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Anabela Mota Ribeiro

Jaime Lerner

08.02.15

Jaime Lerner nasceu em 1937. É arquitecto e planejador urbano. É o responsável pelo fenómeno Curitiba, que se transformou em objecto de estudo pelo mundo fora. Implantou na cidade o primeiro metro de superfície do mundo. Multiplicou as zonas verdes e encarregou as ovelhas de pastorar os bosques. Desenvolveu a indústria da reciclagem e envolveu a população das favelas num programa de troca de lixo por comida.

Foi prefeito de Curitiba por três mandatos, governador do Estado do Paraná por dois – o segundo mandato terminou há poucos meses. É presidente da União Internacional dos Arquitectos.

A Ordem dos Arquitectos trouxe-o a Portugal para o ouvir sobre as cidades.

Eu ouvi-o ao longo de uma manhã e isso mudou o modo como vejo a vida nas cidades.

 

É verdade que o seu primeiro encontro em Portugal foi com Álvaro Siza?

Cheguei segunda-feira à tarde. No outro dia de manhã, saí de carro e vi o Álvaro Siza. Na rua. Não tive nem tempo de mandar parar, e também achei que era bom deixar assim... Ele estava tão entretido lendo alguma coisa que não quis incomodar.

 

Nunca o conheceu?

Não. Conheci as obras. Mas as coisas acontecem... É como se tivesse marcado um encontro com ele.

 

Um encontro marcado pelo destino. Porque é que decidiu ser arquitecto? A sua primeira formação é Engenharia.

Já estava formado em Engenharia, ganhei uma bolsa de estudos em Paris, em Urbanismo. Tinha 22 anos. Fiquei um ano e trabalhei em alguns escritórios. Quando voltei, estavam começando a organizar a Escola de Arquitectura lá no Paraná, e me convidaram para ser professor.

 

Tirou o curso em Paris?

Não. Tirei em Curitiba. Me ofereceram a condição de ser professor num novo curso, de Arquitectura, e eu disse: «Não quero ser professor. Quero ser aluno». Abandonei Engenharia e fiz Arquitectura. Preferi ser aluno e foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida.

 

Teve a noção do que estava a fazer?

Veja como é a vida: meu único sonho era ser arquitecto. Diria que isso vem dos tempos que era criança. Na loja do meu pai tinha um piso de ladrilho. Quando olhava, ou era um desenho no plano ou era um desenho no espaço. Me encantava aquela noção de espaço. Depois tinha uma lata de fermento que me deixava louco! [desenha] Uma lata que tinha um losango, e [dentro] tinha outra lata, que tinha outro losango, e outra lata e outro losango... Era o infinito para mim. Com a noção de espaço e infinito, tinha que fazer Arquitectura.

 

Era uma lata grande?

Tinha uns 10, 15 cm, era cilíndrica. Ainda hoje procuro essa lata.

 

O efeito era semelhante ao de um caleidoscópio?

No caleidoscópio os desenhos são diferentes e não dão a noção do infinito. Mas adoro caleidoscópios! Essa mágica... Onde eu morava, tive a sorte de ter um circo do lado.

 

Em permanência?

Ficou um bom tempo. Morei numa rua fantástica. Tinha uma estação de trens [comboios], tinha os bares e os hotéis (que sempre são próximos a uma estação de trem), uma praça bonita, que tinha um fotógrafo que fotografava aviões: você ficava dentro do avião e aí ele te fotografava!; e mais adiante ficavam os vendedores de «comics». Eram brigas imensas que tinha com o meu irmão mais velho para ver quem era o mais forte: o Príncipe Submarino ou o Capitão América. O meu herói era o Capitão América. A quadra [quarteirão] seguinte era onde morávamos. Em frente tinha um jornal, «O Estado do Paraná». Mais adiante tinha um terreno baldio grande, onde ficavam os circos. Mas a rua continuava. Tinha um hotel tão bonito que parecia um hotel misterioso... A mim me parecia o maior hotel do mundo. Mais adiante tinha as estações de rádio e a prefeitura.

 

Isso é um mundo.

É, e cresci nesse mundo. Daí meu amor pela rua e pela cidade. Já se tentou, no urbanismo contemporâneo, várias soluções de organização da cidade: cidades espaciais, cidades que são lincadas... Mas nada se inventou que seja melhor que a rua tradicional.

 

A rua como espaço de confluência.

A rua que era integração de funções. Onde você morava, trabalhava, tinha o seu lazer. A minha recreação era a rua, andar por essa rua. Nasci naquela rua e mal podia imaginar que um dia ia cruzá-la para prestar juramento, para ser prefeito da minha cidade. Mágica, né? A rua da minha infância era a segunda rua mais importante da cidade. Tinha a câmara municipal, a prefeitura, tinha a estação de «bondes» [eléctricos].

 

O que fazia o seu pai?

Tinha uma loja. Meus pais foram emigrantes, vieram da Polónia antes da Guerra, em 33. Como a estação ferroviária ficava no começo da rua, por aquela loja passavam os agricultores, os políticos que vinham do interior, todas as pessoas. Passei a conhecer o que era o meu Estado, o que era o meu país. Tinha de tudo: roupas, sapatos, tecidos, lenços, sabonetes, pentes. Não era muito movimentada. Meu pai gostava de jogar xadrês com o dono da loja em frente e tinham tempo para contar histórias. Ainda hoje adoro escutar histórias.

Quando é que percebeu que a concretização daquilo que queria fazer era a Arquitectura? Numa cidade como Curitiba, há 50 anos, era evidente para um miúdo que aquilo que ele queria ser era arquitecto?

Não havia essa designação. Queria construir. Adorava desenhar. Quando me formei em Engenharia senti que não queria aquilo, que não ia trabalhar como engenheiro.

 

O que aprendeu no curso teve alguma serventia?

Não muito. Aprendi mais com os artistas do que com a Engenharia. O artista sente a sociedade antes. Sempre gostei de acompanhar o movimento artístico porque estas pessoas, com esta sensibilidade, sabem enxergar a realidade de um país antes.

 

Como coisa sabida instintivamente.

Era instintivo. E os jornalistas também. Eles estão acostumados a concluir depressa: concluem um estudo até ao dia seguinte. Se você entrega a um outro profissional, ele fica meses e não cumpre. A conclusão rápida, eu acho fundamental. Não gosto de conclusões requentadas.

 

A rapidez é uma das suas marcas. Quando foi eleito prefeito, ficou famosa a destruição de três ruas, com o propósito de criar uma grande rua comum, em 72 horas.

Não destruí a rua: retornei a rua para os pedestres.

 

O que é que teve de ir abaixo?

Não destruí nada. Nunca destruí nada. Odeio destruir. Acaba com a memória da cidade e não resolve nada. O que é preparar a área para os pedestres? Não é só fechar a rua para o automóvel. É ter equipamentos, criar um desenho, recuperar as edificações, iluminá-las bem. Imagine uma cidade que estava acostumada, como todas na época, a querer só espaço para o automóvel, e você chega e faz isso... Tinha que ser muito rápido, senão as petições judiciais interromperiam a obra.

 

Além das petições judiciais, havia o problema da reacção das pessoas...

É. Propus-me fazer os primeiros quarteirões e aí a população poderia julgar se estava bom ou não. O meu secretário de obras disse que ia levar uns três meses. Eu disse: «Não. Preciso disso em 24 horas».

 

Diz isso como provocação?

Não. Sabia que tinha de ser rápido. E aí o secretário de obras disse que era possível num mês... Quando ele chega e diz que dá para fazer em uma semana, eu disse: «Então vamos fazer em 72 horas. Começamos numa sexta-feira e concluímos na segunda-feira à noite».

 

Mas porquê essa incrível urgência?

Não é que quiséssemos bater recordes, mas eu era um prefeito nomeado, não tinha força nenhuma... Em qualquer momento podiam interromper a obra e seria muito difícil. O centro de uma cidade é que nem a mulher do mágico, (aquela que se põe no caixão e o mágico fica trespassando com as espadas). Porque é que a mulher não morre? Qual é o segredo?

 

Não sei.

A espada, ou passa tangencialmente ou pára antes. [desenha] É a mesma coisa com o trânsito. Você não pode matar um local onde há um grande encontro entre as pessoas.

 

Nessas 72 horas, esteve sempre presente?

O tempo todo. Como este, o outro momento assim foi a construção da ópera de arame em dois meses. Imagine construir um teatro em tão pouco tempo!

 

É um edifício belíssimo, ao lado de uma pedreira.

Iria acontecer um festival internacional de teatro, e o governador da época brigou com os patrocinadores e não queria deixar acontecer o festival nos teatros do Estado. Eles ficaram sem espaço, viraram-se para mim: «Você não pode nos salvar?». E aí falei na ópera de arame que estávamos pensando em fazer. Sei que começámos a obra dia 15 de Janeiro e dia 18 de Março inaugurámos. Para facilitar os concursos, adoptámos um só material, que era o tubo, e graças a isso, fizemos a ópera em dois meses. Eu ficava lá dia e noite. Esta felicidade de ver as coisas a acontecer... O primeiro dia que você coloca o sistema de transporte, é inesquecível.

 

Como é que acontece a um rapaz de 33 anos ser prefeito de uma cidade que foi sempre a sua?

Era presidente do Insituto de Arquitectos do Paraná...

 

Era um arquitecto que projecta ou trabalhava já como planeador urbano? É mais um que outro? Como é que faz para que um e outro lado coabitem harmoniosamente?

É tudo junto. Tem que ser tudo junto. Tem uma série de coisas que são vitais para você fazer acontecer.

 

O quê?

Primeiro vontade, vontade política. Segundo, uma visão solidária, saber enxergar a cidade através de todas as pessoas. Através dos olhos dos estudantes, dos trabalhadores, dos artistas, das crianças. Como vêem a cidade, o que esperam da cidade. Terceiro, uma visão estratégica, saber que não pode fazer tudo.

 

Mas essa pretensão não é legítima, e mesmo profícua, sobretudo entre os mais jovens?

Se você corre atrás de todas as necessidades, não consegue fazer nada. Mas se for só atrás das potencialidades, você se afasta. Tem que trabalhar na balança entre essas duas coisas. Fazer uma equação de co-responsabilidade para cada problema. Não temos dinheiro, então vamos fazer assim: uns fazem aquela parte e nós fazemos a outra.

 

No fundo, trata-se de implicar todas as partes no processo.

