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Anabela Mota Ribeiro

Ler Simone de Beauvoir

27.02.15

No próximo Ler no Chiado vamos discutir Simone de Beauvoir, a pretexto da reedição da obra pela Quetzal.

Com pessoas de diferentes proveniências e gerações: os artistas Ana Vidigal e Miguel Bonneville e a jornalista Maria Antónia Palla. Estará também presente Rita Ferro Rodrigues a explicar o que é o projecto Maria Capaz.

Dia 5 de Março às 18.30 na Bertrand do Chiado.

Eu modero. Juntem-se a nós!

Bruno Nogueira (2012)

26.02.15

Qual é o lado mais cómico disto?, perguntava o escritor Dinis Machado num dos seus títulos mais famosos. Bruno Nogueira considera que mesmo num cenário trágico é possível rodar o caleidoscópio e ver a realidade a partir de outro prisma. O da comédia.

O seu humor é rude. Está prestes a estrear um novo programa na RTP (de que levanta a ponta do véu).

Nesta entrevista disseca os grandes tipos da sociedade portuguesa, o sentido de humor de Cavaco, a vaidade de Passos, o chico-espertismo de Relvas, diferentes formas de burrice, fala da diferença entre ser pobre e pobrezinho.

A brincar, a brincar, o Portugalito está aqui todo.

  

É fácil fazer humor em tempos como o que vivemos? A situação não é de pagodaça, mas, para um humorista, parece que não é preciso fazer nada. Basta olhar à volta.

Está a falar da situação do país? O que faço enquanto humorista nunca se sobrepõe à realidade. A situação já funciona, não é preciso fazer nada.

 

Comecemos por falar de um cromo que parece saído da galeria d’”Os Contemporâneos”, programa que teve na RTP. Vítor Gaspar. Começaria por outro?

Não. Gaspar dá-me mais pena que outra coisa. Sente-se que está com uma bigorna presa às pernas. Foi muito caricaturado. Só o ar... É um professor que me está a falar, e sinto sempre que estou a incumprir.

 

Gaspar não é especialmente odiado, como outros políticos são. Apesar de ser a face da austeridade. Isso deve-se ao ar alienígena que tem?

Não consigo ver na figura de Vítor Gaspar alguém que quer necessariamente mal às pessoas. Acho que é por isso que os ataques mais cerrados não lhe são dirigidos. Pessoalmente não ganharia muito com o país a afundar-se... Acredita de facto no que está a fazer. Isto vai ter com outra coisa, que Passos Coelho tem: a vaidade.

 

Vaidade?

A vaidade de não perceber que, se calhar, está errado. “O barco já está neste estado, e agora não posso dizer que a rota é errada. Seria o fim.”

 

A humildade que atribuíam a Passos quando chegou ao poder, e que contrastava com o arrogância e autoritarismo que imputavam a Sócrates, dissipou-se? Ou nunca chegou a existir?

Essa humildade existiu. Mas a situação mudou. E não tem como voltar atrás.

 

Não?

Acho que tem. Mas por uma questão de orgulho e vaidade, e de levar a palavra até ao fim, não o fará. Quando um país inteiro diz que não é o caminho, e você, mesmo assim, acha que é o caminho, ou enlouqueceu, ou [aquele] é um ponto de honra e de vaidade. Acho que é o segundo.  

 

Gaspar, Passos, Sócrates, Cavaco, os políticos no activo são alguns dos personagens incontornáveis do trabalho humorístico. (“Incontornável” é a palavra que os humoristas usam para gozar com os intelectuais.

Incontornável é bem.)

 

Voltaremos aos políticos. Para já, quando tenta espelhar a sociedade portuguesa quais são os grandes tipos que encontra?

É raro (aconteceu n’”Os Contemporâneos”, mas eu não estava envolvido na criação) sublinhar os tipões, caricaturar os tipões. É um tipo de humor de que gosto, mas não é aquele que faço melhor. Gosto de falar sobre. Representá-los, não.

 

Diz tipões?

Sim. Se calhar nem existe tipões. Há vários. Os intelectuais que dizem palavras como incontornável.

 

Já caricaturou o intelectual que usa termos como “incontornável”. O peralta. O pomposo.

Não vejo a palavra intelectual como uma coisa depreciativa. Quem me dera a mim ter uma costela disso. Só acho mal quando sabem mais de livros do que de vida. Na prática os livros não lhes servem de muito.

Faz-me sempre confusão quando temos de mostrar o que somos. A Margaret Thatcher (uma citação fica sempre bem...) uma vez disse que se tiver de provar que é uma dama é porque alguma coisa está mal. Não só com os intelectuais, mas com o talento em geral. Se tiver de provar, e sublinhar muitas vezes, é menos interessante. Nesse caso, disparo em todas as direcções.

 

Quais são os outros tipões principais que identifica e que retrata nos seus programas?

(Tipões: a tal palavra de que não gosta e que vai pôr entre aspas.) O novo-rico. O novo-pobre, infelizmente, e com menos piada.

 

Porque é que o novo-rico é apetecível? Alguns, provavelmente, estão a ler-nos.

[riso] É apetecível quando está a apontar para si próprio a explicar que agora é rico. Não há mal nenhum em ganhar dinheiro. Quando é preciso fazer exposições públicas do que conseguiu adquirir cai no pequenino, no poucochinho. E, logo, no risível. A desgraça alheia tem um lado cómico, por muito cruel que possa parecer. Ver alguém assim não é uma desgraça. É só ver alguém a fazer uma figura triste.

 

O que é risível é aquilo que refulge? Os brilhantes, as marcas muito visíveis, os símbolos de poder e de riqueza?

Há pessoas em que vemos claramente que “aquilo” faz parte de uma educação. E há pessoas para quem “aquilo” entrou à pressão. Que foi de repente. E que não sabem lidar bem com o que lhes está a acontecer. O dinheiro é então mais para mostrar do que para uso próprio. O Herman contou a história de uma senhora que estava com um Swatch. Uma senhora da alta sociedade. “Tem esse dinheiro todo e está com um Swatch?”. Ela respondeu: “Estou. Porque eu posso”. Acho que é isto. Quando uma pessoa pode, não tem de usar um Rolex. Para esbanjar e mostrar a toda a gente que tem um Rolex.

 

Mostre-me se usa um relógio caro.

Não posso mostrar. [riso] Não posso mostrar. Que é para seguir a conversa com alguma dignidade.

 

Uma vez entrevistei um banqueiro, amável, que não precisava de usar sapatos por medida para se sentir importante (como outro com quem falei na mesma semana, CEO de uma grande empresa). Em resumo: o nouveau riche precisa de uma peça feita por medida para se sentir importante.

Sim, é isso. Quando a pessoa se maquilha de alto a baixo com coisas com as quais não sabe lidar bem... É um alvo fácil porque toda a gente percebe quando está à vontade na sua pele – ou não.

Atenção: não quero ser a nova Jonet. Mas há sempre mínimos que uma pessoa pode garantir para se sentir bem. Que não passam necessariamente pelo dinheiro. Passam por uma atitude. Coisa extraordinária que vi em espectáculos pelo país. Apesar do estado em que as famílias estão, há salas cheias.

 

Fez uma digressão o ano passado com Miguel Guilherme, com o espectáculo “É como diz o outro”. Refere-se à percepção que teve nesse período?

Sim. Como é que numa altura em que as pessoas têm de deixar de comer carne de vaca ainda conseguem guardar dinheiro para ir ao teatro? É comovente. Antes da crise achava, com alguma arrogância – reconheço-o agora –, que uma sala cheia era uma coisa, não banal, mas fácil de ser possível.

 

Abramos uma parêntesis para falar da digressão. Mesmo que a situação do país se tenha degradado muito no último ano. O que é que aprendeu na ronda pelo chamado país real?

Andámos seis meses em tournée. Fizemos quatro dias no Coliseu do Porto; parecia um disparate..., o Coliseu leva 3000 pessoas. Encheu as quatro noites. No país real percebi que as pessoas têm muitas dificuldades. Para as que foram, aquilo era uma espécie de consulta de psicólogo sem ter que ir lá todas as semanas (e sem ter de gastar o triplo, ou mais...).

 

Quanto custava o bilhete?

Variava. 15, 20 euros. Em todos os sítios tivemos casa cheia. O país é muito diferente entre si.

 

A diferença está entre ricos e pobres? Litoral e interior? Norte e sul? Quais são as divisões mais nítidas?

De norte para sul. Isto não quer dizer que o público seja melhor num sítio ou noutro. Mas o público expressa-se mais no norte, é mais caloroso. O Algarve, que está mais talhado para receber, não é tanto assim. No Alentejo era perceptível que algumas pessoas estavam a fazer um esforço financeiro para estar ali. Em Lisboa somos uns privilegiados. Porque temos muita oferta, meios, informação.

 

Tomou contacto com o país real depois de se ter transformado num fenómeno televisivo, de fazer programas que supostamente se dirigem a todos, e não apenas ao público de Porto e Lisboa, que é aquele que conhece melhor. É fácil ficar umbiguista?

É. Quando vivemos com os nossos pais, é muito fácil não ter que romper a bolha. Resume-se a isto: chegamos a casa, temos a comida na mesa, a roupa lavada. Não é preciso lidar com a vida prática. Depois começamos a sair da esfera umbilical e percebemos que há lacunas enormes. Também é preciso dizer que, se não nos convidarem para ir a Beja, não vamos a Beja. Não é porque não queiramos. É porque não nos convidaram. Não podemos chegar lá e dizer: “Então Beja?”, e não ter sala para fazer o espectáculo nem nada marcado.

 

Voltemos à questão base, ao como são os portugueses.

Outro tipão?

 

Também há arquétipo. Uma palavra fina.

Chiquíssima. Adoro. Arquetípico? Ouça, o mais possível! [tom trocista e queque]) Há uma coisa recente, que veio com os telemóveis: pessoas que, pura e simplesmente, perderam o filtro. No outro dia, num restaurante, uma senhora estava a esta distância [um metro], com o telemóvel a apontar para mim. Era irrelevante ser eu ou ser um chiuaua.

 

A escala é muito parecida entre si e um chiuaua.

[riso] Disse à senhora: “Não pode fazer isso. Se quiser tiro uma fotografia consigo, sem problema.” Ela ficou ofendida: “E se quer saber, vou apagar porque a fotografia nem ficou boa.” Ficou ofendida porque lhe chamei a atenção. Disse-lhe que não estava no zoo.

Esse comportamento não tem a ver com mais nada a não ser estupidez. Toda a gente tem telemóveis, por alguma razão só alguns se comportam assim.

 

É a geração youtube? Que escreve com k.

Sim. E escreve LOL. São pessoas que acham que é tudo à vontade. É tudo de todos. É tudo do domínio público.

 

Não falou de um personagem muito visível na televisão. O jovem com corpo tatuado, depilado, musculado, que recorre à cirurgia plástica. Tudo com um ar barato. Como os que estão na “Casa dos Segredos”. Ou a Luciana Abreu no seu programa “O Último a Sair”. É um tipo crescente?

É. O que a “Casa dos Segredos” e a maior parte dos reality shows fazem é pôr uma lupa sobre esse tipo de pessoas. Também integram o grupo das pessoas que já não têm filtro. Como estão rodeadas de pessoas do mesmo género, não fazem ideia do que estão a fazer. Na “Casa dos Segredos” é toda a gente assim. Não há ninguém ali que não estivesse disposto a qualquer coisa para ganhar dinheiro.

 

É ganhar dinheiro ou ganhar 15 minutos de fama?

As duas coisas. São esses 15 minutos de fama e o que esses 15 minutos de fama vão dar. Para eles, basta. Não têm um sonho além disto. Saírem à rua e serem reconhecidos. Se outras pessoas vingaram e fizeram dinheiro, eles também podem vingar e fazer dinheiro.

Vive-se numa época de fast food mental. O que as pessoas querem é uma coisa que resulte rápido e que não as obrigue a pensar. Há uma enorme vantagem nas pessoas burras: sofrem menos. Não estou a dizer que são todas. Há pessoas que vão ao ginásio e fazem cirurgia plástica e têm os princípios bem definidos.

 

Gente burra é um alvo fácil?

Depende. Gente burra academicamente falando, não acho interessante. A religião é um género de burrice muito fácil.

 

Finalmente aparece o Bruno Nogueira. Que causa estragos e diz coisas inconvenientes. Que parte tudo com uma bastonada. (Nota: o primeiro personagem de Bruno Nogueira, nas Manobras de Diversão, no Teatro S. Luiz, aparecia com um bastão de baseball.)

É mais fácil resolver tudo com uma entidade que não conhecemos e que podemos responsabilizar e que nos permite não pensar porque toma conta. A maior parte das pessoas que acreditam em Deus não sabem porque é que acreditam. Ou é de família – e é das poucas coisas que vão herdando. “O meu pai era, a minha mãe era, eu não me quero informar, e sou.” Porquê?, o que é a leva a acreditar? “Não sei.” Uma grande percentagem das guerras e mortes no mundo inteiro prendem-se com o facto de cada nação dizer: “O meus Deus é que prevalece sobre o teu. Vai uma bomba só para tu perceberes isso”. A outra responde da mesma maneira.

 

Alguma vez gozou com a Opus Dei?

Sim, no “Tubo de Ensaio” [na TSF] já falámos sobre isso.

 

Toda a irracionalidade é potencialmente burra?

Sim. Sim. Sim. Sim. Generalizar também é uma coisa que corre mal. Conheço católicos inteligentíssimos e conheço ateus burros. Uma criança de três anos morre – foi Deus que quis levá-la para junto d’Ele. A pior pessoa do mundo morre aos 104 anos – foi Deus que quis levá-lo para junto d’Ele. É muito fácil. Não implica raciocínio. É como a Bíblia: uma história muito bem contada. Um romance maravilhoso. Tirar uma ilação, que é o que fazem nas igrejas, pode ser perigoso e pode cair na burrice.

 

O português fura-vidas. Mais ou menos burgesso. Outro grande tipo?

O chico-esperto? Esse sempre existiu. Conheço vários (não posso dizer o nome, infelizmente) cuja capa é toda polida e depois... Um chico-esperto em três linhas? O objectivo será sempre subir. Subir à custa de alguém (usando alguém como trampolim). Subir juntamente com alguém (para, com essa pessoa, subir). No Governo é fácil encontrar vários. Quem? O óbvio: Miguel Relvas. Está na cara. Ele próprio já não tenta disfarçar muito.

 

Já não disfarça, como diz, porque considera que nada lhe acontece? Sobreviveu ao terramoto do Verão, quando toda a gente dava por garantida a sua saída na sequência do caso da licenciatura.

Da licenciatura, do [jornal] Público, tudo. Quando percebeu que goza de uma certa imunidade – de uma certa, não: de uma total imunidade – pouco importa justificar o que fez, as polémicas em que esteve envolvido. Ele saberá que a maior parte das pessoas não acredita no que apregoa. Mas é-lhe indiferente. É uma via verde.

 

Como assim?

Na via verde, mesmo que não pague, passa. Depois aparece uma factura. Paga ou não paga. Com sorte aquilo prescreve. Em Portugal há vários exemplos disto. António Lobo Antunes disse numa entrevista que as pessoas continuam a ir à ópera porque acreditam que é possível morrer a cantar. Compram essa premissa. Foi a premissa que Miguel Relvas comprou para ele próprio. Sozinho. É a única pessoa do público desse espectáculo.

 

Passos Coelho está com ele na plateia?

Sim.

 

É o PM que o mantém.

Sim. Não sei quais os interesses. Entra num campo que não domino. E não quero ser treinador de bancada. Mas porque é que Relvas continua, porque é que, quando houve uma remodelação do Governo, se manteve? Parecem-me aqueles barcos... [tosse seca] Quando vamos rebocar um barco, encalhado, enorme – de cruzeiro – há um barco, à frente, que o leva. Como estão ancorados um ao outro, se o de trás cai, o da frente, se não dinamitar a tempo, vai atrás e afunda também. Passa por aqui. Ainda não havia o dinamite suficiente e vamos andando em maré desconhecida a ver no que é que dá. Não sei se se prende com a tal vaidade... “A sério que ali é uma parede. Não é estrada.” “Está bem, mas eu vou.”

 

Cavaco poderia dizer: “Ali é uma parede”?

Não diria. Demoraria cerca de seis meses para dizer. Quando dissesse, já não era uma parede. Era um arbusto.

Na última entrevista que vi de Passos Coelho [na TVI] – se bem que preferi, de longe, o cabelo da Judite de Sousa... Era como se tivesse ido para o estúdio num Punto GT com a cabeça de fora. Era uma espécie de algodão doce epiléptico. Fiz uma crónica sobre isso na TSF. O cabelo da Judite de Sousa superou tudo. Foi mais interessante do que qualquer coisa que Passos tivesse dito. Falta de noção.

 

Porquê?

Frente a um Primeiro Ministro, não se pode ter o primeiro plano. Não se pode estar em destaque.

Mas ia falar de Cavaco e de Passos. O que fez com que Obama, e não outros, parecesse um salvador (para além da inteligência e das medidas) foi o facto de falar com as pessoas. Não me sinto atrasado mental a ouvi-lo. Sinto que é uma pessoa normal que fala como as pessoas normais. Uma coisa raríssima na política. E tão simples. Tudo bem que tem o marketing por trás, e tem o sorriso...

 

E tem um ar gingão quando anda.

Mas isso é o que as pessoas fazem. De repente há uma pessoa que faz o mesmo que eu faço quando saio de casa. Que sobe as escadas do Air Force One a correr. Simplesmente não está com uma capa. Ou está com outra. A descontraída. O que transmite ao espectador inocente é que aquela pessoa é normal. Com Obama, não me sinto um aluno da quarta classe com uma professora de 50 anos a dar-me um raspanete. É o que difere. E não há disso em Portugal.

 

Cavaco, por contraste, é estático. É bizarro compará-los. Estava a falar de Cavaco e passou para Obama.

