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Anabela Mota Ribeiro

Simonetta Luz Afonso

19.02.15

Há aquela cena das «Pontes de Madison County», da filha que desembrulha cuidadosamente as cartas dos pais e os conhece num tempo em que não os conhecia ainda. E depois, no filme, há a surpresa do que se encontra... Simonetta adiou anos e anos essa leitura. Viveu-os como um processo de maturação. A ganhar coragem para abrir a porta. E depois leu-os linha a linha, e descobriu-os coincidentes com aqueles que durante anos foram o seu pai e a sua mãe.

Há nesta entrevista uma irresistível evocação da memória. E há um veio de nostalgia acentuado. Parece que a sua vida se esgotou um pouco nesse momento fulminante em que a mãe lhe desapareceu, e mais tarde o pai... Mas ela não seria quem é se não seguisse em frente com uma força indómita. E foram eles, também, que a ensinaram a ser assim. Era ainda uma forma de lhes prestar tributo.

E há no relato de Simonetta a sensação de se folhear um álbum antigo, com todas as desventuras que se encontram num romance de muitas páginas lido nas férias de Verão. O Verão será a sua estação. Ruy Belo escreveu que “triste é perceber no Outono que o Verão era a única estação”. Mas ela viveu a sua estação intensamente, e esse brilho contagiou todos os outros meses do ano.

Simonetta? Logo aí se anuncia a garridice italiana. Um instante operático. Um desenho de uma personagem arrebatada. Uma personalidade vincada. Mas ela diz que apenas foi educada para ser uma pessoa decente. Já não é pouco.

Fez carreira como conservadora de museus, fez gestão cultural em momentos como a Europália ou a Expo 98. Preside ao Instituto Camões. É uma mulher inteligente, que se resguarda. Não é na entrevista. É dos outros. Tem o pudor de pesar...

 

Gostava de começar pela sua língua materna. Ou devo dizer línguas maternas? São o português, o italiano e o inglês?

O inglês não é língua materna. Aliás, é língua terceira. Aprendi-o quando fui para o Colégio do Bom Sucesso. A minha primeira língua foi o italiano, que a minha mãe e a minha avó falavam comigo. Ia falando português, claro. Mas não tão bem quanto o italiano. E quando fui para a escola, foi imediato.

 

O assunto da língua materna é fascinante. Convoca uma identidade, um modo de ser, pensar, sentir. A que é que corresponde em si a língua italiana?, e a portuguesa?

Uma língua tem atrás de si, sempre, uma cultura. Penso que o meu lado bem disposto, alegre, positivo vem do italiano. Um “dark side”, mais sério e introspectivo, vem do português.

 

Fale-me da sua mãe.

A minha mãe era uma mulher muito bonita, interessante e inteligente, formada em Económicas. Conheceu o meu pai em Itália. O meu pai era um jovem artista que foi viajar pela Europa antes da Segunda Guerra Mundial para contactar com a arte europeia. Esteve alguns meses em Florença onde conheceu a minha mãe. Apaixonaram-se. Entretanto, em 38 começaram os rumores da guerra e ele teve de regressar, de outro modo seria mobilizado. Continuaram a escrever-se. Durante cinco anos. Até que a minha mãe casou por procuração, que era a única maneira de poder vir para Portugal. Veio em 42.

 

Foi uma relação construída na escrita.

Foi. Tenho lá em casa caixas de cartas censuradas. De um lado e do outro liam-nas e cortavam coisas – achavam, talvez, que estavam a dar informações.

 

Quando é que as leu pela primeira vez?

Há muito pouco tempo. O meu pai morreu há dez anos, a minha mãe há 20 e eu nunca tive coragem de ler as cartas. Tive sempre dificuldade... Só há pouco tempo, talvez há uns seis meses, achei que devia lê-las. E... são quase história. Não se tratou, apenas, de ler as cartas daquelas duas pessoas, que conheci muito bem e por quem tinha muito afecto; era também a história de uma época, uma época difícil que a Europa viveu.

 

Consegue perceber porque demorou tanto tempo a ler as cartas?

Por uma questão de respeito e de pudor. Senti-me a entrar na intimidade de duas pessoas que já cá não estão. Mas por outro lado pensava assim: se não deitaram fora as cartas, as rasgaram ou queimaram, é porque não se importavam que outras pessoas as lessem.

 

Temeu, nalgum momento, que as cartas revelassem pessoas diferentes daquelas que conhecia? Isso contribuiu para o adiamento da leitura?

Podia acontecer que não reconhecesse aquelas pessoas jovens. Jovens apaixonados, que depois conheci como meus pais. Mas não. Eram as mesmas pessoas. Com as mesmas conversas que conheci enquanto filha deles. E contando um ao outro as coisas que aconteciam nos respectivos países.

 

O momento em que decidiu ler foi como se dissesse a si mesma que já era completamente crescida, que já podia ler as cartas dos pais?

Senti isso mesmo que diz.

 

No seu imaginário infantil, que lugar ocupava a Itália? Nunca viveu em Itália em permanência?

Vivi temporadas, meses, Verões, com a família da minha mãe. Tenho com a Itália uma grande afinidade. Sinto a mesma paixão que tenho por Portugal, o meu país. Mas é mais distante. É como alguém que amámos e de quem ficou uma boa recordação. Vou lá uma, duas vezes por ano. Já não tenho familiares em Florença; o tempo passa e as famílias desaparecem. Neste momento tenho mais familiares em Roma e por isso vou mais a Roma. A minha avó veio quando nasci. Foi uma alegria tão grande que veio. Acabou por ficar. Morreu cá, já eu tinha 16 anos.

 

Sentiu-se o centro da família? Foi filha única até aos 14 anos.

Não era tratada assim. O meu pai e a minha mãe eram pessoas muito racionais e, sendo filha única, não iam encher-me de mimo.

 

O francês, que aprendeu antes do inglês, e depois do italiano e do português, aprendeu-o com quem? Teve uma preceptora?

Não, era o meu pai que falava comigo. Depois tive uma professora para ficar com o “accent” devido. Mas não tive preceptora, não tínhamos dinheiro para isso. Foi uma aprendizagem em casa. Os meus pais ensinavam-me brincando. Eu ia aos museus com eles, aos concertos. A minha avó cantava muito bem e cantava-me árias. Dizia-me: «Olha, esta é da Aída, de Verdi», e contava-me a história da Aída.

 

Os pontos cardeais eram o pai, a mãe e a avó?

Claro. A minha avó nunca falou português. E eu fazia uma coisa engraçada: quando ela queria ir a uma loja fazer uma compra – nós vivíamos em Mafra –, umas agulhas de crochet, uma lã para fazer um bordado, uma fruta, pedia-me: «Vem comigo e dizes ao senhor que quero isto assim, assim». Eu ia com ela e fazia de tradutora! «A minha avó diz que quer isto assim, assim». As pessoas achavam muita graça, porque era muito pequena.

 

Era um ambiente extra-ordinário num meio pequeno como Mafra... Aos sete anos, foi para a escola. Que recordações tem da escola?

Adorava ir. Brincava sempre com muitos meninos. De qualquer modo, como não tinha irmãos, a minha mãe convidada sempre crianças a ir lá a casa. Tinha um teatrinho muito engraçado, com marionetas, que uma tia tinha mandado de Itália. A minha mãe manipulava as marionetas e punha-nos a fazer, também. Nesse tempo, as mães não brincavam assim com as crianças e os miúdos adoravam ir para minha casa. E andávamos de bicicleta, íamos para a Tapada de Mafra, andávamos a cavalo. Tive uma infância muito feliz, muito divertida.

 

Em todas as entrevistas suas que li, há sempre uma referência à família, mas não à escola. Como se ela não fosse tão importante.

A escola foi um episódio importante, mas não tão fundante quanto a família. Eu já sabia ler.

 

Como é que aprendeu?

Nesse tempo, os meninos não incomodavam as pessoas. E como eu dormia pouco, (e durmo), quando acordava, acendia a luz e folheava livrinhos. Juntava as letras. De manhã perguntava: «Que é isto?». E foi assim que aprendi a ler, aos 4 anos. Por isso, não foi uma grande novidade quando cheguei à escola. E em casa contavam-me coisas mais interessantes do que aquelas que na escola me contavam.

 

Essa diferença (no ambiente familiar, na preparação cultural) não lhe trouxe dificuldades de integração?

Às vezes, faziam pouco de mim por causa do meu nome. Mas não me ralava nada. E se calhar desatava à chapada! Luz Afonso é adoptado, é do meu marido. Sou Aires de Carvalho de solteira. Simonetta, há 60 anos, em Mafra, era um nome complicado... Mas depois passou. Foi ao princípio, quando fui para escola.

 

Por causa das coisas, pôs à sua filha um nome muito simples...

Ana é um nome que ninguém pode gozar. É preciso ter cuidado quando se põe o nome às pessoas. Podia não ter aguentado... Hoje, não gostaria de ter tido outro nome, mas quando se é pequenino ninguém se chama assim.

 

Quer dizer que a sua auto-estima foi desde sempre boa.

Mais do que auto-estima, tenho desde sempre a capacidade de comunicar. Mas isso vem da minha mãe. Ela mesma: quando chegou a Portugal havia muitas coisas que eram diferentes. Por exemplo, as senhoras não iam à praça; as empregadas é que iam. E diziam: «É estrangeira e não sabe, mas as senhoras não devem ir ao mercado». E a minha mãe: «Ah, não, divirto-me imenso, na minha terra também ia». E ia, claro. Portanto, fui percebendo que havia diferenças. E fui vivendo com elas, sem afrontar os outros, mas também sem me deixar pisar.

 

O que é que era susposto que fosse a sua vida depois dessa infância de felicidade?

O que quisesse. Em minha casa não me impuseram nada. A não ser hábitos de trabalho, de honestidade, deontologia, um modo de proceder. Princípios. Não fui criada para ser isto ou aquilo. Fui criada para ser uma pessoa decente.

 

Outra aprendizagem essencial aconteceu quando foi viajar sozinha...

Foi uma coisa que a minha mãe me incentivou a fazer. Entrei para a faculdade e gostei muito de Cultura Clássica, que aprendi com o padre Manuel Antunes. Um professor fantástico! Ele fazia história ao vivo. Contava episódios da antiga Roma teatralizando num grande anfiteatro da Universidade de Letras. Disse que gostava de ir à Grécia; e a minha mãe: «Porque não vais?».

 

Que idade tinha?

Dezassete, dezoito. Era muito pouco usual. As pessoas que a minha mãe conhecia, portuguesas, perguntavam: «Então, deixa ir assim a sua filha, sozinha?», «Claro, ela tem de aprender a ser auto-suficiente». Gosto muito de viajar. (Agora menos, porque viajo muito a trabalhar e torna-se mais pesado). A viagem foi sempre um complemento importante na minha formação.

 

Imagino que tenha aprendido tanto, tanto...

Foi o primeiro período em que estive completamente sozinha. Não podia contar com ninguém. Não conhecia ninguém – a não ser conhecimentos ocasionais que fiz nas ruínas, no barco que deu a volta às ilhas, no autocarro que apanhei para Éfeso. Percebi que era capaz de me auto-governar. Foi extremamente importante para mim. Ainda estive uns 20 dias ou um mês.

 

Quando voltou, era outra?

Talvez mais auto-determinada, mas não foi nada que alterasse a minha vida.

 

Na minha pergunta está subjacente uma ideia que Goethe desenvolve na «Viagem a Itália»: a de a viagem ser uma interpelação constante daquilo que somos. No sentido de nos mudar e questionar tudo. Entre Mafra e a Grécia aconteceu muita coisa?

Está a imaginar uma menina, há 40 anos, pegar no avião, chegar sozinha ao aeroporto, decidir para onde ia... Confesso que fui com um bocadinho de receio.

 

De quê?

De não ser capaz. Ou de ter saudades de casa. De me sentir demasiado só. Era um grande desafio para mim própria. A minha mãe propunha-me muitos desafios e eu participava neles. «Porque é que não vais? Vais sozinha, fazes o que queres, vês o que queres, à hora que queres.»

 

Nos primeiros dias teve essa vertigem da liberdade, de poder fazer o que queria, à hora que queria?

Não especialmente frenética. Estava tão empenhada em ver o que queria ver...

 

Abraçou-se ao Parténon?

Sim! Nessa altura ainda se podia subir, mexer. Nunca mais voltei. Não me apetece voltar. Ficou uma imagem tão fantástica, e agora há tantas restrições... Foi o meu primeiro encontro com a Europa. Como adulta.

 

Saltámos o colégio das freiras irlandesas.

Eram muitos duras.

 

A sua têmpera rebelde resulta do contacto com as freiras?

Talvez resulte desse combate. Não aceitavam a minha indisciplina, que tinha a ver com a rigidez do colégio. Dizia-se que era assim e não havia flexibilidade para fazer mais isto e aquilo. As pessoas maçavam-se e estavam sempre a inventar coisas para furar o sistema. Era doloroso: os meus pais vinham ver-me e não podia ir com eles passar o fim de semana porque estava de castigo. Lembro-me que uma vez o almoço era uma porcaria e decidi fazer um levantamento de rancho! [riso] Pus o refeitório todo a recusar-se a almoçar e a levantar a mesa, um dois três, uuhhh!

 

Era uma menina especialmente bonita?

Acho que não. Era bem disposta. Tinha as pernas muito magrinhas.

 

As pernas magras e os olhos claros contrastam com a portuguesa média...

Era mais notada pela boa disposição e por rir à gargalhada. O meu riso incomodava muito: «Uma senhora não ri assim». Ainda dou gargalhadas! E na faculdade, colegas minhas também diziam: «Não te rias assim que parece mal». Eu queria lá saber! Tinha vontade de me rir, ria-me! Havia um excesso de religião que também me incomodava. Levantávamo-nos, e rezávamos logo. Começávamos as aulas, rezávamos. Antes do almoço, rezava-se, depois do almoço, rezava-se. À tarde, ia-se ao terço. Depois, ia-se à missa.

 

Em que é que pensava nessas horas intermináveis de reza?

Ah, olhava. A igreja era muito bonita. Lindíssima. Acho que conheço todos os pormenores do tecto, das imagens, dos altares. Se calhar teve alguma influência na escolha das artes.

 

Mas aí, o seu pai, que trabalhava na área, também teve influência...

Teve, sem ter. Comecei por querer ser médica. Depois pensei em História. Cheguei a pensar em Diplomacia, mas estava fechada às mulheres. De maneira que fiz a minha carreira como conservadora de museu, e gostei muito. Diplomacia cultural: foi o que fiz a vida toda.

 

Diz que é uma funcionária pública militante.

Porque é que digo isso? Porque os funcionários públicos são considerados a causa dos males neste país: trabalham pouco, rendem pouco, são ignorantes, não têm brio. Não é verdade, não se pode generalizar. Conheci ao longo dos anos pessoas excelentes, em diferentes níveis, e acho maldade dizer isso. O que acho é que na administração pública se têm colocado chefias que não estão à altura da coordenação das equipas. É muito fácil pôr uma pessoa na prateleira, não lhe dar trabalho, não ver o que ela tem para dar. O que não acontece numa empresa privada. Por isso, o novo sistema que vem aí, se for bem implementado, pode ter as suas vantagens.

 

A passagem pelas freiras e o seu temperamento indómito.

Ficou mais indómito. Elas mexiam com aquilo que era mais sagrado: a minha liberdade. Ali, a liberdade era coarctada por regras rígidas, não havia espaço para pensar, para ler... Era um dormitório comprido, para umas 20 pessoas. Mas isso não bulia muito comigo. O que me incomodava mais era a formatação do quotidiano: levantar, rezar, lavar vestir, estudar. Eram dias sempre iguais. O recreio era fantástico. Tinha árvores de fruto, íamos apanhar cerejas, ameixas, tudo o que era proibido se fazia. Fazíamos piqueniques nos telhados! Hoje até me arrepio – tenho vertigens: se rebolássemos por ali abaixo, morríamos.

 

A imagem consensual que se tem de si é a de uma força da natureza, uma mulher bem disposta, mas rigorosa no trabalho. Estas duas vertentes encaixam na vida que está para trás, do colégio e de casa. Escrevia cartas?

Escrevia, escrevia. Até ao gato, que viveu muitos anos e de quem gostei muito. No outro dia encontrei algumas dessas cartas que a minha mãe tinha guardado, entre papéis. Que engraçado, a letrinha muito certinha! Como se pode ter sido assim... Pequenino! Perdemos a noção do tempo que passa. Se não olhar ao espelho, não me lembro dos anos que tenho. Como tenho boa saúde, só me lembro quando olho para o espelho.

 

Nunca teve medo de não ser capaz?

Claro quem sim!

 

Não ser capaz de ser feliz?

Não, nunca pensei nisso. A felicidade constroi-se no dia a dia e a felicidade é aquilo que queremos que seja. Mas tive medo de não ser capaz de muitos desafios que me apareceram pela vida, então não tive... Não é bem não ser capaz... É a noção da dificuldade.

 

Não encontro as suas inseguranças.

Não se nota, mas claro que tenho! Sou de carne e osso, toda a gente tem. Não partilho a minha insegurança. Não devo transpor para os outros as minhas dificuldades, as pessoas já têm as suas. Tento dar-lhes segurança. As pessoas metem conversa comigo na rua, contam-me das suas dificuldades. E tento dar-lhes uma voz de esperança, força, capacidade, «vai ver que tudo se resolve». Não é dar-lhes conselhos. É ânimo.

 

A quem é que revela as suas vulnerabilidades?

A mim própria. [riso]

 

Super mulher Simonetta...

Não sou!

 

Mas se não revela a ninguém as vulnerabilidades, se só partilha a força...

Às vezes, com o meu marido, sim. Mas não gosto. Tenho este pudor de pesar, de fazer pesar as minhas coisas sobre os outros. Há um espaço que é só meu, e outro que partilho. A minha mãe? Percebia bem as dificuldades. As pessoas que gostam de si sabem quando está a passar um momento difícil, profissional ou pessoal.

 

Quando a sua mãe morreu...

Ah, custou-me muito.

 

Foi um espaço de partilha e identificação que se esgotou quando a sua mãe desapareceu?

Foi um livro que se fechou. Tínhamos estado na véspera a falar ao telefone, a rir, a contar coisas do quotidiano. Ela morreu nessa noite. De repente, senti-me na fila da frente. Sabe o que é estar na fila da frente? Já não tinha ninguém a quem recorrer. O ombro da mãe é diferente do ombro do marido, do ombro dos filhos. Foi um choque terrível. Um telefonema às quatro da manhã, do meu pai, metemo-nos no carro, mas não havia nada a fazer. Tinha sido um aneurisma fulminante na aorta. Com o meu pai foi mais fácil. Ele morreu com 93 anos. A minha mãe ainda não tinha 70.

 

Estar na fila da frente é...

Fica-se responsável. Aquilo que a minha mãe fazia pela família, juntar, tudo isso, foi o que achei que tinha de fazer em vez dela. Continuar a fazer os Natais lá em casa, todos esses sinais que agregam. A família é o meu recuo. Super mulher: não é bem assim. Tenho as minhas fraquezas, não ando é a dizê-las no jornal – seria ridículo. E o ridículo mata.

 

Teve medo de envelhecer e de cair no ridículo?

Tenho a noção do ridículo e pavor do ridículo. Sou auto-crítica e por vezes sarcástica. Não tive medo de envelhecer. Sou muito cuidadosa, mas deixei ficar o cabelo branco. É mais natural... Neste mundo em que tudo é jovem, há pessoas que assumem que estão activas, que trabalham, e que já não têm 20 anos. Quando se chega aos 50 anos já se é idoso! Se fosse atropelada, diriam: «Uma idosa foi atropelada!» [gargalhada]. Não é assim que nos tratam? Sou idosa, não sou é jarreta!

 

Não consigo imaginá-la reformada...

Então não? Vai ver! Tenho imensas coisas para fazer.

 

Precisa de objectivos. Na sua vida há os grandes momentos: Hanôver, a Europália, o Pavilhão de Portugal na Expo.

A Europália foi um dos momentos em que tive medo. Pelo meu país. Já viu a figura que faríamos? Foi a primeira grande exposição em que aparecemos ao lado dos outros países europeus como um inter pares. Eu era só um instrumento, e não queria que o meu país se saísse mal. Fui responsável pelas exposições. Não havia transportadores de obras de arte à altura, não havia papel de embrulho, nem película de máquina fotográfica, não havia pessoal que tivesse feito uma exposição daquelas. Teve de se fazer tudo da estaca zero. A tradução, imprimir, fazer fotografias, um país que não estava habituado ao empréstimo de obras de arte...

 

Tratava-se de construir uma nova gramática. E as palavras que cá se praticavam são pouco abonatórias: desenrascar, cunha, dar uma palavrinha...

Tudo coisas que odeio!!

 

Também são parte do que somos.

O desenrascanço, para cobrir a preguiça e a falta de pontualidade, é odioso. Tem a ver com o não fazer a tempo, e à última da hora arranjar uma treta qualquer, colar com cuspo, está a andar. Mas tem outro lado: o lado inventivo. Se for bem trabalhado, permite encontrar uma solução para uma dificuldade que deixa meio mundo sem saber o que fazer.

 

Isto vinha a propósito da sua necessidade de ter desafios.

É verdade, preciso de objectivos. Mas na reforma também os posso criar. Gostava de trabalhar com crianças – aprender a brincar, brincar aprendendo –, transmitir o que tive na infância. Faço-o com a minha neta, e ela gosta muito. E gostava de ter tempo. Até lá, é um tempo para os outros.

 

Quase sempre na sua vida teve poder.

Deram-mo. Nunca pugnei por ele. Sou uma pessoa de muita sorte.

 

Pugnar é uma palavra de uma italiana...

É, é. Foram-me dadas tarefas que fui realizando. Ou seja, as pessoas foram confiando em mim. Mas nunca fui carreirista. Nunca meti uma cunha. Detesto cunhas. As pessoas sabem, e sabem que não ouço, e não metem cunhas. As cunhas são compadrios, que é outra palavra detestável. Há gente fantástica que me tem aparecido em concursos que nunca conheceria, porque não fazem parte do meu mundo, e fico muito contente por lhes dar uma oportunidade.

 

Meter uma cunha é um atestado de menoridade daquele para quem se pede...

Se alguém metesse uma cunha por mim, ficava furibunda! Exactamente por causa disso: era um atestado de menoridade. As pessoas valem por si e são julgadas pelo que valem. Sou apologista da meritocracia.

 

Mas, pugnando por ele ou não, teve sempre poder...

Um poder relativo. Todos temos poder. Você, ao fazer esta entrevista, também tem poder. O poder de escolher, entre aquilo que ouve, o que lhe parece mais interessante.

 

Olhe que conduzo muito pouco... Se eu não apontar caminhos, vai por onde?

Um assunto de que gosto? Do meu trabalho. Passo 12 horas por dia a trabalhar.

 

O seu trabalho tem a ver com gestão. De pessoas, ideias, meios. Com organização. Este instituto é o braço cultural da política externa, que passa pela língua. Estamos em mais de 200 universidades do mundo inteiro e vejo com grande entusiasmo o interesse pela língua. É uma língua com valor económico, com a qual se podem fazer negócios. Neste momento pedem-nos apoio universidades ligadas à Economia, à Ciência Política, ao Direito, à Medicina.