É. Uma vez estava fazendo uma palestra no MIT sobre cidades, em 92/ 93, e perguntaram-me: «Como é que faz para acontecer?». Olhei a plateia, todos pós-graduados, gente de todo o mundo, do Irão, do Perú, da Jamaica, países com diferentes sistemas de governo. E falei: «Não posso ter a pretensão de dizer como é que faz para acontecer. Mas vou começar a pensar em voz alta».

 

Essa é a pergunta que constantemente lhe fazem: como é que se faz. É também a minha pergunta.

Surgiu naquele dia uma definição que uso até hoje. Fazer acontecer é propôr um uma ideia, um projecto, que todos ou a grande maioria entendam que é desejável. Se entenderem que é desejável, vão ajudar a fazer acontecer. As coisas só acontecem se se mostra como vai ser, se a população entende qual é a finalidade. Porquê separar o lixo? Se entendem, não há o que segure. A reacção de uma população é uma coisa extraordinária.

 

Como é que ausculta o ponto?

Sondagens, reuniões, discussões. A democracia é um processo de conflitos. Nunca se espera consenso de tudo. É um vai e volta. Às vezes os responsáveis pela cidade iniciam o assunto. Outras vezes é a própria comunidade.

 

Como é que se reúnem consensos? No plano político, as soluções propostas pela Esquerda e pela Direita para a resolução de problemas são divergentes.

Na prática, estamos muito interligados. É difícil reunir consensos se você fica no diagnóstico... Entre o meu primeiro e segundo mandato fui professor em Berkeley, na Califórnia; vim de lá muito influenciado pelo papel dos grupos comunitários e me pus toda a noite em reuniões de associação de moradores. Iam pondo problemas a todo o momento... E eu disse: «Não vou conseguir resolver isso nunca». Porque é preciso trabalhar com as necessidades que a população te traz todo o dia, mas não perder de vista a visão global.

 

Não é difícil ter essa visão global? É fácil se estivermos numa cúpula e percebermos toda a movimentação cá em baixo, a gestão das várias tarefas e pessoas.

Ser prefeito é como ser um mágico dos pratos chineses: tem que equilibrar várias coisas ao mesmo tempo; sempre tem uma auxiliar que te vai chegando mais um prato e não pode deixar cair nenhum. Mas a melhor visão é sempre a de baixo. Nunca gostei de percorrer uma cidade de helicóptero. É bom para ter uma ideia, mas não é isso que te define as coisas.

 

Então é o quê?

O que define as coisas são as pessoas. As pessoas dentro da cidade. Eu gosto é de andar a pé. Ando, ando, ando. Acho importante as pessoas entenderem o desenho das suas cidades. Quando te mostram o desenho de cada município, a divisão é política. São mapas que não dizem nada, você olha e não enxerga a região. Agora, se começa a sentir o rio da cidade, os antigos caminhos... Procurar o desenho de uma cidade é fazer uma estranha arqueologia, descobrir os caminhos que fizeram a sua história.

 

Qual é a importância dos caminhos antigos?

Há toda uma história sedimentada ali. Quando se visita uma cidade pela primeira vez, se não entende a cidade, não gosta. Mas se começar a dizer que a Califórina é um «y»...

 

E Lisboa?

Sete colinas.

 

Retomemos a ideia inicial. Um rapaz de 33 anos à frente de uma prefeitura. A coisa extraordinária que implementou e que revolucionou a vida da cidade foi o sistema de transportes públicos. Importa-se de descrever o «seu» famoso ônibus, de que toda a gente fala?

Curitiba tinha 600 mil habitantes. Dizia-se que quando uma cidade chegasse a um milhão de pessoas tinha de ter um metro. Um metro tem de ser rápido, ter conforto e frequência. Não tínhamos dinheiro para isso, então pensámos num sistema que fosse rápido, mas na superfície. Usámos as ruas tal como existiam: ônibus em pista exclusiva, num carril. Ninguém pode invadir.

 

Mas não pode mesmo? Nas estradas portugueses é frequente ver as faixas dos táxis e autocarros invadidas por apressados...

Mas isso não acontece mesmo! A faixa é delimitada, não permitindo que outros andem ali. Se este ônibus pára de tantos em tantos metros e se o embarque é facilitado, então é possível. Inventámos uma coisa nova, uma coisa boa.

 

Foi o primeiro metro de superfície do mundo?

Foi. Aí a coisa começou a evoluir. Mais tarde desenhámos os tubos, um outro achado importante.

 

Porquê?

Vou aqui fazer um desenho e você vai-se transformar numa especialista em transportes urbanos. Um ônibus normal andando em uma avenida normal, tem a capacidade de transportar X passageiros por dia. Se colocar em pista exclusiva, o mesmo ônibus tem a possibilidade de transportar duas vezes mais.

 

Porque não perde tempo no tráfego?

É isso. Agora, se o ônibus for articulado, (aquele com um acordeão), transporta 2,8 mais passageiros. Se usar o articulado mais um embarque no mesmo nível – que pressupõe um tubo e que a entrada no ônibus já esteja paga_, aí vai para 3,5 vezes mais. Se fizer isto mais um ônibus bi-articulado...

 

Quantas pessoas leva um ônibus bi-articulado?

Trezentas. Duzentos e setenta passageiros suecos. Trezentos brasileiros. Aí, chega a 4 vezes mais. No mesmo espaço, transporta 4 vezes mais passageiros. No transporte de superfície o principal é a frequência. No transporte como no amor, não pode esperar muito... É isso que define a qualidade de um sistema. Tem metros no mundo que são super-sofisticados mas com uma frequência de 5 em 5 minutos. Não adianta nada. De minuto a minuto, tem de estar a passar um.

 

E há outra coisa: normalmente o transporte público é incómodo, as pessoas vão como sardinha em lata.

Tem que ser uma coisa agradável. Se a frequência for maior, as pessoas não vão como sardinha em lata.

 

É verdade que em Curitiba o máximo que as pessoas podem esperar em hora de ponta é 45 segundos?

É verdade. As pessoas só vão abandonar o automóvel se for uma alternativa melhor. Logo, logo.

 

[Mudámos de sala porque o barulho das obras no espaço contíguo começou e desconcentrar-nos. Retomámos a conversa justamente falando de concentração e rentabilização do tempo]

 

Sempre defendi que a cidade humana é a cidade onde se integra tudo. É uma estrutura de vida e trabalho, juntos. Como governador e como prefeito, sempre insisti que junto de cada casa houvesse um espaço de trabalho, uma barbearia, um escritório.

 

Acoplar trabalho e vida própria num mesmo espaço físico? Tornar tudo mais próximo é a sua grande aposta.

O grande engano foi esta interpretação de que é melhor morar longe do trabalho. Essa separação das funções foi trágica para muitas cidades. Sabe como atraímos actividades económicas para Curitiba na disputa com São Paulo? Eu chegava para eles e dizia assim: «Querem ir para São Paulo? Muito bem. Perdem em São Paulo 3 horas a mais do que em Curitiba, circulando. Três horas a mais por dia são 20 horas por semana. 20 horas por semana são 1000 horas por ano. De cada 8 anos, perde 1 ano. Atrás de um camião respirando fumaça. Como a expectativa de vida é de 72 anos, pergunto: querem perder 9 anos das suas vidas? Não? Então venham morar em Curitiba!».

 

O argumento ecológico foi fundamental. É espantoso que Curitiba tivesse há 30 anos meio metro quadrado de verde por cada habitante e hoje tenha 52.

E a população triplicou! A conquista do verde aconteceu da seguinte maneira: assim que percebemos que o que a população mais queria era que se salvassem os bosques, comecei a procurar os proprietários, as famílias. Para estas, a manutenção dos bosques era muito difícil. Então, propunha que ficassem com 1/3 da área. Nós comprávamos 2/3, mas tinha de ser muito barato.

 

Como é que as convenceu a vender barato?

Dizia que íamos fazer uma homenagem e dar ao parque o nome da família.

 

Que esperto!

[risos] Salvámos 91 bosques.

 

Em Portugal, na maior parte das vezes, quando se destroem espaços verdes é para construir em cima. Isto leva-nos a um tema incontornável na vida das cidades: a corrupção. Não por acaso, a Bastonária da Ordem dos Arquitectos pediu que se esclarecessem as relações entre construção civil e autarquias. Como é que se faz face a uma questão destas?

A primeira coisa é ser muito transparente. Na hora que estamos tratando de desapropriar e comprar uma área, a pessoa que está ali negociando com os proprietários tem que ser muito transparente. Como essa operação era bem conhecida e muito fiscalizada, a gente tinha a certeza que o valor que era pago era igual.

 

Com certeza já lhe aconteceu lidar com funcionários corruptos...

Numa estrutura de 20 mil funcionários (prefeitura) ou 200 mil (Estado), claro que tem. E tem que tomar medidas.

 

Referia-me à pequena e à grande corrupção. Aos trocos que fazem acelerar um processo e às grandes maquias que resultam do favorecimento de um projecto.

Sempre achei que o poder público tinha que mostrar eficiência e ser muito rápido. Se as coisas forem bastante rápidas, não chega a haver corrupção. Não há necessidade de querer facilitar as coisas, «Olha, preciso que o meu processo corra mais rápido que os outros». Mas a corrupção, ela aparece. É como uma mancha que não sai da roupa. E você sabe que tem que agir em determinados momentos. As pessoas precisam de ter confiança no poder público.

 

As suas soluções são de uma simplicidade extraordinária.

Uma vez o Oscar Niemeyer disse: «Nós não temos o direito de complicar a nossa comunicação com os outros». Tenho procurado não sofisticar demasiado, colocar de maneira que todas as pessoas possam entender. A cidade não é tão complexa quanto os vendedores de complexidade querem fazer acreditar. A cidade é um espaço onde as pessoas vivem e trabalham e têm as suas esperanças.

 

É a sua definição de cidade?

Não tenho. No outro dia me perguntaram: «Qual é a cidade que você mais gosta?». É a cidade que uma criança possa desenhar. Sou encantado pelo desenho, não porque me iluda com o desenho, mas porque o desenho permite começar. Com o desenho você faz antes. Fazer antes significa comunicar antes. E depois, pode mostrar para as pessoas dizerem se estão de acordo ou não. E não elaborar grandes teorias. O mundo está cheio de heróis de seminário.

 

Heróis de seminário?

É o sujeito a que ninguém presta atenção em casa, que lê no jornal que há um seminário e que vai discursar os 10 minutos que não tem de atenção em casa. Então faz esses diagnósticos intermináveis... As coisas precisam de ser simplificadas. Até para poderem ser sentidas e vividas.

 

Deixe-me voltar à definição de cidade «ideal», aquela que uma criança possa desenhar.

Significa que se ela já está entendendo, é um caminho tão bonito...