Estava a falar da comunicação dos vários políticos. Cavaco tem o grande problema da falta de timing.

 

Se fosse um sketch humorístico, como é que o representaria?

Quando ele chegasse, o sketch já tinha acabado. Acontecia o sketch todo e ele chegava depois do genérico. Ainda a dizer uma frase do sketch. O stand up de Cavaco [na entrega] dos prémios Gazeta... Não se pode tentar ser aquilo que não se é. Cavaco tem o sentido de humor de uma pedra pomes. Foi constrangedor. Foi como o Clint Eastwood a falar para uma cadeira. Disseram-lhe: “Senhor Cavaco, era muito engraçado se brincasse com o facto de nunca falar”. Devia ter dito: “Mas eu não tenho piada”. Foi um silêncio de morte, com Cavaco a debitar um texto que alguém lhe deve ter soprado ao ouvido.

 

O que é que sopraria ao ouvido de Passos?

Nada! Se nada do que foi soprado, nesta fase do campeonato, deu resultado...

 

Resta-nos esperar pelo afundamento?

Resta-nos lutar todos os dias contra isso. Se caísse o Governo (algumas pessoas dizem que seria mais apocalíptico do que continuar assim)... Infelizmente não vejo que vá haver alguma mudança. Pelo menos até 2014. Até lá, para além de poder manifestar publicamente o que sentimos, não há nada que façamos ou digamos [que surta efeito]. É um estado de autismo. Podem fazer exercícios para tentar comunicar com a realidade. Mas não deixam de ser autistas.

 

Uma parte disto, pelo menos, está no seu novo programa?

Não. Gosto muito de ver coisas sobre actualidade, mas não é o meu tipo de humor preferido. No “Tubo de Ensaio”, o João Quadros e eu falamos sobre a actualidade política; é um programa diário, que fazemos há cinco anos. (O Quadros é genial. Tem uma cabeça poético-cómica extraordinária.) Temos de abordar vários temas, entre os quais a política. O novo programa é intemporal. Nada o liga com a realidade. Era o que se pretendia.

 

O que é que pode contar?

Vamos para o ar no meio de Janeiro, na RTP. Basicamente sou eu e o Gonçalo Waddington a andar à volta do país. Numa autocaravana. A série foi escrita por mim, pelo Gonçalo e pelo Tiago Guedes e foi feita com uma coisa rara: tempo. Tempo para pensar, para escrever. Foi dado às pessoas espaço para fazerem aquilo que fazem melhor. A equipa técnica é quase toda de cinema. A imagem é uma mais-valia.

 

Vai fazer de Bruno Nogueira a andar pelo país?

Sim, somos nós a fazer de nós. Nós a fazer de nós enquanto argumentistas que escrevem aquilo, fazem aquilo. Passa-se em várias camadas.

Pediram-me para fazer um segundo “O Último a Sair”, agora que estava a acontecer a “Casa dos Segredos”. Se calhar foi teimosia. Mas se tanta gente queria e se correu tão bem, não havia nada a acrescentar. Acho mais estimulante tentar uma coisa nova. Onde arrisco a espetar-me ao comprido.

 

O Futre foi um personagem eventual de “O Último a Sair”. Para voltar atrás e aos arquétipos: os futeboleiros.

O Futre foi lá dar uma palestra. É muito engraçado. E não varia: o que se vê é aquilo que ele é. Há muitos Cristianos Ronaldos da vida.

 

Para já, todos querem ter a Irina.

Eu não queria ter a Irina. Queria ter a [Sara] Carbonero. Gosto da Carbonero porque ela não come com os cotovelos em cima da mesa. Uma coisa é dizerem-me: “É a Irina ou não é nada”. Outra coisa é dizerem-me: “É a Irina ou outro produto muito bom, a Carbonero”. Também nunca vi a Carbonero à mesa. Pode parecer snob. Não é snob. É uma coisa básica. Não se come com os cotovelos em cima da mesa! De que serve o dinheiro? Entre as pessoas mais bem educadas e inteligentes que conheço estão pessoas com pouquíssimas posses. São mais ricas de outra maneira.

 

Mais um bocadinho e fala da Madre Teresa de Calcutá.

Não! E acho ridícula a teoria de que o dinheiro não traz felicidade. Traz imensa. Não traz é toda.

 

Peguemos na frase de Dinis Machado: qual é o lado mais cómico disto? Partamos desta premissa – palavra fina que usou repetidamente...

Usei? Meu Deus. E aquelas pessoas que dizem “noite”? Já não têm paciência para dizer o “boa”.

 

É a partir desta premissa que trabalha? Olhar para a realidade, qualquer que ela seja – trágica, como esta – e perguntar pelo seu lado cómico. Como é que encontra o lado cómico disto?

Há sempre um lado risível em tudo. Até no mais trágico. As boas notícias não vendem. (As pessoas acham que os humoristas não têm tragédias pessoais. Que se brincam com doenças é porque não têm doenças na família. Ou não têm uma pessoa católica. Há isso tudo. A diferença é que o humorista opta por não se acomodar. Tenta desconstruir a situação.)

Não sei explicar o mecanismo. É agarrar numa notícia e transformá-la numa notícia paralela. Não deixa de ser realidade. Não é preciso entrar num campo fantasioso. Vejo de outro prisma. Ainda é das melhores maneiras de fazer passar mensagens. É mais propagado do que a notícia em si. Através do humor é possível apontar para coisas que não se vêem. Ou que não interessa, a quem deu a notícia, que se vejam.

Outra forma de burrice: não questionar. Aceitar já mastigado, e ponto final.

 

O seu tipo de humor é à bastonada. Nada auto-condescendente. Brinca com tudo?

Sim.

 

Nesta conjuntura, é mais fácil estarmos com pena uns dos outros? Isso diminui a sua rudeza?

Não acho que tenha de ser mais macio... Quando a Isabel Jonet vem falar do Banco Alimentar e diz as coisas que diz, critico. Mas não estou a criticar o trabalho todo que foi feito pelo BA. Não deixei de fazer o que sempre fiz no supermercado [nos fins de semana de recolha de alimentos]. Se a realidade não está mais macia, eu não tenho de estar.

 

A pergunta que se impõe na última sexta feira do ano... Desejos para 2013. Pode ser uma coisa cómica, para fechar o sketch.

A punchline? Retomo a ideia do barco que reboca outro barco. A melhor coisa que podia acontecer em 2013 era haver uma separação entre uma coisa e outra. O que tem de ir ao fundo, vai. O que tem de ficar a flutuar, fica. Outra coisa (vai cair no cliché, mas é verdade): uma coisa é a crise financeira, outra é a crise de valores. Seria bons que as pessoas – as que os perderam – começassem a recuperar os princípios que fazem com que um país, sendo pobre, não seja pobrezinho. (Isto vai roçar o privilegiado a falar dos desfavorecidos... É complicado falar disto sem aparecer um tom arrogante.) É muito difícil atravessar esta fase, mas há mínimos olímpicos dentro de cada um de nós. Os mínimos de que, por uma questão de orgulho e auto-estima, não se pode abdicar.

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2012

 

 

Luís Nazaré

25.02.15

O que nos diz de uma pessoa a casa que ela tem? Os amigos com quem se dá. Os encontros e desencontros, as viagens e as portas de chegada. Se usa mocassins ou sapatos de berloque. Se tem uma mulher que veste de forma austera ou que usa vertiginosos saltos altos. Se as filhas estudam no Liceu Francês ou frequentam a escola do bairro. O que nos diz de uma pessoa os filmes que estão ao fundo, a cadeira Corbusier, mas revestida a pele tresmalhada, e não preta e lustrosa. Os recantos por onde entra luz. Um tapete para pousar o rato do computador onde Che Guevara lança um olhar revolucionário.

São várias as vidas, desconexos os pontos da cartografia. É preciso persegui-los de perto para integrar as idiossincrasias deste sujeito. Luís Nazaré, quase 50 anos. Um puto da Damaia que na verdade se sente de Queluz. Um benfiquista que as pessoas do bairro conhecem de ver na televisão. Um assessor de Guterres que não lhe confiaria assuntos do coração. Um bloguista que vem das empresas e que persegue os caminhos de Hemingway em Paris. Um professor que encontra na sua escola a sua casa. Um rapaz que recebia das mãos de Murteira Nabo os presentes de Natal da Marconi e que foi chamado pelo mesmo Murteira para trabalhar na casa, com o curso ainda fresco, fresco.

Luís Nazaré, um homem que sente devoção pelo seu partido (a expressão é dele), como outros sentem pela Virgem Maria (a comparação é minha). Ele afastou-se da religião muito cedo, a Virgem Maria nem é para aqui chamada. Mas é também a propósito da religião que se conclui a conversa e se percebe como a realidade pode ser distinta, consoante a grelha, e aqueles que connosco estão. Deus está nas pequenas coisas? Eis as pequenas e as grandes coisas do gestor que preside aos CTT. Portugal e um tempo, uma geração e um grupo de amigos escrevem-se nas próximas páginas.

 

Quem é que cá em casa vê o Nip/Tuck?

Todos. Um amigo nosso ofereceu-nos o pacote de DVD’s há ano e meio, dizendo-nos que a série é excelente.


É uma série de televisão muito famosa, mas recente em Portugal, passada no mundo da cirurgia plástica. Nesta sala também há Almodovar ou Frank Sinatra. Estas referências podem dizer mais sobre a vida das pessoas desta casa do que os seus dados curriculares…

Os livros, os discos, os DVD’s, os objectos, dizem muito sobre a maneira de ser da família, sem dúvida nenhuma. Temos uma vida muito simples, discreta, com bastante entrosamento com o bairro; conhecemos os comerciantes, as pessoas.

 

O homem do talho daqui do lado cumprimentou-o quando foi nomeado para a presidência dos CTT?

Ah, sim. Conhecem-me por causa das minhas passagens pelo Benfica e dos cargos públicos que vou tendo. A mercearia traz as coisas cá a casa – há essa dimensão – mas Alvalade tem também um certo cosmopolitismo.

 

Continuemos a olhar à volta e tentemos reconstituir quem é a partir destes vestígios...

Tenho uma relação próxima com os objectos, uma relação afectiva. Exuberância, zero. Os poucos objectos que se guardam transportam uma história: como nos cruzámos com eles, como os transportámos para cá. Não sei bem se o prato afectivo é mais forte que o prato racional, mas sou bastante afectivo. Mesmo no dia-a-dia, no exercício da minha actividade profissional, não consigo nunca despir-me do lado dos afectos, da convivência humana. Suponho que não tenho um temperamento completamente poético, nada disso, também tenho um lado racional…

 

Tem uma têmpera que parece ser mais passional, até pela impulsividade com que reage, com que se entrega às situações…

É.

 

Vamos lá à história da sua vida…

A minha família é toda de Santa Maria da Feira. Fui nascer ao Porto, mas vim para Lisboa com um mês, perto disso. O meu pai trabalhava na Marconi. Toda a vida ouvi falar de comunicações à hora do jantar, desde pequenino estou ligado a este mundo das tecnologias. Quer o meu pai, quer a minha mãe (a minha mãe já cá não está), tinham uma forma muito empenhada, apaixonada, temperamental de estar na vida.

 

É filho único. Teve uma infância solitária?

Vou fazer 50 anos a 31 de Dezembro. Vivíamos na Damaia, mas nunca fiz lá vida. As minhas experiências mais antigas e marcantes enquanto jovem foram em Queluz, no antigo Liceu Passos Manuel. Grande parte dos meus amigos de infância são alunos dessa escola. Depois, quando fui para o ISEG passei a ter outros círculos. Sempre pensei que ia ser engenheiro. Tinha, e tenho, uma atracção por coisas manuais, por mecanismos, por perceber como é que as coisas funcionam.

 

Mas não foi engenheiro. Estudou Economia por razões que me disse serem fortuitas. Se as comunicações são o rio principal da sua vida, há correntes que surpreendem. A relação com a palavra é forte – basta lembrar a sua participação no Causa Nossa para notar a sua veia de bloguista e polemista apaixonado. E não sabia que gosta de cantar!

Há também o ensino, no ISEG. São mundos paralelos. Tenho dificuldade em viver num só mundo. Gosto de ir ao encontro das minhas paixões. A escrita e as letras, desde sempre. A minha mãe sempre leu muito, o meu pai também, e escreve.

 

O que é que liam, o que é que lhe davam a ler?

De todo o género, sempre foram muito ecléticos. Os livros são uma inspiração de vida, e são um farol.

 

Caetano Veloso diz/canta que são objectos transcendentes.
São, fazem-nos de alguma maneira transcender.

 

A socialização, na escola ou com os amigos do bairro, fez-se por via do Benfica? O mundo dos livros estava confinado a casa, ao pai e à mãe? São canais diferentes.

Tive uma infância feliz. Andei numa escola da câmara, tive uma excelente professora, da primeira à quarta classe, bases sólidas num tempo em que o ensino não era massificado como é hoje. Quando fui para o liceu, o salto foi enorme. Passei a ter que apanhar o comboio todos os dias, aos nove anos de idade. Adquiri forçosamente uma autonomia maior. A partir dos treze anos, tudo foi diferente. Eu e o meu núcleo de amigos adquirimos alguma consciência política. Comecei a fazer teatro, a interessar-me pela música.

 

Fazia parte daqueles grupos de jovens que tocavam viola e cantavam temas fraternos, muitas vezes associados à paróquia?

Não, nunca. Fiz a catequese como todos os miúdos faziam, mas divorciei-me da religião e da igreja por altura dos treze. Nunca mais regressei. Fiz diversos campos de férias, trabalhei nos verões. Trabalhei em fábricas, distribuí listas telefónicas, fiz inquéritos para as empresas públicas de transportes. Fi-lo sem ser empurrado pelos meus pais, para ter mais uns cobres e arredondar a minha semanada. Desde os 15, 16 anos, até ao fim da faculdade, sempre trabalhei para ter o máximo possível de autonomia.

 

Para que é que o dinheiro lhe servia?

Para as farras com os amigos, para ver concertos, comprar livros, pagar a gasolina, para as minhas viagens de Interrail. Fiz três, conheci a Europa toda.

 

Sempre em grupo. Não parece um filho único, a sua dinâmica é de grupo.

É verdade. Sempre andei acompanhado. Os meus amigos mais antigos são todos oriundos desse fase. Partilhámos emoções, experiências pessoais, experiências políticas, experiências das mais variadas naturezas.

 

Uma festa com os seus amigos, cá em casa, é uma coabitação de camadas distintas! Imaginemos os seus anos. Bom, como cola com o fim de ano, não é só uma festa de aniversário...

Fazem-se sempre no dia 30, com a passagem da meia-noite.

 

Neste sótão onde estamos, coexistem os amigos de Queluz, que são muito diferentes dos amigos do blogue, dos amigos do Benfica, dos amigos da universidade, do mundo empresarial, da política. As suas vidas são estas todas, não é?

Exactamente. Os círculos de amizades que tenho são muito diferentes uns dos outros. É claro que há cruzamentos, que as pessoas depois se vão encontrando e que há capilaridades que se estabelecem.

 

Nunca cortou com um mundo, ou com uma parte da sua vida? Acrescenta sempre?

Nunca cortei.

 

Algum amigo da escola teve um percurso menos bom profissionalmente? O meu dentista dizia-me que foi pôr o carro na oficina e percebeu que o mecânico tinha andado com ele na primária. Tem amigos que pertencem ao um extracto sócio-económico-cultural diferente daquele que hoje tem?

Não tão diferente quanto isso. Felizmente que neste núcleo de amigos de infância todos estão bem, todos têm uma vida sem grandes preocupações.

 

A pergunta subjacente a isto é: o que é que dita a aproximação entre as pessoas?

Em relação aos amigos de infância, é tudo mais fácil. Quando não há zangas, incompatibilidades grandes... porque é que é mais fácil? Porque somos amigos desde o tempo em que não tínhamos casca. Conhecemo-nos sem couraça, sem as cascas que a vida nos vai colocando, uma após outra, ano após ano. Conhecemo-nos no tempo em que éramos o que éramos. Em relação aos outros círculos, são afinidades de diversas naturezas. Pessoais, de temperamento, de empatias particulares que se estabelecem.

 

Pode expor a sua vulnerabilidade mais facilmente a uma pessoa do grupo de Queluz....

Com certeza.

 

...do que ao António Guterres, de quem foi conselheiro?

Claro que sim.

 

Ou seja, não falaria ao Guterres de uma coisa do coração ou do sentimento?

Dificilmente. Não quer dizer que não possamos adquirir intimidades com pessoas que não fazem parte do nosso círculo mais antigo. Por vezes até é conveniente, encontrar alguém que não tem nada a ver com o nosso passado, que não está marcado pelas nossas histórias. São descobertas boas, significam que não ficamos cristalizados num naipe de gente.

 

O seu 11 é diversificado, estamos esclarecidos. Há pouco falou de encontros, de acasos e de escolhas, de circunstâncias fortuitas, que fizeram com que as coisas fossem de determinada maneira. Que outros momentos é que apontaria como essenciais?

Quando decidi ir viver para Paris, princípio de 82. Eu era um miudito, um economista recém-licenciado. Estava na Marconi, onde o meu pai esteve e para onde fui trabalhar.

 

Entrou para a Marconi pela mão do seu pai?

Entrei para a Marconi pela mão do Murteira Nabo, que era o Presidente do Conselho de Administração. O meu pai trabalhou para o Murteira Nabo e o Francisco Murteira Nabo, quando acabei o curso, chamou-me para o Gabinete de Estudos e Planeamento. E fui, com muito prazer. Aí está um amigo que conheço, não desde a tenra idade da escola, mas há muitos anos. Ia receber as prendas de Natal na Marconi, o Murteira Nabo entregou-me alguns, eu era miúdo... É uma pessoa por quem tenho grande estima e apreço.

 

Estava há um ano na Marconi e foi para Paris. Paris foi deslumbrante por causa do cosmopolitismo?

