas a grande recessão, porque não foi tão fundo mas prolongou-se durante mais tempo.”

 

De onde vêm estes livros antigos?

Eram do meu avô materno, que era professor universitário, de literatura portuguesa.

 

Hernâni Cidade. E a paixão pelos livros, a ligação às letras?

Tenho uma paixão contida. Desde pequenino que queria ser professor por causa do meu avô. Ele morreu quando eu tinha 15 anos. Passávamos os verões juntos, via-o trabalhar numa secretária ao fundo da sala, com os netos todos a fazer barulho.

 

O problema do crescimento, que é um dos seus objectos de investigação, começa onde?

Lembro-me de perguntar, ainda adolescente, porque é que Portugal era um país menos desenvolvido que outros. Tinha viajado várias vezes com os meus pais pela Europa fora. E tinha andado no liceu francês, aprendido inglês. O meu pai ia muito a África. A família da minha mãe estava muito relacionado com o Brasil. Tinha uma perspectiva internacional.

 

Nessa altura o contraste era esmagador.

A resposta, que ainda é dada hoje, é que somos pobres porque somos piores do que os outros, menos do que os outros, menos eficientes. Isso não me fazia sentido. Viajava, via pessoas e comportamentos semelhantes.

Não abandonei essa pergunta. Criei uma resposta, escrevi coisas sobre essa pergunta, fiz uma profissão a responder a essa pergunta. Mas essa pergunta, na verdade, nunca tem resposta.

 

Qual é a resposta possível?

Somos pobres porque sempre fomos pobres.

 

E este “sempre” quer dizer há séculos e séculos.

Sim. Essa é a linha de investigação mais importante. Quando é que começou esse “sempre”? Começou há mil anos, há quinhentos?

 

Por alguma razão em 1415 foram para Ceuta.

Não há necessariamente uma oposição entre expansão e desenvolvimento interno. Quando olhamos para a história mundial é o contrário que acontece. Tem que haver um dinamismo interno para haver essa expansão. Mas a pergunta mais importante é tentar perceber quando é que isto começou. Tenho a certeza, e é uma coisa que se consegue demonstrar, sobre a qual há dados e muito poucas dúvidas, que não foi há 50 anos. Tenho a certeza, também, que não foi há 100, e que não foi há 150.

 

E muito menos há dez, com o descalabro das contas públicas.

E muito menos há dez.

 

Apesar de a leitura epidérmica que é feita desta crise ter muito que ver com um passado político recente. Como se o endividamento começasse ontem.

Aquilo que procuro fazer é ajudar a compreender o presente. Há uma ideia generalizada de que este país é mal governado – e isto não tem a ver com política –; e que se fosse bem governado era a Suíça. O que é impressionante é que há pessoas inteligentes, bem colocadas na sociedade, que falam assim. Não sei se pensam, mas falam assim.

 

Explique-me porque é que não somos a Suíça, bem governados como a Suíça.

Basta olhar para o mapa da Europa. O extraordinário seria que um país na periferia da Europa fosse como a Suíça. Todos os países da periferia da Europa, que estão tão longe de Bruxelas como Portugal, têm o mesmo nível de desenvolvimento. A questão fundamental não é porque é que Portugal é um país atrasado, é porque é que a Europa não se desenvolveu do mesmo modo em toda a sua área geográfica.

 

Ainda que nas periferias os graus de desenvolvimento e de atraso sejam variáveis.

Muito poucos.

 

Espanha é mais desenvolvida que Portugal.

Espanha não está tão na periferia como Portugal. A Andaluzia, que está tão na periferia como Portugal, e que tem as mesmas dimensões de Portugal, tanto em PIB como em população, é tão pouco desenvolvida como Portugal. A Andaluzia não tem problemas de dívida porque pertence a Espanha; [de outro modo] estaria a ser resgatada como Portugal. O resgate em Portugal decorre de haver uma fronteira.

Temos que perceber qual é a origem do desenvolvimento dos últimos 200 anos na Europa.

 

Qual é o motor?

A revolução industrial e o que esteve por trás da revolução industrial britânica em finais do século XVIII. E temos que perceber quais foram os mecanismos de transmissão de crescimento e da industrialização dentro da Europa. Quando percebermos isso percebemos que são extremamente importantes as condições em que as pessoas trabalham.

 

Além do problema do crescimento, há outros problemas graves que conhecemos no século XX, nomeadamente 40 anos de ditadura. São ainda fundamentais para perceber o nosso problema de crescimento? Quando formulou essa pergunta vivia-se ainda no fascismo.

É preciso analisar a ditadura, o salazarismo, sob dois aspectos, o político e o económico. Do ponto de vista político, muito poucas pessoas têm dúvidas quanto aos seus malefícios e ao carácter perverso do regime. Do ponto de vista da economia é ao contrário. Foi o período em que a economia portuguesa mais cresceu.

 

Porquê?

Não por causa do regime, mas porque foi o período em que a Europa ocidental mais cresceu. A economia portuguesa manteve-se uma economia europeia durante o salazarismo. Há aspectos económicos do salazarismo que não estão bem estudados e que tiveram consequências no período a seguir. Um deles é a ligação pouco transparente entre negócios e política, que nasceu no Estado Novo. Como não havia imprensa livre, como não havia debate nem partidos políticos, tudo se passava às escuras.

 

Essa ligação não se existia no resto da Europa?

Não é que no resto da Europa não existisse, mas era mais clara.

 

Retomemos o peso que 40 anos de ditadura ainda têm na sociedade portuguesa. Tínhamos um grau de analfabetismo muito elevado em 1974. Com esta população (ainda) impreparada, podemos fazer com que um país mude e cresça?

Essa perspectiva, quanto a mim, não se confirma. O salazarismo é apenas uma forma de governar. Os governos não são tudo. Para além dos governos, há a sociedade, a economia, a cultura. Quando vamos aos factos, [observamos que] no salazarismo cresceu a alfabetização, cresceu o número de pessoas que tinha cuidados de saúde. Já no fim [com o Marcelismo], assistiu-se à génese do sistema de segurança social. Foi um regime inteligente e é uma das razões porque sobreviveu tanto tempo, em Portugal e em Espanha. Foi concedendo à sociedade e à economia mais ou menos aquilo que ela queria. A única coisa que o regime impediu a sociedade de desenvolver foi a democracia, a alternância de governo. E as coisas associadas a isso, como a liberdade de expressão, a repressão policial.

 

Como é que as pessoas calavam aquilo que decorria da sua extrema pobreza e não vimos insurreições? Não estou a pensar nos mais de um milhão que emigraram.

As pessoas mesmo pobres não associavam a sua pobreza ao regime. Era uma pobreza secular. Eram pobres no salazarismo mas os pais deles tinham sido pobres na República e os avós tinham sido pobres no Liberalismo, os trisavôs no Absolutismo. Não havia uma associação. Independentemente da Guerra Colonial, o regime cai por uma insatisfação de pessoas que tinham conhecido algum desenvolvimento económico e social ao qual não correspondia liberdade política.

Temos que criticar o salazarismo, e temos que o fazer, ainda. Ele está presente na sociedade portuguesa, ainda. Temos que o criticar pelos efeitos que teve na política, na ausência de democracia, na repressão. Mas o país não teria avançado mais, social e economicamente, ou muito mais rapidamente, sem o salazarismo.

 

Diz-se, a propósito do atraso do país, que a única maneira de isto funcionar era implodir e começar de novo. Sabemos que não é possível.

Não é possível e não está certo. Esse é o principal erro da geração que está neste governo. Estou à espera que a geração Erasmus chegue ao governo rapidamente. A geração Erasmus tem uma perspectiva sobre como a Europa funciona. Este governo é um segundo PREC ao contrário.

 

Isso não é ofensivo para o PREC de esquerda?, perguntar-se-ão os esquerdistas.

O PREC foi um bocado mau. Foi divertido [risos], tudo era democracia, sobretudo para quem não estava na política, mas foi demais. E foi o mesmo espírito: “Isto correu mal por causa do governo, que era uma ditadura, e agora vamos substituir tudo de alto a baixo, refazer a sociedade”. Muitas coisas que tinham sido alcançadas a seguir à revolução voltaram para trás. E agora é a mesma coisa.

 

O ódio aos políticos não aumentou?

Há uma parte das pessoas que diz que não foi só o governo de Sócrates que foi mau – [diz que] os políticos portugueses são maus. E que agora precisamos é de tecnocratas, que têm uma ideia precisa sobre o que fazer à economia. E que quanto mais depressa o fizermos, melhor.

 

É a ideia de que precisamos é de arrumar as contas?

Pior, arrumar as contas e transformar a economia. É um paradoxo: é gente que se diz liberal, que gosta dessa conotação, mas que depois usa o Estado para transformar a economia.

 

Neo-liberal com dinheiro do Estado?

Ainda é mais paradoxal: não é com dinheiro, é com as leis do Estado. Pensaram que iam mudar a economia com a legislação. Se formos ver o que é o Memorando de Entendimento, é a alteração da legislação. É uma doença nacional! Mouzinho da Silveira fez isso, uma revolução liberal nas leis (que depois demoraram 50 ou 70 anos a ser aplicadas). Essa ideia de que as coisas vão lá com golpes de rins é nefasta.

 

Como mudar, então, a economia?

Quem sabe de economia são as pessoas e as instituições ligadas à economia. As empresas, as associações patronais, os sindicatos. Os governantes têm de criar enquadramento institucional que os ouça, e tomar decisões a partir disso. Não se consegue perceber como é que uma economia funciona através da teoria económica. É impossível, é demasiado abstracta.

 

Estava a ouvi-lo e a pensar em Álvaro Santos Pereira, vindo de Vancouver, professor universitário, com a teoria económica na ponta da língua. Um entre vários ministros vindos da academia.

Uma pessoa não pode prever o que é que vai ficar na História, mas a principal figura que vai ficar deste Governo é Vítor Gaspar. Foi ele o ideólogo do Governo. E ainda é. A ministra das Finanças não conta, o primeiro-ministro não conta. Não tenho provas de que haja contactos, mas quando se vê o que o Governo faz, sobretudo em grandes áreas, como a renegociação da dívida, ainda se vê o espírito de Vítor Gaspar.

De fora do Governo, o Dr. Vítor Bento é um dos ideólogos deste Governo. Pelas suas declarações em várias ocasiões sabemos que estava muito ligado à acção do Prof. Vítor Gaspar. Outra pessoa muito importante no meio disto tudo é o Prof. Miguel Beleza, um dos economistas mais brilhantes que temos. Está muito ligado à esta ideia de que o país estava mal por causa das instituições políticas e que [tínhamos que lhe dar um] enquadramento institucional que o obrigasse a ficar bem: o Euro.

 

O Euro?

No fundo, o plano era esse. Vamos pôr o país no Euro, com as instituições do Euro a comandar a economia. E a economia, ou se endireita a bem ou a mal. E vamos aproveitar o Memorando de Entendimento e a presença da troika para fazer o trabalho de reconstrução nacional.

 

Acha que estas mudanças têm sido efectivas, estruturais, ou são, simplesmente, um emagrecimento forçado do Estado e da sociedade portuguesa?

Estas mudanças não vão perdurar. Não se consegue mudar o país assim. Onde é que se vê? Cada vez que o Governo é impedido de implementar mais austeridade – e é preciso ter em atenção que o que interessa aqui é o mais ou menos, são as variações – pelo Tribunal Constitucional, por exemplo, a economia respira, cresce um pouco, e o défice externo volta. Os problemas mantiveram-se. Podia-se esperar que se mantivessem olhando para a História económica. É de uma extrema ambição o Governo chegar ao Terreiro do Paço com decretos-lei e dizer: “Vamos mudar isto”, 150 anos de História económica.

 

Soberba?

Decorre do isolamento em que alguns economistas estão.

 

Estão enfiados nas suas cátedras?

As ciências sociais em Portugal tiveram uma evolução um bocado problemática nos últimos dez ou 15 anos. Os economistas quiseram ser mais internacionais, ser mais científicos, mais objectivos. E isolaram-se de tudo o resto. A maior parte deles não se dão com historiadores, não se dão com antropólogos, sociólogos.

 

Escreve no seu livro mais recente: “O mundo funcionou melhor quando a política dominou a economia”. A crise é sobretudo uma derrota da política e das ideologias?

Falta política à economia internacional. Em Portugal, e em alguns países europeus, durante este período da crise, a política desapareceu. Houve várias tentativas [nos países em crise na Europa] de introduzir uma governação mais tecnocrática. Essa governação só tinha uma resposta para a crise: a austeridade extrema. Uma resposta errada.

 

Precisamos de grandes líderes e não de um ramerrame tecnocrático?

Os grandes líderes só aparecem depois. Havia imensa gente que odiava o De Gaulle (não tantas quantas as que odeiam o Hollande, agora). Não sabemos se não haverá algum [grande líder] aqui na Europa. Por acaso não estou a ver grandes candidatos. Durão Barroso não será seguramente. Angela Merkel, do ponto de vista da integração europeia, também não.

Estamos num mundo muitíssimo mais complexo. Havia uma altura em que a Europa ocidental estava aliada aos Estados Unidos e à América do Sul e pouco mais acontecia. Era mais fácil de administrar. E as sociedades europeias também eram mais coesas, embora abertas. E havia um inimigo comum.

 

Agora há o gigante China.

Sim. E a Índia, o Brasil. O poder dos políticos nacionais, mesmo dos grandes países, é muito menor. Isso também pode explicar porque é que não aparecem os grandes líderes. Mas não vamos ter uma solução para isso.

 

Isso é muito desesperador.

Não precisamos. Aquilo de que precisamos é que os governos não façam disparates, coisas absolutamente erradas. Neste momento precisamos que os governos na Europa não levem a cabo estas medidas de austeridade e ganhem juízo para melhorar a arquitectura do Euro. E enquanto cidadãos de um país como Portugal, que foi vítima dessa austeridade, temos que perceber isto. Se o percebermos ajudamos à mudança da política interna.

É importante não termos um ministro das Finanças que critique o Sr. Draghi quando ele quer ajudar à resolução do problema do Euro. É importante não termos um governo radical.

 

Governo radical...