 

Normalmente os desenhos das crianças têm núvens, sol, um rio, casas, um carro, o pai e a mãe.

Se na escola tivessem aulas sobre a cidade, seria importante. Se a capa do caderno tiver o desenho da cidade, e até um certo relevo, podem apontar e dizer que moram aqui, e a criança do lado ali.

 

Identificam-no no espaço, e desse modo integram-se?

A identidade é um ponto fundamental da qualidade de vida. Eu diria tão importante como o equipamento de uma cidade. A cidade é um velho retrato de família. Pode não gostar daquele tio gordo, ou da tia brava mas é aquele retrato. Você não rasga um retrato de família. É a tua identidade. Tenho encontrado, em todas as andanças que fiz pelo mundo, regiões muito bem equipadas onde as pessoas não estão felizes...

 

Nos países nórdicos, onde tudo é perfeito, há uma taxa de suicídio elevada.

Ou então você vai numa cidade pequena ou num bairro que não tem tudo e as pessoas são felizes... Porque têm uma referência. Conhecem aquele lugar, sabem onde a fábrica está, onde o armazém está. No fundo, eles sabem que eu existo. O sentimento de pertença a uma cidade é muito importante.

 

Se vivo num determinado bairro ou cidade, se estabeleço uma relação de identidade e pertença com esse espaço, isso influi significativamente na minha vida, mesmo?

É. Porque é que defendo o transporte de superfície? Porque estabelece uma identidade entre o passageiro e o seu itinerário. E para aquele que está na calçada, o passageiro que está passando é um retratinho. [desenha] Cada janela é uma pessoa que ele está vendo. Já reparou que num transporte de superfície as pessoas falam entre si? Em baixo da terra não falam.

 

Nunca reparei. Por causa desse processo de identificação?

É.

 

O seu primeiro mandato ficou marcado pela solução genial do ônibus de superfície. Isto remete-nos para uma questão importante: por onde começar? É possível começar por uma ponta ou tem que se fazer tudo ao mesmo tempo?

Pensar tudo ao mesmo tempo. Para fazer, tem que ter algumas prioridades. Na mesma época que fizemos a solução do transporte, fizemos os parques, fizemos uma revolução cultural na cidade... Uma antiga fábrica de pólvora virou um teatro, uma antiga fábrica de cola virou um centro de criatividade. A população gosta quando você pega numa referência importante e volta a dar vida.

 

No seu segundo mandato desenvolveu um projecto nas favelas, espaços putrefactos onde não existe rede de saneamento básico e onde não chega o carro do lixo pelo simples facto de os caminhos serem demasíado íngremes e estreitos. Um ninho de ratos a céu aberto, portanto. Compremeteu as pessoas na resolução do problema fazendo-as trocar lixo por comida...

Ou trocar o lixo por um ticket de transporte. Me lembrei: «Nós não temos que pagar às empresas que colectam lixo? Então, vamos pagar para os moradores trazerem o lixo para um lugar mais acessível». Se não se estabelecer uma relação de troca com a população, você vai manter a população isolada. E as pessoas têm que ter outra esperança de trabalho que não seja o trabalho ligado à droga.

 

Num programa da NBC a que pude assistir, e que era dedicado ao fenómeno Curitiba, era muito impressionante ver pessoas em fila com o lixo na mão, que elas mesmo separavam, e que depois ia ser reciclado. Em troca, recebiam comida. Onde é que arranjou dinheiro para a comida?

Eu observava nos noticiários os produtores da região; queixavam-se que produziam demais, não conseguiam preços bons para os seus produtos. Estavam a jogar fora comida porque não compensava... Procurei esses produtores e disse: «Vocês não vão jogar fora, nós vamos comprar». Claro que a um preço barato, mas rende mais do que jogar fora. E passámos a trocar com o reciclado. Vendendo o material reciclável, arrecadávamos dinheiro e pagávamos aos produtores rurais. E o que era bonito era que uma criança que separava o lixo estava ajudando outra criança, filha de um produtor.

 

A troca era por bens alimentares ou senhas de transporte, mas nunca dinheiro?

Nunca. Quando se passa dinheiro, a gente não sabe quais os intermediários que estão nesse processo. Com comida ou vales de transporte, as coisas são mais imediatas e não possibilitam um enganar o outro. Tem tantas coisas que a gente foi aprendendo em todo o decorrer dos anos... Não tenho medo de nenhum problema. Tudo o que quero fazer na vida é procurar dizer que as coisas são possíveis.

 

Porque é que sempre acreditou? Tem uma convicção extraordinária.

Não sou nenhum naif, não sou ingénuo. Mas não gosto da derrota por antecedência. Não sei porque se criou uma visão tão trágica na vida das cidades. Fazem-se diagnósticos: o dia em que a Cidade do México vai ter 50 milhões de habitantes, o dia em que São Paulo vai ter 40 milhões de habitantes. Não me interessa isso. O que me interessa é usar a energia que tenho no sentido de evitar uma tendência que não é desejável. Tem de pensar como melhorar a vida das pessoas e não como consagrar a derrota.

 

Quando foi nomeado prefeito acreditava que ia ser assim? Podia ser engolido pela máquina.

Queria fazer as coisas em que acreditava. Tem que correr atrás dos sonhos. Ou então, mais cedo ou mais tarde, os sonhos te alcançam. Não tem é o direito de estar distraído. Senão o sonho passa e, por estar distraído, não viu o seu sonho passar. Já fui prefeito três vezes, governador por duas vezes de um Estado que tem 10 milhões de pessoas... Não tenho mais interesse político. Eu gostaria de provar que as coisas são possíveis.

 

Gostava de ser presidente do Brasil?

Houve um momento, em 92, em que havia uma chance de sair candidato. Seria a primeira vez que um candidato sairia de uma prefeitura directo. Mas é uma questão de ter controlo partidário e eu nunca fui de manipulação de partido.

 

Não é um político?

Não. Cheguei à política por acidente.

 

É comunista?

Não. A minha visão é humanista. Prefiro ter mais compromisso com a ética do que com uma determinada corrente. Gosto de ficar mais livre para não ter que concordar às vezes com coisas de que discordo.

 

Quando chega a uma cidade começa logo a imaginar as soluções que implantaria nessa cidade?

Quando conheço o suficiente, já estou imaginando soluções. Infelizmente não tive a condição de me soltar em Lisboa, não conheço o suficiente. E na criatividade não existe uma coisa chamada inspiração. Na verdade, quando não tem a solução é porque faltam dados. O teu cérebro está dizendo: «Mais dados, mais dados». Mas se me soltasse em Lisboa e se a conhecesse melhor, logo acontecia: «Ah, isso pode acontecer assim». Nem sempre as coisas precisam acontecer. O exercício de pensar é bonito. É isso que faz a vida melhor.

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2003

 

Clara Ferreira Alves (2000)

05.02.15

Clara Ferreira Alves nasceu em Lisboa. Assina uma coluna incontornável aos sábados portugueses chamada A Pluma Caprichosa. Fez a última entrevista ao O’Neill, além de ter feito outras memoráveis coisas. Ainda que o seu universo sejam as palavras e o recolhimento da escrita, participou em projectos televisivos. É mãe do João. Esperadamente, é avessa a falar da vida privada. É, contudo, bastante afável, apesar do tom quase seco ou metálico (depende) da sua voz.

 

Quando apresentava o Falatório, o Herman fez um sketch a que chamou Interrogatório e no qual surgia como uma temível jornalista que arrasava um pobre escritor. A paródia traduzia a imagem agressiva e autoritária que, grosso modo, as pessoas têm de si.

Os meus amigos não têm nada a ideia de que sou uma pessoa agressiva. Em televisão nunca fui assustadora. Pelo contrário, houve situações em que me apetecia responder ou levar o convidado para outro território e não o fiz deliberadamente. Nunca fiz aquele interrogatório do Shakespeare, «Quem é Shakespeare?». Mas talvez algumas pessoas se sintam intimidadas por mim, não sei...

 

Que tipo de pessoas se deixam intimidar por si?

O tipo de pessoas que se deixam intimidar. Confesso que não pertenço a esse tipo de pessoas. Não me deixo intimidar por ninguém com facilidade.

 

Não tenho ideia alguma das suas partes mais frágeis e inseguras, susceptíveis de serem intimidadas.

Há muitos territórios. Nos mais íntimos as pessoas assustam-se com as mesmas coisas: com o sofrimento, com a infelicidade, a própria ou a de alguém próximo; até se assustam com o desconcerto do mundo, às vezes. Sou completamente insensível a alguém que tenta intimidar-me porque tem poder ou dinheiro ou conhecimento.

 

Na capacidade para afrontar os outros ou resistir à intimidação, a auto-estima é um ponto chave. Quer dizer, se a pessoa se tem em muito boa conta mais dificilmente se atemoriza.

Não sei se o problema está tanto na auto-estima, toda a gente tem desfalecimentos na auto-estima. Mas esse é um negócio que tenho comigo mesma, só depende de mim e do meu trabalho. Quando considero que não é suficientemente bom, ou que não consegui, aí a minha auto-estima balança.

 

Tem crises dessas?

Ah, toda a gente tem crises dessas, e quem escreve, então... Mas uma coisa é a relação que tenho comigo mesma e as vacilações que isso me dá, outra coisa é a relação que tenho com as outras pessoas. A minha suposta agressividade não resulta da ausência absoluta de medo ou da incapacidade de me assustar com o que quer que seja. Resulta do facto de não ter uma grande tolerância para um certo tipo de pessoas.

 

Para a mediocridade?

Sobretudo a presumida. Nunca sei muito bem como vou reagir; sou capaz de voltar as costas, também sou capaz de gritar. Há pessoas insuportáveis que estão convencidas que os outros lhes devem uma vénia. Normalmente têm uma qualquer qualidade que lhes foi atribuída externamente, mas que não lhes confere um particular mérito. Não é a estupidez que me incomoda. A estupidez não é uma categoria mensurável, não se pode dizer de uma pessoa que ela é estúpida porque é menos instruída ou porque não sabe quem é Shakespeare, como no tal Interrogatório. Trata-se daquela imbecilidade que dá ordens e que opina forte sem ter nenhuma espécie de suporte.

 

No seu círculo há pessoas menos instruídas ou dotadas intelectualmente?

Podem ser. Estas pessoas imbecis podem até ser dotadas intelectualmente.

 

Claro. Mas eu pensava num outro plano e como, no caso de serem menos dotadas, a comunicação se iria estabelecer.