Completamente deslumbrante. Eu vivia em casa dos meus pais, fui para Paris com uma mala, quase como a Linda de Suza, um malão grande. Entretanto casei-me.

 

Lá?

Vim casar-me cá. A minha mulher foi viver e trabalhar para lá. A minha mulher é economista e foi minha colega de curso. Fui viver para o Quartier Latin. Eu tinha uma paixão enorme pelo Hemingway. A sensibilidade, aquele lado heróico, internacionalista, tudo isso me fascinava, e conhecia a história toda do Hemingway em Paris.

 

“Paris É Uma Festa”!

Tinha fixado todo o percurso: onde é que ele vivia, as ruas por onde passava. Demorei mais tempo do que o que seria normal para encontrar um apartamento, [porque] fiz questão que fosse um apartamento [na zona] onde Hemingway vivia! E assim foi: vivia na rue d’École Politechnique, mesmo ao pé do Panteão, num quarto andar, com traves no tecto. Estamos a falar do Quartier Latin genuíno, e não do turístico de Saint Germain. É uma zona verdadeiramente boémia.

 

Com quem é que se dava? Hemingway deu-se com a comunidade intelectual que fervilhava na Paris daquele tempo.

Ele teve uma convivência com o meio intelectual e artístico extraordinária. Ezra Pound e por aí fora. Eu tive uma ligação muito engraçada ao mundo do cinema. Na esquina em frente a casa havia um bar- restaurante chamado La Méthode, onde se batia grande parte do mundo do cinema. Com 25, 26, 27 anos conheci Serge Gainsbourg, a Miou-Miou, a Isabelle Hupert.

 

Quantos anos esteve em Paris?

Seis. Ah, mudou-me muito. A experiência de vida internacional muda-nos muito. Ganhamos mundo. Sair-se deste rectângulo, respirar fora deste rectângulo é muito importante.

 

Apontou o escritor americano como um herói. Aponte um herói português.

Do século XX, muito poucos. Distingo três, um no mundo das letras, dois no mundo da intervenção cívica e política. Pessoa é um herói, só um herói consegue desmultiplicar-se e dar-se a conhecer “in many different ways” como Pessoa fez, e com riqueza, com mundo. No campo da intervenção cívica e política, Mário Soares e Salgueiro Maia.

 

Salgueiro Maia é um ícone de uma geração e de um movimento. Diz-se “os heróis de Abril” e Salgueiro Maia é a personificação disso.

Não por acaso. Do ponto de vista operacional foi um dos mais importantes, senão o mais importante. Depois, pelo despojamento absoluto que revelou em relação às circunstâncias materiais, às recompensas. E pela atitude extremamente discreta, pura. O desencanto por que passou nestes últimos anos… O desencanto que muitos tiveram quando as sequelas de Abril revelaram os lados menos interessantes da esperança que a todos abraçou...

 

Há uma nostalgia da pureza e do equilíbrio nisso que diz?

Claro que sim. E que não regressa mais. A esperança, o brilho nos olhos, a confiança, a atitude de crença num futuro melhor.

 

A “malta” acreditava mesmo em “amanhãs que cantam”…
Acreditava que era possível criar um homem novo. Que era possível criar um sistema, um regime, um país, onde os valores da solidariedade, da participação, da pluralidade fossem determinantes, ficassem inculcados no modo de ser das pessoas em geral. Isso morreu. E é irreversível. Foi uma janela radiosa, de esperança.

 

Como apanhou o 25 de Abril?

Não fui para o liceu, não apanhei o comboio para Queluz, vim para Lisboa com mais dois amigos de infância, estivemos ao pé dos soldados, no Rossio, de metralhadora. Foi uma experiência comovente. Tínhamos já uma consciência política, ouvíamos os álbuns proibidos, do Sérgio Godinho, do Zé Mário [Branco], do Zeca [Afonso], do Adriano [Correia de Oliveira]. Era uma geração. Acabámos por verificar, todos nós, que não há homem novo.


“Mea culpa”, todos se aburguesaram.

Claro que sim. Todos se acondicionaram. Toda a gente delirou, em larga medida por desconhecimento de como as coisas deviam funcionar.


Está a falar do PREC?

Estou, essencialmente. Valia tudo. No 25 de Novembro, no 11 de Março, naquelas datas, tínhamos acabado o Liceu, andávamos no Serviço Cívico. Foi um ano em que se fez pouco, faziam-se umas tarefas aqui e acolá, uns biscates aqui e ali, e no resto do tempo divertíamo-nos. Em Queluz, o nosso liceu era ao lado do Regimento de Infantaria de Queluz, que pertencia ao COPCON. Em pleno estado de sítio, estávamos no quartel, bebíamos cerveja com os militares… Havia uma osmose muito grande.

 

Fazia biscates, mas sabia que o seu futuro era outro: tirar um curso para ter uma situação mais estável, realizar-se profissionalmente. Nunca perdeu o norte?

Nunca. Eu queria prosseguir com a minha formação. A política estava presente na minha vida desde os treze anos, mas nunca em exclusividade. É um dos meus eixos, uma das minhas cordas, como dizia o Pirandello.

 

Tinha o norte bem apontado, é isso?

Era aquilo que eu queria, não por questões de carreira.

 

Não por questões de carreira? É um homem muito novo, Presidente dos CTT, há doze anos era conselheiro do Primeiro-Ministro para a indústria, comércio e turismo. Isto não se faz sem determinação. A carreira é inegavelmente importante, era um foco.

Era um foco. No momento em que rumei para o lado da economia, a economia passou a apaixonar-me. E a gestão das organizações. E fazer coisas. E poder ter uma influência no rumo das coisas.

 

Profissão: gestor. É assim que se vê?

Vejo-me sobretudo como gestor. Gosto de me ver como professor, também, porque é um lado que me completa e apaixona. A escola é uma grande paixão. Há três causas colectivas a que serei sempre fiel: a minha escola, o meu clube e o meu partido. Tenho muito orgulho em ser do ISEG, em ter feito a minha vida no ISEG. O meu clube é uma paixão antiga, e o meu partido é também uma escolha antiga.

 

Em relação ao ISEG, há em si um desejo de retribuição? Como se aquela casa lhe tivesse permitido concretizar a sua vida de uma boa maneira.

Isso faz parte, também.

 

Imagine que cai em desgraça, deixa de trabalhar em empresas públicas ou privadas; ocorre-lhe pensar que lhe resta sempre um lugar, e que esse lugar é a escola?

Penso nisso. Nunca sabemos o que nos pode acontecer. Virar-me-ia sempre, não tenho dúvidas. Já dei muitas voltas, já fiz mudanças radicais de vida, de lugares, de contextos profissionais, mas há algumas, poucas, coisas que são eternas. Uma delas é o sentimento de pertença. E a minha escola, o ISEG é minha casa.


Esse sentimento de pertença, tem-no em relação ao partido? Falo da noção de estarmos integrados num colectivo, de haver um lugar para nós naquele sítio. Não se está à margem, não se é proscrito, não se é abandonado.

Sim. As coisas não se me colocam tanto numa lógica de refúgio, mas numa lógica de partilha de valores e de experiências.

 

É profundamente gregário. Nunca viveu sozinho, (se exceptuarmos esse pequeno período em Paris)?

Não. Mas não tenho dificuldade em estar sozinho. Tenho até, por ventura, uma dose de individualismo superior à que gostaria de ter. Mas sinto-me bem inserido em grupo.

 

Escrevia para o Causa Nossa. É curioso que aquele blogue apanhe pessoas como o Vicente Jorge Silva, o Jorge Wemans, o Luís Osório, o Vital, o Luís Filipe Borges, de mundos e gerações diferentes; mas para quem a palavra é um reduto essencial. Sente-se especialmente agradado por ser admitido num baralho onde é a carta mais inesperada?

Agradado, sobretudo, por fazer parte de um grupo de pessoas que se prezam e são amigas. Juntámo-nos por iniciativa do Vicente, num restaurante no Bairro Alto, para discutir questões de política, de sociedade. O que é que tínhamos em comum?

 

Serem socialistas?

Socialistas inscritos, socialistas não inscritos, malta de fronteira, muita. E havia mais gente do mundo da economia, com profissões mais prosaicas do que o mundo do jornalismo, ou das letras, ou das artes.

 

Há algum preconceito das pessoas das letras em relação aos da economia. Nem todos os gestores citam Pirandello. Por isso perguntava se não sente uma íntima gratificação pelo facto de essas pessoas o reconhecerem como um igual.

Talvez, nunca tinha pensado nisso. Mas hoje os vasos são muito mais comunicantes entre os diversos mundos. Dantes havia os práticos e os teóricos, se quisermos simplificar.

 

Os de escola comercial e os de liceu.

Ora bem. E dentro dos teóricos, a malta das letras e a malta das ciências, das coisas concretas e prosaicas, e a malta das coisas poéticas e intangíveis. Hoje há muito mais “links” e talvez haja um prazer especial, da parte de uns e de outros, de cruzar experiências. Há uma coisa em comum a toda esta malta do Causa Nossa: nenhum de nós é ortodoxo. Somos espíritos muito livres, ninguém nos diz qual é o caminho.

 

Deixou de escrever há cerca de um ano. Porquê?

Não é por falta de tempo, é porque não dá. Quando se está no desempenho de um cargo público… Legalmente, nada me impediria de escrever sobre tudo e mais alguma coisa em formato livre, como fazia no passado; mas é incómodo. Ganhamos algumas inibições. Não no sentido de passarmos a dizer o contrário do que dizíamos, ou de passarmos a ser falsos connosco próprios, mas no sentido em que legitimamente outros diriam: “Por que é que você está a escrever acerca desse tema?”.

 

Não teria a mesma liberdade, para, por exemplar, devastar o engenheiro Sócrates. Vamos imaginar que lhe apetecia zurzir de alto a baixo o Primeiro-ministro: não seria possível.

Nem me apeteceria. Nunca o faria porque seria tremendamente injusto. Mas, se por exercício teórico quisesse destroçar alguém, uma causa, como fiz diversas vezes, hoje não ficaria bem. Então prefiro não escrever.

 

Foi nomeado para a presidência dos CTT por este governo socialista, e é apontado como um “boy”. É uma coisa que o incomoda especialmente?

Por um lado sim, por outro lado não. Sou militante do Partido Socialista desde o dia 2 de Dezembro de 79. Nunca o escondi, nunca o esconderei. Há um ideário no partido socialista e na corrente socialista europeia em que me reconheço, independentemente da expressão prática das políticas. Pertenço a uma força política, mas pertenço enquanto escolha cidadã, nunca tive nenhuma carreira política. O “boy”, no sentido depreciativo que se instalou há uns anos...


É uma expressão do engenheiro Guterres, “no jobs for the boys”.

Nesse sentido do “boy” que necessita que a sua força política ascenda ao poder para que, “boys” e “girls”, enfileirem e arranjem lugares simpáticos, já não é tão agradável. Desse ponto de vista, não corresponde minimamente à trajectória. Eu tenho uma paixão grande pela política, tenho esta devoção pelo Partido Socialista, mas não dependo da política para coisa alguma na minha profissão. Isso permite-me que eu continue a sentir-me um espírito livre.

 

Quando em 95 esteve com Guterres, e mais tarde com Ferro Rodrigues, estava à procura de uma carreira política? Tinha a ambição de ser secretário de Estado, ministro? De ser um líder, no fundo.

Não. Gosto de comandar, por isso gosto de ser gestor. Sinto que posso congregar gente, convocar dinâmicas, e ao longo da vida penso que consegui algumas realizações interessantes. Não só eu: as equipas com que tenho trabalhado. As grandes realizações são colectivas, não há volta a dar-lhe.

 

Nunca quis ser o herói? E estou a associar herói e líder, que são muito diferentes...

Líder, com certeza que sim. Não tenho as qualidades necessárias para ser herói. E os tempos de hoje já não são tão propícios aos heroísmos. A complexidade é muito maior, a difusão, a percepção, os critérios de valorização…, a matriz é muito difusa, veloz, em transformação permanente. O heroísmo exige tempo e estabilidade.

 

Recuperemos o tema dos heróis, para completar o retrato. As estrelas que pontuam o seu mapa, a par dos vestígios e das notas curriculares. O que é que o faz escolher Hemingway ou Mário Soares?

Vou dar-lhe alguns exemplos dos meus heróis. O Tintim. O Corto Maltese. Afonso de Albuquerque. Camões. Camões é um herói absoluto, enquanto português não há outro como Camões.

 

Camões, ainda por cima, teve a dimensão aventurosa de salvar Os Lusíadas a nado. Isso conta para o considerar um herói desse tamanho?
Com certeza. Camões tem tudo: cultura, universalismo, paixão, entrega, um amor extraordinário a Portugal. E sobrevivente. E mal amado. Até nisso.

 

Até nisso? Mas não se sente mal amado, ou sente?

Não, não sinto. Mas a trajectória e a vida de Camões representam bem aquilo que Portugal tem sido desde o seu nascimento. É uma história de sofrimento.

 

O sofrimento e o ser mal amado esculpem o nosso edifício, esses em quem nos transformamos. Para voltar a Caetano, “a dor define a nossa vida toda”. Mas não falou muito da dor ou da perda, falou mais do encontro, da acumulação...

A perda maior que tive na minha vida foi a perda da minha mãe. É uma perda irreparável. Mas não posso dizer que a vida me tenha corrido mal. Tenho alguns momentos desagradáveis, não vou dizer momentos de infelicidade. No liceu, a minha experiência com a disciplina de Religião e Moral é pavorosa. Explica o afastamento que desde muito cedo tive em relação às coisas da religião. Tive o professor mais malfadado, um personagem tenebroso… Era conhecido como o Chico Moralista. Leigo, não era um eclesiástico. Primeiro e segundo ano.

 

Porque é que era tão mau?

Fazia investidas regulares pelas nossas pastas; quem tinha livros de banda desenhada, apanhava uma grande tareia. Era um tirano absoluto, um sádico. Nem sei se vive ainda, nem quero saber. Mas recordar-me-ei toda a vida dessa experiência que não era nem de religião e muitíssimo menos de moral.

 

No filme Má Educação, de Almodovar, jovens eram abusados num quadro de internato – havia, inclusive, abusos sexuais. Quando viu o filme, lembrou-se do Chico Moralista?

Claro que me lembrei. Lembro-me muitas vezes do Chico Moralista. Mas lembro sem rancor, nunca mais voltei a vê-lo, acabou. Mas claro que me lembrei. Mais tarde, no quinto ano, tive um professor de Religião e Moral que a primeira coisa que fez, quando chegou à nossa aula, foi pôr a tocar num gravador de cassetes “Os Vampiros” do Zeca Afonso. Duas ou três aulas depois deu-nos a ouvir o elogio do Fidel ao Che – outro dos meus heróis de juventude.

 

Ainda é?

Sim. O meu “mousepad” é do Che. Tem aquele percurso que sabemos, de genuinidade, de entrega que seduz, de uma forma desinteressada, pese embora os muitos erros, as muitas loucuras. Mas ninguém é perfeito e o mundo é feito dessa vontade.

 

Dois professores distintos. Duas realidades para a mesma disciplina de Religião e Moral. Como a vida?

A realidade parece-nos uma ou outra completamente oposta, consoante o filtro, os óculos que temos, e acima de tudo, consoante aqueles que estão connosco mão na mão, que nos conduzem e ensinam a ver.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Março de 2007

 

 

Maria Cândida Rocha e Silva

24.02.15

A casa, o banco, podia ser um clube. Daqueles de admissão reservada e ambiente cuidado. Espero num sofá chesterfield de couro gasto, de um verde raro. Os tapetes são discretos e bons. Algumas peças de arte. A luz a entrar por entre os reposteiros. O novo papel de parede acentua o carácter clássico da decoração. Lá fora é a Avenida da Boavista, que mantém o status de zona selecta da cidade.

Tudo começou na Baixa, na Rua das Flores. Tudo começou numa casa de câmbio onde o pai fez o seu percurso. A Casa Carregosa passa a Banco pela mão da filha, Maria Cândida Rocha e Silva.

Ela aparece a seguir ao almoço, com uma simpatia jovial e uma descontracção inesperada. Nessa altura, eu ainda não sabia que a sua expressão pode ser contagiante e efusiva, firme e séria. E que a sua cara muda imenso. Tudo vem à cara, já diz o povo… “Que engraçado, nunca tinha reparado nisso! O mal e o bem à cara vêm. Assim como a beleza está no olho do olhador, também está muito na maneira como recebemos o que a vida nos dá. Se sabemos valorizar, e esquecer o que é mau, ou procurar”.

Subimos para o seu gabinete. Ficámos a sós. Recordou a infância. “Era a tal coisa que Guerra Junqueiro dizia: “Tudo quanto ali se grava e tudo quanto ali se escreve, cristaliza em seguida, não se apaga mais”. Recordou a vida em África. Recordou a relação com o pai e a mãe. As suas escolhas. A sua aventura. No fim, já tinha o gravador desligado, lamenta que a sua vida não tenha sido mais aventurosa. Mas ela, que é uma leitora de Lobo Antunes, sabe da riqueza que se encontra na vida de todos os dias.

Maria Cândida Rocha e Silva tem 65 anos. É divorciada. Tem duas filhas e cinco netos. É o rosto do Banco Carregosa.

 

Comecemos pelo nome. De onde vem o apelido Rocha e Silva? Pensei que se chamava Carregosa.

Há muita gente que pensa. É sinal de que me identificam com a Casa Carregosa. Durante muito tempo, embora tivesse sócios, o meu pai era a principal figura da Casa, estava à frente do balcão, era por quem passavam as decisões. O meu pai era Rocha e Silva.

Onde é que se perdeu o apelido Carregosa?

Comecei a trabalhar com o meu pai em 1970, e um dos sócios era o senhor Joaquim Carregosa (descendente directo de Lourenço Joaquim Carregosa). O que quer dizer que a Casa ainda se manteve na família durante muito tempo.