Não há muitos governos radicais na Europa. Há cada vez mais governos e instituições, incluindo o Banco Central europeu, a fazer pressão sobre o governo alemão, que tem sido o dono disto tudo. Isto prende-se com a questão dos [governos] radicais. As pessoas estavam à espera que o Hollande vencesse as eleições e mudasse radicalmente a política em França. E que depois viesse um socialista em Itália e mudasse a política em Itália. E depois na Irlanda, etc. E que de repente a Europa caminhasse para um novo período de grande prosperidade. Não é isso que acontece. A Europa é como um grande paquete, não se dá umas guinadas para mudar de direcção. As coisas têm que mudar muito devagar.

 

O que vamos vendo entretanto é que Merkel mete Draghi no bolso.

Nos últimos cinco anos há uma enorme transformação do papel do BCE. E há uma enorme aceitação das políticas de austeridade na Europa. Devemos ser optimistas em relação à Europa, não devemos é ter excesso de expectativas em relação ao que pode ser feito. Se olharmos para estas questões como tendo que ser resolvidas com alguma ponderação conseguimos ser optimistas, excepto o milhão de desempregados, excepto as pessoas que foram para a pobreza.

 

Excepto? Isso não é de somenos.

Claro, aí é que o Governo devia estar a intervir. Podemos ser optimistas em relação ao geral. E podemos ser pessimistas em relação ao específico.

Muito interessante: até agora não apareceu a palavra troika nesta entrevista. Há dois anos atrás ela já teria aparecido. A questão seria: e a troika, deixaria?

 

Ainda que todos saibamos que a troika, não estando tão presente, está completamente presente. Só formalmente se foi embora.

Desde que o Governo se tornou tão radical, a troika praticamente desapareceu. Há três anos que este país é governado pelo Governo cujo primeiro-ministro é Pedro Passos Coelho.

 

Não se pode então dizer que é culpa da troika, mas que é uma opção deste Governo?

Claro. Eles duplicaram a austeridade.

 

Que se traduz na frase “ir além da troika”?

Ainda hoje estamos com um percurso de ajustamento do défice que é o mais rápido da Europa (com excepção da Grécia). Com a dívida a subir. O argumento para reduzir rapidamente era pagar a dívida. O défice está a ser reduzido, drasticamente, isso afecta a economia, e a dívida, em termos relativos, não está a ser reduzida.

 

Quando é que a troika mandou? Em que é que a troika mandou?

A troika (não são quem vem cá), as instituições que emprestaram dinheiro a Portugal, sobretudo o FMI, tiveram algum poder enquanto Portugal precisava do financiamento do FMI. Isto deve ter acontecido nos primeiros dois anos e meio do Memorando. O Memorando foi desviado no sentido negativo. O FMI teria respondido positivamente a desvios no sentido de não haver tanta austeridade, de haver um ajustamento mais lento.

 

Porquê?

Porque o FMI sabe que veio fazer uma intervenção num país europeu. O FMI, se for bem industriado, sabe que não tem que ter medo das instituições portuguesas. Portugal tem instituições, ao nível do seu desenvolvimento, avançadíssimas. As instituições, desde as autarquias ao Governo, a Presidência da República, funcionam. Os partidos políticos em Portugal sobreviveram à crise, na Grécia não sobreviveram.

 

Apesar de se falar da crise das instituições, apesar da confiança nos políticos estar nas ruas da amargura, no essencial, a estrutura manteve-se. É o que está a dizer? Foi corroída pela crise mas não arrasada.

Claro. Teria que haver efeitos, mas não foi de todo arrasada, mantém-se. Agora há uma disputa no Partido Socialista e há uma data de gente interessada em votar.

 

Um milhão e meio de pessoas viu o primeiro debate entre os candidatos socialistas. Quer dizer qualquer coisa.

Claro. O FMI não teria outra hipótese. Em democracia quem manda é o Governo. Neste diálogo entre as instituições da troika e o Estado português, quem tinha o poder, quem tem o poder é o Estado português. Durante um período este poder foi um pouco mitigado por causa das necessidades de financiamento externo. Mas isso acabou ao fim de um, dois anos. Um outro Governo poderia ter negociado para haver menos austeridade.

 

Essa era a diferença entre um Governo de esquerda e um de direita?

Era. É a diferença entre um Governo que não acredita em mudanças radicais e um Governo cheio de revolucionários de direita. O Governo francês está a dizer, agora, depois das grandes confusões que houve, que vai pedir menor velocidade na redução do défice. Todos os governos fizeram isso.

 

O Governo espanhol pediu ajuda especificamente para resgatar os bancos. Em Portugal isso seria possível? Indo muito lá atrás, se não se tivesse chumbado o PEC IV, se se tivesse pedido uma ajuda para os bancos, ter-se-ia evitado este programa de austeridade com esta dureza?

Não podemos fazer um cenário muito alternativo. O peso espanhol na Europa é muito maior, sobretudo pela ligação a França. O que temos que ter presente: o Memorando devia ter sido administrado de outra maneira. Havia um espaço de manobra que não foi aproveitado. E ainda há. O Governo não quis porque achava que aquilo tinha que ser o mais duro possível, acreditava na austeridade expansionista.

 

Isto valeu a pena?, olhando para os números.

Não, isto foi um desastre. As pessoas que propuseram isto e que assistiram ao que assistiram não estão a chegar à conclusão de que estavam erradas.

 

Em nenhum aspecto valeu a pena?

Em nenhum. Estamos menos integrados na Europa. Temos uma economia destruída, mesmo. Havia uma série de coisas que estavam a nascer e que foram interrompidas.

 

A rentrée política promete ser animada com as primárias do PS, e, eventualmente, um cenário de eleições legislativas antecipadas. É possível ainda recuperar algum desse espaço de manobra e a política ocupar novamente um lugar mais decisivo na vida nacional?

Sim, é obrigatório. O PS tem que ter muito cuidado. O PSD foi descaracterizado. A Dra. Manuela Ferreira Leite é uma órfã, é quase uma pasionaria. É das poucas pessoas que falam publicamente a defender o velho PSD. Se o Dr. António Costa ganhar as eleições – que são um disparate, já é difícil distinguir o PS do PSD, agora as pessoas estão a ser obrigadas a distinguir entre dois PS – , e espero que ganhe, e se ele fizer Governo, tem que ter cuidado em mudar mesmo.

 

E tem que triunfar a política sobre a economia?

Tem que ter um ministro das Finanças político. Onde é que vai buscar o ministro? Ao estrangeiro? À universidade? Ao Banco de Portugal? Não pode, o Banco de Portugal e o Governo têm que se separar outra vez. O Banco de Portugal agora está a sofrer com o excesso de dependência. Tem que haver uma separação das pessoas. No Governo não pode haver pessoas ligadas aos bancos.

 

Como é que vê o facto de Vítor Gaspar ter ido sem um período de nojo directamente para o FMI, ou Santos Pereira para a OCDE?

Nisso não vejo mal, é diferente. As instituições internacionais recrutam ex-políticos. E não vejo tanto mal em que um político vá para os negócios. O Schröder foi para a Volkswagen, tranquilo. Mas o presidente da Volkswagen não pode ser ministro das Finanças ou da Economia. O que é mesmo grave é que um homem dos negócios venha para a política. Quem manda é o político.

Dizer mal da juventude partidária é uma enorme vantagem para quem quer pôr pessoas das empresas no Governo.

 

Como assim?

Cria-se esta ideia de que os partidos não funcionam e que é preciso é que venham das empresas, dos bancos – essa gente é que sabe. E depois é óbvio que estão a decidir sobre assuntos que interessam às pessoas que foram seus patrões.

 

E para onde provavelmente vão voltar depois de saírem da política.

Exacto. No Governo é que não podem estar. Em relação às juventudes há enormes excepções. O ministro do Ambiente, Moreira da Silva, nunca fez nada senão política, e ninguém diz que é um “jotinha”. O António Costa, ninguém se lembra disso.

 

Estava a pensar nesta nuvem de chumbo que paira sobre o país e que contamina as pessoas. Vamos andando pelas cidades e não vemos uma grua. As pessoas andam de cabeça baixa. Não vemos jovens, não vemos crianças, vemos velhos. Isto são sinais de desesperança.

Na política tenho que responder a essa questão olhando para a raiz dessa falta de esperança: o desemprego.

 

E Portugal, na sua história de baixo, baixíssimo crescimento, quando é que vai rasgar este paradigma e começar a crescer?

Houve uma altura em que pensávamos que Portugal ia crescer e aproximar-se do resto da Europa. Neste momento temos que abandonar essa ideia e pensar apenas que Portugal vai crescer ao mesmo ritmo do resto da Europa, e que isso chega.

 

Se crescermos. Andamos a marcar passo há uns anos.

As economias só crescem. No espaço de 15, 20 anos só crescem. Temos de ter uma ideia clara sobre o que queremos. A mudança que devemos querer é uma mudança de transição para melhor mas que não vai ser rápida. Todavia, uma coisa que pode ser rápida é o aumento da atenção aos mais desprotegidos. Melhorar a distribuição do rendimento, melhorar as condições dos menos protegidos não depende apenas do crescimento económico.

 

Isso é o perigoso esquerdista a aparecer em si.

Não. Os historiadores achavam que era neo-liberal, nos anos 80. Agora sou esquerdista. Isto é a social-democracia europeia. É a política a contribuir, a não deixar que os mercados façam tudo.

 

Gosto da ideia de terminar a entrevista com a palavra política e não com economia, finança, crise. Deixa-nos com uma réstia de esperança.

A democracia é o melhor de todos os sistemas. É precisamente porque vai haver eleições que podemos voltar a pensar nisso. E porque vai haver eleições, [devemos] exigir que a política volte a ter a importância que deve ter. Não gostamos dos políticos, os “jotas” são terríveis, mas são melhor que todos os outros.

 

 

 Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014

 

João Lobo Antunes (2012)

14.01.15

Portugal é uma espécie de corpo em apuros? João Lobo Antunes é um optimista, apesar das doenças sistémicas que reconhece no paciente a que regressou depois de anos decisivos em Nova Iorque. Um corpo regenera-se e um país com 800 anos de História não morre.

Às vezes, Portugal parece uma frase de Dinis Machado em “O que diz Molero”: “Coração, bússola doida”. Portugal, bússola doida? Este é o país onde nem tudo vale o mesmo, mesmo que muitas vezes pareça (e nesta parte da entrevista fala-se também de Relvas, sem falar de Relvas). O país que não se preocupa com a retribuição mas que é genuinamente solidário, sem a isso ser obrigado por uma ética puritana. Um país onde a confiança é a palavra chave. Porque falha e porque se impõe. E das reformas eternamente adiadas – talvez por medo. “Intriga-me a mente dos políticos. De que é que têm medo?”

João Lobo Antunes é neurocirurgião, nasceu em 1944. Foi mandatário das duas candidaturas de Cavaco Silva à presidência. Reconhece nele uma proximidade com o povo português que nunca viu. É membro do Conselho de Estado. É um homem culto que tanto cita Camões como diz que Madoff foi logo posto no xadrez. Numa linha, diz que o povo português tem bom coração. 

 

Porque é que voltou para Portugal?

Voltei por razões familiares e privadas. Se calhar, foram uma desculpa ou álibi para regressar a um país a que estava muito ligado. Voltei para Portugal plenamente feliz com o que tinha nos EUA, mas nostálgico, com o sentimento de que podia fazer aqui qualquer coisa. Trazia comigo uma bagagem que não era puramente técnica; e uma maneira diferente de interpretar a democracia.

 

Explique-me melhor isso. Quando partiu vivia-se em ditadura.

Era uma nova maneira de interpretar a democracia num país cuja nova configuração democrática eu desconhecia completamente. Parti em 1971 e regressei em 84. Em certa medida, mantenho uma enorme curiosidade sobre aquilo que se passou num período que me faz lembrar a amnésia retrógrada de quem teve um traumatismo craniano. Há na minha memória um enorme buraco que corresponde a quase 13 anos em que estive fora.

 

E em que tudo, ou muito, do que somos hoje se estava a definir.

Acho que não. Acho que não modificámos tão radicalmente assim. Os portugueses que somos hoje estão no que Herculano escreveu, estão no “Portugal Contemporâneo” do Oliveira Martins, estão no Eça. Somos os mesmos. O que vim encontrar foi pessoas que eram da minha geração, universitários que conhecia bem, e que de repente eram homens importantes. Uns em relação a alguns era fácil a profecia. Outros foram revelações.

 

Em que é que se traduz essa nova maneira de olhar para a democracia que aprendeu nos EUA?

O modelo democrático português ainda está longe do modelo democrático americano. Particularmente [no que se refere] ao compromisso dos cidadãos. O que via lá, a todos os níveis, era um envolvimento. Desde o school board da terra onde se vivia às participações nas assembleias municipais. Independentemente das filiações políticas. Por outro lado, uma coisa que gostaria de ver em Portugal e que ainda não vejo na plenitude: o entendimento de que as instituições são um depositum de princípios, de valores, que têm de ser transmitidos intactos ou, tanto quanto possível, aperfeiçoados às gerações seguintes; e que estão claramente acima das pessoas. Uma das coisas que sempre me intrigaram é como é que pessoas proeminentes na vida política não entendem isso, e não reconhecem que a sua permanência em cargos ou posições de destaque acabam por ser prejudiciais às instituições. Apesar, muitas vezes, da injustiça do juízo que se faz do seu desempenho.

Este sentido era muito evidente em Columbia [University], onde eu estava. Era uma das grandes universidades americanas, da chamada Ivy League. Havia sempre o sentido da História. Da História que se estava a fazer constantemente. E era um país que tinha pouco mais do que 200 anos. É por isso que esta politização da supreme court, a polarização por razões políticas, choca tantos intelectuais americanos.

 

Quais são as raízes da falta de comprometimento dos cidadãos portugueses com o seu país?

É uma das heranças da ditadura. As pessoas desinteressaram-se porque a sua voz não era ouvida. A voz, a pouco e pouco, foi-se sumindo. Mas é verdade também que em democracia a voz do cidadão comum (o que só se representa a si próprio) e a própria consulta aos “sábios” (aqueles que têm mais experiência) é muitas vezes um exercício de mera cortesia. Ou o cumprimento de uma obrigação constitucional ou jurídica. Não representa um genuíno desejo de aprender com as pessoas que trazem à cena pública experiências diversas.