 

Temos peças de diferentes proveniências para formar um puzzle, que é o da sua identidade e da sua vida. Se olharmos de fora, qual é a imagem dominante? O que é que lhe faz mais sentido?

Não sei bem... O que me vem da infância: o desejo de ser recto, decente em várias frentes. É isso que me torna até desagradável. Às vezes não gostam de mim porque sou muito directa. Também é muito português não dizer o que se pensa. Fica-se nestas águas mornas e é um mundo de enganos... Não devo usar o tal poder para adiar soluções da vida das pessoa. Gosto muito de pessoas.

 

Isso é evidente.

É? Fico contente, porque não sabia que é evidente. Gosto de pessoas, de ouvir pessoas. Se você mostrar um ar disponível, a dada altura já lhe estão a contar a vida...

 

Mas isso não acontece consigo, como já falámos. Se descrevesse o seu mundo privado, sob a forma de diário ou coisa parecida, pergunto-me se a sua filha, ao lê-lo, 20 anos após a sua morte, o iria reconhecer plenamente...

Talvez sim, ela conhece-me bem. Há uma proximidade muito grande, há uma transparência. Não tenho máscaras, filtros.

 

Já reparou que quase não falámos de homens?

Ah, mas tive um pai que adorei. Íamos apanhar borboletas com um camaroeiro nos meses que passávamos na praia. Uma vez apanhámos uma febre da carraça os dois... Ensinou-me a nadar. Andávamos a pé. Apanhávamos mexilhões nas rochas das Azenhas do Mar. Andávamos de burro. Íamos às feiras. Era um lado muito físico, sim, só mais tarde foi intelectual. Fazia-me o baloiço. Fazia-me imensos retratos, em várias épocas da minha vida.

 

A boa palavra, para si, é ânimo?

É a palavra certa no momento certo. Pode ser ânimo, pode ser uma festa, pode ser um ombro, pode ser só o ouvir.

 

E essa palavra será em português? Dá consigo a falar em português e a pensar em italiano...

Até a sonhar... Se sonho com a minha mãe, sonho em italiano. Mas muitas vezes sonho que estou a trabalhar e a pensar em italiano. Mas os sonhos, só o Freud os pode explicar!

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2007

 

 

Alexandre Quintanilha

18.02.15

O gabinete é despojado e fica paredes-meias com uma série de laboratórios onde fervilham alunos, experiências e descobertas. A embelezá-lo há apenas uma janela ampla de onde se vêem árvores já muito tingidas pelo Outono.

Quando avança pelo laboratório para algumas fotografias, pede cerimoniosamente para entrar aos alunos que estão ao fundo. Depois olha para nós e diz: «Os meus amigos vão dizer que sou um mentiroso porque já não faço este tipo de coisas». Mesmo que se acredite que há anos não ensaia situações com tubos multicores e químicos de cheiro intenso, não deixa de se sentir que aquele homem pertence àquele lugar.

Se o quisermos resumir em duas penadas poderemos escrever: Alexandre Quintanilha, 53 anos, moçambicano, cientista de inteligência prodigiosa. Fez-se doutor pela primeira vez em Física, na África do Sul, e logo depois em Biologia, nos Estados Unidos. Durante 20 anos foi director do Centro de Estudos Ambientais na Universidade de Berkeley. Dirige há nove o Instituto de Biologia Molecular e Celular do Porto.

 

Hoje é posto à venda o Viagra. Partilha deste entusiasmo planetário à volta da pílula que pode revolucionar a vida sexual humana?

Tenho pensado muito pouco sobre o Viagra. Pensei mais recentemente porque tem efeitos secundários que se desconheciam e parece que alguns podem ser perigosos. Gostava de fazer duas reflexões sobre o Viagra: qualquer produto que possa ajudar a tornar a qualidade de vida de uma pessoa melhor, desde que não tenha efeitos secundários graves, não vejo razão nenhuma para que não seja divulgado e vendido. No entanto, considerar que a vida sexual tem uma importância tão grande, principalmente quando se chega a uma certa idade, é muito relativo. Há pessoas que quando chegam aos 60 anos têm outras formas de ver a sua vida realizada que através do sexo.

 

Pensa que o sexo tem aos 20 anos uma importância capital que pode não ter aos 60?

O sexo pode ter uma importância capital aos 20 que pode perder aos 50, aos 60, aos 70.

 

Perder naturalmente e não por força das circunstâncias?

Exactamente. Tive sempre discussões muito francas com os meus pais. O meu pai viveu até aos 97 anos e a minha mãe até aos 83. Lembro-me de um episódio que considerei lindíssimo, que é uma coisa muito íntima da minha mãe e do meu pai: estavam de visita a Berkeley, onde eu vivia na altura, e um dia a minha mãe veio dizer-me com um sorriso maravilhoso que na noite anterior, o meu pai com 90 anos e ela com 78, tinham feito amor. Se calhar aquilo acontecia uma vez de seis em seis meses ou uma vez por ano. Não sei se o Viagra tornaria as coisas diferentes. Para pessoas de uma determinada idade o sexo não deixa de ter importância, como percebi imediatamente, mas não é a coisa mais importante. Para eles deve ter sido uma coisa fabulosa sentirem que depois de cinquenta e tal anos ainda tinham prazer sexual.

 

A reflexão sobre o Viagra pode conduzir-nos à evidência de vivermos numa sociedade em que as pessoas tentam alcançar a felicidade no exterior, através de químicos, por exemplo.

Através do consumo.

 

Há uma espécie de obrigatoriedade em ter prazer através de um consumo. Acha que é à luz disto que se pode analisar o entusiasmo pelo Viagra?

Penso que em grande parte é isso. Suspeito que quando apareceram as primeiras pílulas anticoncepcionais deve ter havido o mesmo entusiasmo. Muita gente deve ter pensado a maravilha que era poder ter sexo sem estar preocupado com as consequências! Quando penso, hoje em dia, que os jovens têm de ter tanto cuidado por causa das doenças propagadas sexualmente e que eu nunca pensei nisso... Fui um cientista experimental nessa área. Nunca tomei drogas, nunca me interessei muito por drogas.

 

Nunca fumou um charro?

Nunca. Obviamente há uma curiosidade, sobretudo quando se fala de drogas altamente modificantes da consciência, o LSD e essas coisas todas. A grande maioria dos meus amigos experimentou tudo e mais alguma coisa e eu tive a sorte de ver de perto o que uma bad trip produz numa pessoa; vi um amigo ficar completamente transtornado depois de tomar LSD, apanhei um susto enorme. Se não fosse esse susto talvez tivesse experimentado.

 

A hiper lucidez que a cocaína provoca nalgumas pessoas nunca o tentou?

Nunca me fascinou. Já senti várias vezes na minha vida sensações de high sem perceber muito bem como e sem qualquer droga. Lembro-me de um episódio como se fosse ontem. Eu tinha chegado aos Estados Unidos há muito pouco tempo, atravessava a ponte que faz a ligação da parte oriental da baía de S. Francisco à parte ocidental da cidade. Como me levanto sempre muito cedo, cinco e meia, seis horas estou levantado, meti-me no meu carro velhinho num domingo de manhã e fui de Berkeley para S. Francisco. A meio da ponte, de repente, o nevoeiro desaparece e a cidade aparece iluminada com o sol nascente que vinha de trás e aparece completamente dourada. A sensação que tive e que não sei explicar foi tão forte que comecei a chorar; e depois de isto acontecer, foram um ou dois minutos em que fiquei transtornadíssimo, fiquei com certo receio destes momentos.

 

Não gosta de se descontrolar ou de deixar de ter controlo sobre as coisas?

Até esse ponto mete medo. Tenho cinco ou seis episódios deste género que foram provocados pelas coisas mais insignificantes. Esses momentos foram tão importantes que não quero que passem a ser rotina. A ideia de usar uma substância que os possa provocar não me interessa nada. Na parte sexual, hoje em dia, os jovens não têm nem um quinto da liberdade que nós tínhamos.

 

Não têm?

Se forem responsáveis têm muito medo. A sida é o grande flagelo e há muitos jovens que não viveram a crise dos anos 80 nas grandes cidades, S.Francisco, Nova Iorque, etc, e que acham que nada lhes toca porque não são nem toxicodependentes nem gays. Tenho para mim que as liberdades sexuais dos anos 80 e 70 e 60 foram importantíssimas para nos conhecermos.

 

Sabendo que fez de enfiada dois cursos poderosos como Física e Biologia que lhe devem ter ocupado o tempo todo...

Ah não, em S. Francisco estava todas as noites nas discotecas.

 

A sério?

Na altura só precisava de cinco, seis horas para dormir. Estava no laboratório às sete da manhã, trabalhava o dia todo até às dez da noite e depois ia para as discotecas até as duas da manhã, que era quando fechavam.

 

Ia fazer o quê, beber copos?

Dançar, adorava dançar. Ainda gosto, mas agora não vou.

 

Isso contraria completamente a imagem do cientista.

O que vocês têm é uma imagem reducionista do cientista, eu nem sei bem como definir um cientista. Se é uma pessoa que fica fascinada com a ciência, isso é verdade, estou fascinado e cada vez mais. A ciência abre horizontes e perguntas extraordinárias, agora com as clonagens em humanos... Há consequências destes novos desenvolvimentos que a gente nem sonha.

 

Voltando ao princípio da nossa conversa, não receia um avanço científico e tecnológico desmesurados e um domínio progressivo de qualquer coisa que é exterior sobre a sua própria vida?

Se me pergunta se há um risco, eu penso que há.

 

A própria clonagem tem uma perigosa duplicidade.

Não acho nada perigosa, a clonagem humana não me assusta nada.

 

Mas vê-a com entusiasmo?

Não sei se com entusiasmo, acho que não tem grande utilidade nesta altura. Deixe-me dar-lhe este exemplo de clonagem humana que já se está a fazer e que não percebo como se pode estar contra. Imagine que uma mulher jovem desenvolve a partir de determinada altura um cancro da medula óssea (fundamental para lhe dar os glóbulos brancos e todos os mecanismos de defesa). Essa mulher está condenada a morrer porque não conseguem arranjar ninguém suficientemente compatível. Ou arranjam alguém e vai ter de passar o resto da vida a tomar substâncias anti-imunes ou então faz a seguinte experiência: retiram do seu ovário uma célula não fertilizada, da gengiva retiram uma célula que é consequência de uma célula fertilizada. No óvulo tem só metade do número de cromossomas e da célula tira o núcleo e deita fora; pega na célula da gengiva, deita-a fora mas fica com o núcleo. Pega no núcleo, mete-o no óvulo, e agora dá-lhe um estímulo químico e esta célula começa a desenvolver-se. Com um novo sinal químico impede que esta célula se diferencie em células de embrião. Quando tiver meio quilo destas células dá-lhe um novo sinal químico e elas transformam-se todas em medula óssea. Essa mulher terá as suas próprias células clonadas para substituir na sua medula óssea.

 

Trata-se de uma parte, não de um todo.

Mas se não fossem todos aqueles sinais químicos a célula desenvolvia-se num ser humano.

 

Se pensarmos na alma como uma entidade transportável numa caixa seria uma forma de a introduzirmos sucessivamente em corpos diferentes. Para quem tem pretensões imortais é perfeito.

Neste caso é para a cura de uma doença. Essa questão da alma, para quem acredita que a alma é um problema... Eu como não acredito na alma, não tenho problema nenhum com isso.

 

Se nos quisermos abstrair da genética, o que marca a diferença é a personalidade, a alma, o que lhe quisermos chamar.

Felizmente. Mas você acha que se clonar uma pessoa igual a si e que começa a crescer no ano de 1998 ela vai ter uma personalidade igual à sua? Nem pense, porque o meio é completamente diferente, a comida que come agora é diferente, toda a cultura é diferente. Mesmo que se clone a si própria nada justifica pensar que essa pessoa vai ser igual a si. A ideia de que uma identidade genética cria uma identidade de personalidade é um disparate total.

 

Neste instituto também faz clonagem de vegetais? Brócolos, por exemplo.

Brócolos, pinheiros, flores...

 

Uma flor clonada produz o mesmo cheiro, um brócolo clonado produz o mesmo sabor?

Quase o mesmo. Depende sempre do solo em que cultiva; se pegar numa planta de brócolo e a fizer crescer no Alentejo, onde o solo é diferente do do Minho, provavelmente o sabor será diferente. Acontece o mesmo com o leite, o vinho.

 

O seu olhar é sempre no sentido de desmembrar, sejam células, pessoas, vinho ou leite?

Antes pelo contrário. Acho que sempre fui atraído pelas coisas que me eram menos intuitivas. Fiz Física, quando o que gostava era Biologia, porque era um desafio. E porque quando acabei o liceu em 62 a Física era a grande ciência do século XX.

 

Também porque lhe era mais difícil?

No liceu tive notas muito baixas a Física.

 

O que eram para si notas muito baixas?

Até chegar ao sexto ano passava com 10, melhor, com 9,5. Tive um professor extraordinário a Biologia, o Dr. Lacerda, que me mudou completamente. No segundo trimestre do quinto ano apanhei 14 a Biologia e nas outras disciplinas continuava com 10. No último trimestre apanhei 19 e o meu pai apanhou um susto, achou que talvez estivesse ali um 1 a mais [riso]. No sexto ano o Lacerda continuou e eu comecei a estudar. Até ao sétimo ano a Física era uma disciplina de que não gostava muito mas que me fascinava.

 

Até ao sétimo ano não tinha sequer uma ideia do que queria fazer profissionalmente?

Nenhuma, nem no fim da faculdade. Essa é outra das vantagens de ter crescido naquela altura, enquanto estive a estudar nunca me preocupei em ter um trabalho. Nunca me perguntei: Será que isto me vai garantir um trabalho?

 

Os seus pais eram ricos?

Nada. Mas penso que hoje há uma grande pressão sobre os jovens.

 

A pressão daquela altura era conseguir um trabalho para toda a vida.

A grande maioria das pessoas da minha geração fez aquilo que gostou. Hoje em dia as carreiras dos jovens são muitas vezes decididas em função das chances de trabalho.

 

O que quer dizer que na faculdade não sabia ainda o que queria fazer.

Ainda hoje, palavra de honra. Quando faço uma coisa dedico-me completamente a ela, mas isso é diferente. Se me perguntar, «É isso que queria fazer na vida, é o seu objectivo final»? Continuo a pensar que é fazer arquitectura.

 

Como é a sua casa?

No Porto vivemos num apartamento que comprei, portanto, era o que havia. A casa em Cristêlo foi em parte concebida a partir de ideias que tinha há muito tempo. Não é perfeita, mas foram alguns sonhos que saíram cá para fora. Arquitectura é uma ideia que entretenho para quando me reformar, o último desafio.

 

Fala já com alguma determinação.

Já tenho esta mania há muito tempo, desde os tempos de Joanesburgo quando um amigo fez um exercício fabuloso: pediu aos seus alunos de arquitectura que falassem comigo e que desenhassem uma casa para mim; e, apesar de ter dito as mesmas coisas, apareceram dez casas completamente diferentes.

 

Como é que foi para Joanesburgo? É moçambicano.

Nasci em Lourenço Marques.

 

É filho único?

O meu pai teve duas filhas no primeiro casamento, depois separou-se e foi viver para Berlim, onde conheceu a minha mãe que é alemã.

 

O seu pai era português ou moçambicano?

Era açoriano. Era muito amigo do Vitorino Nemésio e da Gabriela. Eu nasci em Moçambique, acabei lá o 7º ano e tinha 3 alternativas: ou ficava lá, ou vinha para Portugal ou ía para um outro país. Fui para a Universidade de Joanesburgo porque tinha boa reputação, ficava próximo de Lourenço Marques (os meus pais já tinham uma certa idade) e era uma boa solução económica.

 

Vivia num colégio?

Vivi em casa de famílias inglesas.

 

Fala outras línguas desde sempre?

Sim. Vivi muitos anos com uma família de muitas crianças, não pagava nada desde que tomasse alguma responsabilidade em relação aos miúdos.

 

Uma espécie de au pair?

Exactamente. Dava-lhes banho, lia-lhes histórias. Foi uma experiência muito rica. A ideia de jantar com uma família, com um pai, uma mãe, cinco filhos e eu era muito mais apetecível que viver num apartamento sozinho.

 

Era a nostalgia de uma grande família?

Talvez, nostalgia de uma grande família que nunca tive. Era assim o irmão mais velho daquele grupo todo.

 

Nunca sentiu dificuldade em estar com inteligências medianas?

Eu sou uma inteligência mediana.

 

Quando se olha para o seu currículo é muito fácil pensar que foi uma criança sobredotada.

Em toda a minha vida só conheci uma pessoa verdadeiramente genial. Já conheci gente com uma enorme energia, muito trabalhadora e apaixonada pelo que está a fazer, é uma coisa diferente. Foi um homem que conheci em Cambrigde, Brian Josephson, aos trinta anos recebeu o Prémio Nobel. Passei com ele umas férias na Suiça. Fazia associações de ideias assim...

 

Entusiasmavam-no por serem sólidas, rápidas?

Rápidas, sólidas, fascinantes. Lembro-me de um episódio com o director do laboratório (Pete Hart) que andava há meses a tentar resolver um problema; o Brian Josephson estava presente, foi buscar mais água para o chá e, quando se sentou, desfez um maço de cigarros para ter papel branco para escrever, entregou ao Hart e disse-lhe «Esta é a solução». E era. Se calhar porque não estava sempre a pensar na mesma direcção conseguiu arranjar uma solução. Eu acho que não sou estúpido, é obvio que não sou, mas não acho que seja mais inteligente que alguns dos meus alunos.

 

É mais aplicado e metódico?

Talvez. E talvez tenha já aprendido a focar o meu interesse num assunto e a separar daí as coisas que não interessam. Mas acho até que as pessoas muito inteligentes nunca são muito bons professores porque não conseguem perceber as necessidades dos outros. O maior presente que se recebe quando se é professor é conseguir que a outra pessoa, no espaço de poucos anos, consiga saber tudo o que a gente sabe e mais.

 

Tem, pelo menos, dificuldade em lidar com a estupidez?

Ai isso tenho. Tenho dificuldade em lidar com a arrogância que muitas vezes está associada à estupidez. Quando as pessoas têm a certeza absoluta.

 

Mas a vaidade é um pecado capital.

É, é. A arrogância também tem muito a ver com valores considerados absolutos e à volta dos quais não se admite discussão. A questão do aborto é um exemplo.

 

A ideia de Deus...

É outra ideia absoluta. Como não aceito a existência de um ser supremo nem sequer me interessa.

 

Não teve formação religiosa em casa?

Não. Por decisão dos meus pais não fui baptizado e, para grande escândalo de muita gente em Moçambique, fui o único aluno dispensado das aulas de religião na escola.

 

Nunca teve vontade de ir só para estar ao lado dos seus colegas?

Tive, mas por uma razão diferente: no sétimo ano havia um professor, um padre jesuíta muito inteligente que falava de filosofia, e eu gostava de ir a essas aulas. Tenho muita dificuldade em conceber que haja uma moral transcendente. Penso que a moral tem que ter uma componente muito prática, evolutiva.

 

Gostava de ser bafejado pela fé?

Não, não tenho sequer esse conceito. Gosto muito de pessoas e os valores mais importantes são os da relação humana, da honestidade, da dedicação, valores que passam pela qualidade da minha vida e da vida das outras pessoas. De uma maneira geral, as relações não funcionam porque os ideais são muito bonitos mas a vida real é altamente egoísta. Eu acho que um dos problemas da vida moderna é as pessoas não saberem separar intimidade da sexualidade e confundir essas duas coisas é um drama. Porque a sexualidade pode ser íntima ou não ao passo que a intimidade é uma coisa tão rara e tão profunda que às vezes não se sabe se não toca nas bordas da sexualidade.

 

Tendo essa consciência do que são as relações humanas quase se pode adivinhar que tem uma relação feliz.

Tenho. Tenho há muitos anos amigos com quem tentei atingir este tipo de intimidade em que o fundamental é ficar genuinamente feliz com aquilo que a outra pessoa consegue e que lhe dá felicidade ou prazer. Quando sinto que a pessoa de quem eu gosto conseguiu alguma coisa e eu não fico invejoso disso, a isso é que eu chamo uma boa relação. Como com os alunos: connosco eles aprenderam a ser melhor do que nós. Não é ser mais do que nós; é ser mais do que si próprio.

 

Não é uma coisa mágica, no meio de biliões de pessoas encontrar «A Pessoa»?

Penso que também é porque a gente não se esforça, porque é preciso abdicar de algumas coisas, abdicar da realização imediata. Eu também ia para as discotecas, adorava dançar, encontrar alguém de quem gostasse, ir para casa e no dia seguinte não saber mais daquela pessoa – não estou a diminuir a importância disso porque é uma fase em que estamos a tentar perceber do que gostamos. Quando cheguei à América, onde não tinha nada nem ninguém, passei o primeiro Natal sozinho. No café um transexual tentou conversar comigo. De início senti-me inconfortável e tive uma reacção repulsiva; só ao cabo de meia hora percebi que era uma pessoa sozinha que só queria conversar sem nenhuma outra intenção. Estive para aí cinco horas a falar. É um episódio que nunca esqueço porque foi uma lição: não veio pedir nada, veio partilhar. Em Portugal aceitamos as pessoas diferentes de nós mas não aceitamos as pessoas muito diferentes de nós. Um homem clarissimamente vestido de mulher, se não for num palco, temos muita relutância em passear com ele na rua.

 

Não estou a ver o Professor Alexandre Quintanilha a passear na Boavista com um transexual.

Se calhar você tem razão, se isto me acontecesse cá sentir-me-ia muito pouco à vontade e tenho uma enorme vergonha disso.

 

Há uma chamada biologia ou química dos afectos? Ainda há pouco tempo se lia num jornal um artigo que falava da aproximação das pessoas pelo cheiro.

O que tento perceber há muitos anos é o que situações de stress fisiológico causam à pessoas e como as pessoas se adaptam a essas situações. A gravidez, o exercício físico muito intenso, o risco de doenças cardiovasculares, por exemplo, são situações de stress fisiológico. Já me desafiaram para estudar o stress psicológico mas acho que não vou entrar nessa área porque é muito complexa. Sou um cientista clássico, gosto de poder separar as variáveis e de conseguir quantificar o que estou a fazer.

 

Na psicologia nem tudo é mensurável.

A psicologia é uma ciência e uma arte. O meu problema é que não consigo separar as variáveis e depois medi-las. Se me pergunta porque é que há situações em que a pessoa gosta de estar e outras em que não gosta, eu não faço ideia como lhe responder.

 

Então fiquemos na sua área. Esta teoria dos cheiros, no que isso tem de divisível e compreensível, acha que faz sentido?

Acho que faz muito sentido. Esse aspecto é, às vezes, mais forte entre raças diferentes. E quantas vezes conhece pessoas que fisicamente não acha nada atractivas e passadas quatro horas está completamente fascinada?

 

Além do cheiro há outros elementos poderosos nesta química dos afectos?