 

Há pouco vi uma fotografia do seu Pai; reparei que têm os mesmos olhos. Tinha uma expressão muito sorridente, o que é inesperado num homem neste meio. Esperaríamos ver uma pessoa sisuda, que não se permite rir.

Era um homem muito bonito! E nada cinzento. Divertido, alegre, extrovertido, com uns contactos óptimos; daí o facto de contactar muito bem com as pessoas e saber cativar-lhes a confiança. Era muito preocupado com o trabalho. Cumpriu escrupulosamente o sigilo profissional. Lá em casa ninguém sabia nada, na-da do que se passava no escritório.

 

Como foi a primeira vez que foi à Rua das Flores? Descreva-me o impacto, até visual, com o sítio onde o pai passava os dias.

A Casa Carregosa, para mim, pequenina, era uma coisa que me intimidava. [Tudo era] muito austero. Não entrava qualquer pessoa. Muito bom gosto, muita madeira, um bocadinho escuro, não dava um ar de leveza. Ali tratavam-se coisas graves, sérias. Tinha um balcão [cuja] madeira, a talha, era a de um antigo altar.

 

Este ambiente em que estamos reproduz o da Rua das Flores?

Aproxima-se, mas está muito longe. O pai entendia que ali era um santuário. A nossa casa era muito alegre. Éramos quatro filhos, vivíamos com uma avó, convivíamos muito. Quando um bebé, uma criança, um adolescente é muito acompanhado, fica bem estruturado e vem para a vida com uma confiança grande. Fui acompanhada durante grande parte da minha vida. O meu pai morreu com 91 anos. A minha mãe morreu com 93 anos.

 

António Lobo Antunes, que admira, escreveu no último livro: “Não comprei uma casa, não montei um negócio, penso em vocês”. Já comprou uma casa e já montou um negócio; o que é que ocupa o seu pensamento?

As filhas e os netos. Neste momento, é o Banco Carregosa. Não penso nos assuntos do banco só quando estou aqui. Não é possível compartimentar. Era uma sociedade financeira de corretagem, que tinha sido uma sociedade corretora, e antes tinha sido corretora em nome individual. O desafio é: “Como é que vou conseguir, neste novo paradigma, enfrentar os desafios? Como é que nos vamos comportar?” Sabe o que gostava de ter? Um conselheiro. Dava-me jeito um conselheiro que tivesse passado.

 

O conselheiro que gostaria de ter era o seu pai, não era?

O pai era muito importante. Mesmo quando estava em casa, já velhinho, tinha as minhas dúvidas e falava com ele. E o facto de ser obrigada a expor a situação, o meu problema, só isso já era uma ajuda. Dizia, quando era miúda, que tinha uma paizite aguda.

 

Mas devia ser recíproco, porque ele escolheu-a. Para lhe suceder.

A minha irmã mais velha até tinha formação em Economia, mas não quis, foi para África. A minha irmã a seguir é médica. Eu fui a única, sem ter uma formação adequada, que tentei. “Porque é que não hei-de tentar?”. Trabalhámos juntos muitos anos, e demo-nos muito bem.

 

O que é que representou a vinda para o Porto, com dez anos?

De princípio, uma grande tristeza.

 

Vila do Conde, onde viviam, era como um longo Verão.

Exactamente. Era uma vila pequenina, as pessoas todas conheciam-se. Transplantarem-me foi difícil: não conhecia ninguém, fui para um liceu novo, o Carolina Michaelis, onde havia mil pessoas. Mil era uma coisa do outro mundo! Senti-me perdida. Lembro-me muito dos barulhos do Porto… O barulho de Vila do Conde devia ser muito silencioso.

 

Como se a vida tivesse, de repente, uma música diferente?

Sim.

 

A grande referência era o seu pai?

A mãe, também. Era uma personalidade fortíssima. Durante grande parte da vida não a terei… hum … Como vivia muito com o pai… hum… Quando os pais ficaram velhinhos ia todos os dias jantar com eles. Para que sentissem que tinham uma pessoa que os acompanhava. As pessoas quando ficam velhinhas ficam muito dependentes e têm muitos medos. A minha preocupação era incutir ao pai e à mãe a ausência de medos.

 

É uma reprodução quase simétrica do que aconteceu na sua infância. Papéis invertidos.

Muito. Passamos todos a ser pais dos nossos pais, não é? Embora fosse uma questão mais psicológica. Mantiveram-se lúcidos até ao fim. A mãe sobreviveu ao pai quatro anos; quando fiquei a sós com ela descobri coisas que até ali não tinha descoberto. A mãe teve a preocupação de se pôr na sombra do meu pai. Queria que tivéssemos no meu pai a figura principal.

 

É de um amor enorme.

Namoraram 11 anos e viveram 60 e não sei quantos anos casados. Não havia vida para além do casamento. (O meu pai fazia festinhas na mão da minha mãe. A mãe tinha uns derrames e o pai fazia-lhe festinhas…). Descobri que a minha mãe era a luz que o meu pai reflectia. Grande parte da força que mostrava e reflectia era a minha mãe que lha dava. Que a mãe, essa sim, era muito forte. O meu pai, sem a minha mãe, não teria sido tão forte.

 

Mas não percebeu isso na altura. Presumo que tenha vivido a vida toda com o paradigma de uma mulher que se eclipsa para que o homem brilhe.

Vivi.

 

No seu caso, e nem estou a pensar no seu casamento, foi o contrário. Não se apagou. Foi a primeira mulher corretora, e a afirmar-se num mundo tradicionalmente masculino.

Absolutamente. Ah, mas não me vai psicanalizar! Isso não pode ser. Nunca fiz, mas adorava ter feito.

 

Ainda vai a tempo.

[Risos]. Um dia, se calhar. Tenho consciência de que o que a minha mãe fez – como disse, eclipsar-se para dar a luz toda ao meu pai – só é possível quando uma pessoa tem uma grande segurança, uma grande força e um grande amor à pessoa em quem projecta a sua luz. Não vou dizer, de todo!, se não fiz isto porque não encontrei um grande amor, ou porque não fui capaz ou porque não era… Se não estávamos aqui como o José Régio: “Despi-me com impudor, que é irmão do desespero”. Nem eu estou desesperada. Mas está muito claro para mim. Fiquei com uma admiração profunda pela minha mãe e, estupidez minha, só percebi isto tarde.

 

Parte do seu trajecto, deriva ainda da paizite aguda: do desejo de brilhar aos olhos do pai.

Era com certeza. Vivia em África e [o meu marido e eu] viemos passar férias; o meu pai disse-me: “Deves ficar, porque África vai ter um fim mau”. Vivia em África, achava que o meu pai não tinha razão. Mas era como se fosse Deus a falar. Não entendemos as atitudes de Deus, mas é Deus. Fiquei.

 

Antes de África, estudou Filologia. Porquê essa escolha?

O meu primeiro curso foi Filologia Clássica. Gostava era de Latim e Grego.

 

Maria Helena Rocha Pereira, notável helenista e latinista, também do Porto, era um exemplo?

A Professora Maria Helena Rocha Pereira dedicou a vida ao estudo, à investigação de uma maneira grandiosa; e não fez absolutamente mais nada. Eu queria muito ter filhos, uma vida de casa como tinha quando era pequenina. Queria reproduzir essa alegria [de quando], como diz o Fernando Pessoa, “eu festejava o dia dos meus anos e ninguém estava morto”. Fiz uns anos do curso de Filologia Clássica, depois interrompi, casei, tive filhos. Voltei para a faculdade, para o 1º ano de Românicas e fiz os cinco anos já casada e com filhos.

 

Quando foi para a faculdade era expectável que não fosse apenas mãe, que tivesse uma formação académica. Ainda não percebi bem qual era o enquadramento socioeconómico. Era normal que tivesse que trabalhar, que precisasse daquele dinheiro?

Não. Eu queria trabalhar por uma questão de afirmação. Queria ter uma palavra a dizer na economia da casa. Não entendia ficar ali muito quietinha e dependente de um só ordenado. Sempre trabalhei. Sempre trabalhei muito.

 

Explique melhor.

Não é muito compatível com aquela confiança que me incutiram e que eu interiorizei. Mas acho que é o meu lado rebelde. É o querer ser eu, a construir.

 

Acha que foi durante muito tempo a filha do seu pai?

Isso não me fazia confusão nenhuma. Até gostava! Tinha um orgulho muito grande!

 

Que características eram imputadas ao seu pai e que admirava especialmente?

A confiança, a seriedade. O nunca ter frustrado as expectativas. Houve um capital de confiança transferido do meu pai para mim. Porque “se ela é [filha daquele homem], de certeza que vai continuar naquela linha de seriedade”.

 

Pelo menos neste aspecto, o negócio imiscui-se na psicanálise… O que é do pai e o que é seu. Ser filha dele e a imagem que disso resulta.

O pai fez a vida dele na Casa Carregosa. Foi uma confiança que foi transferida de pais para filhos, para netos. Havia casos em que já era a 3ª, 4ª geração de pessoas que vinham com a mesma confiança buscar os nossos conselhos e entregar o seu dinheiro. Essa é a preocupação que tenho e que procuro transmitir ao nosso private bank. Agora, tecnicamente, é muito mais exigente. Se não apresentamos bons produtos, a concorrência ganha-nos; e aí, as pessoas podem gostar muito de nós mas não querem ter uma menor rentabilidade do seu dinheiro.

 

O seu pai fez todo o percurso na Casa Carregosa?

Fez. Estudou, não foi para a faculdade; fez estudos médios. Começou a trabalhar muito novo, e esteve lá até aos 80 anos.

Dedicou-se com muito interesse e inteligência e deu muito boas provas. Rapidamente sentiu que aquilo era a casa dele.

 

Voltemos ao momento em que casa, vai para Angola e tem filhos. Podia ter sido um filme, um livro completamente diferente se não tivesse regressado. Se a sua vida se tivesse feito lá.

Em África fui professora e fiz traduções. Vivi em Luanda três anos e depois estive três anos na Companhia dos Diamantes. Foram experiências enriquecedoras, mas profissionalmente não era o que esperava. Eu gostava de ter podido continuar a investigar na minha área, sobretudo na linguística. Se pudesse descurar a parte material, que não podia…, mas não podia, acima de tudo, por uma questão de convicção.

 

Descreva-me esses dias em África. E o que aprendeu na Companhia dos Diamantes.

O que eu fazia era dar aulas. O meu marido era engenheiro e trabalhava na Companhia. Em Luanda a vida era muito solar. Ia para a praia todo o ano.

 

Voltava ao longo verão de Vila do Conde…

Era uma vida simples. O calor empurra para fora de casa. Havia uma desinibição. Acamparmos na praia, tomarmos banho à meia-noite. A Companhia dos Diamantes era muito fechada. Quando lá cheguei, passado pouco tempo, alguém escreveu uma carta anónima ao meu marido dizendo que estavam intrigados porque me ria muito! [risos] Aproveitei para ler. Tinha uma biblioteca óptima.

 

Essa de Angola é diferente da que há pouco estava na sala de trading. E é diferente da primeira corretora da Bolsa portuguesa.

Claro. São realidades distantes

 

O que é que teve de perder ou omitir de si quando passou para este mundo?

Ah, tive que abdicar de muitas coisas! A maneira de vestir. A Casa Carregosa sempre foi austera e habituei-me, sobretudo desde que passei a receber clientes, a apresentar-me de uma determinada maneira. Fazia parte. Era como cumprir o horário.

 

O dress code era o mais discreto possível?

Nada que chamasse a atenção. Mas que se pudesse olhar e dizer: “Está bem”.

 

O cabelo foi sempre curto? Porque é menos (tradicionalmente) feminino?

O cabelo era mais ou menos assim. Significado, não tem nenhum.

 

Retomando: voltou em 1970 a pedido do seu pai. Começou logo a trabalhar e voltou à faculdade.

Esses cinco anos [de curso] foram um bocadinho trabalhosos, porque o meu pai achava que pelo facto de ser filha do patrão não devia ter quaisquer facilidades.

 

Tudo o que aprendeu foi com o seu pai e já na prática?

Exactamente. E com a preocupação de ter alguém que tecnicamente assessorasse.

 

E se não gostasse? E se não fosse capaz? Gostou sempre? Achou sempre que era capaz?

Se eu sentisse que não era possível, provavelmente teria desistido. Devo ter tido sorte nas pessoas que encontrei. Esta sociedade dura há 20 e qualquer coisa anos.

 

Como é que atravessou o período revolucionário em 74?

Foi muito difícil. As casas de câmbios foram extintas. Os bancos tinham sido nacionalizados, os banqueiros tinham fugido, perseguidos. Ao meu pai nunca aconteceu nada. Tínhamos cerca de 20, 30 empregados que foram transferidos para a banca nacionalizada (sem qualquer obrigação de indemnização). Eu fui colocada no Banco Espírito Santo. Claro que nunca lá fui. Estar num banco, numa altura em que as pessoas eram números, ou dar aulas, que também não me agradava, era igual. Então, leccionando teria mais tempo livre.

 

Havia também uma parte de orgulho ferido?

Não. A banca nacionalizada não era interessante. E pensei que a Casa Carregosa, com tantos anos, encontraria uma reconversão que lhe permitisse continuar no mercado. Passados uns anos, eu estava a concorrer a corretora da Bolsa.

 

Significa que tudo podia ter ficado por ali?

Podia ter terminado ali. Mas havia uma vontade de não fechar uma Casa com tanta tradição. O Dr. Artur Santos Silva era Secretário de Estado do Tesouro e dizia que se a Casa precisasse de uma reconversão que deveria encontrá-la e que ele a apoiaria.

 

Quando decide ser corretora, era uma maneira, também, de ajustar contas com o passado e de continuar um projecto que era do seu pai?

Absolutamente! Os câmbios faziam-se em Lisboa, na Rua Augusta e na Rua do Ouro; aí, sim, existia uma população flutuante. Mas o Porto não tinha. Hoje há muitos, os hotéis estão cheios, há Serralves, a Casa da Música. Na Rua das Flores, não passavam tantos estrangeiros que justificassem uma casa estar aberta para vender divisas. Vendíamos e comprávamos títulos. E era assim que constituíamos, sempre com a Bolsa, os investimentos e a rentabilização das carteiras dos nossos clientes. Quando fui nomeada corretora da Bolsa era um negócio semelhante: comprar e vender; e em lugar de entregar a outro, era eu que ia ao floor, era eu que vendia.

 

Quando se tornou a primeira mulher corretora, o seu pai ainda era vivo. Começou em 81, ele faleceu em 97. Ainda assistiu a 16 anos do seu crescimento.

Do meu procedimento. Ainda foram uns anos a trabalhar com ele como corretora da Bolsa e, depois, em casa.

 

Que tipo de conselhos, que tipo de apoio lhe dava?

Os conselhos que dá quem tem experiência.

 

Aposta aqui, não apostes acolá? Faz isto, não faças aquilo?

Não era tanto isso. Era mais: observa muito, procura ver todos os enfoques, procura ver que tipo de pessoas são os teus interlocutores.

 

Ou seja, aprende a conhecer o outro. O que é fundamental neste negócio.

É.

 

Para antever, antecipar traições ou deslealdades? Por causa das boas apostas?

É sobretudo por causa disso. Normalmente faço-o por intuição. Acho que não tenho, que não consigo [fazer] aquilo que o meu pai conseguiu: radiografar as pessoas. Chegava lá mais depressa.

 

Quando é que perdeu a ingenuidade?

Esta ingenuidade veio sempre aliada a um grande respeito pelo trabalho. Mas na vida privada nunca tive a preocupação de apreciar muito o outro – como hoje tenho. Não sei em que altura é que dei o salto. Achava que as pessoas eram todas boas. Também ainda não caí no extremo oposto de dizer são todos maus!

 

Que perguntas se faz para perceber se o outro é fiável ou não, se lhe interessa ou não? Qual é a motivação do outro? O que é que ele tem a ganhar e a perder? Quais são os seus pecadillos?

O mais importante é ouvir muito bem. No outro dia citava um provérbio árabe com o qual me identifico: se temos dois ouvidos e uma boca só, devemos ouvir mais do que falar. Ouvir, observar, é fundamental. Mais do que perguntar. As pessoas acabam por nos dizer, se tivermos o cuidado de ouvir. Ou contam uma experiência semelhante. Ou são tremendamente fechadas – o que às vezes quer dizer [que têm a esconder] qualquer coisa.

 

Diz-se que nunca se irrita, nunca perde a calma, nem em pleno crash da Bolsa. Como é que aprendeu a ser assim?

É a minha natureza. Sou pouco expansiva. Não sou de muitos foguetes, de muitas palmas, de muitos barulhos. E é uma dádiva do céu ser-se equilibrada. Mas irrito-me, irrito-me muito. Irrito-me quando me mentem. Fiquei irritada com aquela frase do Prof. Cavaco Silva ou do Dr. Miguel Cadilhe [em pleno crash]: que na Bolsa se vendia gato por lebre. Senti-me muito injustiçada, muito ofendida, porque achei que não era verdade.

 

Como é que exprime essa irritação?

Sobretudo para mim. Que ninguém tem nada que sofrer com os nossos problemas. Quando estou mal disposta, e é muito raro, procuro fazer um esforço para que as pessoas não notem. Não quer dizer que às vezes não me irrite e não fale mais alto.

 

O que corre é que não se irrita e que mantém uma atitude fleumática em momentos de crise. Como um aristocrata a quem as paixões mundanas não atingem. Há um provérbio inglês que diz: “I don’t wear my feelings on my sleeves”.

Percebo o que diz, mas não é verdade. Isso tem a ver com o facto de eu achar que as pessoas que tratam de dinheiro não se devem expor. Devem projectar uma imagem de seriedade mas não devem dizer mais nada de si. Não devem ter cor política, não devem ser muito abertos. Estão ali num espírito de servir, de fazer uma obra. A pessoa que está atrás do balcão deve ser anónima. E só deve dar satisfações da sua vida [se necessário, para que os outros] confiem nela. O resto não interessa. Acho que me devo preservar. O sigilo profissional é muito importante. Peço a toda a gente que trabalha comigo que lá para fora não transpire nada. Quem é que veio cá, quem é, nada, nada.