 

Não está a pensar no Conselho de Estado, que integra, ao dizer isso...

De maneira nenhuma.

 

Não é um exercício de cortesia.

Não. A convocatória do Conselho de Estado nasce de situações particulares, do desejo do Presidente de ouvir pessoas que desempenham ou desempenharam cargos importantes na vida do país.

 

Os 48 anos de ditadura são decisivos para compreender o afastamento do cidadão da res publica. Mas entretanto temos quase 40 anos de democracia, e os filamentos da relação não se refizeram.

Sim. Se me perguntar, ou se lhe perguntar a si, quais são os deputados eleitos pelo círculo de Lisboa, [não os conheço]. Nos Estados Unidos eu recebia com frequência, de movimentos de cidadãos, com os interesses mais diversos, [informação]. “Escreva ao seu senador, escreva ao seu congressista”. Havia uma outra proximidade, que resulta de dois factores. Do interesse do político em ser reeleito, e do entendimento ético do que era a sua função. O afastamento que temos da classe política e a forma como [os políticos] são nomeados não representam um avanço substantivo [em relação à ditadura]. Sob esse aspecto estamos quase exactamente como estávamos antes da democracia.

 

Círculos nominais mudariam a situação?

Era uma alternativa, é evidente. Ou um regime misto. Mas alguém tem de ser accountable em relação à defesa dos interesses.

 

É essa fiabilidade e responsabilização de quem representa cargos públicos que falha muito em Portugal?

Falha. Falha muito. Aquilo em que se aproxima mais [dessa accountability] é no poder autárquico. O que move o poder autárquico, com todos os seus defeitos, com todos os riscos que se correm, é a ambição de deixar uma obra. Isso é bom ou mau consoante essa obra se concretiza, e consoante essa ambição serve apenas para a glória de uma personagem ou serve os interesses de uma população. Outra coisa notável foi o desenvolvimentos de instituições de solidariedade social. Trouxe à democracia portuguesa uma enorme vitalidade. Essa foi, para mim, a melhor conquista da democracia.

 

Não deixa de ser paradoxal que o português seja um povo desligado do exercício da cidadania e ao mesmo tempo tão solidário – como mostram campanhas do Banco Alimentar. Nessas acções, não é o interesse político que está em causa mas o interesse do outro indivíduo.

Estou numa posição privilegiada como médico que vê muita, muita gente, de todos os estratos sociais, económicos, culturais. Um dos consolos que a profissão traz é a possibilidade de conhecer histórias de bons sentimentos. Se me perguntassem como é que caracterizaria o povo português, continuo a achar que tem bom coração (usando uma expressão tão antiga e ao mesmo tempo tão prenhe de significado). É isso, em parte, que acções como a do Banco Alimentar traduzem: uma solidariedade muito próxima.

 

Que é diferente da solidariedade americana.

Sim. Que é, muitas vezes, uma solidariedade cortês ou uma solidariedade imposta por uma ética puritana. O que também tem coisas muito positivas. Não vejo os ricos portugueses terem a generosidade dos ricos americanos. Ver um homem muito rico deixar o seu dinheiro a uma boa causa é relativamente infrequente.

 

Alguma vez um homem rico deixou um terço da sua fortuna ao seu serviço?

Esse exemplo não é abundante em Portugal. Para o meu serviço, francamente, assim generosas, tive muito poucas. Tenho pedido, às vezes. Não gosto que me digam que não. Não gosto porque acho que o pedido tem algum fundamento e certamente não é para mim. Sou muito selectivo às pessoas a quem peço. A Fundação EDP tem uma actividade interessantíssima. A Fundação Francisco Manuel dos Santos, também. Sem falar de outras, de grande dimensão.

Podem dizer que não há incentivos fiscais. O que em Portugal não se construiu foi a ideia do prestígio social que a filantropia traz.  

 

Outro sintoma do corte entre as instituições e os cidadãos...

Há tantas causas boas... Quando era interno no Presbyterian, o hospital onde trabalhava, o director chamava-me e dizia: “Vai admitir a senhora de tal porque ela tem dado milhões ao hospital. Tem dado anonimamente”. Pessoalmente, já fiz donativos à instituição onde me treinei como expressão de pura gratidão. Às vezes de forma criativa. Por exemplo, na Columbia tenho uma cadeira num anfiteatro com o meu nome gravado. Comprei aquela cadeira.

 

Muito disso é simbólico e traduz uma relação com a memória. E gratidão, como disse.

Reconhecimento. É o payback. É retribuir.

 

Somos ingratos? Esse povo que o Eça descreveu tem esse traço?

Tem. E tem outro que o António Sérgio sublinhou: a inveja. Fiquei tranquilo com a inveja há uns anos quando descobri que a inveja é um sentimento que se auto-castiga. O invejoso deve sofrer horrores, não vive em paz. Nunca mais me preocupei com os invejosos. Os neurocientistas perceberam que o centro do cérebro que está envolvido nesse processo de satisfação pelo desastre que acontece aos outros é o mesmo centro em que está sediado o prazer pelo chocolate, pelo sexo... Mais uma vez, a culpa é do nosso cérebro.

 

Vamos voltar ao jovem que foi aos 20 e poucos anos para os EUA. Como é que percebeu que era português, que o português estava inscrito em si?

Era português, mas naquele cenário era mais do que isso: era europeu. Significava basicamente que tinha uma perspectiva cultural que era mais profunda. Até na etiqueta havia um encanto especial em ser europeu que, no meio sofisticado onde eu estava, continuava a ter algum valor.

 

Uma patine.

Um estilo. O estilo do jovem médico americano é ditado pelo seu background familiar e cultural mas também pela transformação que ocorre durante o college. Começam uma vida independente. Preparam-se para aquilo a que Sir Cecil Rhodes chama “a luta do mundo”. Em Portugal a geração kanguru permanece mais tempo na bolsa marsupial da família.

Repare no contraste: (no meio desta turbulência não quero falar de acontecimentos recentes) os juízes do supreme court norte-americano vieram de Harvard. Os presidentes passaram por Harvard ou Yale ou Columbia. Os franceses vêm da école normale. Os ingleses vêm de Eaton. Nesses países valoriza-se muito a formação e o mérito. Em Portugal é espantoso que o background académico tenha caído em tanto descrédito, e [se tenha instalado] a convicção de que o mérito que decorre do trabalho, com esforço e sacrificial vale pouco.

 

O que é que vale, então?

Há um poema da Szymborska, a grande poetisa polaca, que cito num dos meus livros, chama-se Curriculum Vitae: “... o preço, sim, o valor, não/ o título, não o que ele significa/ o tamanho do sapato, não por onde ele leva aquele que fazes passar por ti próprio (...) quem te conhece é mais importante do que quem tu conheces/ honrarias, sim, mas não como foram ganhas...”. Os poetas dizem melhor do que qualquer outro.

 

No poema, Szymborska fala do que vale na sociedade. Em Portugal o que é que vale como moeda de afirmação? Não é o saber, não é o mérito.

É a persona pública. Assim como se ergue, rapidamente cai. É tudo de barro, não são só os pés. Estes ídolos são extremamente vulneráveis. Não é preciso um qualquer taliban para os destruir. Desfazem-se, têm pouca consistência.

 

Este é também o país onde um homem de raízes relativamente humildes como o Prof. Cavaco chega à presidência da República. Esse percurso é também possível.

Há uma história na biografia dele. A certa altura perdeu um ano. O pai castigou-o. Pô-lo a trabalhar. A sua formatura e percurso académico fazem-se à custa de muito trabalho. Isso deu-lhe sempre um entendimento e uma proximidade do povo, que algum infortúnio recente não conseguem [apagar]. Não apagaram certamente nele a proximidade com o povo português. Uma das coisas impressionantes para quem o acompanhou em campanha, como eu acompanhei duas vezes: nunca vi nenhum político em relação ao qual o povo estivesse tão próximo. Uma coisa quase hagiológica. Este é um de nós que chegou onde chegou. Ao mesmo tempo, ele é um de nós mas é diferente.

Mas não argumento que seja preciso ter um curso superior para ter sucesso na vida. Conheci ignorantes espantosos, em que a falta de instrução foi uma vicissitude. A curiosidade com que olhavam para o mundo e colhiam do quotidiano as lições mais diversas, independentemente das observações científicas, era admirável. A verdadeira dimensão da cultura: poder falar com quem quer que seja.

 

Falou do descrédito das instituições. E há o caso recente do Ministro Relvas. Sei que não quer falar de casos concretos ou de epifenómenos...

Temos duas culturas. A da avaliação da ciência (com falhas, é evidente, nenhum sistema é perfeito) em que as regras existem e ficaram e, na minha opinião, são irreversíveis; e outro sistema mais laxo. Na ciência introduziram-se, graças em grande parte ao pensamento do Prof. Mariano Gago, critérios de rigor, a avaliação por pares, a codificação das regras. A laxidão no sistema parece ter uma relação proporcional à importância relativa do candidato. Não é moralizador. Não é exemplar (no sentido de servir de exemplo), mesmo quando se mantém no estrito confim da legalidade.  

Outra das tendências portuguesas – outro absurdo – é a judicialização de tudo. Já no “L’Esprit des Lois” [Montesquieu] se dizia: quando o povo tem bons costumes, as leis são simples. “Quand un peuple a de bonnes moeurs, les lois deviennent simples”. Aqui, na dúvida, vai-se legislar mais e mais e mais, para, na prática, não ter consequência nenhuma.

 

O português gosta de fintar tanto quanto possível a legalidade. Isso é prova de chico-espertismo.

Nos EUA, em relação aos impostos: os técnicos de contas eram obrigados a fazer exame todos os anos – recertificação. Para estarem a par das alterações à lei. O que se pretendia é que encontrassem nas leis mecanismos para as pessoas pagarem o menos possível. É compreensível.

Em Portugal o sistema é muito garantista. Falo da admissibilidade de certas provas. Para a sensibilidade do homem comum, aparece como uma flagrante injustiça. O entendimento que têm da forma como a justiça é exercida escapa-lhes. A pedagogia jurídica muitas vezes não chega. Diz-se: “Foram umas escutas de uma legalidade duvidosa. Apurou-se a verdade, mas não pode ser usado como prova em tribunal”. [Não se] explica às pessoas que esta legalidade, no final, os pode beneficiar também. Amainou. Mas viveu-se um tempo de uma enorme intranquilidade, em relação às secretas, espiões, etc.

 

Intranquilidade em relação à justiça.

A sociedade moderna depende cada vez mais da confiança. Eu compro um automóvel e tenho que estar confiante que, no produto que me estão a vender, os travões não vão falhar. Eu compro um genérico e tenho que confiar que o produto que está lá é exactamente o medicamento de que preciso. Ou que vou ao restaurante e que as pessoas lavam as mãos. É um sistema que implica um imbricamento tão complexo, de parceiros, de funções, que toda a vida moderna se baseia na confiança.

 

Nos EUA há o sistema de júri e a justiça é célere.

Veja-se o Madoff. Foi logo posto no xadrez. Várias vezes testemunhei como perito em julgamentos. É uma sensação muito particular. O júri é imperscrutável. “Explique aos jurados...”. Dirigimo-nos a eles. E temos a sensação desagradável de também estar a ser julgados. O que estamos a dizer vai ser apreciado como prova. É um sistema que tem as suas vantagens e inconvenientes.

 

Uma reforma radical do sistema de justiça Portugal era uma coisa na qual apostaria?

Não conheço essa matéria. Não sei. Sei que há pessoas de boa vontade. Mas deixo uma observação de fora: só há basicamente três corporações fortes. As da medicina, as da lei e as da educação. A tradição corporativa tem séculos, e qualquer corporação tem um contrato com a sociedade. O contrato implica a prestação de um serviço ou valor e a autonomia de se regularem. É um equilíbrio extremamente delicado no qual os responsáveis políticos querem cada vez mais se intrometer. Vão retirando às corporações privilégios que tinham no passado, em parte, também, porque percebem que as corporações dedicam grande parte da sua actividade a garantir privilégios, e não a servir a sociedade.

 

Há uma corporação que não é uma corporação e que é hoje quem mais pode. O dinheiro.

O dinheiro é um instrumento de poder. É uma coisa imemorial. Está na natureza humana. Bicho da terra, como diria o Camões, tem estas coisas.

 

Voltemos ao bicho português, ao que é mais particular na natureza portuguesa. Como é que nos descreveria?

Começaria por ter uma enorme dificuldade. Primeira: será que descrevendo-me a mim estou a descrever o português típico? É um exercício de uma enorme soberba que não faço. E será que, se julgasse os portugueses, estava a julgá-los tendo em conta aptidões ou qualidades que eu acho que tenho e que outros não têm? Estaria a ser profundamente injusto.

Sabe, acho que o povo português sou eu e mais dez ou doze milhões. Somos nós. Vou periodicamente a um hospital público, que não é o meu onde trabalho. Vou como doente. Marco a consulta, estou lá à espera, pago a taxa moderadora.

 

Faz isso? É uma enorme surpresa. Achamos que os médicos se vêem todos uns aos outros nos consultórios e que não fazem fila de espera.

Faço. E sinto-me muito bem. Consola-me estar ali. Estar ali porque sou igual a todos. Os que estão ali sofrem como eu. Esta é a minha gente. Eu sou eles. Não me preocupo demasiado em julgar, e faço tudo o que posso para os servir. Como médico, neste hospital do Estado. Ontem fiz uma intervenção [cirúrgica] muito complexa e arriscada. Doente anónimo. Às vezes os doentes sabem vagamente que o professor vai operar, outros nem me conhecem. A minha anonimização neste contexto aproxima-me muito deles. Estou a cuidar deles e eles não sabem que sou eu. Sinto-me bem nesta função.

 

Esse sentimento mudou depois de regressar dos EUA? Sentiu-se mais próximo.

Não mudou.

 

Esse gosto na anonimização acontece depois de um percurso de pertença a uma elite.