Estabelece-se todos os dias. Nem há da minha parte uma aferição se as pessoas têm os mesmos dotes ou leram os mesmos livros. Há pessoas com as quais me entendo imediatamente e outras que podem ser muito consideradas intelectualmente e que têm essa imbecilidade militante, que até pode nem ter nada a ver comigo, mas que observo. Uma das razões porque escrevo é porque observo. Posso estar a cortar o cabelo e a observar comportamentos. Há um filme do Cukor chamado «Mulheres» que tem uma cena de cabeleireiro genial. Às vezes vejo mulheres que têm muito dinheiro, ou cujos maridos têm muito dinheiro, portarem-se de uma forma tão imbecil e ordinária com alguém que está a arranjar a unha do pé ou a limar a unha da mão, que me faz ter um absoluto horror a esse tipo de gente, a essa autoridade fundamentada em nada.

 

É quase uma improbabilidade pensar em si no cabeleireiro com a cabeça envolvida em pratas.

As mulheres todas juntas têm imensa piada!

 

Envolve-se nas conversas ou distancia-se no reduto da observação?

Não converso com as outras senhoras, posso conversar com a pessoa que está a arranjar-me o cabelo. Os cabeleireiros das mulheres são como os barbeiros dos homens: são lugares de conversa. Mas gosto sobretudo de observar.

 

Tem alguma grande amiga mulher?

Sim, claro. Talvez tenha mais amigos homens, mas tenho amizades e cumplicidades femininas.

 

A cumplicidade é alicerçada nesse universo de cabelos e roupas?

Sim, as mulheres falam todas da mesma coisa, não é? Não estão a discutir Kant nem Sartre nem o último livro da Simone de Beauvoir! As mulheres riem-se umas com as outras e discutem os namorados, as compras, as dietas, a côr do cabelo, o envelhecimento. Há um livro muito engraçado, «O Diário de Bridget Jones»; a autora, Helen Felding, diz que escreveu o seu primeiro romance sobre uma mulher que dirigia um campo de refugiados no Sudão e vendeu três exemplares. Escreveu um sobre uma jornalista medíocre e frustrada que está sempre a contar os cigarros e o álcool e vendeu milhões. Porquê? Porque evidentemente ninguém está interessado na história da Marie Curie! E os homens também se riem. O próprio Salman Rushdie diz que se riu imenso com o livro.

 

No livro «Ponto pé de flor» da Clara Pinto Correia fala-se de ceras depilatórias e de tintas de cabelo e a sua crítica foi cáustica.

Fui irónica. O livro não tinha graça. Provavelmente era uma escrita muito bordada, muito lavor feminino – já não me lembro bem porque foi há imensos anos. A Tereza Coelho também não gostou e a Clara Pinto Correia, não sei se foi a mim se foi à Tereza Coelho, respondeu dizendo que não percebia porque é que dizia aquelas coisas do livro uma vez que tinha mudado de cor de cabelo 30 vezes! [riso] Isso já tem piada, por exemplo!

 

Acha graça se mantiver essa tal distância aristocrática.

Não tenho nada, não tenho distância aristocrática nenhuma. O Eduardo Prado Coelho chamava a isso Escrita de Soquettes, creio eu, ou era a ela ou à Inês Pedrosa. Provavelmente ninguém se lembra que o EPC disse aquilo e toda a gente se lembra do que eu disse.

 

O que persiste pelos anos fora é o fait divers.

É sempre o fait divers. Quem é que se lembra da minha crítica sobre o Henry James? As pessoas gostam é da anedota, e eu também.

 

O fenómeno mais recente da literatura portuguesa é o da Margarida Rebelo Pinto. O seu universo corresponde a esse tradicional feminino.

Nunca li. Em todos os países existem pessoas que escrevem aquele estilo supostamente frívolo. Não percebo porque é que em Portugal isso causa um tal espanto, que é, enfim, também uma maneira de vender o livro. As audiências very light, que não gostam de ser chateadas com coisas muito complicadas, sempre existiram. Os jovens são uma audiência very light; num mundo saturado pelo audiovisual, é pouco provável que lhes apeteça Proust e Joyce e Kafka.

 

Quando é que teve apetência por esses autores? Há uns anos os meninos liam livros espessos nas férias grandes sem terem maturidade para entender o que lá estava.

Sempre li antes do tempo. Ia por intuição. Praticamente não leio autores do meu tempo. A partir de certa idade percebe-se que o tempo é muito curto. Tenho muitos livros aos quais quero regressar. Uma das razões porque deixei de fazer crítica literária é porque há um número finito de coisas que posso dizer sobre um autor. Posso escrever duas vezes sobre o Garcia Márquez; à quinta vez já não tenho nada para dizer. E há coisas que não leio, simplesmente. Quando digo que não leio a Margarida Rebelo Pinto, também não leio outros. Leio quando admiro o autor, e faço isso com três ou quatro pessoas. A minha curiosidade não é suscitada por livros publicados em Portugal. Sou uma anglo-saxónica. Leio quase tudo em inglês e abasteço-me na Amazon. Quando era criança adorava ir à Feira do Livro, era o momento alto do meu ano. Hoje vou à feira do Livro e não tenho nada para comprar.

 

A sua relação com o Cardoso Pires era muito próxima. Imagino que tenha sentido muito a sua morte.

Talvez o maior amigo de todos os escritores fosse o Zé Cardoso Pires. É uma amizade que me faz muita falta.

 

Os escritores entre si não falam de literatura, não é verdade?

As pessoas não falam de literatura. Assim que se apanham juntas num jantar falam é da vida. A vida é mais interessante, apesar de tudo. Fala-se do que se fez anteontem, contam-se anedotas. Os escritores normalmente nem lêem outros escritores, a não ser quando vão lá vigiar, ou quando há uma relação de amizade. Exceptuando isso, vivem fechados no seu mundo interior. Escrever é uma actividade horrível. Demora muitas horas a apurar, ao contrário do jornalismo.

 

Não parece que as suas crónicas sejam escritas numa hora.

Não são, apesar de ter ganho aí uma velocidade de cruzeiro, digamos assim. Mas escrever um livro é um trabalho que nos separa totalmente da vida. Senta-se de manhã ao computador, está o dia inteiro a escrever, o mundo deu duas voltas, passaram-se imensas coisas: gente foi raptada, um avião caiu, dois namorados desceram a rua. Milhares de coisas se passaram no mundo, mas esteve todo o tempo dentro de um mundo criado por si. É uma coisa completamente autista, fechada ao mundo externo: não pode ter interrupções, conversas ao telefone

 

É por tudo isso que ainda não conseguiu escrever o seu romance?

Nem consegui ainda reunir as crónicas para publicar! O romance? Tenho uma espécie de handicap relativamente à publicação, vou refazendo tudo até ao fim. Mas trata-se sobretudo de falta de tempo. Eu devia, se pudesse, mas não posso, abandonar rapidamente o jornalismo e não fazer mais nada senão escrever. Mas isso é extremamente difícil, porque toda a gente precisa de ganhar dinheiro. E também porque teria de prescindir de viver para escrever, o que me maça. Gosto de viajar e de estar com pessoas e de ver exposições. Não gosto muito de vida social, e em Lisboa não faço nenhuma, mas gosto muito de perder tempo com outras coisas.

 

Quantas vezes começou o seu romance?

Diversas vezes. Mas escrevia horrivelmente ao princípio, ainda bem que nunca publiquei! Já teria para aí três maus romances dos quais me envergonharia! Sim, sim! Só agora é que começo a ver com alguma nitidez como é que escrevo. Escrevia com muitos adjectivos!, era uma amálgama de coisas que tinham coerência interna mas que não tinham importância narrativa. Há pessoas que tem muito talento aos 30 anos e escrevem romances geniais. Não há muitas... Estou muito grata a mim mesma por não me ter precipitado. Um era um verdadeiro horror!, começava no cemitério!...

 

Eram sobre quê?

Sobre nada. Eram ficção, repassada de uma autobiografia e de influências. E depois o jornalismo dá vícios de escrita terríveis. A minha pasta no Expresso é um monstro! Se fosse reunir, como fazem os ingleses, um volume de crítica literária, um volume de jornalismo, um volume de não sei quê, já tinha sete ou oito livros escritos. Aviava prosa a uma velocidade tal, e nos intervalos ia escrever umas narrativas profundamente débeis que tive a decência de nunca publicar.

 

Mostrou a pessoas próximas?

Não, não mostro nada a ninguém. Depois de publicada [a crónica], a única coisa que faço é ver se não tem gralhas, e normalmente tem; ou gralhas que se fazem porque se estava distraído ou gralhas que aparecem nos jornais. Deixam-me absolutamente doente. Por mim, escrevia-as e ia trabalhando o resto do tempo e já nem as publicava.

 

Tem a noção de que inevitavelmente vai escrever e publicar?

Inevitavelmente.

 

O facto de ter sido mãe adiou o seu projecto?

Absolutamente. Nos primeiros anos de vida, até a criança ter uma autonomia e o seu próprio mundo, não há hipótese de fazer as duas coisas. Quando se fala da Silvia Plath; é evidente que era uma personalidade depressiva e auto-destrutiva. Mas imagino, quando o Ted Hughes a abandonou, ainda por cima por outra mulher!, imagino o horror, com os filhos, sozinha, a tentar escrever. A maioria das escritoras não tem muitos filhos, a Duras, a Yourcenar, a Virginia Woolf. Não vê escritoras como o Tolstoi com uma filharada. Os homens são muito espertos. Têm normalmente uma mulher extraordinária que lhes organiza a vida e sem a qual o génio não teria existido. Porque a vida é muito complicada. O Martin Amis dizia que não era capaz sequer de passar um cheque; saía de casa, ia para um apartamento escrever, depois voltava a casa. Se olhar para a história da literatura, não vê nenhum homem a fazer esse papel que a mulher do escritor tem feito.

 

Há entre nós o caso raro da Agustina. O marido ocupa-se dos manuscritos.

A Agustina é uma mulher genial! É das mulheres mais inteligentes que conheço, é extraordinária no verdadeiro sentido do termo.

 

Em que é que mudou a sua vida com a maternidade?

Fui mãe com 37 anos. Em que é que mudou? Mudou tudo. As rotinas, a restrição da liberdade.

 

Numa crónica falava de uma experiência arriscada no Peru e de outras reportagens de guerra que fez nos anos 80. Pergunto-me se as faria igualmente, insistindo na imprudência.

Foi uma idiotice! O fotógrafo já se tinha vindo embora, e eu não disse a ninguém, a não ser ao Joaquim Vieira que era o editor da Revista, que ia para Ayacucho. Aquilo era o centro do Sendero [Luminoso]. Arranjei um avião e fui. Foi uma situação em que poderia ter sido morta, fiquei três dias fechada numa igreja. Lembro-me que tinha medo que me cortassem as mãos, tinha aparecido o cadáver de um jornalista a quem tinham cortado as mãos. Foi uma daquelas parvoíces que hoje não faria.