Penso que há formas de conhecimento e de chegar a outras pessoas que não sei se alguém sabe como funcionam. Quando entrevisto pessoas para lugares ou para serem alunos de doutoramento quase nunca olho para o currículo; o meu tempo é de inter-acção, de perceber como é que a pessoa reage, olha, vê, responde. Escolho, correctamente ou erradamente, quase exclusivamente à base da intuição.

 

Não deixa de ser bizarro num homem da sua inteligência.

É grave que faça isso?

 

É, no mínimo, curioso.

Mas é muito claro para mim. Pode, por vezes, prejudicar as pessoas porque it’s not fair.

 

Qual é a sua primeira língua, o português, o inglês ou o alemão?

Nesta altura, o inglês e o português. Dos 17, quando saí do liceu, até aos 45, quando vim para cá, só falei inglês. O alemão aprendi-o muito tarde porque a minha mãe não mo ensinou. Trinta anos a falar só inglês deixa marcas profundas e há coisas que quero explicar e me saem muito melhor em inglês que em português.

 

Ainda se comove? Como é que ainda se maravilha?

Os meus amigos fazem imensa troça porque choro imenso e nas situações mais disparatadas, nos filmes, na publicidade. Mas adoro essa característica minha. Há pessoas que não conseguem chorar, em geral são homens que só o fazem em situações extremas, e sentem uma enorme falta disso. Chorar é como dar uma gargalhada, e eu adoro anedotas. Tenho dificuldade em fazer discursos de homenagem porque não consigo acabá-los.

 

Como foi o seu jantar de despedida na América?

Fizeram-me uma festa muito bonita, deram-me um livro, acho que o tenho ali; estava o laboratório inteiro, aí umas 800 pessoas, eu nunca pensei que tivesse tanta gente que gostasse de mim _ não sei, se calhar foi para comer que foram lá.

 

Como é que o convenceram a vir para cá?

Aconteceu uma coisa em Berkeley que me predispôs a esta saída. Cheguei em 1970 e toda a área era uma espécie de paraíso na terra, um sítio em que aparecem ideias e pessoas novas, onde há 40 raças diferentes misturadas, restaurantes maravilhoso de todos os sítios do mundo, onde há jovens espertíssimos a fazerem todas as áreas do conhecimento. Nos anos 80 chegou a sida e a cor da cidade mudou. Numa festa, num jantar, à medida que os anos íam passando, não havia uma única reunião em que um amigo não dissesse «Sabes, a Susan está infectada com o HIV; olha, o Andrew está muito mal no hospital». Na área da baía não havia ninguém que não conhecesse alguém que estava doente. Em 1989, dois colaboradores meus, de 27, 28 anos, entraram no meu gabinete, em dois dias consecutivos, e vieram dizer-me que tinham sida. Andei dois dias aparvalhado, desorientado, ao terceiro dia tive uma violenta crise de choro e senti que estava num ambiente do qual tinha que sair.

 

Qual era a sua principal dificuldade?

Era um bocado o receio, se calhar injustificado, de que muitas das pessoas que conhecia íam desaparecer desta forma.

 

Mesmo que irracionalmente não tinha também receio de ser tocado pela doença?

Isso não, tratava-se de uma morte psicológica. O meu medo era que isto me tornasse frio pela banalização da situação, que aprendesse a desligar para não sofrer tanto. Demorei seis anos a sentir-me suficientemente confortável para voltar lá. Não lhe sei dizer porque é que quando surgiu a hipótese de vir para cá foi uma espécie de alívio. Você conhece alguém com sida?

 

Não.

Cá, eu sei que há doentes com sida mas não conheço ninguém infectado.

 

Em Portugal, por outro lado, toda a gente conhece alguém que se droga.

Eu não conheço, suspeito que algumas pessoas se drogam. Acho que é diferente porque pela droga pode chegar-se à sida mas há sempre a esperança de que a pessoa consiga libertar-se antes de chegar a essa fase. O problema da droga tem uma gradação diferente: fumar marijuana não é a mesma coisa que injectar heroína. Conheço dezenas de pessoas que fumam haxixe e isso não as torna insociáveis, bem pelo contrário; as drogas muito pesadas afectam uma pequena minoria.

 

Presidiu recentemente à comissão que fez o diagnóstico do problema da droga em Portugal. Como é que se envolveu?

Quando o José Sócrates me convidou eu desatei a rir e disse-lhe que não sabia nada de droga; ele disse uma coisa engraçada, disse «Justamente por isso, assim vem com uma atitude científica de olhar, ver, ouvir e tirar as suas conclusões e não vem já com ideias feitas». Contactei com gente que sabe muito do assunto, o Daniel Sampaio, o Júlio Machado Vaz, o Lourenço Martins, o Joaquim Rodrigues. Gostei imenso do trabalho que fizemos em conjunto, não é perfeito mas é um primeiro passo; fazemos dezenas de recomendações mas não priorizamos as decisões.

 

Duas conclusões do relatório foram particularmente comentadas: uma diz respeito à liberalização e a outra à extinção do Projecto Viva. Quer comentar?

O relatório tem, na minha opinião, uma série de recomendações que são tão ou mais importantes que estas duas. Obviamente estas atraem muito mais o interesse da comunicação social.

 

Quer apresentar duas que considere mais significativas?

Acho que o trabalho de prevenção que deve ser feito a partir de crianças de sete, oito anos de idade é, se calhar, muito mais importante que tratar o problema no fim. A descriminalização é para tratar o produto; a prevenção é para impedir que se chegue a essa parte. Toda a prevenção, nas escolas, nas famílias, mas a sério, é do mais fundamental que aqui existe. A outra parte que me parece importante é a da investigação. Porque é que você se tomar haxixe vai um dia chegar a tomar heroína e o outro não o faz? Não fazemos ideia.

 

Em Portugal?

Em qualquer sítio do mundo. Não fazemos ideia das características biológicas, psicológicas e sociológicas que levam uma pessoa a fumar haxixe e a passar para a heroína e outra a nunca passar daí. Sem percebermos isso andamos um bocadinho a tactear, a fazer experiências – e eu acho que as experiências são importantíssimas. Uma das coisas que defendemos no relatório é que nós, juntamente com outros países, tentemos muitas coisas diferentes porque a uniformização na maneira como se lida com a droga é o pior que pode acontecer. Em relação à despenalização gostaria de esclarecer duas coisas: primeiro, não recomendámos a despenalização mas a descriminalização; segundo, a descriminalização do consumo privado de pequenas quantidades não vai contra a legislação internacional.

 

Se fosse possível olhar para o assunto apenas sob o ponto de visto médico e social, retirando-lhe toda a carga económica que a ele está associada, a toxicodependência podia ser olhada como mais uma doença à qual se ministram substâncias químicas?

Exactamente. Toda a parte financeira tem muito a ver com o crime.

 

70% das nossas cadeias estão ocupadas com reclusos cujo crime tem a ver com o consumo ou a venda de estupefacientes.

Isso não é verdade, no máximo temos 30% das cadeias com toxicodependentes. Outra conclusão fundamental do relatório é a necessidade de haver uma maior ligação entre os serviços da justiça e da saúde.

 

Por último, porque aconselham a extinção do Projecto Vida?

Ficámos com a sensação que não havia uma coordenação muito clara e que havia uma mistura entre uma parte técnica e uma parte política. O Dia D, por exemplo, foi muito um fogo de artifício para mostrar que o governo estava a fazer qualquer coisa.

 

Ora num relatório encomendado pelo governo...

Eles não gostaram muito dessa parte e alguns pessoas da comissão distanciaram-se dela. A noção foi que uma outra estrutura, diferente da do Projecto Vida, podia ser mais útil nesta coordenação. Isto não teve a ver com a qualidade das pessoas, houve gente extraordinária a trabalhar no Projecto Vida, mas sim com a maneira como as coisas estavam estruturadas.        

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias, em 1998

 

 

Emmanuel Nunes

17.02.15

«Dizem ser o herdeiro de Boulez e Stockhausen. Também poderia ser incluído numa família mais ampla, que compreendesse Mahler, Bach, Varèse. Mas todos estes parentescos não esclarecem a personalidade de Emmanuel Nunes, a singular miscelânea da sua música, entre o sensual e o espiritual, a acuidade de um pensamento analítico sempre aberto ao sentimento trágico».

É assim que começa um artigo do Le Monde, datado de 92, no qual se fala de um compositor em busca da intemporalidade.

Num outro tempo, numa outra dimensão, (que é uma palavra que ele emprega frequentemente), o compositor vivia ainda em Portugal.

Nasceu no dia 31 de Agosto de 1941. Uma doença neuro-motora entrava-lhe os movimentos, dificulta-lhe a dicção. A doença. Poderia tê-lo marcado. E marcou, de certo modo. Mas esquecemo-nos dela ao cabo de instantes.

Contam que tinha cinco anos e insistia com a criada para que lhe desse tachos e panelas com os quais se entretinha. Que comprou o primeiro disco, com peças de compositores célebres, com 13 anos. Que tinha 15 quando entrou pela primeira vez no S. Carlos. (Não havia na família qualquer tradição musical).

Em 64 parte de Portugal. Quer estudar música, viver para a música. Ou melhor: não pode ser de outra maneira. Divide-se entre França e Alemanha, estuda com Pierre Boulez e Stockhausen. As encomendas tornaram-se regulares a partir dos anos 70; a consagração viria no final da década.

O reencontro com Portugal irrompeu inadvertidamente pelos anos. Como da vez em que tomou um taxi numa rua de Paris e ouviu o taxista dizer-lhe como ele, Emamanuel, lhe lembrava um menino que conhecera em tempos em Lisboa. Um menino que se fazia acompanhar de uma máquina de escrever para mais facilmente se exprimir nas provas escolares. Um menino que ele, taxista, conduzia ao destino. (A história abre a biografia do compositor, escrita por Hélène Borel, a sua companheira, e por Alain Bioteau e Éric Daubresse).

O nosso encontro aconteceu em dois dias, (um tempo contíguo). Numa segunda e numa terça, numa sala de espera da Gulbenkian. A chuva era a única ameaça, a chuva. Mas havia também reuniões. E entre elas, a sua disponibilidade imensa. O meu prazer imenso.

Emmanuel Nunes nasceu em Lisboa há 61 anos. Vive em Paris. É o mais aplaudido dos compositores portugueses, um dos nomes mais importantes da música europeia contemporânea. É professor no Conservatório de Paris, pesquisador do IRCAM.  Há dois anos foi distinguido com o Prémio Pessoa. No ano anterior, com o Prémio de Composição da Unesco. Em Fevereiro deste ano, o CCB recebeu as suas obras mais emblemáticas, numa comemoração dos seus 60 anos.

Parece-me que o seu verbo é escutar, e o seu prazer, escutar a música do mundo.

Ouve música numa atitude contemplativa. É fácil imaginá-lo a assistir à cadência das notas, ao desenho que fazem no ar.

 

 

No início da década de 60, quando foi estudar para a Alemanha, interessou-se pela fonética e pela filosofia. Porquê esta combinação?

Não é uma combinação. É mais um paralelismo. O interesse pela fonética tinha a ver, e tem ainda, com o aspecto sonoro, com a melodia escondida na linguagem. A entoação de uma língua tem um significado próprio que vai além do que está no dicionário. Em cada língua, a maneira como diz uma palavra, muda o aspecto semântico latente. Como utilizo várias línguas regularmente, (falo seis), esta é para mim uma questão importante.

 

Imagino que duas das línguas que fale melhor sejam o alemão e o francês, por ter vivido muitos anos num país e noutro.

E português.

 

Evidentemente. A sonoridade do alemão e a do francês são quase antagónicas. A crispação que parece existir na acentuação do alemão...

Que não existe.

 

Não existe na sonoridade da língua ou no povo alemão?

Estamos a falar da língua. Não estamos a falar de um povo. Convém não amalgamar os dois aspectos.

 

Mas não acha que há uma relação entre a língua e o povo que a fala?

Não na dimensão que estava a dizer. Pode haver um francês muito mais crispado que um alemão e um alemão muito menos crispado que um francês. A verdade é que tenho uma relação profunda com a língua alemã; tanto mais que com a minha filha falo alemão.

 

A sério?

A sério e a brincar! [riso]

 

A força da língua materna...

A mãe não é portuguesa.

 

Está bem. Designemos por língua materna a primeira aproximação linguística ao exterior.

Às seis da tarde, quando estava com a minha filha, às seis da tarde falava em alemão como falo em português consigo. Mas falávamos da acentuação e da semântica subjacentes a qualquer língua. Em qualquer língua, pode dizer uma palavra extremamente polida e insultar a pessoa só com a acentuação – e a palavra é a mesma.

 

Ainda em Portugal, na faculdade de Letras, chegou a estudar filosofia.

Um pouco, um pouco. Mas não foi por aí que nasceu o meu interesse pela filosofia. Nasceu mais por mim próprio.

 

O interesse em paralelo pela filosofia e pela fonética chamou-me a atenção porque uma implica uma distanciação em relação ao mundo e a outra pode ser a tradução da música do mundo.

De uma maneira mais modesta, digamos que é. Você formulou o problema de uma maneira demasiada construída em relação ao que ele é em mim.

 

Mas estas são algumas das suas premissas: a filosofia, a fonética, a música.

E a literatura e a pintura.

 

Sócrates teve um sonho nos dias que antecederam a sua morte. No sonho era-lhe dito que devia compor música. Praticar a arte das musas. Há uma raíz etimológica comum a música e musas [mousike]. Como se tudo partisse do mesmo ponto.

Há uma palavra que serviu de nome a uma obra minha, há poucos anos, que é «Musivus». Tem a ver com o que acabou de dizer: algo feito em musaico.

 

Musaico?

Tem a ver com as musas, e com museu, e com a música, por interposição.

 

Penso que escutar é o seu verbo fundamental. Refiro-me à capacidade de ouvir a música do mundo, sentir a harmonia do mundo.

Não há comparação com o Sócrates.

 

Mutatis, mutandis, trata-se do mesmo, não? Ouvir a música do mundo para melhor se entregar à arte das musas.

A comparação é demasiado perigosa. A não ser que eu não conhecesse Sócrates, aí era mais fácil. O que teve importância na minha maneira de pensar, (pensar a música, pensar a filosofia, o que for), teve sempre a ver com uma coincidência entre o que se lê e o que se sente. Uma espécie de empatia interior. Não é que tal filósofo seja mais importante que outro; mas há algo que faz que tal filósofo seja para mim mais próximo que outro. Quando comecei a estudar em Paris, um filósofo foi fundamemental: Husserl. (Por razões ocasionais, vou fazer em Novembro e Dezembro no IRCAM [Instituto de Pesquisa Musical associado ao Centre Pompidou] duas pequenas conferências sobre Husserl).

 

E porquê? Husserl tem a ver com a consciência íntima do tempo.

Em todos os trabalhos que fez sobre a consciência íntima do tempo, a realidade que tomou como exemplo foi o som. Som de uma melodia, som do tic-tac de um relógio. Para ele, a percepção de um som servia de paradigma da consciência íntima do tempo.

 

Ouvir o que seja, requer tempo. Se não tivéssemos tempo, tempo que se estende, não poderíamos ouvir. Sei que aprecia Kandinski. Os quadros de Kandinski, para serem assimilados na sua plenitude, requerem tempo.

Mas isso, qualquer quadro. Na obra do Kandinski essa dimensão está sempre presente. Há dois escritos meus, que não estão publicados; um é sobre os escritos do Kandinski, e não sobre os quadros; e o outro é sobre aspectos da consciência íntima do tempo em Husserl.

 

O que lhe interessa não é o tempo cronológico, de que precisamos absolutamente e ao qual estamos presos, mas o tempo psicológico. Ou seja, o tempo como ele é vivido intimamente. E não têm de coincidir, claro.

É o que Husserl chama Tempo Subjectivo. Embora, para ele, Subjectivo não tenha a mesma acepção que normalmente tem na psicologia. Tem a ver com a formação e a reconstituição da continuidade temporal. O escoar do tempo..., pode dizer-se escoar, não pode?

 

Sim. É até muito visual, faz pensar numa ampulheta.

O escoar. É isso que me faz caminhar para a morte. É irredutível. O escoamento e a memória.

 

Memória como nosso suporte, como sustentação.

Memória não só como “memória tradicional”. Se estou a falar consigo e digo uma palavra de três sílabas, se você não tiver a memória da primeira e da segunda, não percebe a palavra. Porque só ouve na altura em que está a ouvir. Portanto, não cria contacto. Se eu disse Memória e ouvir Me, esqueceu, Mó, esqueceu, Ri, esqueceu, não sabe o que eu disse. Há aí uma concentração, uma integração imediata da memória.

 

A primeira associação que faço a partir de memória, é identidade.

No sentido de reconhecimento, sim.

 

Num texto do Le Monde escrevia-se sobre si o seguinte: «Um compositor em busca da intemporalidade».

É outro problema.

 

Revê-se nisto, nesta busca?

Oiça, nós agora não estamos a falar de música. Mais uma vez convém não transpôr um domínio para outro. É importante a autonomia dos domínios.

 

E a precisão com que são demarcados.

Uma coisa é o contacto. Aquilo que chamo de colonialismo cultural, em que cada disciplina coloniza a outra, dá como resultado o seguinte: aquela que é colonizada, só foi saqueada, e a que colonizou no fundo não ganhou nada com isso. Não ganhou ela própria, ganhou a nível oficial, para o exterior. Mas não é incomunicação. É um problema quase deontológico e ético, é não deitar poeira aos olhos de quem se chama público.

 

As coisas estiveram sempre tão esclarecidas na sua cabeça?

A esse nível, sim. Outros, não.

 

Podemos voltar atrás? No fim da adolescência ainda pensou em estudar farmácia, depois medicina, depois entrou em letras, e só depois decidiu estudar música a sério.

Acabei o liceu, a minha família disse-me, «Vais para farmácia»; não tinha autonomia e fui. Não consegui entrar no primeiro ano, no segundo também não. Penso que se tornou uma recusa inconsciente. Teria feito farmácia, ou não, não é isso. Simplesmente, nessa altura já aprendia música, digamos que foi nessa altura que a música ganhou peso. Depois entrei para a Faculdade de Letras. Mas a música já estava assente.

 

O que representou a música nesses três anos em que não conseguiu entrar para a faculdade?

Deveria haver em mim um interesse latente por certo tipo de conhecimento e sensibilidade que se canalizou completamente para a música. A seguir houve um pequeno parentesis com a actividade política e académica. A partir do fim de 62, a música passou a ser o vector principal da minha existência.

 

Quando procurou Lopes Graça, para ter aulas com ele, tinha 18 anos...

O Lopes Graça perguntou-me: «O que é que sabe?», «Não sei nada». Ah!, fez ele, «Então, o melhor é ir para a academia estudar com Francine Benoit». Durante quatro anos e meio estudei harmonia, contraponto, fuga com Francine Benoit. E a seguir, em 62 e 63, é que fui aluno particular do Graça. Depois, fui-me embora.

 

Ainda que tenha dito ao Lopes Graça que não sabia nada, sabia com precisão o que queria aprender. Sabia identificar o que lhe interessava.

Isso sim.

 

Numa entrevista foi-lhe perguntado o que podia ensinar aos seus alunos. Respondeu que cada um só pode aprender aquilo que já sabe, mesmo que disso não tenha consciência.

É preciso relativizar essa frase... Se calhar, já não a dizia sem a explicar. Essa frase, com a qual estou inteiramente de acordo até ao fim dos meus dias, inteiramente de acordo!...

 

O que é que significa?

Uma pessoa pode ser extremamente culta, extremamente lida, conhecer bem milhares de livros, autenticamente tê-los lido, etc; mas isso não implica uma identificação profunda com os livros, com a matéria. É o que chamo de reconhecimento. Se não consegue encontrar em si mesma o conteúdo do livro que está a ler, é muito menos frutífero que no caso de saber automaticamente o que está lá. Isso passa-se em todos os domínios. Tanto em matemática, como em música, como em literatura.

 

Até no amor, que vive da identificação e do reconhecimento.

Esse é outro domínio... Se vamos por aí, já não é amor, é tudo o resto que vem com isso. Pode chamar-lhe amor. Esse reconhecimento, tanto pode ser positivo como negativo. Quando lê num jornal que um criminoso fez um acto horrível, diz: «Ah, o homem é horrível». Ou lê e diz: «Como é que isto aconteceu?». Torna minimamente a fazer o percurso que o levou a fazer aquilo... Não é perdoá-lo. É saber de uma maneira mais profunda que num homem tal coisa se lhe impõe.  

 

Seguir o caminho interior?

É. Não é dizer, «Sou muito melhor». Isso não me serve de nada. Eu não faço, mas aquilo, na humanidade, existe. E voltamos ao problema: se o homem não conhece essa dimensão em potência, não a tinha feito. É um aspecto profundo da natureza humana. É em relação a isso que digo que não pode aprender o que não sabe. Não pode aprender o que não reconhece instintivamente.

 

A sua música é a sua leitura harmónica do mundo?

Mas isso não é só comigo, ou é?

 

A minha é a das palavras.

Aquilo com que a pessoa vive, é com isso que se faz. Automaticamente está tudo lá. Integro, como toda a gente, tudo o que vivo. O problema é como essa integração se transforma em algum fenómeno. Não é em nenhum momento querida _ no sentido de querer. É querida mas não é querida.

 

Quer dizer que não pode ser de outra maneira?

Não, não pode.

 

Passa a ser uma extensão de si, uma manifestação de si.

Ou uma materialização do que sou e do que penso e do que sinto. É nessa medida que vem a ideia de organismo. Se tiver um filho, você é que o criou dentro de si. Ele não é uma expressão do que você pensa. Pode morrer logo, pode viver cem anos, pode ser um génio, pode ser um bandido. Uma vez que nasceu...

 

Tem existência autónoma.

Para mim, uma peça é isso.

 

Mas a peça não é anterior a este processo? Depois de escrita, depois do nascimento, fica entregue a outros.

Acho que não. Por exemplo, a peça que vai ser tocada amanhã à noite, seja boa ou má, a partir do dia em que a acabei, ela vive ou morre, tem uma existência que lhe pertence a ela. Tem a marca da origem, como um filho também tem. Uma obra é um organismo a que dou vida. Depois é com ele.

 

Se fizer um paralelo com os bebés, o tempo de maturação e escrita da peça corresponde a um tempo intra-uterino?

Aí é.

 

A partir do momento em que está acabada, dá-se o parto, e passa a ser de outros: é executada por outros, é ouvida por outros.

É ela própria. Já não posso remediar, não posso emendar.

 

Quer dizer que há um ciclo de vida definido?

Sim.

 

Por isso é que são organismos?

Como uma flor é um organismo. Uma pedra, tem uma existência totalmente diferente de uma flor. Tem uma constituição definida, é aquela pedra.

 

Nos organismos que cria, nasce e morre várias vezes? Costuma pensar na morte?

E você?

 

Não muito. Mas às vezes sim.

Mal ou bem?

 

Se chegasse agora, teria a sensação de a coisa estar ainda inacabada.