Sim. Mas pegando num livrinho de um homem que já morreu, [William] Henry, “In defense of Elitism”: a tese principal é a da defesa da igualdade de todos à partida. Não é a igualdade de todos à chegada. É uma tendenciazinha portuguesa – vale tudo o mesmo. Não vale. O que temos de garantir é que, à partida, têm todos as mesmas oportunidades. Esse é que é o grande desafio da democracia e da cultura ocidental. Temos de descobrir em que é que esta obrigação, este mandato, falha. Aplica-se a tudo: à justiça, à educação, à saúde.

 

Portugal é uma espécie de corpo em apuros?

Em apuros? Tem várias doenças sistémicas. Se pensarmos que a justiça é o coração, que a saúde é o fígado e que a educação é o cérebro, é um corpo que vai claudicando. Mas a Biologia é uma ciência optimista. Renova-se. Regenera-se. Reconstitui-se. Tenho um pensamento optimista na vida em geral, nas coisas em que me meto. Luto por elas. E se tenho derrotas, tento transformá-las em vitórias; ou seja, ver o que há de positivo no que aconteceu. Aliás, este é o único mecanismo que nos permite sobreviver ao erro. Pensar que vai haver outra oportunidade.

 

Quando se olha para os textos de António Sérgio ou Eça, parece que nunca se fez o transplante do fígado, nunca se pôs uma válvula no coração, nunca se oxigenou melhor o cérebro.

Tenho respeito (não tenho uma excessiva simpatia) pelas pessoas que só diagnosticam. Grande parte do que vemos no comentário político são palpites, diagnosticadores, pessoas que (como gosto de dizer) nunca molharam os pés. Nunca geriram uma grande empresa, nunca correram riscos.

 

Quem é que foi além do diagnóstico e operou?

Muita gente, felizmente ainda há muita gente. Os outros, às vezes, são construções intelectuais muito interessantes. O Herculano dizia numa carta famosa que o que o distinguia dos outros era a vontade. Fala-se pouco disso. Há um grande fascínio pela inteligência, que encandeia as pessoas e não permite ver, para lá da inteligência, o carácter.

Há muitos anos, quando estava a aprender, conheci homens de uma inteligência esplendorosa; comecei a desconfiar dela quando vi que servia para encadear logicamente certas premissas que levavam a uma conclusão que eu sabia que não era verdadeira. A conclusão oposta era inconveniente ou não servia um propósito. O meu fascínio pela inteligência continua presente, mas é muito temperado. Há componentes muito mais importantes na avaliação de uma pessoa.

 

O fazer é, então, o verbo principal?

A vontade. E a vontade nem sempre se traduz no fazer. Às vezes é a vontade de fazer, o rumo, o ver mais longe. Agora estamos envolvidos num projecto que considero vital para a universidade portuguesa: a fusão das duas universidades. Gostaria que o Governo visse as virtualidades deste projecto, e nem sempre estou convencido que o veja.

 

Tudo parece extraordinariamente difícil, apesar de ser um país pequeno, de dez milhões de pessoas.

Pesado, lento. E sou muito pragmático. As pessoas não querem correr riscos.

 

O que é que temem perder, na sua opinião?

Vou fazer uma conferência que tem por título “Estranhas sinapses”. Liga coisas tão diversas como a incerteza, o erro, o risco e a esperança. Isto é muito pertinente em relação à medicina. O Sir Isaiah Berlin defendeu uma ideia importante: a de que na vida pública é preciso correr riscos, até morais. Assumindo riscos morais. De outra forma, se [o sujeito] se mantém contido, politicamente correcto, com a necessidade de agradar a todos, [dominado] pelo imediato, não há uma visão. Nesse aspecto, acho que este Governo precisa de construir.

 

Construir?

Construir. Ter uma ideia, ter um projecto em que as pessoas se revejam. Não ficar completamente manietado pelas prescrições de uma Troika. É uma crítica clara. Intriga-me a mente dos políticos. De que é que têm medo? Embora, por razões de circunstância, já se percebeu que não têm medo da impopularidade, tomando medidas pesadas, difíceis, corajosas. Mas será que chega?

 

De que é que têm medo?

Tem que lhes perguntar. Sei que a decisão política é muitas vezes opaca. Há muitas variáveis. O impacto que as medidas têm nas populações, ou grupos de interesse, ou porque há dados que não são partilhados com todos. Mesmo em democracia é preciso, senão guardar segredo, guardar discrição. Às vezes é profundamente injusto (os opinion makers e jornalistas são contumazes nisso) fazer juízos sem ter os elementos todos.

 

Por exemplo.

Sei que o presidente da República muitas vezes sabe muito mais e está muito mais metido na proposta de soluções e na procura de consensos do que aquilo que vem [a público]. Nunca transparece o que decorre das reuniões que tem semanalmente com o Primeiro Ministro. Isto nunca foi violado, nem no tempo do Engenheiro Sócrates. Há uma regra.

 

Acha que os diagnósticos são falíveis, insuficientes?

Há coisas que se sabem bem, e há muita outra coisa que não se sabe, para que não temos instrumentos. Se a pessoa tem uma dor na barriga, se os glóbulos brancos subirem, se fizer uma ecografia e mostra que o apêndice está inflamado, tem uma apendicite. Diagnóstico preciso. Mas se a pessoa tem uma tensão arterial alta há muitas causas para a tensão alta. O grau de precisão do diagnóstico varia.

Alguém percebeu se o TGV era efectivamente uma boa ou má ideia? Eu não percebi. Os argumentos eram de tal forma desencontrados... Alguém já explicou, para que possamos fazer um juízo independente, se o nuclear é bom ou mau para Portugal? É uma dicotomia maniqueísta, a que muitas vezes se acrescentam juízos morais.

 

Os seus doentes, quando estão aflitos, conseguem pensar com discernimento?

Não, claro que não. Por isso é que o consentimento informado é uma mentira. (Isto é uma heresia.) É muito frequente, depois de uma intervenção, o doente perguntar: “Diga-me lá exactamente o que é que me fez”. “Expliquei-lhe tudo antes da operação.” “Ah, estava tão ansiosa que não percebi nada.” Isto é clínica real. Há um retorno, discreto e envergonhado, ao princípio da beneficência, admitindo que o profissional está a defender o interesse do seu cliente. A maior parte dos doentes continua a dizer-me: “Faça o que é melhor para mim”. “O que é que é o melhor para si?” “Faça-me o que faria se fosse a sua mãe ou um filho seu.”

 

Queria transpor isto para Portugal e perguntar se os portugueses, que estão aflitos porque não têm dinheiro, porque perderam o emprego, por outras razões, conseguem ter o rasgo, a coragem, o discernimento para perceber o que é que devem fazer.

Alguns percebem. Pode-se extrapolar, com algum risco, para o facto de as sondagens ainda não terem aniquilado os partidos do Governo de uma forma definitiva. É o diabo que se conhece versus o diabo que não se conhece. Há, apesar de tudo, o sentimento de que alguém está a tomar conta disto. Que a casa está revolta, que está tudo de pantanas, que não há dinheiro para dar de comer, mas que há uns tipos que estão a tentar tomar conta disto. Há uma resiliência. As pessoas sabem que é preciso. A mim preocupar-me-iam as notícias do que está a acontecer de uma forma muito aguda se no exercício da minha função de médico do Serviço Nacional de Saúde visse consequências palpáveis nos meios que tenho. E como até agora, com toda a franqueza, não tenho nada a dizer... Continuamos a fazer a neurocirurgia que fazíamos sem que alguém nos diga: “Gastem menos disto. Não façam esse procedimento que é muito caro”. Sob esse ponto de vista, não posso criticar, como cidadão.

 

Publicado orginalmente no Jornal de Negócios em 2012

 

 

 

 

  

 

  

José Vegar ("Serviços Secretos Portugueses")

13.01.15

Fechamos o livro e experimentamos todos os movimentos que são próprios de um filme de espionagem. Um remexer na cadeira, uma agitação no olhar, um canto da unha que é mordido. E se o sentimento de inverosimilhança for só aparente? Vislumbramos em le Carré um ideal de aventura, inconsequente. Um abismo no qual podemos mergulhar sem risco. Um mundo onde a trama, fio por fio, se deslinda ante os nossos olhos, e nos enreda no glamour da ficção, página após página. Na vida real, fechamos o livro de José Vegar e ficamos estonteados. A realidade que se nos apresenta, afinal, tem uma dimensão poliédrica, obscura, inintelegível que não supúnhamos que existia. Pelo menos com esta espessura, pelo menos entre nós.

«Serviços Secretos Portugueses – História e Poder da Espionagem Nacional», (A Esfera dos Livros) é um documento precioso que nos situa no mundo em que vivemos. Trata do terrorismo islâmico, da relação inextrincável entre o terrorismo islâmico e o crime organizado, do anacronismo do edifício legal português num mundo transtornado pelo 11 de Setembro, da competição explícita entre os diversos organismos portugueses, do branqueamento de dinheiro como principal motor da actividade criminosa, da malha chinesa, de áreas especialmente sensíveis, como o contrabando, as identificações falsas, a promiscuidade entre os negócios e a política, do «ciberespaço como terreno de eleição para os terroristas, dada a confidencialidade, alcance e rapidez que garante aos contactos».

Usemos como metáfora uma língua e a sua aprendizagem. O mundo dos serviços secretos e do crime organizado funciona com uma música própria, a qual só pode ser ouvida por aqueles que conhecem as notas/os vocábulos que a compõem. Que dominam as regras e a construção da partitura, portanto. Senão, passam na rua e os sinais aparecem disseminados num ruído de fundo. Indistintos.

Para os que não falam a língua, um marroquino que espreita pela porta, na Almirante Reis, em Lisboa, pode ser, apenas, um imigrante ilegal. Para outros, conhecedores da gramática, ele pode ser também um terrorista cuja actividade tem «configuração viral, com reprodução e mutabilidade constantes (...). Pode ser para financiar um atentado em Florença, para comprar explosivos em Lyon para rebentar alguma coisa em Berlim. Mas também pode ser só para uma transa qualquer de “heroa”, ou para comprar uns passaportes em Banguecoque, que hão-de chegar ao Paquistão».

O livro de José Vegar permite começar a aprender esta língua. A aprendizagem não é imediata. O conteúdo é de tal modo denso, complexo, mutante – tal qual a realidade – que precisamos de repetidas visitas para integrar as regras de funcionamento. Não que a exposição seja confusa – pelo contrário. É límpida, e estão bem demarcados os territórios da ficção e do factual. (À semelhança da “escola americana”, a introdução aos principais temas e capítulos é feita com uma pequena ficção, baseada em factos verídicos). A informação é detalhada, decorre de uma investigação de anos que o autor vem fazendo e de uma generosa bibliografia, citada nos seus excertos mais eloquentes.

No fim, persiste a ideia de que acedemos a uma ínfima parte do novelo – e aí, diverge a ficção de le Carré da realidade em que estamos imersos. Na primeira, a revelação é feita progressivamente e rejeitamos a incompreensão, as pontas soltas, as incongruências; numa linha, ficamos a conhecer todas as cartas do baralho, as sequências montadas, ficamos a conhecer o sentido. Na segunda, o desocultamento é incompleto, e será sempre assim. «Nunca se fecha nada. Estamos no meio de uma operação interminável e você tem de aprender a viver com isso», diz uma das personagens de uma das ficções. Vegar, citando o académico escocês Randstorp, sintetiza: «Conhecemos os desconhecido». Um desconhecido que tem «natureza amorfa», que aparece «desterritorializado», que actua em «redes transnacionais». Perante este quadro, constata-se a quase impossibilidade de se ser preventivo, e a contingência que atira as autoridades para um carácter reactivo. Não é possível esperar a ameaça de frente, porque não se pode prever cabalmente de que lado ela vai aparecer.

Um dos aspectos mais surpreendentes do livro é revelar como Portugal faz parte de uma rede da qual nos julgávamos arredados. País conotado com brandos costumes, e de tradição pacífica, é com espanto que lemos o antigo director do SIS, José António Teles Pereira, quando este diz: «O nosso país situa-se numa espécie de “zona cinzenta”, da qual o máximo que se pode dizer é que não está tão “próxima” do problema para que a ocorrência de atentados se situe a nível da grande probabilidade, mas que também não está tão “longe” em termos de essa possibilidade ser considerada negligenciável».

Portugal é, inesperadamente, apetecível para «indivíduos que se deslocam ao nosso país em busca de documentos falsos, de financiamento e de recuo temporário». E, claro, não está arredado de actividades ilegais como o branqueamento de dinheiro, tráfico de armas, fraude empresarial, tráfico de pessoas, droga, produção de pornografia infantil ou corrupção – só para mencionar os mais gritantes. Por razões várias, «Portugal partilha características comuns a outros países ocidentais (...) extremamente atraentes para os criminosos».

O diagnóstico dificilmente podia ser mais duro, atendendo àquilo de que estávamos à espera. Ou seja, de muito pouco. Como se vivessemos num paraíso, imunes aos acontecimentos que fazem as notícias. E a sensação de esmagamento é imensa quando nos damos conta da competição feroz que existe entre os vários organismos do Estado, tutelados por diferentes ministérios. São forças que se digladiam no terreno, a partir de um modelo anacrónico. «O edifício legal levantado em 84 é a base do sistema português de espionagem actual». O desfasamento entre o mundo que então conhecíamos e aquele em que hoje vivemos é colossal. Vegar chama a este edifício «obsoleto, antiquado». Para dizer o mínimo.

Por último, há que contar com uma desconfiança militante e um ódio generalizado que os serviços de segurança desde sempre mereceram e que minam a acção destes. Muitos questionam-se, inclusive, sobre a importância de um Serviço como este... Se é certo que o território é sensível e mexe com as liberdades e garantias dos cidadãos, não é menos certo que muito deste preconceito decorre de um passado recente. O fantasma da PIDE, operante entre 33 e 74, ensombra o modo como os serviços secretos são olhados. A associação é viva, e vincada por uma “consciência afectiva”.

É fácil constatar esta associação de declinarmos a palavra “espião”. Se a dizemos, pensamos imediatamente num cenário de 007, munido de armas sofisticadas e mulheres soberbas. Ou, numa versão mais romanesca, estamos num livro de Graham Greene, também ele agente secreto, além de escritor enorme. Mas se adoptarmos a forma verbal, o resultado é medonho! “Espiar” é uma actividade repulsiva, com laivos de delacção, que merece ser ostracizada e exposta a vergonha na praça pública! Que fazer, então?