 

Em Portugal quase não se faz reportagem de guerra.

Apareceu um caso interessante, o Pedro Rosa Mendes, que começou a fazer um trabalho excelente sobre a guerra em Angola. Eu, genuinamente, é a única coisa que gosto de fazer em jornalismo. É por isso que odeio o herói óbvio, o tipo que pensa que por ser entrevistado na televisão é importante. Tenho admiração pela gente vulgar que mantém em situações de extrema violência, de extrema dificuldade, uma coragem e dignidade, e que recomeça a vida todos os dias. Passei muito tempo, por exemplo, com os palestinianos no fim da guerra do Golfo. Conheci um que tinha estado preso e sido torturado; estava sob prisão domiciliária. Nada naquele homem o tinha definido à partida como herói. E no entanto, era uma pessoa com uma coragem física e moral!, percebe, o tipo de pessoa que dá depois um Nelson Mandela. São pessoas a quem pode fazer tudo: são torturadas, são presas, voltam a ser torturadas, e isso não muda um idealismo, uma convicção na justeza das razões da causa! Conheci gente dessa também no Peru, com um nível de pobreza... Só quando se vai ao Terceiro Mundo...

 

É um embate, não é?

Toda a gente aqui se deprime porque há muito trânsito e muitos buracos em Lisboa e porque a vida é muito agressiva. Não se imagina o que é viver no Terceiro Mundo. Assistir à concentração de miséria e violência que há numa favela em Lima ou no Rio de Janeiro ou na Índia muda a cabeça. Como muda a cabeça ver alguém levar um tiro. Vi um miúdo de nove anos a levar um tiro. Nunca mais se é a mesma pessoa a partir daquele momento.

 

Qual é a primeira reacção?

A sensação que se tem de é incredulidade. Ver uma criança que está viva e depois vê-la cair, é uma experiência terminal. Os grandes fotógrafos de guerra não podem já voltar à vida normal. A absoluta indecência que é haver tanta gente a viver daquela maneira...

 

Falávamos do que mudou na sua vida depois da chegada de uma criança.

As pessoas ficam mais macias, mais pacientes. Reaprende-se uma certa inocência. Rearranja-se toda a lista de prioridades. Arranja-se tempo.

 

Porque é que teve a criança?

Bom, não gosto muito de falar disso, já entra por terrenos da minha vida privada. Foi uma coisa inesperada que mudou, de facto, a minha vida. Não se tratou de «Agora tenho 37 anos e preciso de ter um filho porque estou a envelhecer». Mas uma criança, veja o que aconteceu a uma mulher como a Madonna.

 

Admira a Madonna?

Acho imensa piada. Certamente ela não é a mesma depois de ter aquela criança.

 

Houve um tempo, nos anos 80, quando integrava a equipa maravilha do Expresso, que a sua vida era mundana.

Sim, todos nós éramos muito mundanos! Passámos os anos 80 fora de casa e a viver de noite.

 

Como olha para esse tempo e para essa equipa? É a única que permanece no Expresso.

Foi um momento prodigiosamente divertido! Havia um grupo à volta da revista e da personagem que era o Vicente Jorge Silva. São fenómenos um bocado irrepetíveis. As pessoas envelhecem, casam, descasam-se, têm filhos, vão para o estrangeiro. As vidas das pessoas mudaram. Enquanto durou, foi um período extraordinário.

 

Era a única mulher do grupo?

Da mesma faixa etária, com mais preponderância, talvez fosse a única mulher, sim. Também éramos muito poucos, até nos chamavam o Grupo dos Quatro. Éramos meia dúzia de gatos pingados e fazíamos aquilo sozinhos. Se duas pessoas não trabalhassem nessa semana, paravam a Revista. Trabalhávamos que nos matávamos. Discutíamos terrivelmente uns com os outros: livros, filmes, exposições, viagens. Havia rivalidades porque há sempre, mas tudo era feito com uma grande intensidade. Depois as pessoas vão fazer outras coisas.

 

Porque é que nunca saiu do Expresso?

As pessoas que saíram foram fazer jornais ou projectos delas. O Miguel [Esteves Cardoso] saiu para fundar O Independente, o Vicente [Jorge Silva] foi fazer o Público e levou uma parte grande da equipa. Tive uma experiência como editora, e não tenho nenhuma vocação. Rouba muito tempo. As pessoas que vão fazer projectos próprios não querem ser poetas nem romancista, são jornalistas que gostam de editar. A certa altura fiquei muito assustada porque não conseguia ter tempo para ler, não conseguia já escrever. Não tenho nada esse espírito empreendedor de ir fundar coisas. Pondo a metáfora nas artes plásticas, posso participar numa colectiva, mas o meu trabalho é profundamente individual e feito em solidão. Tenho hoje uma enorme dificuldade em escrever numa sala em que esteja outra pessoa; uma redacção já é difícil para mim.

 

Chega a ir ao Expresso ou manda tudo por email?

Chego a ir, evidentemente, mas não estou lá em permanência. Nós vivíamos no Expresso, a casa era o jornal. Houve uma altura em que havia um chuveiro! Há uma parte no projecto jornalístico que é este. Quando começa um grande projecto, vive lá, acampa, não há outra maneira de fazer as coisas senão viver dentro do jornal e em comunidade.

 

Esta forma de vida, romântica, era a que imaginava quando era menina?

A única coisa que gosto de fazer é ler e escrever, desde sempre. É o único projecto de vida que tenho. Se não publicar livro nenhum, isso não me assusta particularmente. Se conseguir fazer uma coisa bem feita, mesmo que nunca veja a luz do dia, mas de que goste, esse é o meu projecto de vida.

 

Porque escolheu Direito? Seria mais previsível que fosse para Letras.

Havia dois cursos interessantes para mim, Direito e Medicina. Tenho muitos amigos médicos, que é uma coisa curiosa. Mas tinha horror à matemática. Letras não me atraía porque na altura era Histórico-Filosóficas, em que não se aprendia nem História nem Filosofia. Direito tinha uma boa capacidade de abstracção, uma certa aridez que era atraente. Havia uma parte relativa à encenação de tribunal e achava alguma carga dramática nisso. Uma idiotice! Não conheci nenhum professor interessante, manduquei as sebentas umas atrás das outras, cheguei a fazer cadeiras marrando uma sebenta uma noite!

 

Como é que chega ao jornalismo?

A advocacia não me interessava nada. Vou parar ao jornalismo assim de um dia para o outro. Quem me convida para escrever na Tarde foi o Nuno Rocha, e depois vou para o Correio da Manhã, um tablóide. Depois então é que tive a experiência política no gabinete de imprensa do Mário Soares. Tenho uma grande curiosidade acerca de outros trabalhos. O próprio jornalismo ao fim de certa altura é muito repetitivo. Apeteceu-me ver uma campanha eleitoral do outro lado.

 

Uma opção que os fundamentalistas não vêem com bons olhos.

As pessoas têm ideias muito restritas sobre isso.

 

Além da inteligência analítica de que falávamos no início da entrevista, parece habitá-la um romantismo.

Ah, sou uma romântica, posso não parecer. A escrita ainda é um lugar romântico. As pessoas que resolvem escrever, que é uma coisa tão mal paga, tão ingrata...

 

Tinha a ideia de que o seu estatuto era particular em relação ao grosso do jornalismo português.

Repare quanto é que ganha o meu dentista e quanto é que eu ganho! Quanto ganha um advogado e quanto ganha um jornalista por mais bem pago que seja. Quanto é que ganha um administrador?!, que é um dos trabalhos mais vagos do mundo. Quando o Saramago ganhou o Nobel toda a gente estava preocupada com o dinheiro; sendo o maior prémio do mundo e sendo algum dinheiro, por comparação com qualquer fortuna ganha por um ricaço que faz especulação no mercado bolsista, é ridículo.

 

É possível ganhar muito dinheiro com os livros?

Creio que há dois escritores em Portugal que ganham muito dinheiro por causa das traduções e do que vendem lá fora, o José Saramago e o António Lobo Antunes. Vê grandes milionários a escrever livros? Mesmo em França. Em Inglaterra já há quem ganhe, porque recebem avanços. A escrita é muito mal remunerada. Por comparação com o que ganha um apresentador de televisão? É obsceno! O que você ganha para dizer «Boa Noite, Patati Patata»!, que não dá assim muito trabalho, o que dá é a cara, que é uma chatice. É obscenamente bem pago! Porque é que o entretenimento há-de ser tão bem pago e a escrita não há-de ser bem paga?

 

Concordo absolutamente. Quando acedeu em fazer televisão foi pelo dinheiro?

Sem dúvida nenhuma. Admitindo que houve coisas que me deram imenso prazer. Mas tenho horror a ser fotografada, a aparecer. Nunca vi um programa meu.

 

Como é que lida com a sua imagem?

Nem mal nem bem, é-me indiferente.

 

O que é que a levou a aceitar esta entrevista? Só me lembro de a ter visto numa produção antiga, com o seu filho bebé, para a Marie Claire.

Normalmente não dou e digo logo que não. Mas há sempre alguém que me convence. Para a Marie Claire foi a Inês Pedrosa. O trabalho de exposição incomoda-me terrivelmente.

 

Expõe-se bastante nas suas crónicas.

Mas não apareço. E não me exponho muito. É a mesma coisa que dizer que um escritor se expõe naquilo que escreve.

 

As pessoas acusam-na de ser egocêntrica.

Não há ninguém que escreva que não seja, não há outra maneira. Só tem um lugar para ir buscar tudo aquilo que deita cá para fora, que é você mesma. A escrita são sempre ficções. Esta história do jornalismo objectivo é uma parvoíce. A partir do momento em que a realidade está a ser descrita, ela já está a ser ficcionada, filtrada pelos seus sentidos. Mas há momentos em que a troca de opiniões é boa, é rica. Uma pessoa que vem ter comigo na rua e me diz uma coisa, (acontece-me quase todos os dias), às vezes é quase comovente, palavra de honra. Por outro lado, no meio, como em todos os meios, há invejas e complexos de inferioridade, que me deixam completamente indiferente. Só me interessa o juízo dos pares que eu respeito e com os quais me dou pessoalmente.

 

Como reage quando essas pessoas não gostam?