Há um parâmetro, a idade.Diria que não penso mais do que pensava há vinte anos. Simplesmente, penso de maneira mais consciente, se se pode dizer isso. Há uma presença dela.

 

Como uma nuvem a pairar?

Não, não, não. Como a outra face da vida. Mas não é uma nuvem, ah não. Há uma iminência permanente. Tanto há aos sete anos, como há aos vinte, como há agora. Essa iminência pode ser recorrente.

 

Em situações de maior vulnerabilidade, de crise?

Não só. Liga-se também à idade.

 

Quando fiz a pergunta não estava a pensar na sua idade.

Mas estava eu!

 

O caminho faz-se fazendo.

É verdade.

 

O que fazemos, as peças, são coisas que nos agarram e justificam o fazer do caminho.

Nunca posso citar textualmente nada, mas há um lied de Schubert que diz que «Há o caminho e que... ganhou morte???. Não tem regresso». É inevitável.

 

Porque é que comia tantos chocolates e escrevia nos papéis que os embrulhavam?

Não escrevia, fazia desenhos. Porque gosto de chocolate e porque tinha de me alimentar. Como não ia fazer refeições durante o dia, comia chocolates e continuava. Tomava o pequeno-almoço e depois jantava. Hoje em dia como muito menos. Era mais novo...

 

O esquema do pequeno-almoço e do jantar com chocolates pelo meio, era para não interromper o ritmo de trabalho?

Era porque não queria sair de casa.

 

Os desenhos que fazia no papel das tabletes eram porquê? E porquê no papel das tabletes?

O chocolate na altura tinha um cartão rijo. Cada tablete tinha um cartão cinzento, com uma forma rectangular. E sem saber porquê, fazia sobretudo desenhos geométricos, 98% de geométricos, sobre esse cartão. A razão metafísica do chocolate! [riso]

 

Claro que quando lhe perguntei pelos chocolates, estava a pensar no «Tabacaria» do Pessoa. [«Come chocolates, pequena / Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates»]. Como se os chocolates fossem a inocência.

Não acredito.

 

De que é que se lembra do tempo em que era inocente?

O que é ser inocente?

 

É não ter medo. É um tempo anterior ao medo.

Oh, oh, então já não me lembro. Posso ter momentos em que não tenho medo. Agora, não ter medo? Isso, desconheço.

 

Não se lembra de si sem medo?

Não. Só por momentos. Isso, é demasiado luxo para a minha vida. Esse tempo anterior ao medo que eu conheço, que eu reconheço, para voltar à nossa conversa de há bocado, não lhe chamaria forçosamente inocência. Pode haver uma ausência total de medo e não ser de modo nenhum inocência.

 

Então é o quê?

Não sei. Não tenho resposta.

 

Falar de tempo, faz-me pensar em cápsulas de tempo. Cápsulas com paredes definidas, fechadas sobre si. O tempo em que está com a música dissocia-o de tudo o resto? É um tempo de retorno a essa inocência?

É. Eu não perfilho a ideia de que há cápsulas de tempo. Não as sinto. Não quer dizer que não haja.

 

Os seus sonhos são povoados por imagens, fragmentos de conversas, música?

Depende das épocas.

 

Nunca fez psicanálise?

Não. Tive vários contactos. Pensei fazer duas vezes. Uma com 22 anos e outra com 34. A primeira corresponde ao ano de 63, um ano e meio antes de ir para Paris. E segunda corresponde à composição de «Ruf».

 

Que é apontada como a peça da sua consagração internacional, em 77.

Não tem a ver directamente. Foram fases particularmente depressivas, em que eu próprio agarrei em mim, agarrei-me, e fui lá. Não houve qualquer estado exterior que me tivesse conduzido a isso. Aqui em Portugal, vi a pessoa duas vezes; simplesmente, a seguir suicidou-se. Não tem nada a ver comigo! Mas pareceu-me ser a pessoa certa. Depois em Paris, em 75, vi a pessoa, cinco, seis vezes. Também era extremamente competente.

 

Quando se faz psicanálise, ou quando se tem essa intenção, pretende-se viver de forma mais apaziguada.

Depende das pessoas. Em contrapartida, numa fase boa da minha vida, em que estudei em Colónia, li toda uma série de obras de Freud - que não tem nada a ver, julgo, com a psicanálise que se faz hoje.

 

Numa determinada fase da sua vida lia bastante Proust, Kafka, Freud. Mas eu dizia que as pessoas que fazem psicanálise, fazem-no para viverem melhor consigo. A música tem sobre si esta capacidade? Salvou-se pela música?

Não é possível fazer uma resposta em retrospectiva, sem dizer sim e mentir, ou dizer não e mentir à mesma. Não sei. Vivi.

 

Lembra-se de quando era menino e brincava?

Perfeitamente. Brincava como qualquer criança. Salvo que, devido a certo tipo de dificuldades motoras, a minha relação com o brinquedo físico, cubos, automóveis, etc, tudo isso mudava, sem eu saber... Tinha consciência de que a adaptação entre o gesto e a intenção era condicionada por este tipo de impossibilidades.

 

Isso obrigava-o a brincar mais consigo, limitava as brincadeiras com os outros meninos?

De maneira nenhuma. Tive uma pequena fase de quatro anos, (deve ter lido), em que estive numa escola especial. Voltei a uma escola normal com 12 anos. Quando penso nisso, é especial que nunca tenha sentido qualquer segregação ou problema de contacto. Hoje em dia é moda dizer que um tem um problema, que não se adapta, que tem de ir ao psicólogo escolar. Esse tipo de problemática, nunca a conheci. Nunca tive um colega que não falasse comigo normalmente, o que é espantoso. 

 

Posso então perguntar-lhe como viveu o período de aprendizagem com Stockhausen, em que basicamente se limitava a ouvir? Por uma questão de preconceito, ele recusava uma relação normal consigo.

Não era preconceito, era puramente ideológico. Prefiro não ir além disto. Mas é ideológico. Sabe porquê, ou não?

 

Tem a ver com a pureza da raça ariana e com o nazismo?

Tem a ver com isso.

 

Mas surpreende-me que, apesar disso, consiga ouvir uma peça de Stockhausen e retirar disso prazer.

Ah, porque é música.

 

Dissocia em absoluto o que é o homem, o que foi o seu contacto com ele, e o que é a música desse homem. Como consegue fazer essa operação, foi o que me perguntei.

Em mim, há a autonomia da obra musical. Seja de quem for. Se é boa, é boa, se é má, é má. Não estou a ligar ao homem, estou a ligar-lhe enquanto músico. Strauss, Richard Strauss, é possível, e é verdade, que o homem ideologicamente não fosse um anjo... Aliás, ninguém é anjo. Mas não me vou privar das óperas do Strauss devido a esse tipo de problema. Pode haver uma pessoa perfeitamente digna de admiração e um péssimo compositor.

 

Podemos fazer um paralelismo na literatura com Céline, acusado de ser colaboracionista?

É. O Karajan, quando era novo, sonhava que lhe dessem o cartão do partido nazi. E não era sequer para fazer carreira, era por convicção – é pior ainda.

 

Voltando ao homem e ao autor, de que é que se orgulha mais em si? O que ficará de si?

O homem não tem interesse, quando morrer acabou.

 

Persiste na memória das pessoas que consigo privam.

É possível. Mas não tenho nada a ver com isso, não me compete a mim.

 

O que é em si mais digno de admiração?

Desconheço completamente.

 

Então, pergunto de outro modo: o que é para si mais admirável no homem?

Num homem qualquer? Ah, isso é um problema muito complicado.Se é um grande artista, vai ser a obra e não o homem. Na humanidade há homens de uma qualidade extrema que ninguém conhece. Tanto pode ser um camponês do Alentejo, como um empregado de um banco, ou um actor de teatro.

 

Insisto, quais são essas qualidades? A bondade, a generosidade, a honestidade? Normalmente apontam-se estas.

A bondade é mais difícil de definir. A honestidade é em certa medida a menos difícil; não é mais fácil, mas é talvez menos difícil de delimitar, de agarrar na mão. Se me falar de política, aí tenho um problema gravíssimo: é que é cada vez mais paradoxal juntar as duas palavras, tanto na Esquerda como na Direita.

 

É uma tristeza que assim seja.

Mas é assim.

 

Não tenho o seu contorno enquanto homem.

Não acha normal?

 

Sim, mas esperava ter uma cintilação, uma ressonância.

E porque é que acha que não tem?

 

Porque se resguarda, porque não quer que a apanhe.

Não. Tanto quanto pode saber, a razão não é essa. Ou tem uma ideia errada, (que eu dou ou não dou, mas não é de propósito), ou não tem.

 

É naturalmente difícil para si?

É. Há pessoas, mesmo próximas, que tudo o que recebem de bom de mim, ou que gostam, ou que acham bem, dá ideia que é automático. Tudo o que não gostam de receber de mim, ou porque é mau, ou porque é duro, ou porque é crítico, dá ideia que toma uma dimensão enorme.

 

Porquê?

Não tenho resposta. Há uma mudança de escala. E nessa medida, é normal que desiluda muita gente.

 

Falaram-me de si como um homem de extremo rigor.

Quem?

 

Por exemplo, o António Jorge Pacheco, [Casa da Música]. É assim que se vê?

Esse rigor, em certas alturas, pode desaparecer. Não em situações de trabalho, mas humanamente. Se desaparece, é sempre tomado como algo normal. E quando o rigor reaparece, é tomado como profundamente autoritário ou severo ou justiceiro.

 

Em relação a que coisas é complacente?

Não são coisas, são situações.

 

Aquela pessoa, aquela situação, aquele tempo, e tudo isso conjugado?

É, é profundamente contextual. E isso torna a questão desorientadora para o outro.

 

A intransigência e rigor acontecem porque se encouraçou pela vida fora, face a tudo o que teve de enfrentar e superar?

Acho que não. É em mim uma questão mais natural.

 

Sempre foi assim?

Acho que sim.

 

Disse-me que se lembrava bem dos tempos da infância. Diga-me uma coisa de que se lembre bem e de que goste de se lembrar.

Numa primeira fase, com quatro, cinco, seis, sete anos, passava férias perto de Sintra, numa propriedade que não era nossa. Sei que passava horas a andar de triciclo. A propriedade tinha imensos caminhos possíveis e podia passar uma hora, duas, mais, a percorrer, para trás e para a frente. Eu tinha uma atitude de permanência.

 

De permanência consigo próprio, a sós consigo, para começar.

Sim. Um dos problemas nas minhas relações é que passo de uma situação à contrária sem evolução necessária. Não é instabilidade. Como passava horas só, também brincava acompanhado horas a fio. Era uma mudança de estado.

 

E a sua mãe? Era o anjo da sua infância?

Não. Um anjo, não. Do ponto de vista feminino, não vivia só com a minha mãe, embora a minha mãe estivesse sempre presente. O que ela tinha era uma profunda intuição da minha existência.

 

Adivinhava-o?

Sim, mas isso é mais normal. O que quero dizer é que o meu estado de alma em geral, relativamente também à minha doença, podia subir mais à consciência ou menos, (porque isso não é permanente). Todo esse movimento interior, e de aceitação ou não aceitação desse tipo de destino, aí, ela, que nunca o poderia ter formulado, sei que tinha uma intuição total do meu estado de alma. Teve-a até aos 16 anos. Depois eu cortei completamente. Tinha uma vida interior separada, tanto do meu pai como da minha mãe.

 

Quando improvisava horas e horas ao piano, tratava-se de um reencontro íntimo?

Sim. Embora houvesse uma enorme ignorância teórica, havia o que você disse.

 

O reencontro consigo.

Sem dúvida nenhuma.

 

E o pingue-pongue?

É um desporto! [riso] Você provoca-me e eu provoco-a!

 

Como é que se entusiasmou pelo pingue-pongue? Jogou à séria.

Tinha dois colegas que jogavam de maneira bastante profissional. Eu ia com eles, e jogava. Joguei muito e joguei relativamente bem. A próxima doença, que intelectualmente ficou muito mais enraizada, foi o bilhar.

 

Quer um, quer outro são jogos de precisão.

São. O bilhar é muito mais intelectualizado no gesto. A relação era muito intensa. Também acabou assim de repente.

 

Acabou porquê?

Porque mudei de vida.

 

O facto de serem esses desportos, que exigem precisão, tem a ver com a sua doença e uma necessidade de se superar?

Não sei. Tanto no pingue-pongue como no bilhar, vivia todos os dias com pessoas que o praticavam. Além de que, no bilhar, havia o fascínio não da precisão, mas da física. Da física das bolas. Todo o fenómeno da física, de dinâmica, é extremanente complexo.

 

No mesmo artigo do Le Monde a que já me referi, dizia-se que a sua música vive da tensão entre a sensualidade e a espiritualidade. Acha que é uma boa definição?

De certa maneira. Mas como lhe disse ontem, para falar de espiritualidade exijo muita moderação. Há quem comece por falar de espiritualidade e acabe a falar de mística.

 

Como coabitam em si o espiritual e o sensual que há na sua música?

Não penso que tenha de haver uma contradição ou tensão negativa entre os dois domínios. Não é preto e branco. São dois domínios da mesma totalidade. Por exemplo, no compor também não vejo em mim qual é a contradição entre o lado racional e o lado intuitivo. Não é por usar uma estrutura de raíz muito racional que a sensualidade vai ser menor. Não vejo qualquer incompatibilidade.

 

E não há gradação? Passa-se de um a outro naturalmente?

Ou não passa: só há um tempo.

 

Em concomitância?

Se possível.

 

Uma fusão?

Sim.

 

Gostava de saber em que pensa. Hoje, que coisas lhe ocorreram?

A chuva. Hoje é um factor essencial: se chove, não há concerto.

 

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2002

Emmanuel Nunes morreu em 2012 



Beatriz Batarda (2000)

12.02.15

Beatriz Batarda tem 26 anos e é a mais talentosa das actrizes da sua geração. É filha do pintor Eduardo Batarda e prima da actriz de Oliveira Leonor Silveira. Esta associação é-lhe inconfortável. E é injusta, consensualmente injusta. Abandonou o conforto da vida burguesa e instalou-se em Londres vai para quatro anos. Ganhou a medalha de ouro da prestigiada Guildhall School of Music and Drama. Há uns meses irradiou pelos ecrãs portugueses no filme «Peixe Lua» de José Álvaro Morais. Antes disso, e antes mesmo do curso em Inglaterra, fez teatro na Cornucópia e cinema com Manoel de Oliveira. E fez algumas outras coisas.

Veio matar saudades pelas Festas. A entrevista teve lugar no sofá da sala desta que vos escreve; e logo depois deslizou para o chão forrado a almofadas. Ficou prometido que seguiria para Londres aquando da sua saída.

Para o caso de não saberem, ela é uma flor.  

 

Porque é que preferiu que a entrevista não fosse em sua casa?

Fico intimidada. Pela casa. Por. Estou fora há quatro anos. Descobri-me mulher em Inglaterra. Aqui sinto-me muito infantilizada. Ainda não descobri o direito de ser mulher em Portugal, ainda não encontrei esse espaço.

 

O que é que aquela casa representa para si?

Foi onde cresci. Fui para lá viver aos sete anos quando a minha mãe voltou a casar. A minha mãe foi casada com o meu pai, Batarda, e com um homem extraordinário chamado João Vilalobos. É uma casa lindíssima, cheia de memórias, sombras, cheiros, no Marquês de Pombal. Fico muito vulnerável, e ligeiramente intimidada. Não concebo ocupar aquele espaço como profissional, dar uma entrevista...

 

A intimidação resultava também do facto de não ser essa pessoa para a sua mãe?

Espero que nunca olhe para mim assim, que me olhe sempre como a sua filhinha pequenina. É um desgosto quando se deixa de poder ser pequenina, meter o dedo na boca, fazer birra e dizer «Dêem-me mimo, pelo amor de Deus»! Só se pode fazer isto com a nossa mãe. Se a nossa mãe passa de repente a achar que temos de ser mulheres de armas, que temos uma carreira a preservar, essas coisas todas..., pronto, perde-se a incondicionalidade do amor de mãe.

 

Quando foi para Londres, pediu opinião à sua mãe? Tratava-se, afinal, de decidir um rumo para a sua vida.

Tive apoio de toda a família, mas decidi sozinha. Quando surgiu a ideia de ir para Londres, a minha mãe tinha enviuvado e era difícil não ficar junto dela. Quando começou a recompor-se, apercebi-me que não tinha a responsabilidade de ficar em Portugal ou de mudar os meus sonhos em função de. Na verdade, não era só por ela. Era também por mim, sofri muito com a morte do meu padrasto. Dois anos depois fui a Londres ver escolas. Fui embora com 23 anos. E tive uma sorte, não fui sozinha. O meu namorado também quis ir, foi uma aventura a dois. [sorriso] Ainda estamos juntos!, com muitas alegrias e muitas porradas.

 

Então, encontrado o sonho, comunicou-o à sua mãe?

Sabe que não me lembro? Provavelmente a minha mãe terá sido a primeira pessoa a quem contei, é sempre a primeira pessoa a quem telefono, falo ou pergunto. Ela dá-me apoio, com certeza, mas dá-me sobretudo coragem – a não ser que seja uma coisa completamente disparatada e infantiloide. Quem foi uma revelação para mim nestes últimos anos, por me encorajar imenso para ser actriz e levar isto a sério, foi o meu pai.

 

Porque é que constituiu uma surpresa?

Quando acabei o Liceu fui fazer Design para o IADE. Não gostava de mais nada senão das artes, e acabei por ir para a área E. Mas também não tinha coragem, (era realmente insegura!), para me meter numa coisa como pintura. Tinha o terror da imagem do pai, o Batarda. Que horror, ainda bem que não fui, poupei muita desgraça! E arquitectura não dava porque matemática sempre foi o meu tendão, o meu calcanhar de Aquiles. Então fui para Design. Rapidamente se percebeu que não tinha jeito nenhum. Não tinha nascido numa área completamente diferente, portanto havia coisas que eram dados adquiridos, em termos de informação, percepção visual e assim; mas não tinha nada de muito criativo para dizer ou fazer. Era uma aluna medíocre. O meu pai volta e meia punha as mãos à cabeça e perguntava «Mas o que é que te deu para fazeres Design?»

 

Mostrava-lhe os seus trabalhos?

Levei muito tempo. Um dia pensei que tinha de mostrar, que tinha de me confrontar com a realidade. Mas, sabe, não tive um desgosto muito grande por chegar à conclusão que..., que era uma merda. E depois, foi tudo um encaminhamento, uma evolução natural. O Design não está assim tão desligado do teatro; tem muito a ver com imagem, com composição, com espaço, com movimento, com vida.

 

No primeiro ano do IADE, protagonizou «A Caixa» de Manoel de Oliveira.

Já tinha feito dois filmes. Nos «Tempos Difíceis» era miúda, tinha 11 anos; o «Vale Abraão» fiz por acaso. «A Caixa» foi o primeiro filme que fiz com alguma seriedade e empenho. Tinha 20 anos. Logo depois, o Luís Miguel Cintra convidou-me para fazer o «Conto de Inverno», e as coisas foram aparecendo, umas a seguir às outras. A culpa toda disto é do Luís Miguel Cintra! Foram anos atribulados: aulas de manhã no IADE, ensaios à tarde na Cornucópia, espectáculos à noite, e a seguir fazia os trabalhos da escola para o dia seguinte. Vivi dois anos a dormir quatro horas por noite! Às tantas não dá. Ainda por cima em luto, (o meu padrasto tinha morrido entretanto), e a tentar fazer uma vida normal: ter namorados, ver a família, ter uma relação saudável com a minha mãe. Tinha de tomar uma resolução. Mas as coisas foram tão encadeadas umas nas outras, que não senti qualquer violência. A escolha não foi uma violência. O que foi uma violência, foi ter arrastado o momento da decisão.

 

Não especificou porque é que o apoio do seu pai à sua carreira constituiu uma surpresa.

Ah! Não há nenhum actor na nossa família na geração anterior à minha, não há qualquer tradição. A aparição desta profissão na família veio romper com uma série de ideias que havia em relação ao teatro e ao cinema. As profissões da família são médicos, (a minha mãe é psicóloga), pilotos, hotelaria. Bem, o meu tio-avó materno era cenógrafo do Teatro Nacional até 1900 e troca o passo; mas era uma ligação diferente.

 

Há a sua prima Leonor Silveira.

Há a Leonor. Mas esse é um assunto de que não gosto nada de falar.

 

A Leonor é a actriz fetiche de Oliveira, mas, ao mesmo tempo, tem uma outra vida, uma outra profissão. Nesse sentido, não parece que ela tenha estruturado a sua vida para ser actriz.

Eu nunca quis ser actriz.

 

Até perceber que já era.

Pois. Se quiser, foi por vergonha. A vida pode ser ridícula!, eu acabei por ser actriz por vergonha. Estava a trabalhar na Cornucópia, já tinha feito um Shakespeare com o Teatro Nacional, e pensei: «O que é que estou a fazer? Não sei usar a voz, não sei estar em cima de um palco, e estou a roubar trabalho a pessoas que dedicam a sua vida e se esfolam a trabalhar, que davam tudo para estar no meu lugar... Quem sou eu?»

 

Disse numa entrevista que não é hoje melhor actriz; o que tem é uma série de ferramentas que lhe foram ensinadas na escola. Sentia a falta dessa dimensão técnica ou era apenas uma questão de injustiça?

O que sentia na altura e o que sinto agora não é o mesmo. Precisava de um curso para me sentir legitimizada; porque fui educada assim, porque o português pensa assim. [pausa] Isto é para mim um assunto tão delicado... Como falávamos há pouco, é muito difícil viver à imagem de outras pessoas: ser filha de alguém que, pelo menos no meio, conhecem; ser prima de alguém que, pelo menos no meio, conhecem. Eu sou a mais nova: vim mais tarde. Foi muito difícil encaixar-me na minha pele, sentir que não devo nada a ninguém. Tive uma sorte incrível, deram-me oportunidades incríveis que aproveitei e que tentei usar com a maior honestidade e o maior trabalho possível. Agora, isso nunca chegou para me sentir bem. Achei sempre que estava a roubar alguma coisa a alguém. Senti sempre a pressão do meio do teatro, do cinema, das artes..., isto pode ser paranoia!..., a dizer «És filha de, és não sei o quê».

 

De um lado é filha de, do outro é prima de.

Pronto. Eu não podia ter ido para o Conservatório em Lisboa. Não tem puto a ver com a minha opinião sobre o Conservatório. Teve só a ver com o meu crescimento pessoal. Um actor é quem é: é a Beatriz Batarda, é o meu corpo, a minha voz, o meu passado e a minha história, os meus medos e emoções. Isso é que faz de nós os actores que somos, isso e a nossa capacidade de trazer isso connosco. Não podia descobrir se queria ser ou não actriz num sítio onde me sentia privada de encontrar a minha pele.

 

Isto tudo porque falávamos do empenho do seu pai na sua carreira de actriz.

O meu pai, quando era pequena, ficava impressionado porque eu aprendia os jingles dos anúncios muito rapidamente, passava a vida a cantarolar os slogans. Portanto, tinha talento para ser papagaio! Há quem tenha talentos mais interessantes, o meu ficava-se mesmo pelo papagaio! Depois, com os anos, o meu pai tinha a teoria de que devia trabalhar com línguas, com pessoas. Ficou desgostoso, penso eu, quando fui parar ao IADE.