Com este testemunho, José Vegar propõe-se «dar um modesto contributo para a eliminação de algumas das demasiadas sombras que envolvem permanentemente a espionagem portuguesa». Objectivo amplamente conseguido.  

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2007

 

Roberto Mangabeira Unger

12.01.15

Cientista social, um dos mais jovens professores da história de Harvard, um filósofo que sustenta um discurso a partir da palavra “alternativa”. Um homem a quem chamamos naturalmente “professor”. Ministro dos Assuntos Estratégicos do Brasil entre 2007 e 2009. Este é Roberto Mangabeira Unger. Outra maneira de o apresentar é perguntar de onde é que vem. O apelido Mangabeira é de uma mãe brasileira, Unger é de um pai alemão. Teve um avô que passou o tempo a fazer resumos de todas as obras de Machado de Assis quando foi preso político. (Essa é a têmpera da sua gente.) Foi criado entre os Estados Unidos e o Brasil. Fala português do Brasil com sotaque americano. Esteve em Lisboa para participar nos encontros da Fundação Francisco Manuel dos Santos, há uma semana. Tem um tom amável, sólido, e por vezes exalta-se, dominado pela força – e pela urgência – do que está a dizer.

Foi do seu olhar sobre o mundo e das propostas concretas para Portugal que falámos nesta entrevista. Não esperem que isto seja uma aula, ainda que a exposição o sugira, por vezes. A atitude de Roberto Mangabeira Unger é sempre contundente. E que se danem os que não gostam.

 

O paradigma inaugurado depois da Segunda Guerra entrou em ruptura. Vivemos um fim de ciclo. A partir de que vocábulo começamos a inventar uma nova narrativa?

A última grande renovação institucional e ideológica que ocorreu no ocidente rico foi construída nas décadas imediatamente após a Segunda Guerra. Mas as sementes disso foram plantadas entre as duas guerras. Permitiu-se ao Estado o poder de regulamentar o mercado mais fortemente, de contrabalançar as desigualdades geradas por políticas de redistribuição compensatória, por tributação progressiva, e de manejar a economia por políticas contra-ciclo que são as políticas keynesianas. Portanto, compromisso com a protecção social, atenuação das desigualdades, mas aceitação do arcabouço institucional, tanto na economia como no Estado. Esse foi, e continua a ser o sistema.

 

Continua a ser?, apesar da erosão.

Hoje há um projecto hegemónico no Atlântico norte, entre as elites que se têm por esclarecidas. É o projecto de reconciliar a protecção social no estilo dos europeus com a flexibilidade económica no estilo dos americanos. A social-democracia tradicional que dava direitos adquiridos a uma série de minorias organizadas, de trabalhadores e de pequenas empresas, foi progressivamente esvaziada.

O esvaziamento ocorreu sob o rótulo da flexibilização, como no mercado de trabalho. E o social-democrata e os social-liberais retrocederam para a defesa do que consideram o baluarte. Sacrificaram os anéis para ficar com o dedo.

 

Qual é o dedo, no caso?

Esse baluarte, esse resíduo na retaguarda, é um alto nível de protecção social, paradoxalmente financiado pela tributação do consumo, como ocorre com o IVA.

Mas nenhum dos grandes problemas destas sociedades contemporâneas do Atlântico Norte pode ser resolvido dentro dos limites deste compromisso institucional.

 

Quais são esses grandes problemas?

O primeiro é como qualificar os serviços públicos. É um tema central da política eleitoral europeia em cada país. O que existe na Europa e no mundo é aquilo que poderíamos chamar de “fordismo” (a produção massificada, mecanizada de Henry Ford). A qualificação dos serviços públicos exigiria um engajamento da sociedade civil sem o objectivo do lucro como parceira do Estado na provisão dos serviços. Não existe. Nem sequer é proposto, na realidade.

 

Segundo problema.

A relação do sistema financeiro com a economia real. Actualmente o sistema financeiro vive desentrosado da economia real. O sistema produtivo, em larga medida, autofinancia-se com base nos lucros retidos e reinvestidos das empresas.

 

Quando há lucros para ser retidos e reinvestidos...

É. O que resulta disto é que em tempo de bonança e de liquidez, tudo bem. As finanças cuidam de si próprias e são indiferentes à economia real. Em tempos ruins, quando desaparece a liquidez, as finanças viram um elemento de desestabilização destruidora. Não tem que ser assim. Poderia haver, não uma regulamentação do sistema financeiro, mas uma reorganização das relações em que o sistema financeiro, em vez de ser o mau senhor, passasse a ser um bom servo.

 

Mau senhor, bom servo? Não foi essa opção de reorganização que foi tomada na sequência da crise recente.

O que as elites europeias propuseram foi o keynesianismo vulgar. Os estímulos de um lado e a regulamentação das finanças de outro. Propuseram os chamados progressistas. Os outros, os conservadores, pior!, propuseram só a radicalização da austeridade e um jogo de confiança. Ninguém tratou de reorganizar a relação.

 

Terceiro problema.

A segmentação hierárquica da economia. Agora surge um novo paradigma de produção, baseado na produção flexível e descentralizada, e densa em conhecimento. Muitas vezes, na Europa, encarnada em redes de pequenas e médias empresas. O problema é que a prosperidade, a ascensão dessas vanguardas produtivas pós-fordistas, depende de condições muito especiais. Depende da existência de um legado pré-fordista. Essas condições estão ausentes na maior parte dos países europeu. As minorias altamente educadas têm porta aberta a estas vanguardas produtivas, mas a grande maioria da força de trabalho está excluída.

 

Como resolver a desigualdade que resulta disso?

Há dois remédios tradicionais. Um é a redistribuição compensatória pela tributação progressiva e pelo gasto social. O outro é a defesa política dos pequenos empreendimentos. Nenhum dos dois é suficiente para atenuar as macro-desigualdades que resultam dessa nova forma de segmentação hierárquica da economia. Seria necessário inovar nos regimes institucionais e jurídicos que relacionam o Estado com os empreendimentos e os empreendimentos entre si. Com que objectivo? Com o objectivo de disseminar na economia o vanguardismo. Para que o vanguardismo não fosse uma ilha.

 

Pode elaborar a ideia de a vanguarda ser uma ilha?

A vanguarda é sempre o sector mais próximo da imaginação. Na época da Revolução Industrial a vanguarda era a manufactura mecanizada. Agora, a vanguarda, que depende de requisitos muito especiais, por exemplo, de conhecimento, é uma ilha, é um gueto, e a sua cultura e as suas práticas não são disseminadas.

 

Quarto problema.

Os cheques que o Estado manda para o correio não são suficientes como cimento social, como base de coesão social, especialmente quando a homogeneidade étnica e cultural deixa de existir, como está ocorrendo em muitas sociedades europeias. Os países europeus estão deixando de ser tribos. Seria necessário engajar os cidadãos em cuidar dos outros fora dos limites de suas famílias.

 

Quinto grande tema.

A capacidade “mudancista” (para mudar) da política. As democracias contemporâneas são democracias de baixa energia conduzidas por sindicatos eleitorais e políticos, que só se mobilizam na hora da crise. Sem trauma não há transformação. Essa é a regra básica da História europeia do século XX. Com guerra e ruína económica, há mudança. Com paz e prosperidade, todo o mundo, vai dormir. Seria necessário um aprofundamento da democracia para criar democracias de alta energia, com alta mobilização popular.

A minha tese é a de que os problemas estruturais destas sociedades não cabem dentro dos limites daquele compromisso que foi construído em meados do século passado. E as elites governantes vivem no aftermath, no crepúsculo desta solução já gasta. Quando ocorre uma crise de dimensão média, como a crise financeira de 2007, 2009…

 

Considera que foi média?

Média comparada com as mega-crises do século passado. Uma crise como essa revela os limites da situação actual.

Agora, há uma crise subjacente na Europa, que é o “desempoderamento” das maiorias, e sobretudo dos jovens.

 

Radica onde, esse “desempoderamento”?

Na falta de horizonte existencial. Vivemos na ameaça de um imenso desperdício de energia humana. Não têm o que fazer! Ou não têm empregos, ou têm empregos que não são empregos, que são empregos de fantasia. E só uma pequena minoria tem a oportunidade de produzir, construir ou criar. Isso é uma calamidade que condena centenas, milhões de pessoas a uma vida pequena. Aí é que vem o problema.

 

Por isso falávamos no início da entrevista da necessidade de um novo paradigma. Do que pode rasgar e construir uma nova narrativa para estes milhões de pessoas.

Teria de haver uma visão estrutural. Toda a herança de ideias na Europa desautoriza um esforço desse tipo. Segundo essa visão, só há dois tipos de política: uma política revolucionária que substitui um sistema por outro, e uma política reformista que maneja um sistema enquanto não vem outro. Como a política revolucionária é uma opção inexistente, e se fosse existente seria perigosa demais…

 

Não é mesmo existente?

Não está no horizonte, é uma ideia fictícia, só.

 

Desperdício, desigualdade, podem servir de semente de mudança? Como disse, a revolução não é uma ideia que se vislumbre no horizonte. O que é que vamos fazer a estes milhões de pessoas?

Eu não concordo com essa ideia binária da política. Para mim, a forma exemplar de uma política transformadora é estrutural, mas não é revolucionária no sentido antigo. As estruturas podem ser mudadas. Historicamente são mudadas por iniciativas fragmentadas, que, se repetidas num determinado rumo, ganham alcance transformador. É um projecto estratégico consequente de transformação, estrutural nas suas ambições, porém fragmentário e gradualista no seu método.

 

Não existe uma estratégia, uma visão, um ideário. Parece que a política é a grande ausente das últimas décadas. Concorda?

Exactamente. É útil comparar os propósitos dos liberais e socialistas do século XIX com o horizonte imaginativo dos social-liberais e dos social-democratas contemporâneos. Para liberais como o John Stuart Mill, para socialistas como Karl Marx, o objectivo principal nunca foi a igualdade. O objectivo é uma vida maior para a Humanidade comum. Elevar a Humanidade.

 

Maior no sentido de melhor?

Uma vida com mais dimensão, com mais alcance, mais poder, mais intensidade. Não apenas humanizar a sociedade: divinizar a Humanidade. Elevar a vida humana a um plano mais alto. Esse sempre foi o objectivo. E a luta contra as desigualdades sempre foi acessória a esse objectivo.

 

Como fazer, como operar a mudança e concretizar esse desígnio?

Cada um tem a sua fórmula dogmática. Os liberais têm uma, os socialistas outra. Agora, com um liberalismo tardio e a social-democracia convencional, o propósito mudou. O propósito não é mais uma vida maior para as pessoas comuns. O propósito é simplesmente tornar o mercado menos selvagem. Os objectivos são perseguidos dentro do cenário institucional existente. O debate ideológico constrói-se hoje da seguinte forma: é a liberdade superficial contra a igualdade superficial.

 

Superficial em que sentido?

Quando digo superficial, quero dizer: aceitando a estrutura existente. E a direita seria a facção que prioriza a liberdade, e a esquerda a facção que prioriza a igualdade.

A minha posição é muito mais próxima à posição dos filósofos do século XIX. O objectivo é uma vida maior para as pessoas comuns. E o instrumento é a transformação institucional.

 

Com igualdade radical ou com liberdade radical?

Liberdade radical. Com a luta contra a desigualdade como acessória a essa liberdade radical. Essa é a posição da esquerda, é a posição real dos progressistas, e é uma posição que não é ocupada na política contemporânea.

 

Nem pela esquerda, que a clama como sua?

Não. Vamos tomar o caso português. Há uma só ideia dominante na política portuguesa, que tem uma face crua e uma face suave. A face crua é a radicalização da austeridade e [a diminuição] dos salários como requisito do aumento de competitividade.

 

Foi a opção seguida pelo nosso centro-direita.

A face suave é tentar manter na retaguarda o essencial dos direitos sociais enquanto se procura dar estímulos ao grande capital, às grandes empresas. Na esperança de que esses estímulos atraiam os investidores estrangeiros e nacionais, lancem um novo ciclo de crescimento, que produz um excedente, que por sua vez financia o gasto social.

 

Essa é a posição da esquerda.

Mas não é possível relançar o crescimento dessa forma, inclusive porque numa economia como a portuguesa essas grandes empresas estão deixando de existir. E muitas das que existem foram compradas por estrangeiros.

Se enfrentassem a realidade, ficariam conscientes da [falência] desse sistema institucional para enfrentar os problemas reais do país. Precisamos de construir instituições económicas e políticas que tenham, além de todos os seus outros atributos, o de serem susceptíveis de correcção no meio do caminho.

 

A possibilidade de corrigir a rota?

É. Para que o caminho se possa desenhar no meio do caminho.

 

Ouvi-o falar de liberdade radical e igualdade radical. E fraternidade? Liberté, Egalité, Fraternité, divisa ainda central na história europeia.

Como eu dizia, o dinheiro não é suficiente. A coesão social passa por uma responsabilidade pelos outros. Por exemplo, se não há um serviço militar obrigatório, pode haver um serviço social obrigatório. Não podem os abastados mandar cheques pelo correio como se a transferência do dinheiro produzisse solidariedade social. A única maneira de produzir solidariedade social é sacrificar o nosso principal recurso, que é o tempo de nossas vidas. Só posso ganhar solidariedade pelo engajamento e pela responsabilização.

 

Gostava de o ouvir falar sobre a Europa. A leitura do que acontece em Portugal desde 2008 não pode ser desfasada da crise que a Europa vive e dos contornos do projecto europeu.

Os grandes projectos da história contemporânea têm dois pressupostos: o primeiro foi pôr fim ao século de guerras europeias e assegurar na Europa a paz perpétua. O segundo pressuposto foi construir um espaço geopolítico, para um modelo de organização social e económica diferente do modelo dos Estados Unidos, menos selvagem, menos inseguro.

 

O que resta disso?