 

Nem à mulher.

Nem à mulher! Uma vez, um cliente da Casa, que estava em processo de divórcio, falou com o meu pai; a senhora, a esposa era muito rica e o marido queria saber exactamente o que é que ela tinha. “O senhor a mim pode dizer, porque sou marido dela”. O meu pai respondeu: “Então, mais uma razão: como marido, ela conta-lhe tudo!” [risos].

 

Com quem é que tem relações de intimidade? A quem é que se dá sem reservas, sem medir o jogo do outro?

Isso acontece com as filhas, com aqueles a quem chamo meus, o meu clã, os meus amigos mais íntimos (muito poucos).

 

Tudo isto é como se fosse uma pequena família, de sangue e não só, mas cuja entrada é altamente escrutinada.

Aqui no Banco, sobretudo na administração, tenho verdadeira amizade pelas pessoas que trabalham comigo, alguns há 20 e muitos anos. Mas outros, conheço muito pouco da vida deles. E vivemos bem assim.

 

Portanto, estamos num clube secreto!

[risos] Não tem nada de secreto. Tem de sigiloso, porque tem que ser. Não nos mostrarmos não é negativo.

 

Posso pedir-lhe que me descreva a sua casa? Como é que a vê, o que é que procurou que ela tivesse.

Vejo-a como o sítio mais confortável do mundo.

 

É parecido com o espaço onde estamos, o seu gabinete de trabalho no Banco?

É o estilo.

 

Desde que começámos a conversa, há mais de uma hora, ainda não falámos de dinheiro.

Costumo dizer que o dinheiro é um bom servo, mas um mau senhor.

 

Na sua vida passou por momentos em que tinha mais dinheiro, menos dinheiro? Como é que lidou com esta oscilação, com a importância que o dinheiro foi ganhando ou perdendo na sua vida?

Vivi sempre muito bem. Toda a vida confiei que os meus pais, se me acontecesse alguma coisa, tratariam [disso]. A velhice! Tenho muito medo de ficar sem dinheiro.

 

Ou seja, teme ficar dependente. Da debilidade em que se pode ficar na velhice.

Estamos sempre a falar do mesmo, tem razão.

 

Liberdade, dependência.

Liberdade e dependência, é verdade. Mas tenho confiança nas filhas. Conto incondicionalmente com elas!

 

Tem 65 anos e está a começar uma aventura. Que pode correr mal.

Não corre mal! De maneira nenhuma!

 

Estou só a tentar perceber até onde está disposta a arriscar – uma vida de trabalho.

Não tem razões para correr mal. O nosso animus é o melhor. É o mais empenhado, é o mais sério, é o mais preocupado. A nossa experiência também é um valor. Imponderáveis há sempre. Digo confiantemente que não pode [correr mal]. Mas claro que pode haver elementos exógenos que venham transtornar as perspectivas – um 11 de Setembro, uma revolução, esta crise. Nós não queremos crescer muito.

 

Qual é a vossa aposta?

Queremos continuar a fazer a corretagem, a corretagem online e a corretagem tradicional, e a fazer a gestão de carteiras. Procurar dar o máximo de rentabilidade aos nossos clientes. [O nosso modelo] é o daquele banco suíço, de patrão, que não vai para a bolsa, que não vai ser cotado, que toda a gente conhece e que vive de geração em geração. Era isto que eu gostava de deixar. Claro que é uma ousadia da minha parte querer-me comparar com esses banqueiros. Mas podemos ter um modelo inspirador para imitar.

 

Insisto: avança com este projecto numa fase avançada da sua vida.

A ideia de nos transformarmos num banco existe, pelo menos, há uns dois anos. A sua concretização é que coincidiu com uma época de crise. O Senhor Américo Amorim diz que isto não é uma crise, é uma nova ordem económica. Mas há aquilo que nunca muda: gerir o dinheiro dos outros com seriedade e competência. E que o cliente esteja capacitado daquilo que fazemos com o seu dinheiro.

 

Essa foi a principal herança que recebeu do seu pai?

Foi. Na altura não se falava muito da transparência. Mas acho que se usava.

 

As palavras essenciais que aparecem nesta conversa e no seu meio são: valor, dinheiro, legado, troca.

Tenho a ousadia de pensar que conseguimos transmitir aos nossos clientes o respeito que temos pelos valores. E não teremos muita gente que nos venha propor negócios muito extraordinários. Acho que não nos procurarão.

 

Então, se isto está sobretudo assente numa identidade, numa imagem, a credibilidade dessa pessoa, a história que ela carrega é fundamental.

Sou a mais velha, estou cá há mais tempo e tenho a sorte de ter herdado esse capital de confiança. Mas com certeza que há outros rostos.

 

O que é que não é negociável? O que é que não se pode vender ou comprar?

A honra, a seriedade! O bom-nome! É importante protegê-lo. Não se vende, não se troca por nada.

 

Pensa no seu pai todos os dias?

Todos os dias, mais que do que uma vez ao dia. Os meus pais estão tão presentes em mim, sempre.

 

Quando obtiveram a licença do Banco de Portugal para passarem a operar como banco foi nele que pensou?

Foi, e tive muita pena que não estivesse cá para ver. Era um ombro onde eu queria chorar de alegria! Ele e a minha mãe sabiam exactamente o que isso representava para mim. Estou em fim de carreira, mas é a história da Casa. É o culminar de um esforço. E é muito importante quem cá fica.

 

Gosta especialmente de três filmes: “África Minha”, “A Idade da Inocência” e “O Paciente Inglês”. O que há nestes três filmes em comum é a melancolia e a nostalgia de um amor impossível.

É capaz. É capaz.

 

Estava à espera que fosse mais fria, que revelasse menos a sua sensibilidade. Há uma lamechice que não se permite…

Que não me permito. Sobretudo quando penso numa entrevista, não me devo permitir; porque não interessa a quem a lê, no Jornal de Negócios.

 

Se lesse esta entrevista a outra pessoa no Jornal de Negócios e ela dissesse estas coisas…

Não me chocava nada!

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2009

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Pedro Norton de Matos

23.02.15

Um dia, ele percebeu que “há vida para além dos indicadores económico-financeiros”. Um dia, ele ouviu um amigo que lhe disse: “A pessoa já não quer ser o que não é, quer ser ela própria”.

O catalisador foi um enfarte. Um acontecimento trágico que ele descreve como uma sorte, um sinal, uma oportunidade.

Pedro Norton de Matos foi um executivo daqueles que fazem tudo aquilo que não se deve fazer ao corpo. Mesmo que, desde sempre, estivesse o desporto. “É um excelente palco para desenvolver a capacidade de dar espaço aos outros, para nos valorizar e enriquecer a nós”. O que é que o futebol tem a ver com a personalidade, com o modo como nos posicionamos profissionalmente? O que é que um defesa faz na presidência da ONI?

Pratica desporto, portanto. Vê pássaros. “Não é preciso viajar para ver pássaros. Também não tenho no agregado familiar a mesma paixão, não quero impingir circuitos para bird watchers. Se lhe disser que há muito mais de 20 espécies em Lisboa, isto surpreende quem pensa que a maior parte dos pássaros são pardais, pombos ou gaivotas”.

Conversar com Pedro Norton de Matos é perguntar de raiz: o que pretendemos, afinal?, ter sucesso ou ser felizes? E é tremendo pensar que muitas vezes os termos são antagónicos, incompatíveis, paradoxais.

Tem a simpatia (genuína) e a disponibilidade de quem está de bem com a vida. Tem qualquer coisa de homem que podia aparecer num anúncio zen (e isto é um elogio). A conversa podia soar fiada não fosse ele acreditar (e praticar) aquilo que diz, preconizar um modelo holístico que se explicita adiante, e fazê-lo consistentemente. Em pano de fundo à nossa conversa, pouco depois das nove da manhã, estava o Tejo, o barulho de quintais de Lisboa e um quadro maravilhoso de José Pedro Croft.

 

Porque é que um homem que cita Aquilino, na frase “aldeia, terra, gente e bichos”, andou tantos anos afastado disto?

Cito com muita convicção, mas não andei afastado. As minhas memórias de infância são muito ligadas à ruralidade. Quando encontrei Aquilino Ribeiro na adolescência, comecei por Quando os Lobos Uivam. Entusiasmei-me, e nos dois anos seguintes creio que li a obra toda. Estava deslumbrado com a escrita, com o retrato de regiões que conheço bem. Cito-o porque os meus referenciais maiores estão na terra, nas pessoas e na natureza, bichos, fauna. Só acrescentaria hoje o aspecto da flora.

 

Quando o provoco dizendo que andou tanto tempo afastado disto, é porque tenho a ideia que tudo na sua vida mudou depois da camoeca que lhe deu em 2005. Como se o seu enfarte o tivesse acordado para a harmonia e um outro estilo de vida, do qual parecia estar desligado.

Depois de acabar a minha formação em gestão de empresas, a minha vida profissional fez-se na área das tecnologias de ponta, informática e telecomunicações. As TIC, Tecnologias de Informação e Comunicação, são áreas que por definição têm um ritmo de evolução alucinante (quando um produto sai já há outro na linha de partida). Esta intensidade fez com que procurasse equilibrar esse lado com o lado dos valores associados à ruralidade e seus modos de vida – que nunca deixei.

As memórias de infância, de uma infância muito feliz, têm muito a ver com casas de campo, quintas de família. Aqui volta o Aquilino: do lado materno ligado à zona da Beira Alta, de Mangualde; e do lado paterno ligado a Ponte de Lima. Não terei falhado um único ano nas férias de Verão, em Setembro ia para Ponte de Lima. A oito quilómetros, não havia electricidade. Tenho o cheiro dos candeeiros a petróleo, muito antes dos primeiros geradores.

 

A relação com a terra é, então, por via da família.

Estivemos em África, em Moçambique. Não tenho memórias vivas, só de ver álbuns de recordação e de histórias. Tinha uns meses quando fui para lá e vivi lá um ano. O meu pai é agrónomo, estava num grande projecto agrícola no Vale do Limpopo. A minha mãe, um dos grandes receios que tinha era que naquele contacto com a natureza (mexia em tudo o que era sítio) me magoasse. Quando se discute o que é inato e o que é adquirido…, numa família de sete irmãos, sou o mais ligado à terra.

 

Mas não estudou agronomia.

Além de uma grande alegria de viver, tenho um conjunto de interesses alargado. Poderia ser agrónomo, veterinário, biólogo, psicólogo… A minha mãe encontrou numas arrumações relatórios da pré-primária que fazem a descrição da minha evolução enquanto criança. Uma vez mais falam no subir às árvores, nos bichos nos bolsos. Acabei por apanhar o ritmo da natureza. Uma das coisas que sinto, e que está ligada a projectos de sustentabilidade, tem a ver com o facto de nos afastarmos e contrariarmos os ritmos da natureza. Aprendi muito ao ritmo das estações, ao ritmo do nascer e morrer.


A respeitar ciclos?

A valorizar os diferentes ciclos e a enquadrá-los dentro deste ritmo sábio da natureza.

 

Os ritmos alucinantes, vertiginosos do trabalho são altamente desrespeitadores de tudo.

E símbolo disso: a fugacidade das coisas, o usar e o deitar fora.

 

Depois do enfarte, é verdade que tudo mudou na sua vida. Há um ritmo de vida que é diferente, há objectivos de vida que são diferentes. Esse lado sempre existiu, mas não tinha a mesma força na sua vida quotidiana.

Sem dúvida. Conseguia ir buscar este equilíbrio nos fins-de-semana, nas férias, em alguns hobbies, mas era sempre aquém da vontade e do tempo que gostaria de dedicar a isso. Quando tenho o meu episódio de saúde, no fundo sinto-me um privilegiado. Tenho sorte de ter tido esse aviso…

 

É extraordinário o que acaba de dizer. Tinha 50 anos?

Estava a um mês de fazer 50 anos. Digo que foi uma sorte enorme porque, não só não deixou sequelas, como serviu de aviso. Permitiu estabelecer outras prioridades. É certo que coincidia com uma vontade de mudança. Hoje em dia, já mais distanciado, percebo que estava dentro de uma máquina, de um rolo compressor. Falo muito, até em termos profissionais, com executivos das mais variadas áreas e idades; revejo-me em pessoas que estão dentro da máquina e que terão alguma dificuldade em distanciar-se o suficiente para se poderem observar dentro desse rolo.

 

É o que sente nas sessões de coaching (uma das coisas de que se ocupa), que as pessoas estão dentro desse rolo? E que não sabem muito bem como sair dele e ganhar distância em relação a outras dimensões da sua vida?

Há um desafio enorme. No limite cada um de nós quer ser feliz, quer ter um equilíbrio entre a sua vida pessoal e profissional, entre a sua parte física, mental e espiritual, numa perspectiva mais completa, mais holística.

 

Acha que é mesmo isso que as pessoas querem?

Acho. Podem é querê-lo de formas diferentes. Não há uma forma universal, o elixir da felicidade, uma receita que se vá aviar à farmácia. Há pessoas que encontram no materialismo a satisfação.

 

Justamente neste meio, parece que as pessoas estão focadas no sucesso, em alguns sinais que são sintomáticos desse reconhecimento social. E isso parece ter uma primazia absoluta sobre outros planos da vida. Significa que para essas pessoas a ideia de ser feliz corresponde ao sucesso?

Sim. As diferentes filosofias e civilizações procuram diferentes fórmulas. O próprio sucesso é entendido de formas diferentes. Se pensássemos que no bem-estar material havia uma relação de causa/efeito, então chegaríamos à conclusão de que na civilização ocidental, em termos de PIB per capita e outros macro-indicadores económico-financeiros, tínhamos pessoas mais felizes.

 

E depois temos a Suécia, com a sua taxa de suicídios elevada, para nos mostrar como tudo isso está errado.

Esse pode ser um indicador, mas há muitos outros, como o consumo de anti-depressivos. O Sarkozy agarrou um bocadinho nesta perspectiva: os índices de evolução não podem ser meramente económicos. Há vida para além dos indicadores económico-financeiros. Um autor francês, [Gilles] Lipovetsky, num livro notável, A Felicidade ParadoxalEnsaio Sobre a Sociedade de Hiper-consumo, analisa este paradoxo da felicidade, aquilo a que ele chama o homo consumericus. O homo consumericus, de consumo em consumo, vai procurando a satisfação, mas tornando-se paradoxalmente mais insatisfeito. Muitos dos valores vigentes nesta sociedade, o tal estereótipo do sucesso, a competitividade em que as coisas acontecem, não parecem estar a conduzir o homem a uma situação mais feliz.

 

O enfarte despertou-o, foi um sinal para o fazer sentir que estar dentro desse rolo compressor não o fazia feliz.

Mas com contradições, e assumo essas contradições. Sinto-me também uma pessoa de desafios. A maior parte das coisas que fiz nessa fase de vida mais intensa, foram coisas que, do ponto de vista profissional, me deram gozo, muitas delas gratificantes em termos de aprendizagem.

 

Nesses anos o que é que perseguia?, ser um ganhador?

As coisas foram acontecendo, mas à medida que vão acontecendo quase nos perguntamos: “so what?”. No meu caso aconteceram com naturalidade, com a energia e com a ambição que coloquei nelas, com o brio profissional de não ser uma pessoa que faz as coisas a meio termo. Houve sempre essa determinação, não como objectivo último, mas sim num caminho que se faz caminhando. E à medida que as coisas iam acontecendo, eu próprio perguntava-me: “O que é que têm de diferente?”. Porque também percebia o quão efémero são os aspectos associados ao poder. Fui colocando as coisas em perspectiva.

 

Depois de conseguir, perguntava-se “so what?”. Mas até conquistar, não tinha a atitude do diletante que não se propõe conquistar.

Sinto que na minha essência não mudei, não me tornei diferente, nomeadamente nas relações inter-pessoais. Nas alturas de maior protagonismo, de maior poder profissional.

 

Mas houve uma determinação por trás disso, não se chega a número um da ONI por acaso.

Sempre houve essa energia positiva. Caracterizando-me, sou uma pessoa de ver o copo meio cheio. A certa altura, na minha carreira na Unisys, estava responsável pela Europa do sul. Fui convidado para ser o representante europeu do grupo de trabalho a reportar directamente ao presidente da corporação. Foram escolhidas dez pessoas a nível mundial para esse grupo de trabalho. Eram funções de muito contacto com o mercado, com os clientes, fomos convidados para desenhar o novo modelo go to market. Acabou por ser o meu último ano de Unisys, estava com esse posto internacional, vivia em Madrid. Estava numa multinacional a olhar para o mundo todo, a olhar para 100 países, e não só para o nosso mercado mais limitado.

 

E era um dos dez, o que também faz bem ao ego.

Exactamente, e era o representante europeu. Mas foi muito desgastante do ponto de vista físico e até familiar. Esse grupo de trabalho encontrava-se nos Estados Unidos à segunda, terça e quarta. Viajava ao domingo para os Estados Unidos, voltava na quarta à noite, chegava à Europa na quinta de manhã, e voltava no domingo. Estava quinta e sexta em trabalho na Europa do sul, e estaria com a família no sábado. Isto durou quatro meses, com os intervalos em que a família foi a Nova Iorque. Às vezes, a meio da noite, não sabia onde é que estava, se num quarto de hotel se na minha casa.

Com a conclusão desse trabalho, sou convidado para ir viver para a Florida e ficar responsável de todas as operações da América Latina e Caraíbas, com sede em Boca Raton, perto de Miami. Seria mais um degrau na carreira. E recusei.

 

Recusou cheio de dúvidas?

Recusei convictamente. Com o argumento, verdadeiro, da família. Seria disruptivo. Isto para dizer que a minha ambição é de fazer as coisas bem, gostar do que se está a fazer.

 

Mas não estava disposto a pagar a factura que, nomeadamente, pusesse em causa a sua estabilidade familiar.