Fico inquieta, fico bastante inquieta. Na televisão, por exemplo, houve programas atrozes, em que estava murcha; se alguém me diz isso, tomo atenção, porque é uma pessoa cuja opinião tenho em conta. Meio jornalístico? Depois desse período glorioso do Expresso, depois desse grupo que se separou, nunca mais tive grupo. Mesmo essa gente, vemo-nos muito pouco.

 

É interessante pensar no que sobrevive no tempo.

Nessa fase você absorve tudo, aprende tudo, experimenta tudo. Depois começa a elaborar essa experiência autonomamente. É o período da vida e o período da escrita. Nesse período, o jornalismo, além de ser uma profissão profundamente romântica, possibilitou-me viajar pelo mundo inteiro, conhecer pessoas interessantíssimas, que admirava e que entrevistei. O Expresso dava liberdade e meios, enfim, muito menos que hoje, mas dava os meios para as pessoas poderem fazer certas coisas. Se me tivesse fechado aos vinte e tal anos a escrever, hoje tinha três ou quatro livros de moda, idiotas, e tinha desaparecido. Nem teria aprendido nada, nem teria treinado a mão. Para muita gente que escreve, o jornalismo é uma fase.

 

Na altura do Nobel escreveu que o Saramago a tinha aconselhado a abandonar o jornalismo e a concentrar-se na escrita.

Ainda há pouco tempo a Pilar me voltou a dizer isso.

 

O que pensei foi que precisava desta aprovação, deste reforço de pessoas que ganham o Nobel.

Não é uma aprovação, é um gesto de amizade. Elas já não me reforçam. O que me dizem, pelo contrário, é que me estou a desperdiçar, a perder o melhor de mim. Mas se recebesse agora uma herança de um tio da América, dava-me imenso jeito!

 

A incontornável questão...

As pessoas acham que o modo como escrevo não é já jornalístico. Nunca fiz jornalismo em moldes tradicionais. O que fazia, nem era bem novo jornalismo, mas eram experimentações dentro do género. Evidentemente sem falsear os factos, a prosa jornalística pode oferecer a possibilidade de uma certa criação, que acho fascinante. Não conseguiria escrever de outra forma. Eu não sou jornalista, não sou escritora, não tenho uma categoria precisa. A minha versatilidade nas crónicas é enorme. Sou um bocado maverick.

 

A primeira palavra que me ocorre para aplicar à sua escrita é água.

Porque corre? Se quiser vejo-a mais como um trabalho de quem está a fazer um tapete, simultaneamente preocupado o lado mecânico (manual ou do tear) e o lado artístico (a escolha das cores, o desenho). Seria como fazer um tapete de cerzidura complicada, com pontos diferentes, em que estou preocupada não com uma mas com várias coisas ao mesmo tempo, e sobretudo com o efeito final. Não é muito diferente da composição musical. Tem um número finito de palavras, são sempre as mesmas palavras – como dizia o mau compositor, «Não percebo porque dizem que sou mau, porque eu componho com as mesmas notas com que Beethoven compôs!». O modo como vou repartindo as palavras, e aí tenho alguma preocupação que a escrita escorra e corra, que tenha um sentido. Vou ouvindo a música, e nem sempre se ouve a música.

  

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2000

 

 

  

Assumpta Serna

04.02.15

Foi Almodóvar que a deu a conhecer ao mundo, ao lado de Banderas, num filme marcado a sangue, de nome «El Matador». Precisamente a meio dos anos 80.

Esta chica mudara-se de Barcelona para Madrid nem dez anos antes. Servira de emblema ao impulso panfletário de uma geração, aparecera como flor de carne em filmes despudorados, fora revigorada pela coloração intelectual de Carlos Saura. Em menos de dez anos, a chica do lado desistira de levar uma vida normal. Como no universo idiossincrático de Amodóvar, vivia tensões familiares, expressava-se com o corpo, distendia-se sensualmente. Vivia na borda da vida. Com uma alegria efervescente que lhe deixou rugas junto aos lábios. De que gosta muito, «que não trocaria por nada». Não se acredita, contudo, que tenha alguma vez sido uma chica à beira de um ataque de nervos. Sobretudo depois de se assistir a temperança que as próximas páginas confirmam. Há até um elemento trágico, guardado para as últimas linhas. (Não houve corte e costura: respeitei a ordem da conversa; uma tal confissão soaria mal ao cabo dos primeiros minutos. O pathos vem mesmo no fim).

O filme de Almodóvar foi talvez o mais importante; é desse, pelo menos, que falam. Mas há dezenas de outros filmes, rodados no mundo inteiro, interpretados em várias línguas. Anos antes de Hollywood ouvir falar de Penélope Cruz, ela já era a mais internacional das actrizes espanholas.

Portugal teve-a, no auge do sucesso, pela mão de José Fonseca e Costa n’ «A Balada da Praia dos Cães». Há três semanas esteve em Lisboa a convite de Patrícia Vasconcelos a dirigir um workshop na escola Act. Ajudar jovens actores em formação é uma das suas apostas. A comprová-lo, o livro que escreveu há dois anos e que traduz a sua experiência, e a escola de representação que espera instalar nos arredores de Madrid.

Assumpta Serna estendeu-se sobre o puff, imenso, ao fim do primeiro dia do workshop. Estendeu-se confortavelmente. A conversa foi aí.

  

O seu nome é Assunción?

Sim, mas não o reconheço como o meu nome. Assumpta, que é o meu nome em catalão, apareceu pelos 12, 13 anos. Suponho que para me distinguir da minha mãe, que também se chama Assunción.

 

Imagino que em espanhol, como em português, tenha uma conotação religiosa.

Mais do que pensar na assunção da virgem aos céus, gosto de pensar na pessoa que não está nem no céu nem na terra, que está sempre dividida entre os sonhos e a realidade; nesse caso, já me identifico com Assumpta ou Assunción.

 

Continua a ser um nome comum em Espanha? Em Portugal, nomes com carga religiosa como Glória, Lourdes, Luz, deixaram de se usar.

Agora há muitas mais Assumptas. Penso que é um pouco por minha causa... Mas tem razão, Assunción deixou de se usar.

 

Se tivesse uma filha, que nome lhe poria?

Como estou casada com um escocês, seguramente seria um nome que pudesse ser dito da mesma maneira nas duas línguas, e que não fosse muito exótico para a família do Scott. Se tivesse uma filha... Se tivesse um filho... Quando se decide ter um filho, já há a ideia de perpetuação. Julgo que não lhe imporia a mesma cruz que carreguei tantas vezes: [soletra com acento inglês, e rapidamente] A-s-s-u-m-p-t-a, Assumpta. [repete em francês] Repeti o meu nome a vida toda, em todas as línguas.

 

Como lhe chama o seu marido?

A mim? Sweetie.

 

A sua educação foi religiosa?

Sim, mas não muito. A minha irmã chama-se Glória. Julgo que eram os nomes que se utilizavam então. Os nossos pais educaram-nos catolicamente, sem alguma vez serem fervorosos. Ambos trabalhavam, e tinham uma mentalidade aberta para a época. O meu pai era engenheiro industrial e a minha mãe secretária de direcção. Trabalharam na mesma empresa 30 e picos anos!, onde se conheceram e acabaram a sua vida profissional. A minha irmã é mais velha seis anos, tem dois filhos e é médica.

 

A vida da sua irmã seguiu uma rota mais comum e previsível a uma burguesia catalã. No seu caso, foi até ao terceiro ano de Direito e, de repente, as coisas mudaram. Há alturas em que inveja a vida da sua irmã ou regozija-se com a irregularidade do seu percurso?

É evidente que nesta profissão há que renunciar ao que se chama uma vida normal. Mas depressa se aprende que nada é normal. Toda a gente tem paranóias, medos. Realmente nada é normal. Do que me dou conta é que quis ser diferente; não aconteceu ter sido diferente, apenas, pelo facto de esta profissão impôr uma diferença. Procurei sempre o caminho mais difícil, mais distinto. As coisas teriam sido mais fáceis se tivesse aprendido com os outros, com os meus pais. Se tivesse sido menos rebelde. Sempre gostei de averiguar as coisas por mim mesma, ir por todos os cantos e becos e encontrar a minha solução. Talvez por isso tenha escolhido fazer teatro.

 

Como assim?

Não quis pertencer a nenhum sítio, não quis pertencer à burguesia; e o que reunia melhor estas condições, era o trabalho de actriz. Uma actriz um dia é uma rainha, outro dia... A diferença, o ser diferente, foi o que marcou a minha vida. Ser pioneira, por exemplo, em sair de Espanha e ir para a América, pioneira por falar muitas línguas e viver em muitos países. Muita gente contentar-se-ia fazendo teatro e não sairia da Catalunha.

 

As personagens mais famosas que interpretou eram mulheres perturbadas, que experimentavam situações limite, muitas vezes relacionadas com o sexo. Personagens que não encontraram ainda o seu caminho e equilíbrio.

Sim, sim.

 

De certa forma, foi também o seu percurso, o da procura do seu próprio caminho.

No cinema e no teatro evidentemente tem de haver drama, conflito; uma pessoa equilibrada, no cinema, é aborrecida. O desiquilíbrio fá-los interessantes. Se é verdade que as minhas mulheres são habitualmente fortes, acostumadas a matar, ou a ser assassinadas...

 

E a sofrer e a fazer sofrer.

As duas coisas, sim. De um modo geral, gostei de todas essas que fiz. Quando tinha 20 anos, ofereciam-me papéis de mulheres de 30 e 40. Para mim sempre foi um choque, aos 20 e picos estar já a fazer papéis de 30 e 40. Não me podia relacionar bem com os problemas que tinham essas mulheres, não os tinha ainda vivido. Aos 40 é quando a mulher é mais rica, é quando tem uma profundidade nos actos e nas escolhas. E não há filmes que reflictam essas mulheres, essa complexidade. Essa profundidade está reservada aos homens. Há filmes de mulheres sedutoras.

 

O cinema é muito mais cruel para a mulher. Sendo uma mulher tão bonita e tendo desempenhado a vida toda mulheres fatais, custa-lhe assistir ao seu envelhecimento? E não falo das implicações que isto tem na sua carreira, mas no seu encontro consigo frente ao espelho.

Estou muito mais contente com as minhas rugas do que com a minha juventude. Entendo mais coisas, entendo porque foi cada ruga, sabe? É um processo de entendimento de mim mesma. As rugas da testa são as de uma necessidade de reflexão que tenho desde há 10, 15 anos; o cansaço atira-me os olhos para baixo; estas arcos [rugas do sorriso junto da boca] resultam de encarar sempre a vida com alegria.

 

Já não é importante sentir-se desejável, admirada na sua extrema beleza?