O primeiro pressuposto deixou de ter força pela distância histórica. O segundo pressuposto vem sendo esvaziado do seu conteúdo à medida que a social-democracia europeia se flexibiliza ou se americaniza. Enquanto isso, a União Europeia embarcou numa arquitectura institucional orientada pelo seguinte princípio: as regras que governam as formas de organização social e económica são cada vez mais centralizadas na União, e o poder de definir os direitos sociais dos cidadãos é devolvido às autoridades locais. A União Europeia vira uma camisa-de-forças! Uma camisa-de-forças que impede o experimentalismo institucional necessário. E quem mais precisa de divergir são os periféricos, são os países europeus do Sul e do Leste.

 

Porquê?

Porque estão numa situação de atraso relativo e precisam ganhar valor. Quando Portugal aderiu aos tratados europeus, aceitou uma camisa-de-forças, fascinado, seduzido pelo prato de lentilhas dos subsídios europeus. E sem nenhuma visão estratégica. Por exemplo, não preparou a sua agricultura para a integração na Europa. Hoje, com 350 mil empreendimentos agrícolas em Portugal, talvez só cinco mil tenham realmente condições de sobreviver. Os outros são empreendimentos retrógrados, sem futuro dentro do paradigma actual.

 

A União Europeia é olhada como uma locomotiva potente, fundamental para o nosso desenvolvimento.

Sim, a adesão à União Europeia pareceu ser uma tábua de salvamento. Pode ser um complemento de um projecto nacional forte, mas como substituto de uma estratégia nacional é uma calamidade. Virou narcótico em que o país, de joelhos, fica esperando ser salvo pelos tios mais ricos, recebendo esmolas e ordens. É inconcebível que a elite governante portuguesa, de todos os partidos, tenha colaborado nesse resultado! Vamos dizer a verdade: [isto é] Vichy. Quem é que governa Portugal? É o Marechal Pétain.

 

Ficámos reféns do prato de lentilhas?

É. Não porque os subsídios sejam intrinsecamente ruins, é porque eles só são úteis quando usados por uma sociedade e um governo que tenham um projecto estratégico. O desastre sobrevém quando são usados para preencher o vácuo do projecto estratégico inexistente.

 

Estratégia parece coisa que Portugal nunca teve. Problema central. A somar à crónica falta de capital. Vivemos séculos à conta do que vinha das colónias. Nas últimas décadas, vivemos do que vinha da Europa. Que caminhos, agora?

Eu, como admirador, amigo estrangeiro de Portugal, vejo grandes linhas de um caminho. É claro que se as descrevo de uma vez, de um ponto de vista remoto, pode parecer uma utopia. Mas em qualquer proposta programática os dois atributos mais importantes são, primeiro que marquem um caminho. E segundo, que seleccionem, que indiquem os primeiros passos para dar naquela direcção. Vejo oito grandes vertentes de um projecto nacional forte.

 

A primeira.

A construção de um novo paradigma produtivo que tenha por destinatário principal as pequenas e médias empresas. Elas são o mais importante protagonista da economia portuguesa. Objectivamente respondem pela maior parte do produto e pela grande maioria dos empregos. E também porque sobrevive em Portugal um empreendedorismo pequeno-burguês tenaz.

 

É da nossa natureza?

Sim. Não pode transformar Portugal se não aceita Portugal. Portugal é um país essencialmente pequeno-burguês.

Seria necessário construir uma nova forma de coordenação estratégica entre os governos e essas empresas. Descentralizada, pluralista, participativa, experimental. Tenho por objectivo, não os subsídios às pequenas empresas, mas a disseminação das práticas avançadas e do acesso ao conhecimento, ao crédito, à tecnologia, aos mercados. E é necessário fomentar entre as pequenas e médias empresas regimes de concorrência cooperativa. Este é um projecto que não tem nada de tradicionalista ou romântico. É a invenção do pós-fordismo nas condições reais de Portugal.

 

Quando fala de pequenas empresas, está a pensar também no pequeno restaurante de esquina, naquilo que serve a população no seu dia-a-dia, numa base mais imediata? Foi um sector muito penalizado nestes anos de austeridade.

Não. Isso está mais próximo da economia de serviços. Estou pensando sobretudo na produção industrial e agrícola.

Tem que enfrentar esta realidade: a principal energia do país está em algo que não tem futuro. É o português que tem o seu pequeno empreendimento agrícola, quis abrir a sua mercearia, a sua quitanda, e está como se estivesse no século XIX. É aí que está a nação. Se der estímulos a três ou quatro grandes empresas, onde vão ficar os outros portugueses?, vão ficar nessa fantasia de há 200 anos atrás?

 

A solução passa por...

... dar escala e avanço ao que é a parte preponderante do sistema produtivo. A agricultura exige não só a assistência comercial e financeira mas sobretudo uma revolução tecnológica e científica. A agricultura brasileira foi revolucionada pela Embrapa. Hoje o centro-oeste brasileiro é uma das maiores fronteiras agrícolas do mundo. Há 40 anos não produzia nada. A ciência mudou tudo.

 

Segunda vertente do caminho para Portugal.

Transformar as relações entre o trabalho e o capital. Em Portugal, como na maior parte das sociedades contemporâneas, uma parte crescente da força de trabalho está em situação precária, de trabalho temporário. O regime jurídico tradicional dos sindicatos e da negociação colectiva não alcança essa realidade. Seria necessário construir um segundo regime para proteger, representar e organizar essa maioria. É a única maneira de fortalecer o trabalho na relação com o capital.

 

Normalmente a esquerda surge a defender esses interesses.

Os partidos de esquerda em geral preferem ficar como agentes políticos da minoria organizada em vez de defender a maioria precarizada.

Junto com isso viriam iniciativas para trazer a economia informal, cinzenta, para a formalidade. Porque há um contínuo entre trabalho precarizado e pequeno produtor informal.

 

Terceira vertente.

Organizar, sobretudo na juventude portuguesa, uma elite europeia e atlântica de serviços. Muitos dos jovens mais inquietos, mais ambiciosos, mais talentosos de Portugal abandonam o país. Isso é uma sangria destruidora para a nação. O Estado teria um grande projecto estratégico se se apresentasse como uma espécie de venture capitalist e financiasse milhares de jovens portugueses a andar o mundo em actividades, não só académicas mas também empresariais, sociais e filantrópicas. Andar o mundo, transformar-se andando o mundo, voltar transformado e sacudir o país.

 

Está a falar de uma mudança social que se traduziria numa dimensão económica.

É. É um projecto de transformação da consciência colectiva, que não exige muito dinheiro do Estado. Exige audácia e visão estratégica. É o melhor antídoto a essa sangria. E responde a algo muito profundo na consciência histórica do país, que é esta dialéctica entre o caseiro e o universal.

 

Quarta vertente.

Assegurar uma base de financiamento interno forte reorganizando a relação das finanças privadas e públicas com a economia real. Isto passa pela renegociação da dívida pública portuguesa.

 

É inevitável?

Se é inevitável ou não, eu não sei. O que é imprescindível é enfrentar o problema. Se a renegociação vai ser consentida ou não, não se pode saber a priori. Tem de haver um braço de ferro com tratamento diferenciado para cada uma das categorias de credores. Com a troika, jogar forte. Com a banca privada, transformar os bancos quebrados para começar a partir deles a construir o que o país não tem: um sistema bancário descentralizado ao serviço da produção.

 

E as finanças públicas? E Portugal face ao colete de forças da Europa?

Como é que o Estado vai fazer estratégia com o dinheiro daqueles contra quem se está rebelando, que são as autoridades europeias? Tem que ter lastro. E eu imagino três fontes desse lastro. O primeiro é o que vem por conta da renegociação da dívida. O segundo é o que vem pela mobilização de parte do capital que está no sistema previdenciário [pensões], para investir em empreendimentos emergentes. E o terceiro é o uso de parte da receita pública, gerada pelos tributos regressivos, sobretudo o IVA, para financiar o investimento estratégico de longo prazo.

 

Quinta vertente.

A reorganização radical do ensino público. Um ensino que abandonasse de vez o enciclopedismo ornamental, a memorização enciclopédica. O ensino geral deve ser analítico, focar o básico: análise verbal e análise numérica. Deve ser dialéctico, deve apresentar toda a matéria sob pontos de vista contrastantes. O objectivo é equipar a mente, é formar uma nação de inovadores e experimentalistas.

 

Sexta vertente.

Inovar na provisão dos serviços públicos. Os serviços públicos constroem gente.

 

Sétima

A sétima vertente é a construção do Estado. O Estado capaz de executar uma alternativa como esta não existe hoje em Portugal. E só vai ser construído no meio do caminho!

 

Como assim?

Há três agendas distintas associadas a três séculos diferentes, que teriam que ser executadas simultaneamente. Há uma agenda do século XIX, de formação de um serviço público, uma burocracia profissional e meritocrática. Há uma agenda do século XX, de eficiência administrativa que tem que ter um significado diferente quando a forma de produção é pós-fordista. E há uma agenda do século XXI, de experimentalismo na Administração Pública, como no exemplo que eu dei, do engajamento da sociedade civil independente na provisão dos serviços públicos.

 

Oitavo aspecto.

Repensar a relação com a Europa. Portugal tem de aliar-se a outros países da periferia europeia do sul e do leste europeu para forçar a uma mudança no sistema, que só vai ocorrer se houver um projecto nacional forte que pressione.

Portugal pode também desenvolver grandes iniciativas geopolíticas com a África e com o Brasil, no Atlântico, que complementem as suas iniciativas europeias.

 

Depois de ouvir as suas linhas de orientação, fico a pensar num tema já abordado: a da ausência de um ideário que cosa todos estes elementos, e, sobretudo, que convoque as pessoas, as mobilize.

É verdade, não há uma tradução dessa base em ideário programático e em caminho político. E há grandes inibições. A primeira é a falta das ideias. A intelectualidade portuguesa está vergada sob o jugo do colonialismo mental e a grande maioria representa escolas de pensamento dos países metropolitanos. Ou é a ciência social num estilo americano de um lado, ou é o neo-marxismo do outro lado. As duas são iguais na falta de imaginação estrutural.

A outra inibição é intangível, é no plano moral. Um projecto como esse contém uma pretensão de grandeza. Grandeza colectiva, grandeza para o indivíduo. E a ideia da grandeza é perturbadora.

 

Tem argumentado que Portugal precisa de reconciliar-se com a ideia da grandeza. Como traduzir isso?

Que Portugal, que está de joelhos, se levante, que se rebele. A grandeza nasce do casamento da rebeldia com a imaginação.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014

 

Miguel Sousa Tavares

11.01.15

Portugal é o protagonista do último livro de Miguel Sousa Tavares, “Madrugada Suja”. É um país de autarcas corruptos, políticos que viram a cara para o lado, de aldeias de uma só pessoa. Um país onde se viveu o sonho. E que vive o embate com a realidade. Na entrevista fala-se do livro – que é um modo de falar do país. E da vez em que o pai de Sousa Tavares, o advogado e político Francisco Sousa Tavares, fugiu dos cuidados intensivos. Ou do tempo em que, com a mãe, Sophia de Mello Breyner, o jovem Miguel decifrava as cartas em código que o pai mandava da prisão. Miguel Sousa Tavares é cronista do Expresso e comentador da SIC. É um dos mais influentes opinion makers portugueses, é um dos raros autores em Portugal que vive da escrita. “Equador”, o seu romance de estreia”, tem 10 anos e vendeu 400 mil exemplares.

 

 

Quando comecei a ler o romance lembrei-me do poema que a sua mãe escreveu sobre o 25 de Abril. “Esta é a madrugada que eu esperava/ O dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da noite e do silêncio/ E livres habitamos a substância do tempo”. O poema ocorreu-lhe? Não é só a palavra madrugada; uma parte do livro passa-se no pós-Revolução.

Não me ocorreu, de todo, esse poema. Ocorreu-me um poema que se chama “Esta gente”. “Esta gente cujo rosto/ Às vezes luminoso/ E outras vezes tosco/ Ora me lembra escravos/ Ora me lembra reis (...) É a gente em quem/ Um país ocupado/ Escreve o seu nome”. É um poema anterior ao 25 de Abril mas que continua muito actual: define os portugueses, que ora são escravos ora são reis. São capazes do melhor e do pior. Este livro é (também) um retrato de nós.

 

Porque é que somos assim?

O meu pai tinha uma tese. Que os países não progridem sem elite e que a elite portuguesa morreu toda em Alcácer-Quibir.

 

Já lá vão uns anos. E o seu pai pertencia à elite (não a mesma elite de que falava e na qual descremos).

Ele dizia que foi o marco trágico da história de Portugal, Alcácer-Quibir. Eu respondia-lhe exactamente isso: “Já passaram uns anos, umas quantas gerações. Já era tempo de terem feito outra elite”. Se olhar para a História, há uma coisa que sei: os três males endémicos de Portugal são a dependência do Estado, o poder das corporações e a inveja.

 

Achei que ia falar de corrupção, à cabeça.

A corrupção decorre de tudo isto. Mas não acho que Portugal seja um país estruturalmente corrupto. Não ocorre a ninguém tentar corromper um polícia na rua. Conheço muitos países onde isso é natural. Também não ocorre a ninguém tentar corromper um primeiro-ministro. Nós não temos um Berlusconi, caramba. A Itália, que é dos países politicamente mais civilizados (no sentido em que sempre teve um grande debate de ideias), teve um Berlusconi durante anos no poder.

A dependência do Estado travou-nos sempre. Vivemos sempre à espera que o Estado nos resolvesse o problema. Depois, este é um país onde as corporações dominam tudo. Salazar percebeu isso e conseguiu pô-las ao serviço do Estado. Com a democracia, aconteceu o contrário: está o Estado ao serviço das corporações. Hoje em dia não é possível fazer nada sem esbarrar nos interesses de uma corporação. Curiosamente, encontram imenso acolhimento na imprensa e na opinião pública.

 

Porquê esse acolhimento?

Acho que a imprensa tem muita responsabilidade no que se passa em Portugal. De há uns 20 anos para cá, a imprensa adoptou uma atitude: quem quer que reclamasse tinha direito a uma tribuna preferencial. E tinha necessariamente razão. Fossem médicos, professores, militares... A notícia não era procurar saber se as reclamações tinham razão de ser. Reclamavam, manifestavam, ameaçavam – eram notícia.

 

O triunfo do chinfrim?