 

Nunca lhe perguntou isso?

Não, há coisas que..., é melhor não arriscar! E depois quando me viu no teatro, no «Conto de Inverno», («A Caixa» ainda não tinha estreado), achou que devia levar aquilo a sério. Que era por aí. O meu pai é um instigador. Ele e a minha mãe viveram em Inglaterra muitos anos. Nasci lá.

 

Porque é que voltaram?

Uma das razões foi porque se deu o 25 de Abril, a outra terei sido eu (por motivos de saúde), e houve outras entre eles em relação às quais não tenho nada a ver. Mas penso que o meu pai não se perdoa, enquanto artista, de ter voltado para Portugal. Não posso pôr palavras na sua boca, nunca o ouvi dizer que estava arrependido; mas sinto que é capaz de ter havido uma precipitação. Então, o meu pai acha importante que eu não perca a ligação com este país, que é onde está a minha família, é onde estão os cheiros que reconheço; mas que mantenha sempre uma ligação com o estrangeiro, no sentido de ser uma porta, uma janela.

 

Um espaço de liberdade.

Ele sabe..., já estou a imaginar, a romantizar, mas ele sabe que lá fora me encontrei, que agora sou mais eu.

 

Nota diferenças no país desde a sua partida?

Noto. A estrutura está a mudar, os espaços começam a existir (a banalização da net, os teatros que estão a ser recuperadas), mas as pessoas não estão a acompanhar. Há uma resistência pelos habitantes do espaço em acompanhar o crescimento natural do que os rodeia.

 

A mudança no país tem que ver com a europeização?

Provavelmente. Há um lado bonito nessa resistência que passa pelo desejo de manter uma identidade, uma tradição. O problema é que não se sabe ao certo o que é o ser português, o que é a tradição.

 

Neste último ano o Ministério da Cultura concedeu-lhe uma bolsa sob a condição de regressar a Portugal e trazer o que tinha aprendido. Para além da necessidade financeira que a fez aceitar a bolsa, era também um desejo seu melhorar o país com o seu contributo?

Nestes últimos anos, muitas coisas mudaram na minha cabeça, e agora estou outra vez em transição. Quando quis sair, tinha a séria pretensão de sair para voltar. Seria um acto de generosidade: ir absorver o melhor e trazê-lo para Portugal.

 

Seria o seu lado cívico?

Tem mais a ver com amor e gratidão pelo que me ofereceram aqui. Pedi apoio à Gulbenkian e ao Ministério da Cultura desde o momento em que apresentei a minha candidatura à escola. Viver no estrangeiro, para qualquer português, por muito que se tenha o apoio dos pais, é muito complicado. Não tive durante dois anos. No meu discurso (no pedido de apoio) falava do meu sonho de criar uma companhia a partir de um grupo de pessoas que admiro em Portugal. Neste momento não sei. Posso dar tudo o que tenho para dar. Essa é também a minha profissão. Manter-me generosa. Mas apercebi-me da minha insignificância.

 

Falou de amor e gratidão pelo país.

Pelas pessoas, pelas pessoas com quem trabalhei. Por acaso nem tenho muito vincada a ideia do país, da bandeira. Até porque andei numa escola francesa, a minha família do lado da minha mãe é francesa, nasci em Inglaterra. Sinto-me enraizada aqui, com certeza. Mas dizer que estou grata ao país...

 

O seu discurso do pedido de bolsa era, na senda dos estrangeirados, aprender para trazer. Insisto, sente-se um investimento de Portugal? Vai trazer o que aprendeu pelo compromisso que assumiu ou mantém intacto o seu sonho e o desejo de mudar?

A criação da companhia é a mais longo prazo do que imaginava. Não tenho ainda a solidez necessária. Mas, para responder, o que quer o país de mim: que traga ou que divulgue? Como é que posso pagar a minha dívida pelo apoio que o Ministério me deu? Divulgar o país no estrangeiro? Trazer o que aprendi no estrangeiro? Porque não as duas? Fiz o «Peixe Lua», que é um filme português, depois voltei para Inglaterra e acabei o curso... (em surdina) Ganhei a medalha.

 

A medalha. Onde é que a tem?

Ah, não existe! Para ser sincera, não fui à cerimónia. Estava a trabalhar. Essa é outra coisa que tenho de indagar. E saber se dá para derreter para fazer um dente de ouro! (risos) Fiz uma peça em Inglaterra, vou agora fazer outra, e em 2001, em princípio, há três coisas em Portugal.

 

Quer dizer que acabou o curso, está de medalha de ouro ao peito, e vai acorrendo aos trabalhos que aparecerem, sejam eles onde forem.

Nunca me tinha visto tão Maria vai com as outras!, mas essa arrumação parece-me justa. Digo que estou em transição porque ainda não sei qual é o meu papel.

 

O que significa ganhar a medalha de ouro numa escola tão reputada?

Fiquei super perturbada. Foi muito inesperado.

 

Como é que foi?, chamaram-na ao gabinete e disseram-lhe que tinha sido a escolhida?

Foi no último dia do curso, já por si muito comovente. Cinco pessoas apresentaram ao resto da escola monólogos da sua autoria; eu também apresentei.

 

Abro um parêntesis para saber sobre o que era o seu monólogo.

Era sobre uma rapariga judia que se perguntava sobre os direitos, ética e moral da engenharia genética (a sua profissão), e a influência da sua religião nesta crise; quando se chega ao xis da questão, é sobre ela e a mãe dela. O monólogo começa com uma coisa divertida, muitas graças pelo meio, e de repente percebe-se que ela está deprimida, fechada num quarto há três semanas pela mãe, uma judia ortodoxa que se recusa a trazer um psiquiatra – porque estas questões são tabu e escondem-se da comunidade. No fundo, é sobre viver, é sobre crescer. E é sobre mim. Fui buscar um contexto diferente para poder exaltar a extremos perguntas que me fiz e me faço.

 

E agora o dia da medalha.

Foi a apresentação do monólogo, e a seguir uma festinha com os professores todos. Depois o director do curso fez um discurso sobre o nosso ano, «Como vocês sabem, é tradição da escola, tal e tal». Fiquei um bocadinho histérica de choro, nervoseira, aquelas coisas.

 

O director explicou porque é que o prémio lhe tinha sido atribuído?

Não. Pelo que percebi dos ingleses até agora, dão muito valor à honestidade e ao empenho; dão menos valor às ligações e aos conhecimentos. Valorizam o tutano. E pronto, foi mais por aí, pelo esforço.

 

Conviver com as mesmas pessoas três anos num registo tão à flor da pele como o da representação, onde o capital é justamente o que têm de mais sensível, mais doloroso, mais íntimo, é um desafio extraordinário. Não é penoso quebrar essa membrana de pudor?

É a primeira etapa do curso, que se prolonga pelo curso todo. Para chegar aí, as outras pessoas assistem aos momentos mais embaraçantes que alguma vez podemos experimentar! Fazemos as figuras tristes todas, as asneiras todas, mas também as melhores coisas. Eu acho que as melhores coisas que as pessoas fazem, fazem-nas nas escolas de teatro. Porque estão tão disponíveis, tão desresponsabilizadas de fazerem bem... Quando se trabalha profissionalmente obrigamo-nos à ideia de fazer sempre bem, e isso é um inimigo terrível, porque se perde a liberdade de se ser genial de vez em quando.

 

Já conseguiu romper essa membrana em cima do palco?

Não sei, não sei mesmo. O crescimento pessoal influencia de maneira dramática a forma como o actor trabalha. E há coisas que ainda não aprendi. Como por exemplo, a exigência do público e dos encenadores ou realizadores de se ser bonito.

 

Fala de que beleza?

De entrar no palco e irradiar. É fantástico quando se descobre essa arma. É um pau de dois bicos. É muito positivo para um actor permitir-se ser monstruoso. Mas agradar ao lado de lá, a quem vê, é uma tentação quase impossível de resistir. Representar também é isso, um jogo de sedução. Pôr o lado de lá a odiar-nos, a achar-nos nojentos, é muito assustador.

 

Representar é também uma forma de catarse?

Não acho que ser actor seja uma terapia, um exorcismo. Pode ser um acto de amor. Por dinheiro não é, com certeza!, ninguém se mete nisto por dinheiro; só pode ser por amor ou por burrice.

 

Até onde o dinheiro é importante para si? A sua vida foi sempre confortavelmente burguesa.

A minha relação com o dinheiro tem mudado muito, e ainda vai mudar muito. Eu sou uma menina de classe média. Andei numa escola privada, nunca passei fome. Quando fui para Inglaterra isso mudou radicalmente. É claro que é tudo relativo, há pessoas que vivem pior que eu em Inglaterra. Mas eu vivo mal, e comparado com cá... Em Portugal há coisas que quase me ofendem.

 

Por exemplo.

Toda a gente tem carro novo. Não percebo porque é que as pessoas não andam a pé numa cidade que é um cochicho, porque é que a classe média não anda de metro. Para ir comprar cigarros à esquina, senta a bunda num carro!

 

Se vivesse aqui, romperia com essa convenção social de classe média tão facilmente como rompeu lá fora?

Claro que não. Cá é como se tivesse de responder por. Gostaria muito de ter coragem para isso, mas infelizmente não tenho, e já não olho para mim como a heroína que vai fazer e acontecer e mudar. Já não tenho problema em dizer «Eu sou classe média». Sou quem sou e vou parar de pedir desculpa. No meio (do teatro) não vou pedir desculpa.

 

Como é a sua vida em Londres, quais são os seus luxos?

Fazer ginástica num ginásio. Faço por prazer e por ser um luxo, um mimo que me faço para apaziguar o meu corpo da agressão a que diariamente o submeto. Depois há coisas que parecem luxos mas não são, são também trabalho, como ir ao teatro. Mas basicamente os meus luxos são a ginástica e uma garrafinha de vinho bom assim uma vez por mês. E ter um quarto confortável, com as coisas de que gosto.

 

Continua a partilhar a casa com seis pessoas?

Sim. O meu quarto é impecável, limpinho: pintei-o, e o chão é de madeira. Comprei os móveis na Ikea, que é mais barato, mas são giros, e tenho os meus discos e os meus livros. Compro mais livros do que leio. Ando sempre num histerismo, sem tempo para ler; só leio em metros e coisas assim.

 

O universo do cinema e da televisão é transversalmente cotado com uma existência glamorizada. Como é que lida com isso? Deve ter sido sempre olhada como uma menina bonita.

Não! (risos), contesto. Já passei por muitas fases, umas mais engraçadas, outras menos. Vivo mal com isso, muito indecisa. Por um lado, o mercado precisa de um star-system; a relação perversa da adoração e da idealização que ele cria potencia o apetite e o investimento das empresas privadas, e pode até significar a sua independentização. Por outro lado, pergunto-me porque é que o teatro e o cinema têm alguma vez de se independentizar, uma vez que alimentar a cultura é do interesse do país e da humanidade. Mas, e ainda por outro lado, atribuir essa responsabilidade ao Estado é uma atitude salazarista, transforma o Estado no pai da nação. Ando nesta confusão, não sei o que pensar.

 

Esse seu dilema é tremendamente europeu.

A Europa vive muito mal com isto. Vai à atribuição dos European Academy Film Awards, grande orgulho, a Europa está unida e faz cinema diferente do americano. Tem um fascínio pelo star system americano, mas depois não é capaz de fazer igual porque tem vergonha e é blasé: «Ai, estou a fazer-vos um favor porque venho por acaso ler quem é que vou nomear...» Está a ver? É de uma falta de generosidade, de uma mediocridade!

 

As actrizes europeias desta vaga que vingaram no star system americano são a Juliette Binoche e a Penélope Cruz. A exaltação da beleza foi fundamental para o interesse que Hollywood manifestou por elas. Tem vontade, à semelhança destas actrizes, de ser uma estrela de cinema?

Metida nesse saco, estrela de cinema em Hollywood?

 

Elas começaram por ser estrelas de cinema na Europa, e continuam a fazer filmes europeus.

Não penso assim, e não me apetece pensar nisso sequer. As duas são diferentes. A Juliette Binoche propõe-se a um programa diferente, até porque foi parar a Hollywood noutra idade. A Penélope Cruz esteve sempre mais ligada pelo lado plástico, e não estou a dizer que seja má actriz. A Penélope Cruz foi construída para chegar a Hollywood; à Juliette Binoche aconteceu. Se me acontecer alguma vez, espero que aconteça como à Binoche, ou seja, por acaso.

 

O que é desagradável ou intimidatório nesse universo?

Aquilo de que há pouco falávamos. Perder o direito de ser feia e monstruosa. Principalmente as mulheres.

 

Não tem medo de desfear-se se isso servir o personagem?

O meu corpo, que forma um conjunto com a minha voz e o meu passado, é a minha arma mais preciosa, mas frágil e mais forte. Quando o corpo se entrega, conquista-se mais. Se lhe der um abraço sentido, é quase inevitável que dê na volta, por muito tímida que seja. Se lhe der um abraço tenso e reprimido, a resposta vai ser nula. A relação com o público é assim. Para poder receber o abraço de volta, tenho de dar o corpo todo. «Eu estou aqui, usem-me, sou vossa». Foi o que aprendi este ano.

 

O domínio da voz é essencial para os actores. Teve uma professora de voz extraordinária que ensinou pessoas como a Cate Blanchet ou o Ralph Fiennes.

A voz representa um trabalho constante. Toda a profissão é um trabalho constante, uma procura constante. Não domino a voz como um actor experiente de 50 anos. Mas fumei menos cigarros que a maior parte dos actores de 50 anos.

 

Fuma?

Infelizmente.

 

Ainda não fumou, pode fazê-lo, se quiser.

Não, obrigada, estou a tentar cortar. É o meu projecto para o próximo ano.

 

A representação passa pela forma que é dada às palavras. Percebo quando diz que é diferente dizer Mother ou dizer Mãe. Daí a importância de representar em português, e da voz, o filtro que faz transparecer a emoção.

Num conjunto corpo-voz lemos tudo da pessoa. O corpo é mais dissimulado. A voz é qualquer coisa à qual instintivamente somos sensíveis.

Talvez porque, quando estamos na barriga da nossa mãe, a primeira coisa do mundo exterior com que temos contacto, antes mesmo de abrirmos os olhos, é o som.

 

Como é a voz da sua mãe?

Igual à minha. Ou a minha é igual à dela. É nova, autoritária, é muito quente. Criei um mimetismo total da voz dela. A minha voz mudou ligeiramente nestes últimos anos. Além de que a voz é diferente nas diferentes línguas.

 

São parecidas?

Sim. A minha mãe é mais morena, mais alentejana. É uma mulher bonita. Nunca a viu?

 

Não, só o seu pai e a obra do seu pai.

Também é bonito... (risos) A voz do meu pai... Esta coisa parece uma análise!, defina as vozes dos seus pais por palavras!

 

A sua mãe, porque é psicóloga, fez esse exercício consigo?

Espero que não tenha feito exercícios nenhuns. Mas tenho a certeza de que os experimentou a todos em mim, qual cobaia! Não, acho que me poupou o mais que se conseguiu conter.

 

Fiz a pergunta porque o seu caminho é o da procura de equilíbrio, o do apaziguamento com o que está para trás. Esse é também o propósito de uma psicoterapia.

Hum. A terapia só existe para ensinar as pessoas a crescer, não é? Todas as pessoas que não querem estagnar nos 12 ou nos 17 anos, fazem isso, não é?

 

Deve ficar uma mulher extraordinária aos 40 anos.

Estou à espera! (risos).

 

Quando crescer, quando ficar madura...

Ai, antes disso penso nos meus filhos. Desejo absolutamente ter filhos. A imagem do futuro que consigo visualizar vai até aí. Seria capaz de os ter em qualquer momento. Vivo dividida entre o impulso e a racionalização; se for pela racionalização não é a altura. Mas se vierem, eu já estou preparada.

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2000

 

 

 

 

Manuel de Brito

11.02.15

Brito, o marchand, diz: «Sou de outro tempo. Sei olhar para um quadro do Almada Negreiros porque vi o Almada Negreiros pintar, um quadro do Viana porque vi o Viana pintar, um quadro do Abel Manta porque vi o Abel Manta pintar».

É de um outro tempo, que lhe foi adverso: «Sou sócio dos Inválidos do Comércio desde os onze anos de idade. Como é que eu, marçano de uma papelaria na Baixa, não gostava da maneira como os mais novos tratavam os mais velhos... Pensava: a mim não me vão fazer isso. Quando chegar à idade deles, em vez de me tratarem mal, vou para os Inválidos do Comércio. Já pensava como é que me podia defender no futuro...».

Brito tem fascínio pela China. Um dia, Soares, o amigo Mário Soares, encarregou-o de uma mostra portuguesa na Cidade Proibida. «Conheci em Shangai um intelectual chinês que esteve seis anos com uma enxada nas mãos, no tempo do Mao. ”Como vê, não podemos agarrar o vento com as mãos”. Não podemos agarrar o vento com as mãos... Às vezes refugio-me em coisas destas. Ajudam-me a manter o caminho que vou traçando, que vou escolhendo».

Brito fala da Paula. A Paula é a Paula Rego. «Nós tínhamos um jardinzinho e um gato que vinha sempre receber as pessoas. Nisto passa um gafanhoto e o gato quis lá saber da Paula... Ela deitou as mãos à cabeça e disse: “Ai que ele vai magoar o gafanhoto!”. Depois escreveu-nos uma carta em duas páginas, que é a história contada em dois actos. De um lado está o gafanhoto a dar um raspanete ao gato, do outro já estão os dois a despedir-se e a apertar a mão».

Por fim: «Para ser um artista, primeiro, uma grande artista, depois, tem que trabalhar muito, tem que se cultivar muito, ler, visitar museus. Ver, ver, ver, ver».

Este homem fez-se. Cresceu com uma mãe gravadora. Empregou-se aos dez anos de idade. Transformou uma livraria universitária. Tornou-se marchand. É dono da mais institucional das galerias de arte portuguesas, a 111. O nome dele é Manuel de Brito. É casado e tem três filhos.  

  

Diz de si que é um intuitivo.

A minha base é essencialmente intuitiva. Aos dezassete anos era encarregado de uma livraria universitária. Era o número um da casa, à frente do patrão, que me disse: «Levas o ordenado que quiseres, porque sabes mais da casa a dormir do que eu acordado».Quando entrei na Escolar Editora analisei a situação: vendia livros usados e tinha quatro belíssimas montras com teias de aranha. Entrei como terceiro empregado.

 

Por baixo.

Era o mais baixo. Os outros empregados estavam ali para ganhar o sustento do dia-a-dia, não tinham outras ambições. Apresentei ao patrão um programa de desenvolvimento. Ficava ao lado da Faculdade de Ciências, via passar milhares de alunos e não tinha prestígio como livraria universitária. Ele não tinha dinheiro nem possibilidade de o arranjar. Aí é que teve de vir a mentalidade americana: inventei o caderno da faculdade de ciências. E depois os outros. Venderam-se milhares e milhares de cadernos mensalmente. Era dinheiro a entrar às pás.

 

Atribuiu a cada caderno uma cor, consoante o curso_ o mesmo que hoje se passa com as fitas e as pastas universitárias. Como é que se lembrou disto? Apelou ao sentido de pertença?

Joguei um bocadinho na vaidade humana. Cadernos, eles precisavam de comprar. Uma grande parte dos nossos clientes eram jovens do terceiro ciclo; iam entrar na universidade no ano seguinte, mas compravam já os cadernos da universidade. A pouco e pouco fui tomando as rédeas da casa. Todo aquele dinheiro começou a reverter para a aquisição de obras científicas actualizadas. Passados dois, três anos a livraria passou a ser considerada a melhor do país em termos científicos. Como é que chegámos lá? Assim como lhe relatei. O corpo docente da universidade e os alunos mais adiantados assistiam à abertura dos pacotes que vinham da América, Inglaterra, França, diariamente.

 

Estamos nos anos cinquenta?

Anos cinquenta. A livraria ficava na Rua da Escola Politécnica, ao lado da Faculdade de Ciências. Conheci lá a Maria de Jesus [Barroso] antes de o Mário Soares a conhecer; ela morava ali perto e ia lá comprar os livros. A maior parte das livrarias tinha uns livros, outros não. Eu queria que na minha livraria houvesse tudo. Um dia, o actual rei de Espanha [Juan Carlos] e a sua irmã, ceguinha, foram lá com uma lista e perguntaram se tinha algum daqueles livros. Tinha todos. A partir daí, passei a ser o fornecedor dos livros de estudo do futuro rei.

 

O papel da livraria foi significativo, naqueles anos.

Foi muito estimulante. Havia tertúlias, a tertúlia dos políticos, a tertúlia dos artistas, e havia uma consideração extraordinária. Todas as pessoas, os catedráticos, os estudantes, perceberam que aquela casa tinha mudado, pela minha mão. Eu não era aluno da faculdade, mas era parte integrante.

 

Apesar de não ter formação académica.

Fiz o curso comercial incompleto. As afinidades políticas iam crescendo. Entrei em conflito com o regime, com a censura. O salazarismo era o inimigo comum. A minha colaboração podia ser politicamente útil. As pessoas respeitavam-me, sabiam que não fazia aquilo para vender mais uns livrinhos... Corri alguns riscos, por exemplo, em relação à minha integridade física, para valer a pessoas que queriam conquistar a liberdade. Pus em liberdade alguns estudantes universitários. Eu era amigo e era o amigo que era chamado.

 

Chegou a ser preso?
Preso, preso não. Ia aos interrogatórios, uma semana a ir todos os dias, três, quatro horas de interrogatórios, um processo de intimidação. Estavam convencidos de que pertencia ao Partido Comunista.

 

Mas também é verdade que todos os que eram adversários do regime eram apelidados de comunistas.

Eles queriam chegar cá e dizer: “Cá está, você é este. Sabemos o seu pseudónimo e o que você tem feito”. Saíam sempre insatisfeitos do bluff porque não podiam dizer que era do Partido Comunista ou do Partido Socialista. Com a minha posição face à política, escolhi sempre os homens e não os partidos. Era muito amigo do Lucas Pires, que era do CDS. Em determinada altura, fiz uma amizade com o Sá-Carneiro, que queria a minha colaboração na estrutura de uma fundação.

 

Quando Sá Carneiro morreu, estava empenhado em constituir-lhe uma colecção. Mas é a amizade com Mário Soares a mais significativa no seu percurso. Como é que se cruzam?

Vim para aqui há cerca de 50 anos, para a livraria da esquina, e o Mário Soares começou a vir à livraria. Tínhamos amigos comuns. Mário Soares percebeu que eu era dos dele, desde a Escola Politécnica, sendo um contestatário. Quando foi para o exílio, para França, eu ia lá com frequência e levava-lhe roupa, coisas assim.

 

A coragem é a marca mais distintiva de Mário Soares?

Disso não tenho dúvida. Quando faz a viagem para S. Tomé e Príncipe, (a mulher ficou a chorar...), chegou ao avião e disse que queria champanhe e comida de primeira! Em Pequim, o que nós brincámos!, o Mário Soares passava com o Presidente da China e ele é que parecia o Presidente da China!