Volto à questão dos equilíbrios.

 

Isso foi quanto tempo antes?

Cinco anos antes. Depois fui convidado para o projecto da ONI, que me atraiu desde logo por várias razões, entre elas a base ser em Portugal. Foram seis anos muito intensos, cinco anos como primeiro executivo; depois do meu acidente de saúde fiquei mais um ano mas em funções não-executivas. Foi já um ano sabático, de transição, no meu íntimo já tinha muitas decisões tomadas. Na cama do hospital, nos cuidados intensivos, prometi à minha mulher e às minhas filhas que ia mudar de vida.

 

Costumam ser promessas vãs. Conheço poucas pessoas que verdadeiramente tenham mudado de vida, mesmo depois de um acidente com essa gravidade, e com a sua idade. Factor não despiciente: é um homem muito novo.

Já me debatia com estas contradições de que falava. Por um lado, o gosto de fazer coisas aliciantes, por outro lado, o custo a pagar em termos de menor disponibilidade para os outros interesses da vida. Nisso o organismo muitas vezes é sábio, dá-nos os sinais, mas não os queremos entender. Tenho um tipo de personalidade mais susceptível de poder ter acidentes cardiovasculares.

 

Como assim?

É uma energia de ir aos desafios, de ir à luta, de alguma impaciência, intolerância com a mediocridade, coisas desse género. Perfis mais desgastantes do ponto de vista metabólico. Stress. E aqui voltamos ao ritmo da natureza. Perante as ameaças, enfrentamos ou recuamos e fugimos – esse é um bocadinho o nosso ADN de evolução biológica. No mundo moderno (está também estudado), quando passa os limites, e sinto que tinha passado limites, acaba por ser um stress crónico.

 

Tinha perfeita noção disso?

Era das pessoas que pensavam que tinham o stress controlado, habituadas a viver com o stress. Mas o organismo disse que não.

 

Quando jogava futebol, jogava em que posição? Para ver se tem alguma relação com isto de que estamos a falar. Não era um defesa…

Era médio. Hoje em dia, no futebol moderno, todos atacam e todos defendem; naquela altura o médio era a transição entre a defesa e o ataque, era o estar no campo todo. Gostei muito das funções de médio. Mais tarde, no futebol amador, fui recuando para defesa central. Mas um defesa central com características muito atacantes. Ter uma visão de helicóptero do campo, ter uma visão periférica do campo, com a possibilidade de também atacar.

 

Podemos extrair daqui alguma ilação acerca do seu modo de estar? O seu modo de estar profissionalmente, de olhar para as situações, de se relacionar com outros.

Os desportos de equipa, e gostei em particular do futebol, foi sempre uma paixão. E até uma paixão familiar; o meu irmão mais velho teve bastante protagonismo no futebol profissional [Luís Norton de Matos]. Fomos muito incentivados pelo meu pai, que também tinha sido praticante – “mente sã em corpo são”. Vi no desporto uma escola de virtudes. É algo que não aprendemos na escola, é mais a escola da vida. Como aprender a saber ganhar, a saber perder, a gerir e a controlar emoções, a vivê-las. A questão da solidariedade, do espírito de equipa, o colocar o interesse colectivo acima do interesse individual. E como é que, sobre pressão, nos comportamos.

 

Se há grace under pressure

Ando a trabalhar estes temas. Naquele ano sabático, dentro dos meus múltiplos interesses acabei por ter de me centrar em dois, que acabaram por resultar na criação de empresas. Quis criar empresas-boutique. Não quero dimensão, quero foco, flexibilidade, pragmatismo. Escolhi as pessoas, capital humano, explorando caminhos como o da inteligência emocional, social, e também a área da saúde, do bem-estar e da sustentabilidade.

 

Cresceu numa família de sete irmãos. Os vossos pais educaram-vos para em campo serem o Cristiano Ronaldo? Não sei qual é que era o jogador que na altura vos inspirava.

Fui juvenil e júnior do Benfica. O Eusébio, de quem fiquei amigo, era sénior no Benfica, e em alguns treinos os miúdos treinavam com os graúdos. O Eusébio e outros craques constituíam referências. Na primária ou na pré-primária já estávamos no Ginásio Clube Português, experimentámos o râguebi, tivemos aulas de boxe (mais pela preparação física e mental, nunca praticámos). Estava no colégio São João de Brito, de jesuítas, e os meus irmãos também; evidenciámo-nos pelo jeito no futebol. O meu irmão mais velho e eu fazemos uma diferença de 14 meses, crescemos muito juntos. Fomos convidados para ir para o Estoril, para os juvenis, depois para o Benfica. O meu pai, contrariamente aos pais dos nossos amigos, tinha uma perspectiva muito aberta.

 

Sobretudo no vosso quadro social, o futebol não era uma opção seriamente considerada.

Era quase obrigatório ter boas notas para poder continuar a fazer o que nos apaixonava. O meu irmão acabou por fazer o INEF, Educação Física, foi estudar para Coimbra e jogar na Académica. Eu estava nos juniores, já no segundo ano de Económicas. Não fui jogar para o meu clube de paixão, que era a Académica. Um ano depois sou chumbado no centro de Medicina Desportiva com um pretenso problema cardíaco, o chamado coração de atleta, que me impediu de jogar.

 

Não se pôde profissionalizar, ao contrário do seu irmão.

Não. Segui outra via.

 

O que era expectável que fizessem? Situe-me no que era a vossa vida, porque isso também importou na sua formação.

Desde logo, uma matriz familiar forte. A família do meu pai era mais conservadora, tradicional, o ramo Norton. O ramo Costa Cabral, da minha mãe, era mais liberal. Acabaram por nos dar uma educação mista, equilibrada. Tenho um referencial grande nos meus avós paternos, até pela tal vivência regular. Vivíamos perto, na Alameda das Linhas de Torres, e depois nos Setembros, em Ponte de Lima.

 

Era no tempo em que no Lumiar umas casas apalaçadas acolhiam as grandes famílias?

Sim. Uma casa apalaçada com um jardim muito grande. Um tio-avô meu, que vivia lá, quando ia à Baixa, dizia: “Vou a Lisboa”. O meu avô era um juiz de carreira, muito culto. Não era comunicativo, mas fazia aos netos umas charadas. Só para dar o tom: “Dois carros encontram-se numa via que só tem lugar para um, um deles tem que recuar, estão ambos à mesma distância de uma saída; quem é que recua?”. Colocava esta questão e nós, miúdos, dávamos os nossos palpites. A resposta certa era: “Recua o mais bem-educado”. [riso]

A educação dos meus pais foi muito no sentido de nos darem as ferramentas e mostrar a importância da nossa formação, académica e moral, sempre num quadro judaico-cristão. Não havia temas tabu para se discutir. A minha mãe foi sempre uma católica progressista, questionando e procurando aprofundar. Isso permitiu que cada um de nós seguisse o seu caminho, fizesse as suas opções.

 

A figura do General Norton de Matos, fundador da cidade do Huambo, Governador da província de Angola, era dominante na família? Era a referência, mesmo que ausente, na família?

Só em parte. Nasci em Fevereiro de 55, e o General morreu em Janeiro de 55.

 

Disse, “o General”, e não “o meu tio-bisavô”.

O meu irmão ainda tem fotografias ao colo do General, já idoso, com 80 e tal anos. Foi sempre um importante referencial, mas não único. Até porque outras figuras da família se tinham notabilizado e eram mais próximas em termos de idade. O meu bisavô foi reitor da Universidade de Coimbra e era também juiz. O meu avô nasceu em Goa, fez toda a sua carreira de juiz e foi presidente da Caixa Geral de Depósitos. A área conservadora da família era predominantemente salazarista, e o General era alguém que em relação ao regime era um crítico, construtivo.

Uma vez em férias, em Sines, dávamo-nos com rapazes e raparigas da nossa idade, e uma dada família não queria que se dessem connosco porque o nosso tio-bisavô tinha sido grão-mestre da Maçonaria.

 

Famílias numerosas? Tem a sua importância perceber como conquistam um espaço, uma saliência, inclusive social.

Éramos muitos. A minha mãe, 12 irmãos, o meu pai, sete irmãos, nós, sete irmãos. Os meus Natais de infância eram reuniões familiares de 50 pessoas, de muitos netos. Os avós tinham essas casas apalaçadas, grandes, que permitiam isso. Tínhamos direito a estar à mesa, a partir da adolescência ou pré-adolescência. Nos jantares de quarta-feira ficava fascinado a ouvir as conversas, de uma mesa grande, com 20 pessoas.

 

Mas insisto: se muitos se destacam, a expectativa é a de que isso também aconteça na vossa geração?

Todos os meus tios se destacaram nas suas actividades e nas suas personalidades. Mas igualmente na família da minha mãe. Estou aqui a recordar coisas que vão saindo da caixinha da memória. Os serões em Ponte de Lima: depois do jantar, nove e tal, juntávamo-nos numa escadaria de pedra, nas noites boas de Setembro, e tínhamos a via láctea como testemunha das nossas conversas. Entretínhamo-nos a aprender as constelações, vi passar o Sputnik, o primeiro satélite, com a cadela Laika. Tinha vontade de crescer depressa, no ranking familiar teria que esperar um bocadinho para opinar [riso].

 

Gostava de falar do seu interesse pelos pássaros. Os gregos antigos adivinhavam o futuro no movimento do voo das aves e na análise das vísceras dos animais mortos. Estava a pensar no que será que vê quando vê o voo das aves.

Vejo beleza, estética, aerodinâmica, harmonia. Vejo tanta coisa no voo dos pássaros. Como na graciosidade dos próprios pássaros.

 

Fica mais encantado com o som ou com o movimento?

Num pássaro encanta-me tudo. A proporção, o canto. Sobre os pássaros fui lendo, fui aprendendo, fui observando. Os pássaros que passam mais tempo em Portugal, conheço-os pelo voo, pela plumagem, pelo canto, conheço os hábitos de nidificação (com que tipo de materiais, a que tipo de altura, em que tipo de circunstância fazem os ninhos). E aquele namoriscar dos pássaros, a reprodução... Aprecio também nos pássaros o dimorfismo sexual, que é um palavrão para dizer que na maior parte das espécies há uma diferença entre o macho e a fêmea em termos de plumagem, em termos de beleza. São os machos que são mais vistosos. As paradas nupciais: há tantas afinidades com o mundo humano… Os machos a quererem pressionar as fêmeas com as suas plumagens, as suas cores. É conhecida a dança do pavão, mas quantos pavões não há nos humanos?

 

Qual é o seu pássaro preferido, o canto preferido?

É difícil. Se pensar num passarinho de canto, com aquela fragilidade, como é que é possível sair uma voz tão maviosa, tão melódica de um corpinho tão pequeno? Para atirar com um pássaro que é uma referência do norte, desde a minha infância: o pisco-de-peito-ruivo. É um pássaro muito bonito, tem um canto longo e dobra o canto, tem várias tonalidades. É um canto de quem está em harmonia com o seu meio envolvente.

 

Qual foi o primeiro pássaro que teve, pediu, apanhou?

Não sei dizer qual foi o primeiro. Tive a sorte de viver sempre com espaços verdes. Apanhava muitos pássaros, um ninho, uma asa partida, dava de comer, levava para casa. Já adulto, numa reunião daquelas importantíssimas, liga-me a minha filha mais nova a dizer que tinha caído um borracho, um pombo pequeno, da palmeira do jardim, no Lumiar (durante muitos anos vivi numa casa no fundo do jardim que os meus pais conservavam). “Encontrei um pombo, o que é que lhe dou de comer?”. [riso] Achei maravilhoso. Deu-se-lhe o nome de Palmeirim porque tinha caído de uma palmeira.

 

Ainda não percebi é porque é que não foi veterinário ou biólogo e foi gestor.

Ainda posso vir a ser. Quando fiz 50 anos recebi um livro de uma amiga americana, um livro que cito muitas vezes em algumas das minhas actividades profissionais, The Power Years. É escrito por três indivíduos da geração do baby boom, que terão agora 60 e tal anos, e que retratam uma realidade moderna, num mundo chamado desenvolvido. Depois dos 50, a pessoa tem os filhos criados, integrados na vida activa, e nessas idades sabe-se mais o que se quer e o que não se quer. Um amigo meu dizia: “A pessoa já não quer ser o que não é, quer ser ela própria”. Pode ir buscar às gavetas os sonhos, os projectos.

 

Para ser finalmente quem é.

Exactamente. Os anos do poder são aqueles em que se assume o poder do “eu”, já não tanto egocêntrico. Um “eu” muito mais de individualidade do que de individualismo. O “eu” de auto-estima. O livro está recheado de exemplos fantásticos, do que é que as pessoas fazem nesses anos em que têm o poder. Há bocadinho dizia “ainda posso vir a ser”; porque não? Desempenharia bem as funções de biólogo. Havia um espanhol que fazia O Homem e a Terra, Félix Rodríguez de la Fuente, uns programas de televisão promovidos pela TVE; andava pelo mundo todo, fascinava-me. Morreu num acidente de avioneta, a filmar uma corrida de cães esquimós. Esse era para mim o ideal de vida.

 

Fale mais dele e desse ideal. Como é que adapta isso à vida que escolheu ter?

Vivia numa quinta perto de Madrid, tinha quase um hospital de campanha de recuperação de animais, e passava o ano a viajar. Tinha sempre possibilidade de, onde ia filmar, passar uma temporada, e interagia com as culturas, os povos. Tinha o lado de antropólogo, de sociólogo.

Do meu treino profissional ficou-me muito a questão do multi-tasking, o gosto de fazer várias coisas. Hoje em dia tenho uma actividade díspar mas com um denominador comum bastante alargado. São projectos ligados a pessoas, capital humano, inteligência emocional, como é que isto nas empresas se traduz em melhor desempenho e em equipas de melhor desempenho. Por outro lado, a área da saúde, em termos de bem-estar, que não é só físico, é mental e espiritual. E o tema da sustentabilidade, ambiental, social e económica, que me levou a ser o dinamizador principal do Green Fest [que se realizou recentemente em Portugal]. Voltámos ao ponto da “aldeia, terra, gente e bichos”…

Toda esta crise, mais do que financeira, é uma crise de modelo. Este hiper-consumo em que caímos, e esta evolução desde a Revolução Industrial – o modelo está esgotado. Há aqui uma interrogação: “Que modelo de desenvolvimento é que vamos ter?”.

 

Qual?

Termino dizendo: um em que as pessoas, e as sociedades em geral, se sintam mais equilibradas e mais felizes.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2010

 

 

Paulo Teixeira Pinto (2006)

22.02.15

Esta é a história de um homem que em menino tinha cara de homem. Nasceu em Nova Lisboa, (Huambo), numa África branca e administrativa. As pessoas à volta diziam que tinha ar de adulto. Não se imaginam as suas gargalhadas. Viveu o horror da guerra civil quando tinha 14 anos. Não gosta de recordar esse período nem de olhar para o passado.

É um homem elíptico, misterioso, que usa palavras que já ninguém usa, que se perde nas paisagens surreais de Bosch ou Dalí, que cita Heidegger, Borges ou Alice no País das Maravilhas. “Há uma frase de que gosto especialmente. É quando Alice pergunta se o caminho para onde vai é bom. A resposta é: “Depende para onde queiras ir...”. Ela diz: “Tanto me faz”. “Então, esse caminho serve”.

Os seus caminhos são transparentes, e simultaneamente enigmáticos. Fez o curso de Direito, experimentou a carreira académica, quis ser político, foi secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros. O presidente do Millennium BCP é um homem ainda jovem que tem mais cabelos brancos do que há um ano atrás. Nasceu em 1960. É casado, tem dois filhos. Acertámos que a dimensão familiar ficaria excluída da conversa e que a razão disso seria explicitada.

As páginas seguintes resumem horas de conversa divididas em duas partes, na sala contígua ao seu gabinete. É uma sala pomposa. No gabinete tem pinturas maravilhosas de Menez ou Almada Negreiros (o artista português que mais admira). Mas na sala onde estamos há quadros de Malhoa e salvas de prata. Felizmente a conversa situa-se mais no ambiente intimista e depurado da sua sala de trabalho.

Paulo Teixeira Pinto diz sempre aquilo que pode ser escutado. 

 

É bastante surpreendente o seu interesse por autores como Boris Vian. Não encaixa na imagem que temos de si. Podemos começar simbolicamente pelo escritor francês para falar do facto de não coincidirmos com a nossa imagem pública.

O Boris Vian é um dos meus autores nucleares. A sua capacidade de descrever a realidade de um modo (quase) surrealista tem mais pontos de contacto com a realidade positiva do que imaginamos. A ideia que fazemos dos outros é, por definição, limitada. Como alguns antigos diziam: “Definir c’est finir”, definir é limitar as coisas. Ninguém é unidimensional, felizmente. Mas um interesse acaba por ser prevalecente em termos de conhecimento público.

 

As pessoas procuram a coerência? Quando falámos a primeira vez disse-me: “Escrevem e pensam de mim sempre as mesmas coisas: que sou Opus Dei, que sou católico, que sou monárquico”.

E tudo isso também é verdade.

 

Mas tudo isto tem o mesmo som. A surpresa resulta de uma aparente contradição. É mais difícil operar uma síntese de elementos inconciliáveis.

Essa inconciliação só é aparente. As pessoas têm uma dimensão poliédrica, como se fossem um caleidoscópio: podem ser vistas de diferentes perspectivas, cores, movimentos. Em cada momento, somos mais do que nós próprios e a nossa circunstância, apesar do célebre aforismo do Ortega Y Gasset. E entendo que a realidade ôntica é mais importante do que a imagem.

 

O que é que fica? É mais a realidade ôntica ou a imagem que vai sendo construída?

Gosto de pensar que tenho, não vários heterónimos, mas vários homónimos_ se é possível dizer assim. O que fica, se não nos quisermos converter na imagem que os outros têm de nós, seja ela qual for, é a realidade tal como ela é.