[riso] Sim, pode chamar-lhe assim. Quem não grita, não tem direitos. [Na segunda-feira], na reunião do Conselho de Estado, havia uma manifestação do Que se Lixe a Troika. Parece que começou por ter 200 pessoas. Estava lá toda a imprensa. No último noticiário a que assisti, deviam ser umas 11 da noite, estava um repórter sozinho com um manifestante. Mas continuavam a fazer um directo.

 

Isso revela um sentido acrítico? Que é uma coisa de que os portugueses são frequentemente acusados. Como se estivessem apenas a assistir. Não acontece só com os jornalistas. Perpassa a sociedade portuguesa. Concorda?

Concordo.

 

É ainda uma herança do salazarismo, da iliteracia?

Ter um sentido crítico é uma coisa que dá trabalho. Requer investigação, estudo, estar atento. Mais fácil do que isso é o bota-abaixo. Anda na rua, nos cafés, fala com as pessoas; dizem: “Eles...”. O “eles” é uma noção terrível. O “eles” são os políticos, uma máfia, uma gente horrorosa que anda a explorar um “nós”. “Nós” somos sempre inocentes, nunca temos responsabilidade nenhuma.

 

No seu livro, há “eles” e “nós”... E os que representam o “nós” também têm culpas no cartório. A divisão entre uns e outros não é a preto e branco, maniqueísta.  

“Eles” vêm de “nós”. Havia um cartaz do Salazar que dizia: “O Exército é o espelho da nação”. Também podíamos dizer: “Os políticos são o espelho da nação”. Nem piores, nem melhores.

 

Essa imagem reflectida horroriza-nos. Não queremos ser esses. Sobretudo nestes tempos em que a imagem dos políticos anda pelas ruas da amargura.

Já tivemos grandes políticos. Basta olhar para a composição do Parlamento há 30 anos. Se havia uma elite política, estava ali. Este constante bota-abaixo em relação à classe política, a eterna desconfiança (“são todos uns ladrões, uns bandidos, bem pagos de mais” – é mentira) faz com que as pessoas de valor se tenham afastado. Por isso estamos hoje reduzidos aos Passos Coelhos e aos Antónios Josés Seguros. Que são o grau zero da política. São aqueles que, não tendo nenhuma outra vida fora da política, fazem política. Foi isso que conseguiu a imprensa e a opinião pública.

 

Explique melhor isso.

É onde desembocou naturalmente o bota-abaixismo, promovido pela imprensa e sustentado pela opinião pública. Há tempos escrevi um texto no Expresso que dizia que usar Sócrates como bode expiatório de todos os males que aconteceram ao país é bestial. Alivia a responsabilidade de toda a gente. O tipo que se endividou a passar férias na República Dominicana, agora que não pode pagar, acha que a culpa foi do Sócrates. Bom..., o que foi nas redes sociais a dizer: “Este gajo está vendido ao Sócrates...”.

 

Foi, com a Clara Ferreira Alves, um dos poucos opinion makers que defenderam Sócrates...  

Ataquei-o muito.  

 

Defendeu-o no ataque que lhe foi movido no processo Freeport. Isto numa altura em que era desporto nacional alvejar Sócrates.

O processo Freeport é das coisas mais vergonhosas da nossa justiça. Desde o princípio que se sabia que aquilo era uma montagem. Se fosse nos Estados Unidos, onde se fazem contas a essas coisas – quanto é que custou aos contribuintes o processo Freeport? –, e onde os procuradores têm de ser eleitos, aqueles (do Freeport) nunca mais eram procuradores. O dinheiro que nos fizeram gastar... Movidos, em minha opinião, unicamente, por uma ideia de perseguição política. Um processo que não tinha ponta por onde pegar...

Se me perguntar sobre o pequeno-almoço com Luís Figo, sou violentamente crítico de Sócrates. Perguntei-lhe isso numa entrevista (“Quer convencer-me que Luís Figo vai almoçar consigo na véspera da campanha eleitoral e à tarde assina um contrato de 370 mil euros?...). Foi o pequeno-almoço mais caro da história.

Sócrates tinha razão quando disse: “Não quero um resgate porque sei o que aí vem”. Toda a gente gritava: “Peçam resgate!”.

 

Mais uma vez, a pedir um salvador externo?

Exactamente. O resgate acabou por ser determinado por uma estranha coligação entre a extrema-esquerda e o centro-direita.

 

Serviu a quem, o pedido de resgate? No imediato, ao PSD e ao PP, que chegaram ao poder.

Serviu também ao PC. Infelizmente o PC ainda não se livrou do “quanto pior, melhor”. O PC vive da rua, da contestação, do movimento sindical. A grande incógnita é o Bloco de Esquerda. Perguntei a Louçã: “Explique-me como é que diz aos seus eleitores que se junta ao PSD e ao CDS para derrubar um governo do PS, sabendo que vinha aí a Troika”.

 

Era, ou não, inevitável que viesse a Troika?

Nunca saberemos. Agora até tivemos a surpresa de ver Lobo Xavier dizer que era melhor que não tivessem chumbado o PEC 4... A Espanha evitou-a.

 

Aquilo que parecia ser o começo do pedido de ajuda, dirigido apenas aos bancos, foi afinal evitável. Passou um ano desde isso.

Antes de pedirmos 78 mil milhões de euros, tínhamos mais liberdade para negociar com a Europa, para exigir condições. A partir do momento em que recebemos o dinheiro, ficámos nas mãos deles, completamente. Quem manda são os credores. Quem manda é quem paga, como dizia Manuela Ferreira Leite, e com razão.

 

E agora, nada a fazer? Esta semana saiu uma sondagem dizendo que uma grande parte dos portugueses acha que se devia, senão renunciar o memorando, renegociá-lo.

É evidente devíamos renegociá-lo. Mas uma negociação pressupõe o acordo das duas partes. Que queiramos negociar, é normal. Menos juros, mais prazo, etc. É preciso que haja interlocutor. Tomara que tivéssemos tido as condições que a Alemanha teve quando negociou a dívida da Segunda Guerra, em 1953. Se tivéssemos as mesmas condições, e é isso que digo aos meus amigos alemães, também levantávamos a cabeça. Se tivéssemos, como a Alemanha, taxas de juro para os seus empréstimos (a Alemanha pede dinheiro emprestado, as pessoas acham que não, mas pede) de -0,4%, a dez anos, também nos safávamos.

 

Neste momento, aqui em Portugal e não só, olha-se para Angela Merkel como a raiz de todos os males. É ela o bode expiatório.

Não só aqui. Há tempos, numa entrevista, Helmut Schmidt, (um senhor de 90 anos que se permite fumar em directo na televisão...) dizia assim: “Eu, no lugar da senhora Merkel, estava assustado. Porque está a crescer um sentimento anti-alemão na Europa, que, já sabemos, pela História, não dá bom resultado”. Mas acho abusivo e idiota vestir a Merkel de uniforme nazi, como fizeram na Grécia ou em Portugal, quando ela cá veio.

Vai a Berlim e consegue perceber o dinheiro que gastaram a reconstruir aquela cidade, as pessoas que trabalham brutalmente (a produtividade é 70% acima da nossa) e que se perguntam porque é que vão gastar o dinheiro dos seus impostos a ajudar aqueles preguiçosos... É um argumento contra nós, não há volta a dar.

 

Porque é que decidiu em “Madrugada Suja” pôr o país...

... como personagem principal? Nunca sei porque é que os livros decidem ir por aqui ou por ali. No “Equador” tinha uma história muito clara, há muitos anos. Mesmo assim, a certa altura, o livro seguiu caminhos que eram só seus. No meu segundo romance, “Rio das Flores”, aconteceu-me achar que determinado personagem era determinante e deixar de o ser. Neste livro parti de uma ideia: o despovoamento de uma aldeia. Uma aldeia onde vive só um homem. Essa aldeia existe e ainda lá está o homem. Fugiu tudo para o litoral.

 

E porque é que fugiu tudo para o litoral? Aí entra a história recente do país, a desertificação do interior.

A história do país começou a ser o background do livro, o tal personagem inerte, onde todos vão habitar. E todos tentam explicar que país é que fizemos e como é que se chegou ao ponto a que chegámos.

 

Isso é feito através do olhar de três gerações, o Filipe (criado no pós-revolução), o pai (Francisco, que vai fazer a revolução), o avô (que fica sempre na aldeia). A sua geração é a do Francisco.

Sou mais novo que o Francisco, ligeiramente...

 

Tinha 22 anos aquando da revolução. É a geração dos que acreditaram que era possível fazer um país novo. Quis fazer um país novo?, acreditou que era possível?

Todos acreditámos. Costumo dizer que nunca fui revolucionário. Nunca fui maoísta, nem comunista, nem nada em ista. Sou uma chatérrimo social-democrata desde os 15 anos. Vi o 25 de Abril, essencialmente, como a liberdade. A liberdade é tudo. O resto pode vir por acréscimo.

Aparentemente pode parecer mais fácil progredir economicamente em ditadura. Não há sindicatos, não há greves, não há contestação. A longo prazo, não resulta. Infelizmente, muitos portugueses, inclusive militares do 25 de Abril, confundem liberdade com bem estar. São noções diversas. A liberdade dá-nos a possibilidade de nos governarmos bem ou mal. Mas não garante, necessariamente, que vamos ser bem governados e que isto vai ser um mar de rosas.

 

O livro pode ser uma resposta à pergunta: “O que é que fizemos com a liberdade?”.

O que fizemos com a liberdade e com o resto. Os milhões dos dinheiros europeus. Com o perder o fardo das colónias (há muita gente que acha que foi ao contrário, que perdemos o tesouro). Com o entrar no mundo (já estivemos duas vezes no Conselho de Segurança da ONU, já presidimos duas vezes à Comissão Europeia). Tivemos muitas oportunidades. Isso é que é imperdoável: o que fizemos com elas. Quando me insurjo [contra o facto de] Sócrates ser o bode expiatório é por causa disto: as coisas não aconteceram de um dia para o outro. Não ficámos a dever 170 mil milhões de euros de um dia para o outro. Alguma coisa correu aqui muito mal.

No Alentejo, um vizinho meu fez uma plantação enorme de pessegueiros, para a qual tinha tido um subsídio. Passado um ano, recebeu dinheiro para os arrancar! Pensei: “Este tipo está-se nas tintas para a terra, para ver um pessegueiro crescer. Ele quer é o dinheiro”.       

  

Conta essa cena no livro. Quis meter aqui o que sabia, as atrocidades que se fizeram no país?

Quis. O livro denuncia o que fui pensando e escrevendo ao longo dos anos. Embora tente ficar numa posição de neutralidade...

 

Neutralidade, porquê? No livro é romancista, não é jornalista.

Pois. Quis que os personagens fossem desligados da política, tirando aqueles que são políticos (o candidato a primeiro-ministro, o presidente da câmara). Enquanto narrador não escapei muito à minha visão sobre o que é o país.

 

Se existe em todos os livros um alter-ego do escritor, ou algo que se aproxima disso, em “Madrugada Suja” é o Francisco. Estava a vê-lo no desejo de construir um mundo novo, devoto do F.C. Porto, com experiência de caçador furtivo...

Não sou furtivo [riso].

 

Leitor de “Moby Dick”, de Melville. Curiosamente, Francisco morre cedo.

Acredite ou não, nunca pensei nisso. Mas o que acabou de dizer bate certo. Muito de nós escapa para os personagens. Não quer dizer que esteja tudo concentrado num. Há muitas coisas minhas no [personagem do] avô, na maneira de ser do avô – no que eu gostaria de ser. O tal homem que vive sozinho na aldeia.

 

Queria ser esse porquê?

Tenho um certo fascínio pelos homens que são uma espécie de Robinson Crusoe. Que consegue bastar-se a si próprio, no isolamento total, que cria galinhas, fala com o burro, vai à pesca. E que tanto está bem com os outros como sozinho (o que não é nada fácil). O neto também tem muitas coisas que ver comigo. A procuradora tem coisas em que me revejo: um certo idealismo da justiça, que eu tinha quando comecei a advogar, e que depois perdi.

 

Perdeu porquê?

Havia muito pouco de idealismo ali. Houve uma coisa que me derrotou: fui para advogado, em grande parte, por causa dos livros do Perry Mason, do fascínio pelo tribunal. E encontrei juízes que odiavam julgamentos e que faziam tudo para adiar julgamentos. “Que é que estou aqui a fazer? Quase não ganho dinheiro para manter o escritório, não consigo fazer julgamentos...; não vou estar a tratar de habilitações de jazigos de família e contratos de divórcio...”. E pronto.

 

Tinha o ímpeto do justiceiro?

Eu tinha. Embora os advogados estejam mal situados para falar de “fazer justiça”. Eles estão é ao serviço dos clientes. Que têm razão ou não. Entra-se na pele do outro... Adorava defender criminosos, adorava processo-crime. Cheguei a acreditar que tinha clientes inocentes, que eu sabia que eram culpados! De tal maneira me envolvia na defesa deles que acabava a confundir a razão do meu cliente com a verdade dos factos.

 

Fale-me do prazer de defender um criminoso.

Pelo jogo, pelo jogo do tribunal. Sempre tive, sobretudo depois de sair [da advocacia], uma ideia do que a justiça devia ser. Devia ser muito mais simples, eficaz, menos pretensiosa. Ontem recebi uma sentença de um processo em que fui acusado, pelo João Rendeiro, e que, felizmente, ganhei. Uma sentença muitíssimo bem feita, que tem umas 20 páginas. Porque é que a juíza há-de gastar 20 páginas a citar os acórdãos todos?

 

Abramos um parêntesis para lhe perguntar pelos seus inimigos. Alguns são exibidos como se fossem medalhas. Não por acaso, na badana do livro pode ler-se: “A sua reconhecida independência arrasta fiéis e acumula inimigos”.

Não sou o responsável por isso.

 

Não se opôs, não disse que não queria. Posso deduzir que não o incomoda que algumas pessoas sejam seus inimigos? Qual é o preço de dizer o que pensa e desta “reconhecida independência”?