É que para mim nunca foi importante. Nem quando tinha 20 anos. Em todas, todas as entrevistas perguntavam-me sobre as cenas de sexo, sobre o fazer amor; às pessoas parece sempre que aquilo não tem que ver com a profissão, como se estivesse realmente a ter sexo, o que é curioso... Então, em filmes como «El Matador», ou outros, em que tive de definir a minha personagem através do sexo, tentei que essas cenas servissem para informar o público sobre o modo de ser da minha personagem. Sempre quis que se me vissem os olhos, sempre lutei para não perder esse contacto com o público, nunca. Também nas cenas de sexo, o importante era a ideia de comunicação com o outro.

 

Sempre teve noção do seu poder erótico?

Penso que soube conectar-me com o sexo, ou com o erotismo, ou com a sensualidade. Preferia falar de sensualidade, é mais completo. Como agora. A sensualidade que tenho agora é muito mais interessante. Há um cúmulo de experiências que posso verter nas minhas personagens. Se vivermos bem a vida, se não nos fixarmos apenas numa coisa, apenas no seu lado externo, podemos aprender muito. Se se estiver fechado na beleza, pode-se ter problemas como actor e como pessoa. O denominador comum do que se pensa ser a beleza pode cair com o tempo. Uma mulher é muito bonita quando tem rugas. As rugas da Katherine Hepburn?, eu não as trocaria por nada!

 

A beleza foi decisiva para firmar a carreira, em Espanha e internacionalmente?

Em Espanha, quando comecei, havia uma necessidade de nos expressarmos sensualmente. Tínhamos estado 40 anos reprimidos, tínhamos necessidade de abrir essa garrafa de champanhe. Tocou-me a mim, por geração.

 

Fê-lo sem pudor?

O pudor nunca teve muito valor para mim.

 

Nem em casa?

Se mo ensinaram, rebelei-me. Não me recordo se mo ensinaram... Sempre vi o pudor como algo negativo. É bonito darmo-nos aos demais como somos, sem ter que esconder coisas, sem qualquer tipo de barreiras. Não me pareceu que existisse uma exibição da minha parte. Era simplesmente uma maneira de ser. Em qualquer fealdade pode encontrar-se luz, beleza; não se encontra nunca beleza no medo. O pudor parece-me um produto do medo.

 

O primeiro filme em que participou continha alguns ingredientes, como o comunismo e o amor livre, que explodiram depois da morte de Franco. Os filmes foram uma extensão do seu percurso pessoal, uma afirmação da sua geração?

Exactamente. Por isso, o filme teve tanta aceitação e representou realmente uma mudança. Precisávamos de expressar-nos assim, porque era assim que procurávamos. Toda a gente é produto de uma geração; a minha aprendeu muito rapidamente a distinguir as coisas boas das más, tinha muito claro quem era o ditador; agora, está tudo um pouco mais confuso. Por acaso não me sinto muito desconectada dos que têm agora 20 anos - o meu marido é mais jovem que eu. Há uma coisa, apenas, que une as duas gerações, que é o dinheiro, a sensação de êxito que se tem quando se tem dinheiro. Também aí me rebelei: não escolho os projectos por dinheiro, escolho-os porque me agrada fazê-los. Evidentemente tenho de fazer projectos por dinheiro. Mas a experiência diz-me que onde disfruto mais, e isto é muito claro, é onde não há dinheiro. Porque as pessoas têm mais paixão.

 

Em 78, três anos depois da morte de Franco, mudou-se para Madrid. As peças de teatro em que participara tinham um cunho político forte? Tinha 21 anos, o que é que ambicionava?

A geração anterior, a das mulheres e homens de 30 anos, viveu muito mais intensamente o anti-franquismo. É evidente que a minha geração também sentiu a ditadura, mas havia coisas a mudar; por exemplo, a minha irmã não pôde estudar catalão na escola, eu pude. A minha família não era muito politizada, nem num sentido nem noutro. Mas o meu namorado era trotskista e próximo da Liga Revolucionária; tinha um pai militar e fascista, e tornou-se absolutamente vermelho - essas coisas que acontecem nas famílias... Participámos em manifestações da Liga, e tive uma época revolucionária: pus bombas, cocktails molotov. Como toda a gente. Era o comprometimento daquela geração.

 

A ligação à política era, então, uma consequência do seu namoro.

Sim, respeitava-o muito. E tinha um sentimento de justiça muito forte, porque também em casa me rebelava. Queria estudar teatro e cinema, o meu pai queria que estudasse Direito. A minha luta foi para poder expressar-me mais livremente, e não tanto a luta de um partido político. Então, tudo o que dizia respeito a liberdade de expressão, entendia-o. Não fui nunca de um partido. Se tivesse de posicionar-me, seria ao lado dos anarquistas, sobretudo os da Catalunha. Nunca gostei dos partidos comunistas.

 

Mudou-se para Madrid quando percebeu que queria ser actriz?

Percebi-o antes, quando tinha 13 anos, por aí. Os meus pais tinham uns amigos cujos filhos estudavam teatro. Eu não entendia muito bem, «Que é isso de fazer teatro?». Fui vê-los um dia e gostei muitíssimo. Falavam de coisas muito interessantes, e eram muito mais liberais. Pedi para frequentar essa escola, e aos domingos entre as sete e as onze fazíamos teatro; como havia professores que eram padres, deixaram-me, não seria nada de mal... Depois, comecei a gostar cada vez mais e queria fazê-lo profissionalmente. Tive de pactuar: «Fazes Direito e deixo-te estudar teatro». Os meus pais nunca pensaram em mim como actriz e quando fiz o meu primeiro filme não gostaram muito...

 

Viu o filme com eles?

Houve uma época de fricção em que não nos entendíamos, em que não podíamos escutar-nos. E «La Orgia» não é um filme fácil para os pais verem. Já o título... Digamos que foi ao cabo de anos que voltámos a encontrar-nos. Percebi que muitas das coisas que fiz, muitas das escolhas da minha vida, estavam motivadas pela rebeldia. Não é uma coisa boa... A minha escolha não era livre, tinha que dizer que não, incarnar o papel da rebelde. Há muitas pessoas que passam a vida toda lutando contra o pai ou querendo provar ao pai ou à mãe... Não sei se precisaria de fazer análise, não sei se um actor precisará tanto de fazer análise. Estamos sempre investigando como somos, como são as nossas reacções e emoções. Estamos mais ligados a nós mesmos. As pessoas comuns põem mais barreiras; nós temos justamente de não ter barreiras para poder interpretar muitas pessoas. A própria profissão faz a limpeza. Esta profissão conduz a um entendimento de si mesmo. É uma profissão muito humanista.

 

Carlos Saura deu-lhe a primeira grande oportunidade, fundamental para alicerçar a sua carreira, com «Dulces Horas», em 81. Queria ser uma star?

Nunca, nunca, nunca. Saura deu-me um coloração intelectual; os filmes que resultaram da minha colaboração com Saura foram os europeus. Mas realmente o que me fez dar o salto foi a participação em «El Matador», em 85, no momento em que Almodovar começa a ser conhecido fora. Quando o filme estreou em Hollywood, assinou com a Orion um contrato de 2 milhões de dólares pelos direitos da película seguinte. O que sucedeu foi que um lobby de intelectuais, e, porque não dizê-lo, de homossexuais, que respeitavam muito o trabalho de Almodovar, decidiram atirá-lo para a ribalta. Não é que a estreia de Almodovar tenha sido extraordinária, como é agora, como é uma estreia de Banderas; não, estava confinada a uma grupo de pressão, mas muito distinto. Eu aproveito um pouco a situação: na estreia vou a Los Angeles, conheço uma série de gente interessante e penso em ficar.

 

Usufruiu da circunstância de o filme se tornar um objecto de culto.

Exacto, um objecto de culto. Esse contacto deu lugar a filmes interessantes. Filmes de cinema independente, como «Chains of Desire». Mas daí saiu também o «Falcon Crest»...

 

Como é que a convidaram para a série?

Encontrava-me em Hollywood para fazer um filme chamado «Naked Tango», já tinha a casa alugada, inclusive. De repente o filme falhou, e durante a semana surgiu a possibilidade de fazer a série. Não sabia se havia de fazê-la ou não... Por fim, decidi fazê-la, por oito semanas. Foi interessante, mas era a primeira vez que rodava em inglês, e as séries americanas são muito rápidas: dão o texto no dia anterior e é preciso estudá-lo... Mas fi-lo.

 

Em termos de popularidade, o que é que lhe trouxe uma «soap» como o «Falcon Crest»? Passou no mundo inteiro.

«Falcon Crest» estava na época de máxima audiência. A seguir não fiz nada, claro! Tratava-se de «Falcon Crest»!, do que as pessoas me falavam era de «Falcon Crest». Só. Eu vinha do teatro, tinha outras aspirações. Bom, foi uma coisa à margem do que tinha feito até aí, que me permitiu conhecer um outro mundo. Conheci pessoas que estavam fazendo aquilo há oito, nove anos, sempre a mesma coisa...

 

O ambiente era tal qual assistíamos no «Dallas» e na «Dinastia», com maquilhagens e cabelos rebuscados?

Sim, sim, era exactamente isso. A minha personagem era uma italiana, e a rapariga do guarda-roupa entendia que as mulheres europeias, sobretudo as italianas... Para ela, classe era uma écharpe de seda!, para ela, classe era um chapéu posto de lado, para ela, classe era fumar com boquilha.

 

Era preciso seguir escrupulosamente as indicações ou podia discuti-las?

Discutia tudo o que podia, no meu inglês rudimentar. Mas aquilo é uma máquina, muito, muito profissional. Quando se quer discutir algo do guião, temos sete pessoas, sete guionistas, que se encontram consigo numa sala e lhe concedem 15 minutos, porque a seguir têm outra reunião. De maneira que é preciso pensar se queremos fazer segunda reunião...

 

Como é que viveu essa sua aventura americana?

Divertia-me muito, por exemplo, alugando um Pontiac-Transam descapotável! Um carro muito rápido, muito rápido, tinha não sei quantas multas! Los Angeles era já desagradável no sentido de não ter amigos, não conhecer gente. Se não gozava as coisas boas que tinha à disposição... Por isso a minha casa, que não era luxuosa, tinha jardim, por isso o carro tinha de ser descapotável. Tinha algumas imagens mitificadas; quando aluguei o Pontiac-Transam, fui ao Texas, percorri sozinha a auto-estrada. Lembro-me de um dia de tempestade, neste carro, no deserto que se cruza quando se vai pela 501... Era a aventura.

 

E a transgressão?