 

Esforçou-se por ser uma pessoa respeitada. Talvez por ter tido uma infância tão dura, por ter sido continuamente desrespeitado pelo seu padrasto, com quem teve uma relação tumultuosa.

Faz sentido. Mas essas coisas não são estabelecidas por um código, por uma escolha. Talvez tivesse sido muito ajudado pelo ambiente que me rodeava. A Faculdade de Ciências foi uma escola de humanismo. Ainda hoje tenho na mente os meus espelhos, felizmente alguns ainda estão vivos. Pessoas como quem gostaria de ser, que admirava e procurava por todas as formas.

 

A sua mãe pôde vê-lo com sucesso? Quando faleceu tinha setenta anos.

Tinha algum sucesso, não muito. Estava condicionado pela minha vida material. Muito cedo, para fugir às sevícias do meu padrasto, fui morar para uma casa que me foi cedida. Nem sequer tinha banheira, lava-me com alguidares. Só três ou quatro anos depois é que consegui a minha casa, casa alugada, com mais conforto. O meu padrasto estava a perder a sua vítima constante.

 

Porque é que ele o tratava mal?

A sua falta de educação leva-o a ter uns ciúmes enormes da minha mãe. Eu era o resultado do amor da minha mãe com outro homem, e isso era imperdoável. Mas quando casou com a minha mãe, sabia que eu existia...

Com pouco mais de vinte anos saí de casa.

 

Foi um ginasta empenhado. A prática do desporto esbarrava em estigmas vários. O desporto consentido era o futebol ou o boxe – ou outro que implicasse força e exaltasse a masculinidade.

Saía da livraria e ia a correr para o ginásio. Às escondidas. Eu dizia que fazia desporto na clandestinidade! Um dia, o encarregado da [livraria] Sá da Costa comentou: “Ontem à noite estava no pavilhão dos desportos com o meu filho e, quando estavam perfilados, vi um indivíduo muito parecido contigo, um indivíduo que andava aos pulos como um macaco”.

 

Porque é que lhe deu para a ginástica? Era uma vaidade com o físico?

Era.

 

Queria ser bonito e atlético? Para ser bem sucedido junto das raparigas?

Sempre fui bem sucedido junto das raparigas. Eu gostava de desporto. Era um processo de realização como outro qualquer. A ginástica compensou-me. Um quarto de hora depois de fazer o aquecimento, entrava no ritmo dos saltos, da barra, das argolas. Saía de lá outro homem. Mais tarde fiz outros desportos, natação, caça submarina. (Passei umas férias no Algarve, em Cabanas de Tavira, com o [Júlio] Pomar; ele pintava ao ar livre e eu ia com a Arlete [a mulher], num barquito de borracha, apanhar peixe para o almoço e jantar).

 

Moldou-se a si próprio? A sua mãe foi uma figura tutelar?

A minha mãe não teve grande influência na minha educação. O que teve uma importância extraordinária foi saber que eu era tudo para a minha mãe. Era uma mulher fabulosa. Um dia enamorou-se de um indivíduo, foram para o Brasil, fugiram, como se dizia na altura. Nasci no Rio de Janeiro, onde vivi até aos três anos.

 

Lembra-se do seu pai?

Só me lembro de um momento, quando olhei para mim e percebi que era gente. Estava no cais de Alcântara e a minha mãe disse: “Esperas aqui muito direitinho, que vou ali buscar a mala”. Foi quando desembarcámos.

 

O que é que os fez regressar a Portugal?

O meu pai era um homem casado. Apaixonou-se pela minha mãe e foram ser felizes para o Brasil. Quando a ex-mulher foi atrás dele, disse à minha mãe que tinha uns problemas para resolver (uns negócios), que viesse à frente, que ele depois vinha cá ter. Agora começam a faltar-me elementos... A nossa relação escrita acabou quando eu tinha cinco anos, altura em que o meu pai morreu, em Manaus, segundo as informações que nos deram. Quando fui para a escola primária, o meu pai estar vivo ou ter morrido, era igual: nunca o conheci.

 

Não tinha outra família? Estava sozinho com a sua mãe?

Nada, nada. Os dois. Vivíamos um para o outro, no interior do Castelo de São Jorge, a minha mãe era timbradora, um ofício que aprendeu no Brasil. No dia em que fiz o exame da instrução primária, o encarregado da casa onde a minha mãe trabalhava disse: “Francisca, vais ali a São Paulo comprar umas calças compridas para o teu filho; a partir de amanhã, vai ser cá empregado.” Mas fui matricular-me na Escola Comercial Patrício Prazeres, para onde ia à noite.

 

Por sua iniciativa.

Por minha iniciativa. Tentava encontrar um caminho. O caminho de uma vivência correcta, de uma vivência que me desse alguma felicidade. Quando vou para a escola comercial adoptei definitivamente a nacionalidade portuguesa. O meu pai tinha morrido, ponto assente, não pensei mais nisso. Mas pelos trinta, já andava a alimentar um atrito dentro de mim... Como é que nasci, como é que o meu pai morreu? E fui ao Brasil. Com muitas dificuldades, confesso. Corri várias cidades à procura, nos locais onde tinha andado. Em S. Paulo soube que tinha pedido um documento ao consulado de Santos há seis anos! E, nessa noite, fui no primeiro ônibus para Santos.

 

Nessa viagem, estava preparado para tudo?

Estava preparado só para saber, para conhecer a minha história. Nunca me passou pela cabeça que o ia encontrar vivo.

 

Mas o que sentiu quando soube que, até há pelo menos seis anos, ele estava vivo? Que havia engano, que se tratava de outra pessoa?

Senti um abandono de filho. Refez a sua vida e abandonou-nos... Mas já agora, queria conversar com ele. Durante a noite escrevi uma carta para a minha mulher, a dizer por onde tinha andado, o que tinha feito. A minha vida podia interferir com a vida material das pessoas que estavam com ele. De modo que no dia seguinte de manhã, depois de pôr a carta no correio, pego na máquina fotográfica e vou bater à porta de uma vivenda, perto da zona portuária. «Queria falar com fulano”.

 

Ele tinha o seu nome?

Manuel Pais de Oliveira. O Brito é da minha mãe. Eu tenho perfilhação, mas não usei.

 

Apresentou-se como filho?

Disse que era um amigo de um amigo do Rio de Janeiro. Estava ainda vivo, pensavam que morria na véspera. Dava saltos na cama... Entrei, fiz-lhe uma fotografia ainda em vida. Identifiquei-me como filho dele, puxei de uma fotografia igual a uma que estava no móvel. Ele não tinha outro filho, a pessoa que me abriu a porta era sua enteada. Eu era filho único.

 

Chegou a falar com ele?

Fiquei na dúvida se ele percebeu... Ou se, no delírio em que estava... É uma história de ficção. O fim era iminente, estava a acabar. Saí e fui almoçar, bebi uma garrafa de vinho e não sei quantas de cerveja. Com o aturdimento, foi como se tivesse bebido água. Depois passei ao pé de uma livraria e comprei o «Liberdade, liberdade», que estava proibido em Portugal. Senti um desgosto tremendo por não ter tido a possibilidade de falar com ele.

 

O que é que gostaria de lhe ter dito?

Era incapaz de lhe fazer uma condenação. Era o meu pai, era incapaz. Foram outras forças, que não só as dele, que lhe cortaram o acesso. Fizeram-lhe um cerco para que não me contactasse. Gostava de ter um diálogo com ele. Porque é que me escreveu cartas chamando-me ‘meu querido filhinho’. Porque é que deixei de ser isso.

 

Ainda as guarda?

Ainda.

 

Antes desse pressentimento, dessa urgência que o levou ao Brasil...

O seu termo é muito correcto. Eu tinha uma urgência em ir ao Brasil. Não há dúvida nenhuma de que há uma corrente telepática. Na ia à procura de nada, ia à procura da minha identidade. Corri quilómetros a chorar. Ninguém sabia de mim.

 

Voltemos então ao seu primeiro emprego, quando era ainda menino.

Sabe como é que na altura era tratado na Escola Comercial? Algumas das vezes estava desejoso de chegar à aula e adormecia de imediato. A pedagogia era uma bofetada!, que adormecer era uma falta de respeito com o professor. Estava a pensar desistir quando os miúdos da Baixa me falaram de um emprego formidável: “Trabalhamos de noite e de dia vamos para a praia e para o cinema”. Aí começa o meu calculismo: estive dois anos a trabalhar nos correios, com uma bicicleta, a distribuir telegramas da meia-noite às oito da manhã; às nove entrava na escola, saía ao meio-dia, comia qualquer coisa e dormia umas três horas.

 

O seu percurso é solitário. Os amigos, fá-los na livraria

Sempre sozinho. E sempre maltratado, muito maltratado. A parte negra da minha vida foi até à adolescência. Porque aos dezassete anos já estou como primeiro empregado na Escolar Editora.

 

Teve uma existência sofrida, negra. Quando a relembra, de que é que sente orgulho?

[Silêncio] Ando à volta com o termo orgulho. Tenho uma sensação de dever cumprido relativamente à minha vida.

 

Que relação tem com o dinheiro?

Costumo dizer: “O dinheiro não é para se gastar, o dinheiro é para usar”. Sou incapaz de fazer despesas se não tiver uma razão forte.

 

A sua mulher disse numa entrevista que pode ter uma atitude miserabilista em relação às coisas.

Sou contra o miserabilismo. Sou mesmo contra o miserabilismo. Eu aprecio o conforto, aprecio a casa que tenho, simpática, com vista para o Tejo. Há dois anos ofereceram-me uma pequena fortuna por ela e respondi que me interessava a casa, que o dinheiro não me interessava nada.

 

Quando interfere com uma parte sentimental, as coisas deixam de ter preço?

É verdade. Quando um quadro entra na minha colecção, é da minha colecção e acabou. Ofereçam o que oferecerem, não está à venda. Todavia, há meia dúzia de anos surgiu uma casa, no Porto... Se comprasse esta casa...

 

É então verdade que só se desfez de dois quadros da sua colecção, um Pomar e um Vieira da Silva, para comprar duas casas?

Cheguei à conclusão de que afinal tudo se vende.

 

Vendeu os quadros para não pedir dinheiro ao banco. Nunca, nunca pediu dinheiro ao banco?

Nunca. Nunca, nunca, nunca.

 

Porquê?

Porque não precisava. Porque dei sempre o passo em função da perna. Considero o dinheiro uma ferramenta, não um fim a atingir.

 

Os seus quadros podem valer 35, 40 mil contos, o suficiente para comprar uma casa em Lisboa e outra no Porto. Tem uma fortuna incalculável, portanto. Quantos Pomares, quantos Paulas Rego, quantos Vieiras...

Mas tenho uma tranquilidade total relativamente a isso. Quando olho para trás não me envergonho do património que tenho. Comprei quadros à Paula Rego a 30 e 60 contos que, hoje, se os puser no mercado internacional, nomeadamente em Londres, vendo por 30 mil contos. Não fiz nada de incorrecto.


Esse é o seu métier.

Nunca tive minas de ouro. Fugi sempre a negócios paralelos. Gosto de livros e gosto de arte. Se quisesse ganhar mais dinheiro não estava aqui agora. Estava reformado e andava pelo mundo a comprar e a vender. Realmente, nunca fui ofuscado pelo dinheiro. Quando era miúdo, uma vez comi uma laranja, com as gorjetas dos telegramas; era muito boa e pensei: ‘vou comer mais uma’; mas depois pensei: ‘E amanhã, se não me derem gorjetas, não como laranja... Não pode ser, fico hoje com uma laranja e amanhã compro outra”. Chamo a isto a gestão das laranjas. Não é piada política, nenhuma. É uma coisa de estômago.

 

É irónico ouvi-lo falar da gestão das laranjas numa sala cujas paredes estão revestida a obras de arte... Tem ali um quadro com dedicatória da Sonia Delauney. Como é que a conheceu?

Conhecia-a por razões comerciais. Conheci muitos artistas e sou amigo do peito de muitos, começando por aí. Um galerista francês fez-me a apresentação. De repente, apareceu-lhe Portugal, de que há muitos anos não ouvia falava – como sabe, ela viveu cá. Revelou uma simpatia extraordinária. Era uma senhora de setenta e tantos anos, muito bonita, eu era bastante mais novo. Eu brincava dizendo que estava apaixonada por mim!, porque não me recebia sem ir à cabeleireira pratear o cabelo.

 

Visitava-a na sua casa em Paris? Falavam em português?

Com a Sonia falava sempre em francês, ela não falava português. Costumava ver na parede uma gravura, para a qual olhava repetidamente. «Gosta da gravura? É S. Petersburgo. Foi a única coisa que trouxe quando fugi da Rússia. É um símbolo da minha vida”. Um dia foi à parede, tirou a gravura e ofereceu-ma. Este é um dos grandes momentos da minha vida.

 

Porque é que acha que ela o fez?

Porque percebeu que eu estava a ver com os meus sentimentos. Estava a gostar da gravura e também fiquei a gostar da história que me tinha contado.

 

Ela sabia que a sua mãe tinha sido gravadora?

Não fazia ideia, nunca falámos de nada. Ela conhecia-me como marchand.

 

O que é que o fez apostar na Paula Rego? Durante décadas, a carreira dela foi muito discreta, ninguém lhe ligava nenhuma...

Nas duas primeiras exposições, a Paulo Rego não vendeu um único quadro. Aliás, da segunda saíram dois quadros para pagar honorários a um advogado. As pessoas achavam que ela era perversa. Eu achava que ela era suficientemente doida para ser uma grande artista. Aquilo não era nada avulso. Por vezes, comporta-se como se estivesse no palco, no teatro... Numa conferência de imprensa no CCB, um jovem jornalista quis sobressair e perguntou: “Tem ali um macaco com o rabo cortado. Porque é que a senhora cortou o rabo ao macaco?”. A Paula, assim com um ar de provinciana, com um ar de quem não percebeu bem, disse: “Não sei, foi assim”. Depois acrescentou: “Espere aí, já me lembro: era um quadro falhado, para estar bem tinha que ter três pintinhas de sangue, então cortei o rabo ao macaco para fazer as pintinhas de sangue”. Saiu-lhe.

 

É como se representasse continuamente. Mas quem é que constitui a sua plateia?

A Paula não faz teatro para ninguém. Ela é assim. Antes de a exposição abrir, vimo-la os dois, sozinhos, e às tantas perguntei-lhe quem era aquela criancinha, aquela que estava no quadro grande, com um ar de atrasada mental... “Atrasada mental, no meu quadro? Ah, é a minha neta!”.

 

Apostou nela porque era absolutamente vibrante?

De uma imaginação infinita. Aquilo não era superficial.

 

Foi também galerista da Menez, a cujo trabalho se adere mais facilmente, porque é mais canónica. A Paula rompe com tudo. As duas eram amigas muito próximas. Acompanhou-as sempre?

Muito amigas. A Menez lidava com pouca gente, meia dúzia de pessoas. Dava-se com a Sophia de Mello Breyner, a Graça Morais, o Mário, a Paula Rego, nós [Manuel de Brito e família]. Passava o tempo no atelier, ouvindo os seus discos, lendo os seus livros e pintando. Conhece a história da Menez, com certeza...

 

Sim. Uma história imensamente trágica pontuada pela morte. A Menez era a mulher mais triste que conheceu?

Eu era capaz de tirar triste e substituir por corajosa... Se me morresse um filho, seria o descalabro. Perder três filhos adultos, e de uma maneira violenta, dois suicídios e um carcinoma... É muito para uma pessoa. Ter sobrevivido e concomitantemente ter feito o percurso mais importante da sua carreira, é extraordinário. Vinha lá de dentro. Talvez por isso, a Paula visitava-a no atelier e dizia: “Vira lá os teus quadros, esconde-os, que eu roubo-te as ideias todas.” Morreu no dia exacto em que um quadro seu foi apresentado na Cidade Proibida, na China.

 

O que é que o faz gostar de um quadro? Como se educa o olhar e o gosto?

Há trinta e tantos anos fui à Bienal de Veneza. Foi uma exposição escandalosa, o próprio Papa esteve para excomungar aquilo tudo. Eu olhava para os americanos, e, saloio, não percebia nada. As pessoas com quem viajei, um escultor e dois pintores, tentavam convencer-me de que as coisas eram boas. Não dizia que não prestava... Se o júri da nomeação e o júri da atribuição era constituído pelos principais directores de museus, quem era eu para chegar a Veneza e dizer que não prestava?

 

Portanto, atitude humilde.

Não podia ser de outra forma. Mas a partir daí – e isso já é o meu temperamento – lia tudo quanto aparecia sobre Pop Art americana. Só me convenci de que sabia verdadeiramente o que era a Pop Art depois do 25 de Abril, quando vi o que se passava nas ruas, quando vi o comportamento das multidões. As coisas que se passavam na América, ao tempo da Pop Art, não podíamos entendê-las num país adormecido. Não vivíamos aquilo na pele.

 

Quer dizer que tem de haver uma compreensão afectiva do objecto em questão?

De certo modo. Muitas vezes não tinha elementos culturais, não tinha sabedoria para dizer: isto sim, isto não. Nunca acreditei que a intuição fosse suficiente para dizer: o quadro é bom, o quadro é mau. Mas a intuição tem-me servido muito.

 

Privou com algumas das figuras mais importantes do século XX português. Como Almada Negreiros ou Mário Soares. A sua vida teria sido outra se não tivesse encontrado as pessoas que encontrou? Estas duas, por exemplo?

Não tenho dúvida. Considero que foi uma sorte enorme, um privilégio, ter encontrado as pessoas que encontrei. Eram quem eu copiava. Tinha vaidade em ser considerado um deles, não o sendo. Ia para a associação da Faculdade de Ciências jogar pingue-pongue com os alunos, tratava os professores por tu... Eu sentia que era uma figura querida.

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2004

Manuel de Brito morreu em 2005

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Paulo Lins (Cidade de Deus)

10.02.15

«Foi um acerto de contas com a minha realidade. Eu era muito revoltado. Com a vida, com a política brasileira, com a escravidão, com a colonização. Só não fui mais revoltado com os portugueses porque meus avós eram portugueses. Mas escrever sempre foi uma necessidade. Se não fosse a «Cidade de Deus» seria outra coisa. Está dentro de mim, desde criança. As professoras viam que eu era diferente, uma criança mais recatada, muito sofrida. Sou um sofredor. Naquele espaço, eu era diferente. Teve uma professora, Sónia Nobre Formiga, e outra, Maria Freitas Dias, que me acolheram. Elas são minhas amigas. Sempre fui muito magrinho, e a rua era muito violenta. Tudo era briga: futebol tinha briga, brincadeira de rua tinha briga. Não conseguia nem namorar!, era muito pacato».

Paulo Lins tem 44 anos. Viveu cerca de 30 anos na Cidade de Deus, uma favela na periferia do Rio de Janeiro. O livro que traduz esta experiência foi lançado no Brasil em 97 e está agora a ser traduzido para dez línguas. O filme, baseado no livro e realizado por Fernando Meirelles, foi visto por milhões de espectadores (só no Brasil foram quatro milhões!). Vive desde sempre com as palavras. A literatura serve-lhe para reconstruir o seu universo.  

 

Conte-me a história da sua vida.

Sou filho de casal misto, como bom brasileiro. A minha mãe é negra, descendente de africano, o meu pai é branco, descendente de português, do Porto. Nasci no Estácio, que era um bairro negro e depois passou a bairro de português pobre, de emigrante. É um bairro boémio que também tinha a zona do baixo meretrício.

 

Baixo meretrício?

Uma zona de prostituição feminina e homossexuais. O Estácio era cheio de significado, foi lá que nasceu o samba, a macumba. Muito criança, eu não sabia nada.

 

Não sabia nada de quê?

Do lugar onde estava. Só quando me tornei adulto é que vim a saber o que é o Estácio. Nessa época, eu morava em baixo e quando chovia muito havia as enchentes. A minha casa encheu várias vezes. Foi por isso que fui morar na Cidade de Deus.

 

Qual é a distância entre o Estácio e a Cidade de Deus?

50 km. A Cidade de Deus foi um conjunto habitacional, conforme outros que foram criados nessa época de 60, na periferia do Rio de Janeiro. A ideia era tirar as favelas da zona sul do Rio, acabar com as favelas. Foi um projecto do governo americano com o governo brasileiro. Fui morar na Cidade de Deus com 7 anos de idade.

 

Lembra-se da mudança?

Lembro. A minha família não tinha nada, a enchente tinha levado tudo. A gente mudou só com uma cama, o fogão que o meu pai arrumou, umas roupas que sobraram. A minha família é muito pobre. Saí do Estácio, que era uma zona bastante urbanizada; a Cidade de Deus fica em Jacarepaguá, que era rural. Quando cheguei, foi a maior alegria da minha vida! Em frente da minha casa tinha um rio. E depois uma lagoa, e depois outra lagoa e depois o mar. Chegámos de noite, todos com muito medo, porque a gente não era favelado. O Estácio era um bairro normal, e a minha mãe tinha medo do pessoal das favelas, aquela coisa de proteger os filhos...

 

Medo de quê?

A favela sempre foi violenta. Só que não saía da favela, ficava restrito aos seus limites. Agora é que a favela se espraiou. A pobreza aumentou e o número de favelas também. Eu, o caçula [mais novo] de quatro irmãos, fui o que mais adorei. A casa era pequenina, rosa, toda bonitinha. De manhã havia barulho de boi, galo, o leiteiro tirava leite da vaca e a gente bebia logo, a gente se jogava no rio, o rio rasinho. Fui para a escola, para o segundo ano primário, e ganhei um monte de amiguinhos. Esse primeiro contacto foi muito bom. Quando fiz dez, onze anos vi o lugar em que estava, um lugar violento.

 

Como é que esse cenário bucólico se transformou aos olhos de uma criança? Como é que despertou para a violência que tinha à sua volta?

Com as próprias crianças. Elas eram violentas. Eu apanhava muito! Era muito mimado, muito criado dentro de casa, a minha família era muito católica e muito espírita, ao mesmo tempo. Ia para a igreja todo o domingo, era coroínha [acólito], fui escuteiro. Não jogo bola, não sei brincadeira de rua. Era muito acostumado a ler e era sacrificado por causa disso; porque ninguém lia.

 

Sabiam ler, os seus pais?

Sabiam. O meu pai era pintor de construção civil. A minha mãe foi muito tempo cozinheira de um hospital, depois foi feirante e depois ficou em casa, para tomar conta dos filhos. Os meus irmãos tiveram que sair da escola para trabalhar; mas eu, como era caçula, não precisei de trabalhar: eles me sustentavam. Hoje sou eu que sustento eles.

 

Foi um bom investimento.