 

E qual é? Num dos seus livros escreve: “O que é a verdade?”.

É uma pergunta feita por Pôncio Pilates, na Paixão de Cristo. É uma interpelação fulminante. A verdade existe, objectiva e exterior à interpretação subjectiva de cada um. A realidade é que cada pessoa não pode deixar de ter essa dimensão multifacetada e polissémica. Nalguns casos, a combinação dessa diversidade resulta mais surpreendente, inverosímil.

 

Usa em epígrafe uma frase de Boris Vian: “Não existe a felicidade da humanidade, existe a felicidade de cada homem”.

Conduz, no fundo, a este conceito: não existe a humanidade, existem os homens. Este cuidado de pensar que cada pessoa, cada situação, cada momento, é único e irrepetível é algo que me diz muito.

 

Se quisermos, numa linha, ir à política, à luz do que está a dizer, o comunismo, a diluição do indivíduo no Estado, é qualquer coisa que é para si impensável.

Sim. Interessa-me a prevalência do homem, como sujeito, não apenas o indivíduo. Aprendi em miúdo, com o latim, que cada palavra não tem o seu absoluto sinónimo, porque cada uma nasceu para significar coisas diferentes. O homem é o seu invólucro e é aquilo que habita o seu invólucro. É esta concepção antropológica que está, para mim, na origem de todas as mundivivências. O que está na origem de todos os totalitarismos, não apenas do comunismo, é sempre um ideal transpersonalista, um ideal que supera a própria pessoa com uma realidade.

 

Se transpusermos isto para o âmbito da religião, há na tríade Deus, Filho e Espírito Santo uma relação fusional – não existem individualmente. Se pensarmos numa organização tão estruturada quanto a Opus Dei, existe essa atenção e espaço para se ser individualmente?

Tem que existir. Essa é a razão pela qual acredito que Deus se fez homem.

 

Essa preocupação com o destino do próximo, expressa na frase de Boris Vian, significa cuidar, intervir?

Exactamente. Algumas vezes isto é feito, católicos incluídos, como uma espécie de alforria de consciência – pagar para ter boa consciência. Mandar comida para a Etiópia e para o Biafra são actividades muito úteis e beneméritas, mas não é caridade. A caridade significa sobretudo a partilha dos [tormentos] daqueles que sofrem. Como os que estão na situação mais lastimável da condição humana, que é o desespero.

 

Alguma vez sentiu desespero?

Senti uma vez um medo muito grande de que acontecesse uma tragédia, que para mim seria uma situação de desespero.

 

Pode dizer mais sobre isso?

Publicamente não.

 

A pergunta deveria ter sido feita de outra maneira. Deveria ser: “Alguma vez se sentiu desesperado?”, uma vez que estamos a falar do indivíduo, e não em termos abstractos.

Outra forma de fazer a pergunta é se alguma vez senti que Deus me abandonou. Não. Senti que muitas vezes abandonei Deus.

 

O que é que o fez abandonar Deus?

Sempre que fazemos alguma coisa, no pleno uso da nossa liberdade e da nossa racionalidade (as duas têm que estar ligadas), que seja contrário àquilo em que acreditamos, estamos a desligar-nos de Deus.


Fiquei surpreendida quando li nos seus livros palavras nos quais não o revia. Parece sempre, quer pessoalmente, quer nos livros, entre a formalidade e a ironia.

É outra coisa pouco conhecida em mim, a ironia.

 

A palavra “humilhação” é uma dessas. Não consigo imaginar o que possa significar para si.

Um sinónimo, para mim, de humilhação é revolta, porque uma coisa induz a outra. No mundo em que vivemos formalmente não há castas, mas a verdade é que a sociedade está cada vez mais estratificada. A organização pode ser feita por afinidade social, económica, ideológica…

 

Familiar. Religiosa.
Religiosa, também.

 

Até pela orientação sexual.

O que seja. Há uma espécie de microsistemas de ligações mais complexas. Num mundo assim não pode ser tolerável que subsistam os párias, os excluídos de uma sociedade. A humilhação consiste em dar a uma pessoa um tratamento que não é condigno com o estatuto de pessoa.


Todas as pessoas são “igualmente” pessoas?

Todas. Todos os homens, independentemente do seu percurso de vida, das suas convicções, da sua actuação, não podem deixar de ser tratados como pessoas. Essa é a razão pela qual sempre fui contra a pena de morte. [Mesmo] nos crimes contra a humanidade, nos casos de genocídio. A aplicação da pena de morte é uma humilhação, não só para aquele que é condenado, mas também para aquele que a aplica. É um direito com o qual nenhum de nós nasceu, o de tirar a vida ao outro.

 

No índice de um dos livros encontrei um texto chamado “Paixões Bestiais”, e comecei por esse. Na verdade era sobre bestas...

É uma bênção uma vez na vida viver paixões bestiais, (no sentido de estarem para além do controlo da pessoa). Eu acho que a vida tem que ser vivida até ao limite. O Papa anterior dizia uma coisa de que gostei muito: tinha a eternidade inteira para descansar. Independentemente de se acreditar ou não na eternidade, a vida tem que ser vivida com intensidade. Para mim, uma das formas de intensidade é a velocidade. Claro que tem um reverso que me cria um grande problema, que é o da impaciência.

 

Mas uma coisa são paixões ocasionais, entusiasmos, outra coisa é perder a cabeça. Eu referia-me a estas. Entende-as como bênção e não como ameaça?

Quando deixamos de ser o sujeito titular da relação com as coisas, em vez de possuirmos as coisas, são as coisas que acabam por nos possuir a nós. E podem ser coisas materiais, ou desígnios intelectuais...

 

Ou pessoas.

Ou pessoas. Diria que qualquer situação em que o homem perca o autodomínio, é lastimável. Não estou a dizer condenável, porque isso implica um juízo. É lastimável que alguém que é portador de faculdades como a inteligência, a memória e a vontade perca o controlo sobre si próprio. Vontade é o que nos distingue de todas as coisas e é o que nos torna homens. Quando se perde, de alguma forma perde-se também um pouco da nossa densidade, da nossa dimensão humana.

 

Sendo muito sensível, nomeadamente às artes, fala pouco dos sentidos: do toque, do olfactivo..., de qualquer coisa que é mais animal...

É uma observação acutilante. Tenho uma conexão com a realidade que é muito mais intelectual do que sensorial. E isso leva a dificuldades.

 

Porquê?

Porque [há um desejo] de perceber tudo do ponto de vista da vontade, da intelectualidade, de estabelecer uma verosimilhança lógica. (Gosto muito de lógica). Há um limite a partir do qual não conseguimos perceber a realidade. Por natureza, temos capacidades limitadas, e eu particularmente sinto as minhas.

 

Por que é que o seu modo de acesso à realidade é mais intelectual do que sensorial?

Todos os dons da natureza humana têm que ser educados. Essa é uma das maravilhas da nossa condição: a incapacidade de chegar à perfeição, e a capacidade ilimitada de caminhar em direcção a ela. Mas o caminho que cada um faz para encontrar essa identidade é inato. É quase como criar empatia: num primeiro momento, faz com que um entenda os olhos do outro. O que está por trás desse olhar não resultou de nenhuma educação, foi assim porque foi assim. É essa incerteza que torna as coisas belas. Gosto de acreditar na liberdade do mundo, de não haver coisas pré-determinadas ou destinadas. Sou completamente antifatalista.

 

Não existem, de todo, destinos?

Eu acho que o homem é verdadeiramente livre.

 

Pode ou não ter condições para cumprir o que aponta para si. É o que quer dizer?

Sim. O homem é até livre de não escolher a verdade, mesmo quando ela se lhe apresenta irrefutável e evidente. É uma das maravilhas da liberdade, a escolha.

 

Gosta da palavra resiliência?

Gosto muito. Significa mais do que resistência. O Heiddeger dizia que “a palavra é o palácio do Ser”. Acredito que as palavras não são só sons ou grafias, alguma coisa habita nelas. Essa palavra tem um sentido de vida em que me reconheço.


Ainda os sentidos: nasceu em Angola, uma terra de que se fala de modo muito sensorial. Mitifica-se África com horizontes intermináveis, o cheiro da terra, a presença dos bichos...

Essa ideia romântica de África, que para algumas pessoas terá sido verdadeira, nunca fez parte da minha vida. Nasci numa cidade completamente “europeia”, no sentido em que era uma cidade artificial, criada administrativamente. Tinha um propósito, quando foi fundada, de ser uma espécie de Brasília para Angola. Já li que era a única cidade em África que tinha mais habitantes brancos que negros. A vida que fiz até aos 14 anos, que foi a altura em que vim embora…

 

Veio, com a sua família, depois do 25 de Abril?

Vim já em 1975. Só quando a guerra civil… É um período que prefiro não lembrar. Não é próprio para ninguém, muito menos para pessoas de 14 ou 15 anos, viver num cenário de horror como esse. Mas até aí, a vida que fiz, se se tivesse passado numa outra cidade em Portugal, teria sido igual.


Em que momento teve pela primeira vez consciência de que existia? Lembra-se?

Lembro. A primeira vez que percebi que era “eu” e o que significava “o outro” foi quando nasceu o meu irmão. Não tinha ainda três anos. Tenho bem presente [esta noção]: o outro era a mesma coisa, porque era do mesmo pai e da mesma mãe, mas era outro e não eu.

 

Viveu essa existência do outro como uma ameaça? O medo marca também o território da consciência.

As situações em que senti medo foram aquelas em que os que amo podiam correr algum risco. Felizmente nunca mais tive uma situação de confrontação [como aquela, em África]. No período em que começou a guerra civil, eu nunca tinha ouvido um tiro, nunca tinha visto mortos e feridos … Tudo podia ter acontecido. Recordo-me perfeitamente que, [mesmo no decorrer dos acontecimentos], nunca deixei de fazer o que estava a fazer. Se estava a estudar, continuava a estudar, se estava a ler, continuava a ler.

 

O que isso quer dizer é que não deixa que o medo tome conta de si.

Julgo que isso não depende da vontade. Ninguém decide se pode ou não ter medo.

 

Pode sentir medo, mas não deixa de fazer aquilo que está a fazer; é uma maneira de resistir.

Aí foi um bocadinho da tal resiliência. Muitas vezes é acreditar que não vai acontecer nada, não pode acontecer. Não nasci para isto. Eu não digo que não tenho medo, todos os homens têm medo. O homem que não o diga é porque nunca experimentou ou porque mente. O meu medo é sempre em relação a alguém.

 

É o medo de perder um laço que lhe é essencial, precioso. Ainda menino, lá atrás, era bem-comportado, arrumado, sozinho?

Era uma criança normal e tive uma infância feliz. Não gosto de olhar para o passado. Não guardo coisas a meu respeito, não revisito álbuns de fotografias e de memórias.

 

Se olhar para uma fotografia sua quando era pequenino, reconhece-se no olhar?

O que toda a gente dizia era que eu não tinha cara de menino e tinha cara de homem. Tinha um ar adulto. Daquilo que posso honestamente recordar é que era bom aluno e bem comportado. Tive uma fase de rebeldia, ou pelo menos de alguma irreverência, na transição para a adolescência, que todos os miúdos têm.

 

Tinha algum brinquedo com que gostasse de brincar? (Continuo à procura de surpresas, factos, memórias que não encaixem no que esperamos de si...)

Sempre tive a ideia de que vou acabar por perder todas as coisas que tenho. As coisas materiais. E por isso, gosto de sentir que são minhas, mas que sou eu que as possuo e não elas que me possuem a mim. Essa experiência [em África], de um dia para o outro ter de abdicar das minhas coisas, terá contribuído para a minha formação. Tudo parece ter uma importância macroscópica, diluviana... E depois, ao nosso lado, há dramas verdadeiramente sérios. Percebemos quanta sorte temos, apesar de todas as desventuras. Tenho muita sorte na vida. Já tive mais do que mereço, tenho isso perfeitamente claro.

 

Continuava a ler, a estudar, apesar do horror que passava à sua volta. Dizia: “Não nasci para isto, não nasci para ter uma vida interrompida aos 14 anos”. Imaginava que tinha nascido para quê?

Desde os seis anos que dizia que ia estudar Direito. Houve uma altura, antes de entrar para a universidade, em que pensei que, se calhar, do que gostava mais era de Filosofia. Mas se tirasse Filosofia não tinha opções na vida. Foi a única vez que problematizei a escolha. Tirei Direito, mas nunca me imaginei advogado ou juiz. Achava que ia ser político.

 

As três experiências essenciais da sua vida são a académica, a política e a financeira. A primeira, apesar de expressiva no currículo, não foi tão impactante em termos de reconhecimento público.

Interrompi a carreira, não ganhei notoriedade. Não foi aí que atingi alguma posição de mais responsabilidade. Acredito num provérbio árabe que diz que aquilo que merece ser feito, tem de ser bem feito. Tive um professor, de quem fui assistente, que me disse que eu abraçava cada função como se fosse a minha vocação natural.

 

Não fazer as coisas contrariado é diferente de inclinação natural, daquilo a que vulgarmente se chama talento.

Faço as coisas com brio. Mas, de todas, aquela que me criava mais empolgamento era dar aulas. O que é paradoxal ou contraditório com o facto de ter feito o curso sem assistir às aulas. Optei por estudar por mim.

 

Trabalhava?

Não. Dedicava-me a outras coisas, lia outras coisas, que achava mais interessantes do que o Direito. Antes dos exames estudava o que tinha que estudar e acabei a licenciatura em termos que me permitiram entrar para docente da Faculdade.

 

Na faculdade, podia destacar-se? É uma coisa fundamental para si, a notoriedade? Não me refiro ao ocupar cargos de destaque, mas a uma distinção, pelo brio e inteligência.

Nunca pensei nisso como um objectivo ou uma necessidade. Se há função que está na sombra, hoje em dia, é a vida universitária. Um especialista em Direito Comercial ou Direito Administrativo pode ganhar muito dinheiro, como consultor, como profissional liberal. Não é o caso de alguém que se põe a estudar o século XVI, como eu estava. Estudava o governo de Portugal durante o tempo dos Filipes. Supostamente ia ser a minha tese de doutoramento. Acabei por não entregar porque fui para o governo… Até me custa a dizer isto: há 15 anos.

 

Gostava de introduzir o tema da confiança. Quando se tem muito a perder, confia-se mais dificilmente. Em quem é que confia? O que teria a perder se a confiança que depositou em alguém fosse traída?

A confiança é o activo mais valioso que temos. Não se traduz numa realidade contabilística ou algébrica, mas é um valor fundamental. A confiança e a reputação. Considero-me repleto de defeitos, mas com algum dote para avaliar a natureza humana. Prefiro sempre errar por ter confiado, e um dia perceber que alguém não mereceu essa confiança, do que o contrário, ter desconfiado de alguém que provava merecer essa confiança.

 

Não é desconfiado?

Não. Tenho uma visão de algum cepticismo sobre a natureza humana, que é outra coisa. Não acredito que o homem seja naturalmente bom. Acho, ao contrário, que o homem é naturalmente mau. E é através da educação que pode adquirir valores como a disciplina, a convicção, fazer-se melhor.


Essa “maldade” congénita pode emergir em momentos menos controlados, menos educados, onde se impõe aquilo que é do domínio da sobrevivência?

É preciso ter uma disciplina interior forte para que não sejam os instintos a predominar sobre o intelecto. A confiança: seria incapaz de colaborar com alguém em quem não confiasse. Não me passa pela cabeça pôr em dúvida a palavra ou a bondade com que decidem os que estão perto de mim. Não fecho gavetas à chave, não tranco portas.


Está a dizer isso no sentido metafórico ou literal?

Literal.

 

Não tem medo de estar sob escuta?

Nenhum. Digo sempre aquilo que pode ser escutado. Aquilo que digo ao telefone pode ser escutado por qualquer pessoa, embora só interesse, em princípio, à pessoa com quem estou a conversar.

 

Mesmo que só se diga alto o que pode ser escutado por todos, quando se tem muito a perder, tudo é medido...

Eu distingo a confiança da prudência. Nunca faço a prova diabólica, que é obrigar os outros a provar o que estão a dizer. Dou por adquirido aquilo que me é dito como sendo a verdade.

 

O que é que tem a perder? O que é mais precioso para si?

Quando acreditamos em nós próprios, nunca temos nada a perder. Perder os bens materiais: isso já vivi na adolescência, e não é determinante para a formação ou para a felicidade de alguém. De todas as coisas que estão dentro do coração, a esperança é a coisa mais terrível que se pode perder. Aquilo que está ínsito no coração de todos os homens, mesmo naqueles que não o sabem e não reconhecem, é a demanda da felicidade.

 

Tenho uma palavra do calibre do seu “ínsito”, que é “ínvios”! Mesmo que sejam ínvios os caminhos por onde se procura a felicidade.

O caminho para a felicidade de cada homem é seguramente diferente de todos os outros. Eu não sei o que é um caminho ínvio, pode é ser um caminho de engano.

 

Eu não estava a pensar em caminhos imorais. Estava a pensar no erro que é próprio da procura. Até se encontrar.

E muitas vezes, não se acha toda a vida. Sendo aquilo que é mais comum a todos os homens, devem ser muito poucos aqueles que reconhecem que têm a felicidade. Nesse aspecto, considero-me raro.

 

Porquê?

Nunca me considerei infeliz.

 

Sente-se mais feliz hoje do que há dez anos, do que há 20 anos?

Não sei o que é que sentia há dez anos. Sei que me senti sempre bem na minha pele. Não tenho aquilo a que se chama a mística do “oxalá”. “Se eu tivesse feito, se eu fosse”. É uma forma de utopia, inviável, seria uma reescrita da história. É evidente que tive momentos de tristeza. Mas a tristeza circunstancial não é o estado de infelicidade permanente.


A dilaceração em que muitas vezes nos achamos, quando, perante uma bifurcação, não sabemos que caminho tomar, não é um tema nuclear na sua vida?