O preço é criar inimigos. Houve uma época em que teve um preço financeiro, concreto. Quando eu era jovem jornalista na RTP, só se progredia, como acontece no Estado, se passasse a chefe; ou então ganhava como índio. Não havia aquela coisa: “Este gajo é um excelente repórter e vai ganhar mais”. Fiquei sempre como índio. Porque não tinha um partido atrás de mim. Revoltou-me imenso, vi uma colecção de notáveis medíocres que subiam à vez. Ora subiam os do PS, ora subiam os do PSD. E quando subiam, já não eram despromovidos. Fui-me embora ao fim de dez anos porque não tinha dinheiro para pagar a pensão de alimentos aos meus filhos.

 

Foi fazer o quê?

Dirigir a Sábado. Seis meses. Depois, porque era independente, porque não aceitei os fretes publicitários que queriam fazer, fui corrido. Foi a única vez em que fiquei desempregado. Três dias ou quatro. Foi uma experiência traumática. Sou muito sensível aos miúdos, e não só aos miúdos, desempregados. Eu tinha vergonha de sair à rua. Vergonha de sair ao meio dia, às três da tarde. E que as pessoas dissessem: “Este gajo não tem nada que fazer?”. Tive um avô que dizia: “Quem não trabalha, não presta”. Outro avô dizia: “Quem não come, não presta”.

 

No norte dizia-se “Trabalhar é honra”. É equivalente.

É. A independência, hoje em dia, pago em situações de mal estar. É entrar num sítio e pensar: “Quantos é que estão aqui e que não me falam?, ou a quem eu não falo?”. Há sempre alguém. Em ocasiões sociais é constrangedor. Paciência. Não é agradável. Mas não incomoda o suficiente para fazer de outra maneira. Num livro em que reuni crónicas políticas escrevi na introdução: “O dever de um cronista é ter opinião”. Conheço tanta gente que tem opinião e que nunca, nunca molha as mãos... Eu, este ano, fui bombardeado: Rendeiro, Mota-Engil, Gonçalo Amaral, Armando Vara. Todos me puseram processos, e todos perderam. O que quer dizer que eu sei os limites entre a ofensa e a crítica. Mas incomoda. Você tem que ir a tribunal, chatear testemunhas, gastar dinheiro. Mas se não faz isso, não tem o direito de ter uma coluna de opinião.

 

Com quem é que aprendeu a ser assim?

[sorriso] Está na cara, não está?

 

Com o seu pai?

Com o meu pai. Aprendi a conter-me com a minha mãe. O meu pai, por ele, acordava a espadeirar e deitava-se a metralhar. Havia sempre algum pretexto...

 

Não havia nada de que ele tivesse medo?

[pequeno silêncio] Nada. Nada mesmo. Nunca conheci ninguém com a coragem dele. Nem sequer tinha medo da doença. Chegou a estar internado duas vezes nos cuidados intensivos, e fugiu dos cuidados intensivos! Uma vez fugiu de noite, com aquelas batas ridículas, com o soro dependurado. Telefonaram-me do Santa Maria a dizer: “O seu pai fugiu”. [riso] Pensando nisso: não sei se seria a mais corajosa das pessoas. Acho que a coragem consiste em ter medo e ultrapassá-lo. Quando não tem medo...

 

Imagino que o seu pai se perguntasse: “Em última instância, medo de quê?”. Medo de perder o quê? Medo de ficar sem tecto?

Não faltam razões para ter medo de tudo.  

 

Justamente. Estou a tentar perceber porque é que ele não tinha medo.

Acho que muitas vezes não tinha medo porque não tinha noção do perigo. Ao volante, era um terror. Também não tinha medo dos desastres e teve imensos desastres, a vida toda. Outras vezes achava que o perigo não era razão para o conter. Vi-o fazer coisas extraordinárias... A interromper o sermão de um padre, aos gritos, numa igreja, no tempo da outra senhora. O padre estava a fazer a apologia de Salazar. Mandou um berro: “Se quer fazer política, vá para a Assembleia Nacional”.

 

Alguma vez sentiu uma espécie de embaraço por causa de cenas dessas? Ou teve desde sempre uma admiração desmedida?

Quando se é miúdo, numa cena dessas, fica-se embaraçado. Sobretudo num país em que a regra era estar tudo calado. Percebi que as coisas iam ser diferentes a primeira vez que foi preso pela PIDE. Eu era um miúdo. Andava nos Jesuítas e um padre disse-me assim: “Já sei que há problemas lá em casa”.

Depois, virou herói. A minha mãe teve uma atitude muito pedagógica. Chamava-me para ajudar a decifrar as cartas do meu pai que vinham em código. Revelou-me o código deles, que jurei nunca revelar até à morte. Era um ovo de colombo que o meu pai inventou. Um enigma que demorava tempo a decifrar. Para mim, era uma sensação de aventura, de clandestinidade, coisa oculta. Passei a achar que era uma honra ter o pai na prisão.

 

Já revelou esse código?

Nunca. Jurei à minha mãe que nunca o diria. “Miguel, nunca revele isto. Se a situação virar – e pode voltar a virar – pode precisar disto.”

 

A sua mãe tinha a noção de que “isto pode virar” outra vez? É uma coisa de que se tem falado, sobretudo no último ano e meio, neste período de crise aguda. De estarmos na iminência de qualquer coisa, que não sabemos o que é, mas que pode ser mau.

Fala-se nisso?

 

Fala. Pacheco Pereira, há uma semana, neste jornal, dizia que estamos a caminho de coisas ainda mais tortas. Não se sabe é o quê.

Já não temos idade para brincar ao generais. O pior que nos pode acontecer é um Beppe Grillo, um Sidónio Pais. Mas não por via militar.

 

Pacheco Pereira dizia exactamente isso: “Pode-nos calhar um ditador populista, um palhaço...”.

Nós já temos um palhaço. Chama-se Cavaco Silva. Muito pior do que isso, é difícil.

 

Escreve no livro: “O Presidente nunca se misturara, nunca arriscara, nunca vira nada, nunca soubera de nada. E, quando os seus próximos caíam na lama, virara a cara para o lado, fazia um ar pesaroso, de amigo enganado”. Está a falar de Cavaco?

Não. Qualquer semelhança entre os personagens do livro e os reais é pura coincidência – devia ter feito esse aviso.

 

Está a falar das pessoas que viram a cara para o lado...

Não digo.

 

Também há no livro umas pessoas que se parecem com Miguel Relvas, com aqueles que tiram cursos em dois meses.

Relvas não é o único. Há outros.

 

Voltando ao livro: uma das partes mais denunciadoras é aquela em que fala da pequena corrupção e da grande corrupção. A pequena é aquela que toca o construtor civil e o poder autárquico, estas relações. A grande corrupção – o “grande dinheiro”, expressão que usa – é aquela que financia os partidos e que serve para fazer carreiras políticas. Apetecia que isto não se parecesse tanto com a realidade...

Pode fechar os olhos e imaginar que é pura ficção. [riso] Vai a uma vila do litoral; quando falam da corrupção é sempre apontada ao poder central [Lisboa], ao topo da pirâmide. E vivem com a corrupção autárquica. Percebem porque é que numa zona de hortas, de repente, apareceu uma urbanização. Sabem como se passa. Mas não reagem. Nem têm noção que aquilo seja corrupção.

 

Como assim?

É a tal proximidade do poder local, que é apontada como uma vantagem e que nestes casos funciona como uma desvantagem. Quando o corrupto é o meu vizinho, mais dificilmente o vou denunciar do que se for o ministro.

 

Vai ter de se cruzar com ele na escada, cumprimentá-lo no café...

E “é um dos nossos”. E depois diz que vai fazer um pavilhão para a terceira idade, uma piscina municipal. Há um capítulo sobre isso: um presidente da câmara que explica ao arquitecto [que deve assinar o parecer] que não quer ser corrompido quais são as vantagens de consentir certas coisas.

 

“Tenho 10% de desempregados no concelho e este projecto vai dar trabalho a muitos deles. (...) Quanto mais construções se autoriza, mais receitas vêm de impostos”, diz esse presidente da câmara.

É um argumento demolidor. Em matéria de construção, a Suíça tem uma lei extraordinária. Quer fazer uma casa. Vai à câmara, que explica quais são as regras – “agora faça”. Quando está pronta, a câmara vai ver. Se não cumpriu as regras, manda a casa abaixo. As coisas funcionam limpamente, rapidamente. Não há cá burocraciazinhas.

 

Os portugueses não são os suíços.

Não é difícil imitá-los. É preciso é querer.

 

Mas quem é que quer ser suíço ou alemão?

Em muitas coisas, não me importava de ser suíço ou alemão.

Em Portugal temos uma democracia abstracta a funcionar. A nível local, a corrupção passa, os caciques perpetuam-se no poder... Sabe a anedota do texano que vai visitar um amigo na Escócia e que fica fascinado com a relva?

 

Conte.

“Qual é o segredo da tua relva?” “Semeio, fertilizo o terreno e rego muito.” “Também faço isso e a minha relva não é igual à tua.” “Calma. Depois espera 500 anos.” O problema é que ainda só temos 40 anos de democracia.

 

E rapidamente a esperança que estava tão viva se esboroou. E parecemos atarantados com o estado a que isto chegou. Como é que foi tão rápido?

Já escrevo sobre política há mais de 20 anos. A mim não me surpreende. Vi as coisas virem. Naquilo que é essencial, e que é a liberdade, não me queixo de nada. Somos um país livre. (As pessoas às vezes dizem que há imensa censura. A censura está onde não se vê: na pressão dos anunciantes.) Não conheço ninguém que tenha sido impedido de dizer o que queria dizer, por mais iconoclasta que fosse.

Em termos do “D” de democracia do 25 de Abril, não tenho reclamações a fazer. O resto, deitamo-nos na cama que andámos a fazer. As coisas tinham que rebentar um dia. Só lamento que não tenha sido mais cedo.

 

Mais cedo?

O essencial não é nem o défice nem a despesa. O essencial é confrontar os portugueses com isto: em sua casa não pode viver com dinheiro que não tem. Se vive eternamente a dever à mercearia, ao senhorio, a escola, há um dia em que isso rebenta. Porque é que com os países há-de ser diferente? Essa coisa entranhada (que teríamos sempre as especiarias da Índia, o ouro do Brasil, os dinheiros da Europa) criou nas pessoas a sensação de que o dinheiro nunca seria um problema. Os portugueses não têm ideia que o dinheiro do Estado vem de algum lado. Vem do tipo que paga impostos.

Se isto fosse explicado, se os partidos não estivessem obcecados em ganhar eleições, se fosse possível ganhar eleições dizendo a verdade, teríamos evitado muita chatice. Em vez de uma evolução para a realidade, tivemos uma ruptura: chocámos com a realidade.

 

Quais são as batalhas, das que empreendeu, em que se enganou?

Boa pergunta. Apela ao meu sentimento de humildade. Onde é que me enganei? [riso seguido de longo silêncio] Vou pensar e digo-lhe. Fica-me pessimamente [não me lembrar]. Com certeza que me enganei.

 

No livro, o aspirante a primeiro-ministro diz: “Não existe essa coisa de um mundo perfeito e gente perfeita. Não há nada mais perigoso do que acreditar nisso”. Porque é que são perigosas essas pessoas?

Estou de acordo com ele. A natureza humana é, por definição, imperfeita. As pessoas que acham que nada lhes serve, nada menos que a perfeição, são perigosas. São movidas por um fanatismo quase religioso. São tão perigosas como aquelas que acham que devemos aceitar todas as imperfeições e que está tudo bem. Isso dá homens providenciais. Os Salazares nascem disso.

 

Outra passagem: “Partilhávamos o silêncio, e o silêncio a dois não é o mesmo que o silêncio sozinho”. Partilhar o silêncio só é possível num contexto de profunda intimidade. Com quem sente o prazer de partilhar o silêncio?

Com meia dúzia de pessoas de quem gosto muito, e que sei que gostam de mim.

 

Faz agora dez anos que lançou o “Equador”. O que é que mudou?

Na minha cabeça não mudou nada. Na minha vida, em concreto, mudou algumas coisas. O “Equador” foi uma aposta pessoal (era um sonho muito antigo), profissional e financeira (larguei o trabalho onde estava e vim para casa escrever o livro). Demorei três anos e tal a escrevê-lo. Sem saber se no fim estava arruinado, se tinha sucesso, se tinha de voltar a procurar emprego. O “Equador” demonstrou-me que podia viver de escrever e que tinha valido a pena. Não tenho ninguém a mandar em mim e não mando em ninguém. É o cúmulo da liberdade. Quem faz os meus horários sou eu. Se me apetecer (felizmente nunca me apeteceu) ficar na cama o dia todo, posso ficar. Se me apetecer ficar a escrever até às seis da manhã (como já fiquei), posso fazê-lo. Era o meu sonho de vida, depois de 20 e tal anos de assalariado. Não tem preço. Uma vez disse esta frase que parece pretensiosa: “Não trocava a minha vida pela de ninguém”. Sou uma pessoa imensamente feliz e cheio de sorte. E isso devo muito ao “Equador”, às pessoas que compraram o livro, que o leram.

 

Quando se sentou a escrever, tinha confiança em si?

Sempre sonhei, desde miúdo, ser romancista e jornalista. Lembro-me muito bem do primeiro dia, da primeira página. “Será que alguma vez chego ao fim disto?”. Durante um ano e meio escrevi; depois parei seis meses. Fiquei bloqueado. Achei que, afinal, era muito mais difícil do que eu pensava. Um dia, alguém me deu um conselho feliz: “Não penses no fim. Senta-te em frente à última frase que escreveste e retoma, só a pensar na frase seguinte”. E assim foi. Quando cheguei ao fim, a sensação, em termos pessoais, foi incrível. Consegui subir à montanha.

Não sei se era confiança se era teimosia... Saiu do pêlo. O outro a seguir saiu ainda mais do pêlo.

 

Aí tinha a pressão de escrever um segundo livro depois de um primeiro que tinha vendido 400 mil exemplares.

Meti-me numa empreitada demasiado grande, sobretudo em termos de investigação. Deixei de ter casa. Eram pilhas e pilhas de papel. Foi um tempo de vida suspenso. Olhei para mim e decidi que não queria voltar a passar por aquilo, pelo romance histórico. Só que a vida vai e vem, e em Outubro espero recomeçar a escrever um romance histórico. [riso]

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2013