Um investimento mesmo. Minha mãe obrigou eles a isso. Sempre fui bom aluno no colégio, sobretudo em língua portuguesa. Quando era criança, ainda antes de saber escrever, fazia poesia. A minha mãe anotava e botava Paulo Lins. A casa era pequena mas eu tinha um lugarzinho para estudar e uma caixinha cheia de versinhos. Uma vez a minha mãe ficou doente e uma vizinha foi ajudar a arrumar casa, fazer o comer. Então, ela pegou nos meus papéis, tudo riscado, e começou a amassar. E aí ouvi a minha mãe gritando: «Não, não, não, papel do Paulo não pode jogar fora!, porque meu filho é artista!». Sempre ganhava concurso de poesia, sempre ganhava festival de música. A minha mãe viu que tinha que investir em mim. A escola foi a minha grande salvação naquele universo.

 

Nunca perdeu um ano, pois não?

Nunca.

 

Pelos 18 anos quer tornar-se fuzileiro naval.

No quartel aprendi tudo. Aprendi a brigar, aprendi a dar tiro, aprendi a fazer defesa pessoal. Fui corredor de 100 metros durante quase 10 anos, e fiquei forte Os meus amigos da Cidade de Deus que me batiam, começaram a ficar todos baixinhos... Cresci mais do que eles. Naquele tempo, durante a ditadura militar, me pagavam muito bem. Fui para o quartel porque a ascensão social era mais fácil. Com o governo militar, o militar é muito respeitado.

 

É a questão central, a ascensão social?

É. Sempre tive vontade de ascender socialmente. Todo o mundo tem. Quando fui para o quartel já tinha o 2º grau.

 

E tinha vantagem sobre aqueles que eram praticamente analfabetos.

Exactamente.

 

Explique-me porque é que a ascensão social é a questão fulcral.

Todo o mundo quer mudar de vida, todo o mundo quer mudar de classe social. Mas não tem como. A única maneira do pobre, do favelado mudar de classe social é o futebol. Você vê o futebol do Brasil, não tem aquela coisa muito técnica, tem aquela coisa da ginga. Quem é o pessoal? A maioria é negro, mulato, que tem essa coisa da capoeira, da brincadeira de rua, da correria.

 

E dança.

Tem dança. A rua dá isso. A rua é uma escola. Onde é que estávamos?

 

Na ascensão social. O futebol é uma das maneiras. Quais são as outras?

O samba. O samba também era coisa de pobre. A elite não fazia samba. Eu tinha uma máquina de escrever, coisa que quase ninguém tinha. Os sambistas da escola «Académicos da Cidade de Deus» faziam o samba e me pediam para corrigir. Mexia com todos os sambas, porque batia à máquina e fazia a correcção do português. A primeira vez que ganhei dinheiro com arte foi fazendo samba enredo.

 

Como é que teve a primeira máquina de escrever? A sua família fez que sacrifícios para lha dar?

Demorou dois anos para me darem a máquina. A minha irmã mais velha pegou no 13º salário, juntou com dinheiro de todos, e me deram uma Olivetti, pequenininha. Eu tinha 15 anos.

 

Abraçou-a?

Ficou comigo. Foi nela que comecei a escrever a Cidade de Deus. Escrevia na máquina o tempo todo. Estou até emocionado...

 

Emociona-se facilmente?

Choro à toa, sou um chorão. Isso também era ruim para mim quando era pequeno!

 

A vida na favela é intolerável para todas as pessoas? Há quem goste de viver lá, quem esteja perfeitamente integrado?

Na favela tem muita fome, não tem direito a nada, não tem médico. É natural que as pessoas queiram mudar de vida. No quartel, comecei a ganhar mais do que a minha família toda junta. Várias pessoas da minha geração estão no quartel até hoje. Eu já tinha perspectiva de fazer a universidade, queria estudar. Mas o filho do pobre não consegue estudar, não consegue fazer uma boa escola, não consegue fazer a universidade; é muito raro.

 

Além do futebol e do samba, o que permite ascender socialmente é a educação.

Eu ouvia isso, as minhas professoras me falavam isso.

 

Disse numa entrevista que aqueles que não podem estudar transformam-se em criminosos ou em mão-de-obra barata. Não há outras hipóteses?

Ou vão para o futebol ou para a música, campos muito restritos.

 

É muito fácil ser engolido pela violência, pelo tráfico e pela teia de criminalidade?

Não. É muito fácil virar operário.

 

Mais do que criminoso?

Muito mais. Criminoso tem pouco.

 

Tem?

Essa miséria é reflexo de um país que foi sempre violento. O número de miseráveis é muito grande, o racismo é muito grande. É um país que teve 300 anos de colonização, 400 anos de escravidão, duas ditaduras, uma civil e uma militar. Tem uma historiadora americana que escreveu um livro sobre a escravidão no Brasil entre 1830-1840; ela diz que morriam de 100 a 120 negros por semana, assassinados ou suicidas, no Rio de Janeiro. É um país que vem com uma história de violência desde a chegada dos portugueses. O que é o Brasil? O Brasil é português, africano e índio. E o tráfico de escravos é a base da economia ocidental.

 

Foi.

Não. Continua a ser.

 

Como assim?

Movimentou milhões. Tanto Portugal, Espanha, como a própria Inglaterra ganharam muito dinheiro com isso. A escravidão já estava acabando no Brasil, mas o tráfico continuava. Rendia muito dinheiro. A formação da sociedade brasileira se fez em cima disso. Não tem negro empresário, proprietário. Nem índio. Negro aparece na arte, na música, no samba, no futebol. A imensa maioria dos proprietários no Brasil são brancos, descendentes de portugueses e dos emigrantes. Então a questão do Brasil é racial-social.

 

A seu ver, a partir dessa vêm todas as outras, a económica, a cultural?

É. Os imigrantes brancos europeus, (os italianos, os espanhóis), ascenderam socialmente porque eram brancos. O negro não ascende socialmente. Tanto é que agora, quando o Lula nomeou um ministro negro foi uma coisa! A própria televisão reflecte isso: o jornal nacional da Globo só no ano passado é que botou o jornalista-âncora [pivot] negro. Na novela brasileira que vocês vêem, negro só faz papel de empregado. E todo o mundo quer ascender. Ninguém quer ser pobre. Ser pobre é muito ruim.

 

Foi pobre até que idade?

Sou pobre ainda. Quando entrei para a universidade, aí ascendi socialmente. Só de entrar. Na verdade, a classe social não envolve só o lado financeiro, envolve também a formação.

 

Claro, é o estatuto.

Quando entrei para a universidade, mudei de status. Saí do quartel, trabalhei de garçon, de motorista, trabalhei de feirante.

 

Tudo isso para pagar os estudos?

Não. Para viver mesmo. Fiz vestibular e entrei na universidade. Meus irmãos continuaram a pagar os meus estudos. Em 82, num bairro de 120 mil pessoas, fui o primeiro universitário da Cidade de Deus. Foi uma emoção.

 

Foi pelos dez anos que se deu conta que vivia num sítio violento.

É. Eu era infeliz e não sabia. Tem aqui uma passagem no livro em que o Buscapé fala disso: «Recordou os ensaios do Orfeão de Santa Cecília de seus tempos de escola com alegria, subitamente desfeita, porém, no momento em que as águas do rio revelaram-lhe imagens do tempo em que vendia pão, picolé, fazia carreto na feira, no mercado Leão e nos Três Poderes; catava garrafas, descascava fios de cobre para vender no ferro velho e dar um dinheirinho a sua mãe. Doeu pensar na mosquitada que sugava seu sangue, e no chão de valas abertas onde arrastara a bunda durante a primeira e a segunda infância. Era infeliz e não sabia. Resignava-se em seu silêncio com o fato de o rico ir para o exterior tirar onda, enquanto o pobre vai pra vala, pra cadeia, pra puta que o pariu. Certificava-se de que as laranjadas aguadas-açucaradas que bebera durante toda a sua infância não eram tão gostosas assim. Tentou se lembrar das alegrias pueris que morreram uma a uma, a cada topada que dera na realidade, em cada dia de fome que ficara para trás».

 

Esse retrato é seu?

De certa forma.

 

Gostava de conhecer melhor o embate com a realidade, o movimento que o fez perceber que era infeliz.

O primeiro embate foi assim de sair mesmo. Quando saí do Primário para o Ginásio, em 75, vi que a única possibilidade era estudar o máximo possível. Depois, quando fui para o segundo grau entrei na política. Entrei no movimento negro, entrei no cineclube, entrei na associação de moradores, entrei no partido, no PT. Tinha uma certa consciência política e social e joguei isso tudo na política, na literatura. Vi que a saída era essa.

 

Lutar.

Lutar. Vamos fazer política, vamos mudar essa realidade. Hoje fico muito feliz que o meu partido está no Governo.

 

Nunca se desiludiu com o PT?

Não. Tive várias confusões porque o PT é um partido muito grande, com várias correntes, com vários sectores. Mas o PT continua no meu coração.

 

Pode ler-se logo no arranque de «Cidade de Deus»: «É o verbo, aquele que é maior que o seu tamanho, que diz, faz e acontece. Aqui ele cambaleia baleado. (...) Falha a fala. Fala a bala». A tónica é na palavra, no raciocínio, na capacidade que os homens têm de comunicar e compreender.

Quando a gente não consegue resolver uma coisa na conversa, surge a violência. A palavra é a dona do artifício social. É com a palavra que a gente difere dos outros animais. Quando não existe um diálogo, a violência surge. Em qualquer sector, em qualquer lugar. Na família, em casa, no casamento, na vida social. Numa situação de guerra, ela surge quando não tem mais negociação.

 

A guerra e a violência são como uma interrupção da fala?

Exactamente. O maior crime é negar ao ser humano a sua história. E a história vem através dos livros. Ser humano e não ter essa dignidade de ser humano é uma violência tremenda. Uma pessoa que não tem condições para discutir, qualquer que seja a argumentação, qualquer que seja o problema, é uma pessoa que vive fora do seu tempo. Não está inserida no mundo em que vive. Está fora, está atrasada. São pessoas que não reflectiram através da leitura, do conhecimento que é necessário ter para quebrar com preconceitos e avançar.

 

Nesse sentido, a Cidade de Deus é uma metáfora dessa incomunicação?

É uma revelação do que a miséria faz. A miséria não é só não ter o que comer. A miséria é não ter o que consumir. E, sobretudo, ser miserável é não ter acesso aos bens culturais e ao ensino. Porque na sociedade brasileira quando você consegue, pelo menos, estudar, já mudou de classe social.

 

Se não tivesse o que comer, não se sentiria miserável pelo facto de ser uma pessoa instruída?

Com certeza. Com certeza. Se eu tiver que vender pipoca na rua, a minha pipoca vai ser melhor preparada do que por quem não tem estudo. Outra coisa que é interessante: a segregação. O favelado não consegue estabelecer contacto com pessoas fora da favela. As pessoas são preconceituosas, mas também não tem diálogo! Vai conversar sobre o quê?

 

Sobre que é que falam as pessoas da favela?

Sobre o que os media passam e sobre a realidade local.

 

Posto assim, não difere muito dos outros bairros.

Nos outros bairros tem um cinema onde pode ir, pode falar-se de cultura, trocar informação, pode viajar... O mundo está ao seu dispor.

 

Sobre afectos, as pessoas falam?

Onde há humano, há sentimento. Existe amor, é normal.

 

No filme, que faz a adaptação do livro, diz-se: «Malandro não ama, malandro só sente desejo». Nas conversas mantidas nas favelas, as pessoas conseguem expor-se nos seus sentimentos mais íntimos?

Expõem-se. Malandro, não.

 

O que é um malandro? É o malandro da ópera do Chico Buarque, ainda?

Esse malandro do filme, o Cabeleira, é o malandro do Chico Buarque, dos anos 60. É o sujeito que está ali, faz aquele assalto, mas não está ainda envolvido no crime organizado. Malandro podia ganhar no jogo de snooker, vivia da aposta, ia num samba e tal.

 

O cafajeste a quem as mulheres não resistem.

É. Hoje tem bandido, criminoso mesmo.

 

Este bandido é aquele que mata como quem muda de camisa?

Que assalta, que mata, que vê o crime como profissão. O malandro vê o crime como sobrevivência.

 

O bandido mata e assalta com ligeireza; tem consciência do mal que está a infligir aos outros? Quais são as suas balizas de Bem e de Mal?

Tem, tem. Hoje a favela é um lugar seguro quando a polícia não vai. Existem regras dentro da favela: não tem assalto, não tem estupro, não se cometem crimes contra as pessoas que não estão na criminalidade. Essa consciência do Bem e do Mal é tão grande que se você for assaltada, se não reagir, não é molestada.

 

É isso que se deve fazer? Não reagir?

É. Se reagir, lógico que o bandido se vai defender, e você é molestada fisicamente. O bandido só mata a polícia ou rivais que também são capazes de matar. Por exemplo, se subir na favela, vai ser revistada, vão perguntar onde vai, vão pensar que você é da polícia. Mas se provar que não é da polícia, se disser que conhece alguém lá ou que vai passear, não é molestada. A consciência do Mal e do Bem está bem expressa ali porque bandido só mata bandido. Só mata quem ele sabe que pode matar ele.

 

Aquele que reage passa a ser potencialmente um agressor.

Exactamente.

 

Onde é que estão arreigadas essas noções de Bem e de Mal, na religião?

No humano. Uma coisa bem aristotélica. O Aristóteles é que diz: «Todo o homem tem noção do que é certo ou errado». Acho que é do humano que o bandido sabe isso. Aquilo que você não quer para você é o mal. Essa noção é um impulso natural do homem.

« - Tem que matar. Quem cria cobra morre picado!

- Porra! Você só pensa em matar, matar, matar, nunca opta por outra solução!

- Tem uma solução melhor?»

 

Para estas pessoas não há outra solução?

Na guerra não. Senão é morto. Foi isso que aconteceu no livro. É melhor ter um inimigo morto do que um inimigo vivo. Um político sempre destrói o outro, quer ser superior e quer acabar com o outro. É uma espécie de assassinato, de homicídio. Acaba matando o outro mostrando que ele é incompetente e que você é melhor do que ele.

 

Estamos a falar de poder e de sobrevivência. As questões são essas?

É exactamente isso.

 

Qual é a sua definição de dignidade?

Ter dignidade é ter acesso a bens materiais básicos e condições de evoluir. Quando te dão o básico para poder evoluir socialmente, materialmente, espiritualmente, isso é dignidade.

 

Sempre reconheceu em si dignidade ou aprendeu a conquistá-la?

A minha família me deu dignidade. O esforço deles. Os meus irmãos não tiveram dignidade, mas me deram dignidade. Eles trabalhavam ainda crianças, e isso não é digno – a criança tem que estar na escola, tem de brincar, tem de ser criança. Na Cidade de Deus as crianças são envolvidas no negócio do tráfico, levam tiros nas mãos como castigo, são deixadas ao Deus dará pelos pais. E não querem ser crianças. «Não sou moleque. Eu fumo, eu cheiro, já matei, já roubei. Sou homem».

 

Estes meninos têm infância?

Ou têm uma infância anárquica, despreparada, ou vão trabalhar.

 

Essa coisa terrível, «Eu fumo, eu cheiro, já roubei, já matei», acontece regularmente?

Acontece bastante. Se fosse em Portugal seria uma percentagem exagerada. Mas no Brasil, como é muito grande, proporcionalmente é pouco. Costumo falar que pelo tamanho da desigualdade social do Brasil, lá tem pouco tipo de bandido. Tem os sonegadores de imposto de renda, tem os corruptos, tem os especuladores – para mim são bandidos também.

 

Porque jogam com as expectativas alheias?

É. Mudam, aumentam o valor do dólar, baixam o valor do dólar. Quando o Lula estava bem nas pesquisas, o dólar foi lá para cima! Isso é uma barbaridade, isso é um crime!

 

Polícias de um lado, criminosos do outro. Há medo?

Muito medo. Quem manda na favela é o traficante. E é preciso seguir as regras do tráfico. São mínimas: não pode ser um delator. Delator morre. Às vezes, quando morre um traficante, mandam fechar tudo, o comércio. Não pode roubar na favela. Não pode mais bater na mulher. Marido que bate em mulher é julgado lá dentro, no tribunal de rua.

 

Como é que chegaram a essa regra?

As mulheres apanhavam, e a polícia era chamada por causa disso. (Ninguém pode chamar a polícia). Então o traficante instituiu essa regra.

 

E bater em crianças?

Também não. Criança sempre foi respeitada.

 

Sempre foi respeitada? Mas o que vemos no filme, e que é uma transposição do seu livro, é que as crianças são permanentemente violentadas.

Mas há crianças que estão envolvidas: «Já matei, já roubei, sou homem». Na medida em que coloca uma arma na cintura, é bandido. É homem. Está de igual para igual. No momento em que não usa arma, nunca se envolveu, ninguém mexe com você.

 

É-se morto quando se atenta contra a honra e o corpo. E contra o património? As dívidas podem resultar em morte?

Na favela, sim. Se pedir fiado e não pagar, pode ser morto. Não pode fazer isso.

 

É preciso ter palavra e honra. O que é que vale a vida humana lá?

A vida humana não vale nada.

 

Isso não é o mais assustador? Viver com a convicção de que a qualquer momento se pode morrer porque a vida não vale nada?

É. É horrível.

 

Retomemos a história da sua vida. Quando é que saiu da Cidade de Deus?

Quando fui para a faculdade. Fui morar no alojamento da universidade, no campus. Ficava lá e dormia na casa de amigos da classe média. Comecei a namorar tudo o que era branquinha da zona sul.

 

Como foi esse contacto? Ostracizavam-no pelo facto de ser um favelado da Cidade de Deus?

Não senti isso, não. Integrei-me logo com o pessoal. Quando você tem uma formação, o preconceito diminui. Estava de igual para igual.

 

Os actores de «Cidade de Deus», que são meninos de favela, puderam viajar aquando da promoção do filme; li os relatos entusiásticos que fizeram das comidas que haviam provado! No seu caso, os sabores e as viagens da classe média constituíram também uma grande novidade?

Não teve tanto impacto comigo, fui entrando devagarinho. Na escola fui fazendo esporte e viajava. Depois foi o quartel, viajei de barco. Depois fui estudar fora da Cidade de Deus, para o Mayer, na zona norte. Na universidade vivia no mundo cultural do Rio de Janeiro, no cinema, no teatro, na poesia. Lancei um livro de poesia.

 

A sua família continuou a viver na Cidade de Deus nesse período?

Continuou. No final de semana voltava para casa. Minha casa era lá. Tinha que voltar para lavar roupa, passar, ver minha mãe, meu pai. Aí depois casei. Tinha 30 anos. Dava aula na escola secundária, na universidade, dei pré-vestibular... Dei aula até 97. De literatura brasileira, literatura portuguesa e língua portuguesa.

 

Gosta particularmente de Mário de Sá Carneiro. Porquê?

Adoro a poesia dele. Também Cesário Verde. Um tipo de poesia que é quase filosofia. O Fernando Pessoa fala: «Não sei se é poesia se é filosofia». Gosto da poesia assim. Como gosto de Baudelaire. Um poeta que se parece muito com Mário de Sá-Carneiro é o Augusto dos Anjos. Mário Faustino, também. Para mim o grande poeta da Humanidade é o Maiakovsky. Acredita que o humano vai tirar do pensamento as mazelas do seu eu. «O século XXX vencerá o coração destroçado pelas mesquinharias». Você conhece o poema «Poeta Operário»?

 

Não.

Ele fala assim: «Cabe ao técnico produzir comodidades/ Cabe a mim que sou poeta produzir ilusões porque os corações também são motores». Esse poema ele pegou na lata, rápido. Estava na rua com um chapéu dizendo poesia e pedindo dinheiro e aí houve alguém que lhe disse: «Ó poeta, gostava de te ver na fábrica!». E ele respondeu isso. Também adoro poesia brasileira, João Cabral, Ferreira Goulard, o Machado de Assis, que é um dos maiores poetas da Humanidade. Como é que o Brasil pode produzir uma pessoa como o Machado de Assis, né?

 

O seu caminho foi o da poesia. Mas aquilo que nos pôs um frente ao outro foi o seu livro «Cidade de Deus».

Eu só fazia poesia. O livro tem muitas partes poéticas. Depois que passei para o romance passei a ler os romances com olhos de escritor. Porque só lia com olhos de leitor. Teve romances brasileiros que li cinco vezes! Li tudo o que podia ler, li muito. As influências vieram do modernismo, sobretudo de José Lins do Rego, da poesia e também da Filosofia. Li todos os clássicos, vim até aqui, até Heidegger.

 

Como é que decidiu escrever o livro? Foi um projecto muito aturado, a pesquisa demorou 8 anos a ser feita.

Demorei 8 a 10 anos. Um crítico literário muito respeitado, um dos maiores do país, Roberto Schwartz, me chamou para ir na casa dele depois de um poema que fiz. Um poema sobre o que era ser bandido. Ele pegou o poema, publicou numa das revistas mais importantes do Brasil. Fui ter com ele a São Paulo, de ônibus, não tinha dinheiro, arrumei uma grana para a passagem. Já tinha escrito 200 páginas da «Cidade de Deus». Ele falou para eu escrever. Com um aval desses, «Se ele acha, se ele falou, está falado». Comecei a escrever.

 

Os textos anteriores ao seu livro eram visões da classe média sobre a favela. A originalidade deste é ser uma visão que vem de dentro, de alguém que viveu lá a vida toda.

É um olhar interno.

 

Mas qual é o seu olhar?

É denunciativo. Tem a complacência de quem viveu e se acostumou. E teve de se acostumar. Quando você lê o livro, passa a ser uma pessoa ali dentro também. Quando você lê o livro, entra para dentro de um universo e acaba vendo ele com uns olhos mais amplos. Porque quem contou estava lá dentro.

 

Está rico?

Não. Eu vivo como professor universitário. Poderia até ficar com mais dinheiro, mas sou de uma família muito pobre. Então, para começar, dei uma casa para cada irmão.

 

Com o dinheiro deste livro pôde comprar uma casa a cada irmão?

Com este e com outros trabalhos. Se fosse viver só do livro, não teria dinheiro, teria que dar aula. Mas escrevo artigo, faço roteiro de cinema, dou palestra... Livro não dá dinheiro. Só quem vende muito, muito.

 

 A sua mãe não chegou a ver o seu sucesso?

Não. Ela foi feliz enquanto viveu. Conseguiu criar a família dela unida, não perdeu nenhum filho na criminalidade. Viu eu entrar na universidade, viu eu dando aulas, que era um sonho que tinha. Meu pai também viu. Minha família foi feliz. Com muita dificuldade, mas feliz.

 

Vive agora ao lado de Copacabana, em Santa Teresa. Os seus filhos, que têm 22 e 14 anos, têm uma vida muito diferente da sua. O que significou para si poder dar aos seus filhos uma infância?

É conseguir romper a barreira social. Hoje a minha filha é classe média, se comporta como classe média. Não sabe o que é favela, não conhece essa realidade. O garoto nasceu lá, ainda viveu um tempo lá. A mãe do meu filho e a mãe da minha filha são da favela. Mas a mãe da minha filha é também historiadora, ela se formou. A minha filha é uma burguesinha.

 

Diz isso com que tom? Com gosto?

Com certeza. É muito bom ver teu filho tendo uma vida digna. Estudando, numa escola boa, comendo bem, sem problemas materiais. Só tem problemas existenciais.

 

É o luxo da classe média.

É.