A vida é um acto permanente de escolhas, mesmo por omissão. Tal como no xadrez, não podemos evitar que os adversários joguem. Temos sempre que fazer uma escolha, mesmo que seja não mexer numa pedra. E não é possível querer uma coisa e não querer os efeitos decorrentes dessa opção.

 

Podemos é não estar completamente conscientes dos efeitos e dos resultados dessa escolha.

Normalmente não estamos. Às vezes temos a sensação de que é a vida que escolhe por nós e não nós que escolhemos a vida. Já me aconteceu algumas vezes ter mudado de vida por circunstâncias que não derivaram do meu impulso. Podem ter derivado da minha aceitação, mas não da minha opção. Quando fui para o governo, por exemplo, ou quando passei a ter estas funções no banco. Não era algo que pudesse procurar.

 

Foi uma surpresa quando o convidaram para este cargo?
Absoluta. Recordo-me que foi ao final da manhã, mas não me recordo do dia. Fiquei espantado... Foi muito simples: não pedi períodos de reflexão, disse apenas isto: “Confio em quem confia em mim”. Se as pessoas que tiveram maior responsabilidade na construção desta instituição, e que são as mais habilitadas a decidir o que é melhor para o futuro da instituição, consideram que eu protagonizo essa solução, confio em quem confia em mim.

 

Não se interrogou por que é que foi o escolhido?

Não. Isso implicaria fazer um juízo comparativo com outros que poderiam ter sido escolhidos.

 

Por que é que não queria fazer esse juízo comparativo? Por ser infrutífero? De qualquer modo, tinha sido o escolhido.

Muitas vezes as coisas são mais simples do que possam parecer. Tal como me foram apresentadas, sei que isto não resultou de uma reflexão de véspera. Embora tenha sido uma surpresa, a única forma de merecer essa confiança era dizer que acreditava nela.

 

Isso ao mesmo tempo dá-lhe segurança para o exercício diário das suas funções.

Há cargos que não podem ser exercidos por pessoas inseguras. Não tenho a pretensão de decidir tudo bem, mas tenho a pretensão, firme e segura, de decidir sempre que tiver que decidir, e decidir com toda a liberdade e confiança. Será dificil acertar sempre, mas isso não me inibe de decidir.

 

Gosta desse exercício da decisão? A sua voz ganhou uma tonalidade diferente agora que falou disso.

Gerir é sobretudo decidir, é fixar uma missão, definir os meios e decidir os momentos. E fazê-lo com toda a confiança e esperança. Uma das regras instituídas nesta casa é que só o melhor é suficiente, e não admite medidas e comparações com outra coisa que não seja melhor. Medirmo-nos e superarmo-nos é uma forma de respeito para com aqueles a quem servimos.

 

Pode dizer quem foi o seu interlocutor, quem foi a pessoa que o convidou?

Foi o Presidente do Conselho Superior, que é o órgão onde têm assento os accionistas mais relevantes do banco.

 

E nesse dia, horas depois desse convite, em que é que pensou?

Não podia partilhá-lo com ninguém até ser público. A minha mulher foi a única pessoa que soube durante alguns dias. Comecei a pensar, desde o primeiro momento, como é que deveria exercer o cargo, e qual a melhor maneira de servir o banco.

 

É profundamente católico, mas não usa expressões como “Se Deus me ajudar”, nem cita os salmos…

Não.

 

É como se o seu rigoroso catolicismo fosse uma coisa discreta.

É uma dimensão interior, que nunca neguei mas que não tenho que exibir. Transformar a realidade está nas nossas mãos. Somos livres, e devemos, ao abrigo deste livre arbítrio, procurar o nosso caminho. Qualquer que seja a importância na hierarquia social, o resultado da liberdade de todos nós é a transformação de pedras em pão.

 

Pensa muito na morte?

Penso. Não sou mórbido, tenho muita alegria na vida, mas é a única coisa certa que temos. Todos vivemos com uma espécie de convicção íntima de eternidade. A morte é uma coisa que acontece aos outros, agimos em cada momento como isso não fosse connosco.

 

Ou é, simplesmente, a maneira de tornar os dias mais habitáveis... Se nos centramos na ideia da inexorabilidade da morte, isto fica invivível…

Precisamente. De todas as formas de morte, aquela que mais me sensibiliza é a dos suicidas. Porque é o contrário da esperança. Apesar da qualificação teológica, porque é um atentado contra a vida, não consigo emitir qualquer juízo de culpabilidade sobre quem está nessa situação. Pelo contrário.

Seria pretensão ou ilusão elevada a um grau exponencial pensar que só a bondade habita em mim. Todos temos momentos de erro. Uma coisa é a nossa fragilidade interior, outra coisa é o Mal que se pretende repercutir noutros e que tem muitas consequências e emanações. De todos os chamados defeitos capitais, há um a que me julgo imune: o da inveja.

 

Por que é que não inveja? Significa que tem tudo aquilo que quer?

Não, basicamente tem a ver com o ponto de me reconhecer na minha fragilidade, feliz com a maneira como vivo, como sou. E dentro de mim não habita só o meu eu. Habita, eu acredito, uma realidade que me transcende.

 

Mas quais fragilidades? Quais são as suas fragilidades?

Aquela que é para mim mais visível é a impaciência. Outra é ter dificuldade em partilhar em público aquilo que são os meus defeitos, ou o que possam ser os meus atributos. Procuro conhecer-me a mim mesmo, como um mapa interior de que conheça todos os locais.

 

Há uma parte de si que é muito silenciosa, não sei se muito solitária. É nesses campos que habitam os seus lados lunares?
Sempre gostei da descrição, e isso não tem a ver nem com segredo. Tem a ver com uma idiossincrasia, com uma preferência natural em não ser o centro da atenção. O silêncio, sim, é algo que me atrai. Há coisas que só se podem ouvir no silêncio. Perante as pessoas que me rodeiam, penso que sou transparente. Embora algumas vezes se diga que sou enigmático. Num dos livros de curso um colega retrata-me como sendo enigmático.

 

Na primeira sessão desta entrevista, há cerca de duas semanas, falámos avulsamente de coisas improváveis como gostar do Futebol Clube do Porto, de banda desenhada ou dos Surrealistas. Tudo isso contrasta com a imagem unívoca que temos de si. Não permite que esses elementos expludam, porque há uma ideia de coerência a que não pode fugir?

É um ângulo interessante... Nenhum homem é unidimensional. Embora alguns sejam mais uniformes e outros tenham faces esculpidas em dimensões diferentes. Se fôssemos um sólido, uns seriam mais quadrados, outros mais esféricos. Eu seria certamente uma pedra com muitos lados irregulares.

 

Desde que assumiu a presidência do banco a sua expressão corporal rigidificou-se. Claro que tem mais cabelos brancos do que tinha há uns anos...

Mais do que tinha há um ano. No outro dia vi gravações de declarações que fiz há um ano e meio e eu próprio fiquei admirado!

 

Achou que tinha de se formalizar?

Não, de todo. Aliás, procedo exactamente da mesma maneira com todas as pessoas que trabalham comigo e todas me tratam exactamente como me tratavam antes. Houve, por absurdo, quem me perguntasse como é que me passava a tratar... Se tivéssemos tido esta conversa há dois anos veria que era da mesma maneira.

 

Dá gargalhadas? Nunca o ouvi dar uma gargalhada, só pequenos risos.

Isso é muito raro, de facto. Normalmente é o absurdo, ou o irónico, ou o subtil, que me desperta humor, e não o óbvio. Os chamados filmes cómicos não são coisa que aprecie.

 

Se vê ”O Pecado Mora ao Lado”, com a Marilyn, não me diga que não ri à gargalhada... Ou o “Quanto Mais Quente Melhor”, ambos do Billy Wilder.

Gosto muito do humor inglês, que é diferente do humor grosseiro, das piadas. Mas reconheço que mesmo a rir a minha forma é contida.

 

Tem ambições políticas?

Nem poucas nem muitas. Decidi, quando aceitei este cargo, que era algo que ficava definitivamente sepultado na minha história.

 

O que é que isso quer dizer? Que vai ficar na banca até aos 62 ou 63 anos?

Não penso estar toda a vida no banco. Há cargos que pela sua natureza não devem ser exercidos eternamente. Se há quem se sinta anestesiado pela tentação da eternidade, são os titulares do poder. Acrescido de um outro problema: uma necessidade quase doentia de serem amados. Qualquer político precisa que gostem de si.


Qualquer pessoa.

Sim. A diferença é que os que não são políticos gostam que os outros, que têm nome e rosto, gostem de si. Um político gosta que a massa goste de si. Uma reflexão que os titulares do poder político deviam fazer é que cada dia que passa é menos um que falta para sair.

 

Está sempre pronto para sair?

Exactamente. No subconsciente dos decisores, muitas vezes está o contrário – é mais um dia em que se exerceu o poder. Todos vão ter que sair. Se alguém entrar para o exercício do poder político contando os dias ao contrário, tem uma humildade maior, e tem um sentido de urgência e de gestão diferente.

 

E isso aplica-se ao seu modo de estar no banco?

Também é o que está na minha empresa. Nunca neguei que sempre tive um gosto político, mas esta função é incompatível com qualquer grau de intervenção, directo ou indirecto, na vida política. E quando estou a dizer política, não é só partidária. Não creio que seja provável, para não dizer que considero impossível, voltar à vida política.

 

Falhou a possibilidade de compra do banco da Roménia. O sucesso da OPA sobre o BPI é uma incógnita. A possibilidade de isto não correr bem é uma coisa que o inquieta?

Não, nada. Nesta ponderação não existe o medo. Estou obrigado a correr riscos com sensatez, equilíbrio, mas a fazer tudo quanto estiver ao meu alcance para criar valor para o banco. Na Roménia poderíamos ter ganho. Seria fácil para mim invocar a glória de ter tido sucesso numa grande operação de privatização, comprando o maior banco de um país terceiro. Mas isso não era valor para os accionistas do Millenium BCP.

 

Como assim?

Para ganhar, teria que oferecer um preço maior do que aquele que oferecemos. E oferecemos o máximo do que achámos que podíamos oferecer. Pus condições: o aumento de capital não podia ultrapassar determinado limite, e não precisaríamos de mais de três anos para gerar um valor adicional àquele que era oferecido. Poderíamos ter comprado o BCR ultrapassando uma destas regras, mas tínhamos um compromisso e os compromissos são para se manter.

 

Em relação à OPA...

A mesma coisa: se fosse fácil, já estava feito. Se fosse fácil comprar o BPI, já outros tinham comprado. Se eu pensasse exclusivamente na protecção da minha imagem, como se estivesse a fazer uma carreira, não tomaria decisões tão…

 

Arriscadas?

Não só arriscadas, mas de impacto tão grande. E de sucesso incerto. Deixaria passar uns anos, calmamente, deixaria as ondas correrem por si. Mas não é a minha forma de agir. Desde o primeiro momento que penso que tenho que aplicar todos os recursos disponíveis, todo o entusiasmo. Uma das funções principais de uma liderança é transmitir ânimo aos outros, empenho num projecto, sentindo que o tempo corre contra nós, que a realidade não é estática.

 

Que projecto é o seu, essencialmente?

Aquilo que temos em mente é constituir um banco, que, sendo de origem portuguesa, cada vez será menos português para ser cada vez mais internacional. E que tem a ambição de protagonizar alguma coisa de mais relevante, de se medir com maiores e melhores fora da paróquia.

 

E se corre mal?

Se corre mal, os outros julgarão. Não posso ter medo. Eu acredito, sou optimista. Neste caso, não é uma questão de optimismo, é uma questão de racionalidade e confiança. O meu critério é simples: o que pode ser feito, tem que ser feito. Isto também significa que o que pode ser tentado tem que ser tentado. Procurar a excelência significa também tomar as decisões correctas, mesmo que de sucesso incerto.

 

Acordámos que não falaríamos da sua família. Gostava de perguntar se a entrevista resultaria muito diferente se tivéssemos abordado o lado familiar.

O meu eu é sempre o mesmo. Tenho hoje uma exposição pública que não posso evitar. Mas posso tentar proteger uma reserva de vida íntima que abrange os que estão comigo: os meus pais, o meu irmão, os meus filhos, a minha mulher. Prezo muito a minha família, vivo muito o espírito de família, o que faz com que nunca tenha quebrado isto.

 

Muitas vezes, as chaves de um indivíduo estão nesse reduto mais íntimo, mais familiar, ou que diz respeito à infância.

Mas não, no meu entendimento não. Não teria alterado aquilo que eu disse.


Diz-se que vai todos os dias à missa, que é um católico fervoroso, que leva a sua mulher todos os dias ao trabalho. Há nisto um lado folclórico, em que gostamos de acreditar quando o outro é enigmático. Procuramos aí uma espessura mais humana, e acessível.

Não sou inacessível. Espero ter a lucidez suficiente para não permitir qualquer tipo de culto de personalidade. Revelei há anos que sou membro da Opus Dei. Quando as pessoas exercem cargos públicos não devem manter reservados factos que possam permitir aos outros mudar de juízo a seu respeito. É claro que nunca ninguém me perguntou se eu era da Sociedade de História, de Geografia, do Círculo Eça de Queirós…

 

Isso não tem o mesmo protagonismo nem o mesmo poder, como é óbvio. E é de poder que se trata.

Não, não. Não há poder nenhum na Opus Dei.

 

Não?!

Nenhum. Nunca recebi, nem toleraria receber, qualquer ordem ou instrução temporal, ou sugestão, sequer. E também nunca a daria a ninguém. Tem exclusivamente a ver com uma forma de viver a vocação cristã.

 

Está a dizer que é mítica a ideia de poder (esmagador) da Opus Dei?

Absolutamente mítica. Sem qualquer aderência à realidade.

 

Se o senhor não fosse Opus Dei, católico cumpridor, duvido que estivesse no lugar onde hoje está.

Tenho que pensar que estaria. Que me escolheram por quaisquer outros critérios que não esses. O ser Opus Dei não pode ser ouvido, nem relevante, em nenhuma decisão da vida profissional das pessoas. Como não foi parte no processo de candidatura para assistente, ou quando fui convidado para membro do governo. Se neste caso concreto fui escolhido, foi por factores que tiveram a ver com a minha personalidade e com a minha capacidade profissional, não por qualquer outra razão do destino.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2006

 

 

Para o José Medeiros Ferreira

20.02.15

Que outras pessoas conhecem capazes de reunir numa sala, dois dias, pessoas tão, tão diferentes a falar de uma vida, a celebrar uma vida? Esta sala é uma amostra do que era José Medeiros Ferreira. Personalidade caleidoscópica, riquíssima, com rara intuição para ver o desenho do futuro, inteligência poderosa, as qualidades que todos sabemos.

Eu gosto de olhar para ele como uma criança que se diverte com o seu brinquedo. E o brinquedo é o pensamento. E a diversão é uma forma de estar, talvez a única: manifesta o gozo de estar vivo, de abrir os olhos, muito, e rir-se do mundo, de tudo, de ter prazer na descoberta do mundo, na intervenção no mundo, como se isso fosse uma contínua brincadeira.

Numa das entrevistas que lhe fiz, perguntei-lhe que personagem seria no Júlio César, de Shakespeare, que citava muito. A resposta: “Li esse livro na Biblioteca de Ponta Delgada, com 16 anos. Foi talvez o melhor livro sobre o drama da actividade política. Vou dizer o Marco António. Por causa da frase de Júlio César sobre os seus amigos políticos: “Não temo António porque ele é alegre, bon vivant, dorme bem, está satisfeito com ele próprio”. Além do acto de fidelidade pos mortem ao Júlio César, muito bonito.”

Não é difícil reconhecer Medeiros nesta descrição: uma pessoa alegre, que dorme bem e é fiel – aos amigos, à liberdade, a si próprio. Alguém que, e volto a citá-lo, está pronto a nascer todos os dias, como uma criança. Que dá mais importância à sua existência do que à sua actividade. Por mais decisiva que fosse a actividade.

Uma amostra disso, falando da sua juventude.

- O que é que queria, mudar o mundo?

- Se pudesse, naquela altura era o mínimo [riso].

O mundo foi mudado por Medeiros Ferreira em todos os sentidos. O político, o universitário, o pensamento, pessoal... Ele tocou a vida e tocou-nos com a sua. E que deslumbramento isso ter sido feito graça e inteligência! Sublinho a graça: tocado pela graça. Se fosse só inteligência, seria tanto, e não seria a mesma coisa.

Uma pergunta para terminar: de onde vem Medeiros Ferreira? De que terra brota uma existência como a dele, a de alguém que sabe o seu lugar no mundo? Algumas pistas: “Não me sinto superior a ninguém, mas nunca senti ninguém em cima de mim. Há pessoas que admiro, mas não há ninguém de quem possa dizer que exerceu uma autoridade moral sobre mim. Os meus pais, claro, deram-me uma educação de grande empenhamento, valores clássicos e tradicionais, uma educação para a responsabilidade.”

Ele fez-se nos Açores: “Eu escrevia num jornal, que ainda existe, o Correio dos Açores, cujo director era amigo do meu pai, o Dr. Gaspar Read Henriques. Fazia crítica de cinema, como se faz aos 16, 17 anos, e ele publicava-me na primeira página. O meu pai assinava os jornais do continente, A Bola, o Diário de Notícias. Iam de barco, era mais barato. No princípio dos anos 50, havia duas carreiras regulares de Lisboa para São Miguel: o Carvalho Araújo e o Lima, de 15 em 15 dias. Eram barcos que tinham sido confiscados aos alemães no tempo da Primeira Guerra Mundial.” Quanta informação está nestas linhas, e a fluidez com que passa de uma a outra.

O texto da Maria Emília no livro de homenagem deixa-nos saber que foi muito amado, e sabia da centralidade deste amor. Talvez essa tenha sido a sua terra mais fecunda.

 

 

O essencial da comunicação que fiz na Gulbenkian, na homenagem a JMF nos dias 19 e 20 de Fev. de 2015

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