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2003

 

António Sampaio da Nóvoa (2014)

09.02.15

António Sampaio da Nóvoa é um minhoto de Valença. Fez dois doutoramentos: um em Educação na Universidade de Genebra, outro em História na Sorbonne. Foi reitor da Universidade de Lisboa entre 2006 e 2013, é Reitor Honorário da Universidade de Lisboa desde 2014. Há uns meses recebeu o Prémio Universidade de Coimbra para a personalidade do ano.

No último ano tem estado em Brasília, numa missão da Unesco junto do Governo brasileiro e como professor convidado da Universidade de Brasília.

Os seus discursos são empolgantes. A sua dimensão política é inegável. Para usar uma palavra que o próprio não usaria: é tudo menos o chatarrão da academia.

  

Este Outono pode ser encarado como um começo de fim de ciclo?

Espero que sim. Creio que Portugal precisa de abrir um tempo novo na sua história, na sua vida política. Este tempo da troika está esgotado.

 

O tempo da troika ou o tempo deste Governo?

É igual. Não consigo separar este Governo da troika nem a troika deste Governo. O Governo já não devia existir. Parece-me óbvio que já devia ter sido demitido.

 

Qual foi o momento agónico, para si?

Depois do momento Vítor Gaspar, este Governo perdeu grande parte da sua legitimidade e da sua capacidade de governar. Estamos a assistir a um desmantelar do Governo em muitos sectores. Era qualquer coisa que devia ter tido consequências. Consequências do ponto de vista dos órgãos do poder, do Presidente da República.

 

Mantém-se até ao final da legislatura?

Claro que o Governo vai procurar manter-se até ao final da legislatura, mas espero que haja a capacidade de reagrupar uma energia de mudança.

 

Os portugueses parecem amedrontados, apáticos, desesperançados. Como é que a sociedade, globalmente, se agrega para operar a mudança?

É um enorme desafio. É um desafio em Portugal, é um desafio na Europa, é um desafio no mundo. Essas energias de mudança não coincidem necessariamente com a tradicional clivagem entre a esquerda e a direita. Elas têm outras configurações que temos que perceber neste século XXI.

 

Quais são as outras grandes configurações? Ricos e pobres?

Não. Há dois elementos importantes: um são as pessoas que já não aceitam um mundo regulado por um capitalismo financeiro completamente selvagem, sem nenhum controlo, especulativo. Que está a destruir as sociedades. A criar cada vez mais pobreza, mais desigualdade. Desta crise resultam mais ricos e resultam mais pobres. Não podemos deixar de voltar aos vampiros de que falou o Zeca Afonso. São outros vampiros, mas é impressionante como se relê aquela letra...

 

“Eles comem tudo, eles comem tudo, eles comem tudo e não deixam nada”.

E há a parte: “Senhores à força, mandadores sem lei”... Levam-nos a tombar, vencidos. É preciso fazer um trabalho para tornar isto insuportável.

 

Como assim?

Temos que ser capazes, socialmente, em todo o mundo, de dizer que isto é intolerável. Não podemos resignar-nos. Não podemos consentir esta lógica autodestrutiva, estes bancos e empresas que ora estão a ganhar milhões, ora estão na miséria.

 

Não se sabe exactamente como fazer desse mundo um lugar mais habitável...

Não sabemos. Mas temos que ter, não só maior regulação dos sistemas bancários e financeiros, como admito – e não me ouviria dizer isto há três anos – que tenhamos que ir para a nacionalização de parte dos sistemas bancários.

 

Em Portugal?

Em Portugal, na Europa e no mundo. O nível de selvajaria chegou a tal ponto que temos que reconquistar algum controlo sobre as nossas vidas.

A segunda reconfiguração destas energias de mudança são as pessoas que acreditam nas sociedades. Vivemos numa dicotomia Estado/mercados como se esta fosse a única possível. E há uma dimensão, que é sempre a mais importante quando estamos num impasse, quando estamos à deriva. A minha âncora é sempre a mesma: a liberdade. No meio disto tudo onde é que está a liberdade? A liberdade, hoje, está no reforço da sociedade.

 

Como se faz o reforço da liberdade?

Implica que a liberdade não esteja asfixiada por um Estado que toma conta de tudo e das suas vidas, e que se transforma rapidamente numa estrutura pesada. Vivi isso na universidade. É insuportável a maneira como a nossa vida está controlada por burocracias.

 

Já todos percebemos que os mercados, ainda que pareçam uma entidade abstracta, não o são, tal o impacto que têm na nossa vida.

Falamos dos mercados como uma coisa com vontade própria. Os mercados querem, os mercados fazem, os mercados decidem. Como se fossem pessoas. O reforço da sociedade é uma coisa muito importante. E implica uma outra política. A política do século XXI não pode ser igual à política do século XX.

 

Como assim?

A política do século XX está, em grande medida, esgotada. As lógicas das políticas representativas, do voto de quatro em quatro anos, ou de cinco em cinco anos, que permitem, nos intervalos, descansar... O que estamos a perceber é que nunca podemos descansar.

 

No século XX tínhamos os intervalos entre guerras, nos quais era preciso descansar da guerra, por um lado, e sobretudo refazer aquilo que a guerra tinha destruído.

Foi. Mas a minha geração, 19 anos no 25 de Abril, durante muitos momentos, descansou. Fomos às nossas vidas. Hoje estamos a perceber que temos que ter uma presença na política que não tínhamos, até agora, por via dessa lógica de representação.

Num livrinho sobre a aprendizagem escrito por Michel Serres, um filósofo que gosto de frequentar, ele chama a atenção para o facto de estarmos a viver o que ele designa de terceira revolução na história da humanidade. A primeira foi a revolução da escrita, já lá vão milénios, a segunda foi a revolução do livro impresso, já lá vão 500 anos.

 

Qual é a terceira, a tecnológica?

O ponto dele é que o tecnológico cria novas maneiras de pensar, de aceder ao conhecimento, de nos relacionarmos, de aprendermos. Novas maneiras de sermos autores, também. Nunca se escreveu tanto como hoje, nunca se leu tanto como hoje.

 

Em Portugal há 300 mil blogues. Diz qualquer coisa sobre essa capacidade de escrevermos e de nos inscrevermos.

São 300 mil pessoas a ter opinião. Ora, como é possível governar hoje sem a voz e sem a presença diária dessas pessoas? Tem que haver mecanismos de democracia que vão para além da representação de quatro em quatro anos.

As energias de mudança estão nestas duas coisas: primeiro, o trabalho de tornar intolerável a situação actual, este capitalismo voraz, selvagem; e o reforço da sociedade, da presença da sociedade nas suas diversas dimensões.

 

Pode falar mais sobre o reforço da sociedade?

Só podemos reforçar a sociedade por via do conhecimento. O conhecimento tem que ser três coisas, e se não for estas três coisas não adianta de nada. O conhecimento tem que ser educação, tem que ser formação, mais a capacidade de pôr esta gente bem preparada a trabalhar.

 

Saber não é o mesmo que saber trabalhar.

Exactamente. Não se pode ficar na primeira parte. Isto em Portugal está-se a perder devido às políticas dos últimos três anos. Depois, a ciência é hoje pedra chave para tudo.

 

Porque, sobretudo no contexto de investigação, é sinónimo de futuro?

Porque a ciência, mais do que sinónimo de futuro, é sinónimo de cultura. Aquilo que me interessa na ciência é sobretudo a cultura científica. A Prof. Maria de Sousa, que admiro particularmente, escreve muitas vezes isto. Um dos grandes problemas de Portugal é que ciência e cultura científica não estão a chegar à sociedade. Não estamos a ser capazes de fazer dinâmicas de inovação.

Uma terceira dimensão do conhecimento, que hoje é muito importante, é o conhecimento que é capaz de trazer dignidade à vida.

 

O que é que isso quer dizer? É assim uma frase que, num contexto religioso, muda completamente.

Tem o contexto de ser capaz de estar ao serviço do bem-estar das pessoas. É preciso construir um conhecimento que não seja nem uma deriva tecno-optimista, nem uma deriva tecno-pessimista, mas que seja uma capacidade de construir uma sociedade mais justa.

 

No fundo, pôr alguns dos valores do Estado Social como centro das nossas preocupações e da nossa construção enquanto sociedade.

Exactamente. Tentar que esse conhecimento seja um conhecimento enraizado em preocupações sociais.

 

O seu discurso do 10 de Junho de há dois anos e meio foi muito aplaudido, deu um alento. Mas depois, ou porque um discurso é inconsequente no imediato, ou porque estamos cansados, exauridos, vamos à nossa vida, tentar sobreviver. A roda parece que não gira. Porque é que é assim?

Há várias razões. A narrativa do fim da história do Fukuyama acabou por se revelar mais verdadeira do que ele imaginava. Nós até estamos contra os mercados, até estamos contra a especulação financeira..., mas não há nada a fazer. Quantas vezes ouvi isso: “O que é que queres fazer?”. Isto é tão, tão superior às nossas forças! Isto dá uma das piores coisas que podem acontecer a uma sociedade: uma revolta inconsequente. Uma indignação que não traz consequências. Não tenho um discurso apocalíptico, mas isto pode criar na Europa um mau estar social de consequências imprevisíveis.

 

Está a pensar no crescimento da extrema-direita como sintoma disso?

Estou, ou em movimentos populistas, ou em coisas que corrompem a democracia.

No caso português, descansámos com a Europa. Projectámos na Europa, historicamente, o mito do mar. Agora estamos a pagar o preço desse descanso.

 

Estamos a pagar o preço das reformas que não se fizeram, do dinheiro malbaratado.

O malbaratado é grave, mas nem é o que me interessa. É o estrategicamente mal pensado. Não foi um dinheiro para reforçar a nossa capacidade sustentada. Todo o dinheiro que veio, com conivência de todos, nossa e de Bruxelas, acentuou a dependência, em vez de ter reforçado a independência.

Voltemos ao conhecimento: continuamos a ser contribuintes líquidos da União Europeia na área da Ciência; evoluímos imenso, mas continuamos a dar mais dinheiro para a Alemanha e para a Inglaterra fazerem Ciência do que aquele que recebemos. O Eça dizia: a civilização custa-nos muito cara, temos que pagar direitos de alfândega, e fica-nos curta nas mangas.

 

A Europa e o dinheiro que daí vem fica curto nas mangas – é o que está a dizer.

No outro dia reencontrei um escrito do Castoriadis: “É preciso escolher: ou descansamos ou somos livres”. Ele vai buscar isto ao Tucídides, ao general grego. Quando falo de uma nova forma de democracia, está resumida nesta frase.

 

Entretanto desapareceu uma coisa que existia na altura em que se podia descansar: a confiança.

É verdade.

 

Lembrei-me dos rapazes dos tanques, do livro do Adelino Gomes e do Alfredo Cunha. Uma boa parte deles apontava como o pior destes 40 anos de democracia “esta corja de políticos”. Ainda que não nos mobilizemos o suficiente para sermos livres pelos nossos meios, já não confiamos naqueles que podiam lutar pela nossa liberdade. Estamos num nó.

Estamos. Esse nó é decisivo para Portugal e para a democracia no século XXI.

 

Não podemos ler-nos, nem ler esse desencanto, sem ler a Europa, o mundo...

E o lugar da Europa nunca mais voltará a ser o que foi nos séculos passados. A Europa não vai ter a percentagem de riqueza mundial que teve até hoje. Surgiram outras potências, outras regiões, outros equilíbrios. Sermos capazes de construir países livres e países onde o conhecimento esteja ao serviço dessa liberdade, é o que tem futuro na Europa.

A outra coisa certa que temos é que não vai haver no século XXI níveis de crescimento como houve na segunda metade do século XX. Isto obriga-nos – foi uma frase que eu disse uma vez e que as pessoas não gostaram de ouvir – a ser capazes de viver melhor com menos. Não quer dizer que não possamos ter sociedades mais equilibradas, com mais justiça social, mais direitos. É por isso que me bato.

 

Enquanto isso, enquanto não mudam as placas tectónicas, há uma grande diferença em ter Pedro Passos Coelho e António Costa?

Espero que haja. Há um suplemento de alma que foi dado a estas energias de mudança com a eleição do António Costa. Do ponto de vista de Passos Coelho, temos a ideologia do totalitarismo dos mercados. É a lógica matricial daquela direita, fundamentalista. Portugal é talvez dos países onde essa lógica é levada mais ao extremo, nos discursos e na maneira como este Governo se comporta.

António Costa representa uma outra cultura, uma outra posição política.

 

Representa uma efectiva alternativa?

O problema maior das energias de mudança é saber se vai ser possível construir uma alternativa – que, a meu ver, não se constrói voltando ao mesmo ou aos mesmos. Os brasileiros usam uma expressão: a mesmice. Com uma cultura da mesmice, de voltar aos mesmos erros, às mesmas pessoas, não haverá alternativa nenhuma. Esse é o ponto que está em cima da mesa hoje. Julgo que não é injusto dizer (é talvez um bocadinho simplista) que tivemos uma governação socialista marcada pela ideia da nova gestão [da coisa] pública. Esta ideologia que aparecia como uma coisa interessante, como uma terceira via, acabou com os privados a tomarem conta dos interesses públicos e dos interesses do Estado. Depois tivemos três anos de hiper-liberalismo. Se for possível reforçar a sociedade do ponto de vista político… Nunca vi grandes benefícios no célebre slogan: “Uma maioria, um Governo, um presidente”.

 

Porquê?

É preciso que haja pluralidade. A sociedade é feita de negociações, de consenso, de acordos. É feita de momentos em que as pessoas se juntam. Não é preciso ter um alinhamento partidário mas lógicas de participação política mais ampla. Espero que o António Costa possa ser capaz de dar corpo a isso, como muitos outros movimentos que têm surgido na sociedade portuguesa, com pessoas que são independentes. Agora, dividir é muito fácil, unir é muito difícil. Esse processo de reunião, de reagrupamento dessas energias de mudança, é difícil.

 

As primárias do PS e o caso Tecnoforma foram coincidentes. Poucos acreditavam que Costa pudesse seguir directo da presidência do partido para o cargo de primeiro-ministro. Apesar de tudo, criou-se um élan. Do Tecnoforma, consensualmente se diz que mudou a imagem de Pedro Passos Coelho. Passaram umas semanas, e rapidamente o balão desinchou, em relação aos dois casos. Até ao próximo?

É preciso trabalho. O trabalho de não se descansar na construção de uma alternativa. Essas coisas demoram tempo. Mas é verdade que temos umas flutuações de humor rápidas. Falta-nos às vezes uma constância. (É uma característica dos portugueses, sempre falada por escritores, por pessoas que nos visitaram.) E é preciso conversar, conversar, conversar. E a partir daí ir construindo um caminho, com uma estratégia.

 

Quando foi a última vez que Portugal teve estratégia?

Quando entrou na Europa. Foi uma estratégia, a muitos títulos, errada, viemos a perceber mais tarde. Mas havia um pensamento claro de afirmar Portugal como um país europeu. Hoje, a nossa estratégia tem que ser rever essa posição. Apesar de todos os problemas, continuo a acreditar que o nosso lugar é na Europa e que a Europa, com todas as dificuldades, continua a ser uma região na qual se pode construir uma sociedade livre e baseada no conhecimento. Mas a Portugal não basta ter um pé na Europa. É preciso ter um pé…

 

No Atlântico?

Sim. Em particular no Atlântico sul. E isso tem a ver com a língua portuguesa. Para mim tudo começa e tudo acaba na língua. A língua é o nosso bem maior. (É uma das coisas que me desesperam, ouvir um ministro do actual governo, há poucos dias, desancar nas Ciências Sociais e Humanas. A mesma pessoa, passados dois dias, está a fazer um grande discurso patriótico sobre a História e o Camões... Lembra-se logo do Almada [Negreiros], e aquela célebre frase: “Enchem a boca de Camões e deixam o Camões morrer de fome”.

 

Desancava nas ciências sociais porque as considera inúteis?

A ideia é que a única coisa que é útil é a tecnologia, as aplicações.) A língua portuguesa é um potencial impressionante. Andámos muitas décadas, muitos séculos afastados da Europa. Temos andado muitas décadas afastados de uma vocação, de um lugar. O nosso pensamento estratégico pode ser esse. E para afirmar esse pensamento estratégico temos que reforçar uma componente da nossa soberania. Hesito entre soberania e independência... O problema é que a palavra independência ainda é pior. Pode querer dizer isolamento, salazarismo.

 

O que quer dizer com soberania (ou independência)?

Não podemos estar submetidos a lógicas em que não temos a capacidade de decidir sobre as nossas vidas. A soberania e o bem comum são elementos centrais para uma estratégia para Portugal. Mas o princípio e o fim da nossa estratégia é o conhecimento. Se queremos dizer uma palavra só, é conhecimento.

 

Olhemos para a actualidade. Há vários ministérios especialmente expostos. Finanças, Justiça, Educação. O que é que correu pior nestes anos?

O problema principal desta governação é a ideologia da austeridade, a maneira como ela foi concretizada e nos trouxe onde nos trouxe. Há uma diferença entre austeridade como necessidade e a austeridade como política. Uma coisa é dizer: “Temos que poupar mais, não vamos ter esta sociedade de consumo em que todos os anos vamos mudar de carro e de tablets…” Outra é a austeridade como ideologia de empobrecimento, de desqualificação, de dependência, da especulação financeira. Os portugueses confundiram estas duas coisas. O Governo teve uma grande capacidade de propaganda na mistura destas duas coisas. As consequências já se começam a notar no trabalho, no desemprego, no desperdício da geração jovem. Mas vão notar-se sobretudo nos próximos anos. E uma das coisas que se vai notar é a política educativa deste Governo.

 

O problema da colocação de professores causa imenso dano a milhares de meninos, famílias e docentes, mas não tem que ver com a coisa de fundo, que é uma política de Educação. Tem que ver com uma incompetência específica na gestão de um problema.

É isso mesmo. O problema é muito mais grave que esse. Nunca tivemos uma política educativa tão extremista e tão fundamentalista como tivemos desta vez. Desde a década de 60, talvez desde a década de 50, quando o Leite Pinto foi ministro da Educação Nacional, 1955, 61, nunca tínhamos tido uma marca ideológica tão fundamentalista e tão extremista como tivemos neste Governo. A política educativa do Nuno Crato é decalcada, vírgula a vírgula, ponto a ponto, da política educativa de George Bush, no princípio do século XXI. Vai ver os programas... Aliás, Nuno Crato nasce para a Educação, e começa a preocupar-se com as coisas da Educação, nesse período.

 

Uma linha para definir essa matriz: safam-se os melhores?

Claro. É a competição. O que interessa é a excelência. Nenhum de nós tem nada contra a excelência. O problema é que atrás da excelência está a discriminação, está: “Os melhores que se safem”. Conversas nestes meios: os professores não servem para nada, porque os bons alunos não precisam de professores e aos maus alunos não há nada a fazer. É uma maneira de ridicularizar o trabalho dos professores...

A competição, a selecção, os exames… uma coisa são os exames, outra coisa é a obsessão dos exames. A selecção, o cortar as pernas, o afastar as pessoas, é empurrar precocemente para vias profissionais. Isso é uma linha clara desta política. A segunda linha é o famoso back to basics. É o voltar ao famoso “ler, descrever e contar” do salazarismo. Quando Nuno Crato fala do Português e da Matemática, hoje, a metáfora é a mesma que levou à escola salazarista. Uma escola paupérrima, medíocre, minimalista.

 

Qual foi o resultado disto nos EUA?

Há um livro extraordinário, da senhora que foi a principal assessora de George Bush, Diane Ravitch, que depois de sair do Governo escreveu um livro a dizer: “Errei em tudo, estávamos errados em tudo”. Isto conduziu a um desastre nos Estados Unidos da América e está a conduzir a um desastre cá. Como há esta descrença na Educação, estas pessoas estão disponíveis, do ponto de vista político, para aceitarem cortes na educação. O que vai transpirando – eu não tenho as informações que tem o Marques Mendes, do conselho de ministros –, é que o Nuno Crato nunca levantou a boca em relação aos cortes que houve na área da Educação.

 

Para o próximo anos, o corte anunciado é de 700 milhões.

A Educação foi de longe o sector onde houve mais cortes orçamentais ao longo destes últimos três anos. Houve cortes muito superiores aos que estavam propostos no memorando da troika. Alegremente. Estamos a recuar, em termos de percentagem do PIB dedicado à Educação, a valores da década de 80, quando a escolaridade obrigatória ainda era de quatro anos, quando havia muito menos pessoas no sistema. O retrocesso não se nota de imediato, não é amanhã. Estamos a criar um atraso e um desastre – é a palavra certa – que vai ter consequências graves no futuro.

 

É isso que mais vai ficar deste Governo? Duradouramente e visto retrospectivamente.

É o que vai ficar mais forte. Com todas as dificuldades noutros sectores, no sector da Saúde, tem sido possível preservar certas coisas no Serviço Nacional de Saúde. Vamos ter que tentar reconstruir um consenso na sociedade portuguesa em torno da Educação, para voltar a níveis aceitáveis de investimento e a uma escola pública que não tenha esta matriz.

 

E a sua carreira política, no meio disto tudo?

Não tenho carreira política. Essa é a resposta mais fácil.

 

Já se falou muito de si, sobretudo na sequência do discurso do 10 de Junho, como eventual candidato à Presidência da República. Desde aí o seu nome aparece sempre como um ministeriável, presidenciável, como um político executivo. No último ano esteve no Brasil. A política executiva é uma coisa que está no seu horizonte?

Tenho 59 anos, fiz a minha vida na universidade. Em todos os lugares que ocupei, nunca quis ocupar lugares. Se tenho algum projecto de vida, todos os meus amigos o sabem, é poder estar em lugares como este [cafetaria do Museu de São Roque], a ler e a escrever até ao fim dos dias. Mas é verdade que sinto uma certa responsabilidade geracional. Sinto que quando chegamos a um determinado momento das nossas vidas, e se pudermos ajudar em certas coisas, temos a obrigação de o fazer. Sempre que seja para uma lógica de mudança, e para uma lógica que vá no sentido daquelas coisas que procurei aqui defender, estarei disponível. Disse uma vez: “Não quero nada, mas estou disposto a dar tudo”.

 

Significa, em sentido rigoroso, que não é candidato a nada?

Não sou candidato a nada, não quero nada, não tenho nenhum interesse. Mas estou disposto a participar. Seja em que lugar for. Não me interessa se é em primeiro lugar ou em último lugar. As primeiras vezes em que falei publicamente, falei a partir de um direito individual. Depois de dizer a palavra, percebi que isso me criava uma responsabilidade, que eu não tinha percebido. De repente, quando a pessoa fala, adquire um compromisso.

Não me omitirei, não me demitirei, não me resignarei. Estarei presente na medida em que isso possa contribuir para um rassemblement, para essa capacidade de juntar um conjunto de energias de mudança, que existem na sociedade portuguesa, mas que estão adormecidas ou resignadas.

 

Vai voltar para o Brasil.

Estou em transição.

 

Brasília é a base?

Brasília é a minha cidade. Ando de bicicleta o tempo todo. Vou para o ministério, para a universidade, para todo o lado de bicicleta.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014