Sim. Não era a Hollywood do dinheiro, do faustoso, do luxo. Era a Alice no País das Maravilhas. Era o sonho, o sonho de Wim Wenders, mais do que as fortunas que podia ganhar no «Falcon Crest». Eu não repeti o «Falcon Crest». Chamaram-me ao escritório e perguntaram-me se queria fazer, se queria aparecer regularmente; disse que não, não especialmente. Tinha sido uma experiência interessante, mas do que gostava era de cinema. A minha personagem tinha tido muita aceitação, e a conversa era para saber que intenção tinha. Então, na série, mataram-me! Nessa conversa, decidi o meu futuro, sem saber, decidi o meu futuro. Fui sincera comigo mesma, fui honesta com aquele senhor. Nesta profissão, bom, em todas, mas nesta especialmente, é preciso ser honesto.

 

A sua «fase americana» durou cerca de dez anos, ao cabo dos quais retornou à Europa.

Mesmo quando estava a trabalhar em Hollywood, não pensava fixar-me aí. Viajava muito, (não queria deixar de fazer filmes europeus), e cansei-me.

 

A sua base era onde?

Los Angeles, mas sempre tive a minha casa de Madrid.

 

Como é a sua casa?

É uma casa pequena, um terceiro andar num prédio sem elevador, no centro da cidade, num bairro onde continua a haver o sapateiro e o merceeiro. Tenho-a desde 85, e é alugada, nunca a comprei. Contudo, é o meu ponto de referência. Em Los Angeles, vivi em sítios muito diferentes: no sul, no norte, nas colinas; o que não conheço tão bem é a vida em Malibu ou em Santa Mónica. Mas a minha casa, afinal, foram os hotéis. Tinha uma vida algo circular: pagava casas, e não estava nunca nelas, sempre viajando, sempre com a minha mala.

 

Que importância tem o dinheiro na sua vida?

Nenhuma, nenhuma! Com o tempo também se aprende que seria bom ter uma casa... Há três semanas, Scott e eu comprámos uns terrenos, que distam uma hora de Madrid, para fazer uma escola. É a minha primeira possessão. Para concluir que nunca possuí nada...

 

Uma pessoa que vive no mundo todo precisa absolutamente de que objectos? Que coisas a fazem sentir em casa?

Coisas, coisas... Não nos damos conta, mas há sempre coisas que se arrastam de um sítio para outro. Por exemplo, xailes de caxemira que no inverno uso sempre, (gosto de sentir a lã boa). É um pouco como a manta do Linus, sabe?, o Linus dos livros do Charlie Brown, que leva a manta para todo o lado? Gosto da ideia de comunicar rapida e eficazmente com muita gente. O meu computador, que uso desde 92, acompanha-me para todo o lado; é uma segunda casa, tenho nele imenso trabalho. Como o telefone móvel. Permitem estar em contacto com muita gente, mas de modo independente, sem ter que estar num escritório.

 

É bastante desprendida.

Dei-me conta, em todas estas viagens, que os objectos se perdiam, que não se gastavam. Nas viagens, nos hotéis, perdiam-se. Não tive nunca coisas que se gastaram. Desde há três anos é diferente. Quis cortar com esta loucura de filmes e viagens para toda a parte. Foi um momento de reflexão, adveio uma outra tranquilidade, uma outra calma. Coincidiu com os meus 40 anos. Coincidiu com o meu desejo de ter um filho. E não pude. Não posso. Isso fez-me reordenar as coisas, pensar no que é o mais importante. Fiz 40 anos e perguntei-me «Qual foi a coisa que não fiz e gostaria de ter feito?». Um filho. Quando se sabe que não se pode fazê-lo...

 

Deve ter sido muito doloroso.

Claro, claro. Foi um momento, caramba... E vi-me a revolver tudo, a substituir tudo. Até ressurgir com muito mais força. Toquei algo que era a essência, e pude sair daí com novas perguntas, novas afirmações. Daí também a minha necessidade de plasmar-me num livro, falando da minha profissão. É um testamento, um pouco.

 

Talvez seja uma extrapolação barata, mas o momento em que escreve o livro e pensa em montar uma escola de artes, é quando se confronta com a impossibilidade de ter filhos.

Tem que ver claro, claro. O que fazemos tem sempre relação com toda a nossa vida. Não poder ter filhos; os alunos suprem uma necessidade de passar coisas. Mesmo o livro; não sei se o teria escrito se tivesse um filho. Quem sabe não. Ou quem sabe sim. Se calhar tenho só mais tempo para reflectir; não o teria de outro modo, os filhos tomam muito tempo.

 

A culpa é um sentimento muito comum às mulheres que se deparam com esta impossibilidade.

Não fiz nada no sentido de escutar-me mais a mim mesma. Escutar-me enquanto mulher. E o primeiro em que se pensa quando se é mulher e quando se tem 40 anos são os filhos. Há um relógio que bate, tiq tac. Fiz muitas coisas na vida, sinto-me orgulhosa das minhas viagens, das minhas pequenas coisas. A pergunta que se faz é: «Será que é porque não me dediquei a mim mesma?, será que é porque a profissão esteve sempre em primeiro plano?». Sim, havia um sentimento de culpa. Não uma culpa religiosa, mas uma culpa que derivava da minha escolha. Escolha de vida.

 

O que tem vontade de fazer?

Se tivesse que apontar um objectivo, não o centraria tanto na minha carreira de actriz, mas num projecto mais pessoal. Trata-se de dar, dar mais coisas aos outros. Não ser tanto eu, eu eu. Diria isso.

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2002

 

Francisco Allen Gomes

01.02.15

Francisco Allen Gomes é psiquiatra. Num país de supostos brandos costumes, dedicou-se a estudar o tema do sexo.

Há trinta anos, regressava de África com uma mulher e uma filha prestes a nascer. Punha-se o que ia fazer à vida. Concluiu a especialidade e ouviu o conselho de um amigo; nos consultórios, era o pânico, ninguém sabia nada de nada sobre o assunto. Fez do relatório de Masters e Johnson a sua bíblia. A sua consulta, no hospital da Universidade de Coimbra, teve assim início. A reputação de que goza, também.

Há uns meses reformou-se do hospital. Dedica-se em exclusivo aos doentes que acorrem ao consultório. Pára quando morrer ou quando deixarem de o procurar. Entretanto tem tempo para os seus livros e permite-se luxos como o de saber melhor quem o procura e porquê.

Eu fui procurá-lo porque já sabia que é um óptimo conversador. Além de saber que é um técnico excelentíssimo. Mas isso, toda a gente sabe.

Entre uma coisa e outra, ficam histórias de uma vida.

O Chico Allen gosta de datas. As datas, concluo eu, assinalam com mais precisão os factos da nossa vida, delimitam o que somos. Situam-nos, para não andarmos sempre aos papéis.

Anda pelos 60 anos. É casado e tem duas filhas. Vive em Coimbra. É um homem bom.

 

Porque é que o sexo é um assunto tão recorrente e apetecível?

Porque o sexo é sempre uma novidade. É inerente às pessoas. É uma pele que nunca se despe, que está permanentemente a sentir-se, e que preside às relações humanas.

 

Tem que ver com uma parte puramente pulsional, animal?

Não direi que é pulsional e animal. Direi que em nós ela é sempre pulsional, mas é sempre, ao mesmo tempo, cognitiva, intelectual e emocional. É um todo que está sempre a fazer-se sentir. E há alguma angústia. A angústia de saber se sexualmente se é normal, se sexualmente se é desejável, se sexualmente se está de acordo com o que é esperado. A graçola, a piada, é a maneira de falar de qualquer coisa que, no fundo, mexe com a pessoa.

 

Esta conversa fácil sobre o sexo não resulta do equívoco e da dificuldade de falar daquilo que verdadeiramente importa?

Muita desta conversa é uma forma de esbater receios, ansiedade, e de tornar a comunicação mais simples. Vai sempre um misto de brincadeira, de jocoso, um falar de outras pessoas. É muito característico falar do seu comportamento como sendo o comportamento de terceiros. A tentar perceber o que é que os outros acham.

 

De que é que lhe falam os seus pacientes? Trabalha sobretudo com as disfunções sexuais, não é?

Este ano dei-me ao luxo de investigar melhor quem me procura no consultório e porque é que me procura. A primeira coisa que constatei foi que quem me procura por assuntos de sexualidade anda entre os 10 e os 20%. Trabalho como psiquiatra com 80% das pessoas que me procuram. Mas aparecem todos os problemas ligados à sexualidade. Ultimamente até me despertam mais a atenção os assuntos relacionados com formas de sexualidade menos comuns, digamos.

 

Pode esmiuçar?

Problemas de orientação sexual, de identidade sexual, ou ligados a formas mais minoritárias de comportamento sexual.

 

A homossexualidade deixou de estar confinada a um gueto. A visibilidade e a assunção da homossexualidade são cada vez mais evidentes. Há reflexo disso no consultório?

 

Ah, uma diferença enorme, não tem comparação com o que se passava quando comecei a trabalhar. Não há mais homossexuais, mas há mais pessoas a saber que são homossexuais. Não é só a revelarem-se. É a saber que são ou que podem ser. E há uma gama mais ampla de orientação. Antigamente era simplissíssima: heterossexualidade, homossexualidade. Agora há heterossexualidade, há homossexualidade, e depois há muitas coisas. Que também não são fáceis. É fácil a pessoa identificar-se com heteros ou com homos. Se não é nem uma coisa nem outra, tem muita dificuldade em identificar-se. E os dois polos rejeitam tudo o que não é como eles. Esta plasticidade que existe em relação à orientação, existe em relação à identidade. Dantes era muito simples: homem, mulher. Agora há homem, há mulher e há muita coisa que já não é nem homem nem mulher. Tudo isto tem neste momento um espaço, que não tinha, e que é uma forma privilegiada de identificação: a inter-rede.

 

Pelo anonimato que garante?

Pelo anonimato mas também pela identificação que proporciona. E pelo esclarecimento que proporciona. Há milhares de sites. Se num motor de procura põe a palavra «Transgender», [transsexual], por exemplo, aparecem-lhe assim três mil sites. E aparecem organizações que permitem muitíssimo bem à pessoa identificar-se e perceber o que é. A informação é óptima porque é brutal. Eu tinha uma visão médica destes fenómenos; uma visão extremamente empobrecida se através da internet não tenho tido oportunidade de encontrar uma quantidade de informação que não tem nada que ver com medicina. Tem que ver com as comunidades transgender, com a sociologia transgender.

 

O sexo deixou definitivamente de ser um assunto tabu?

Apesar de se falar muito de sexo, de os media estarem enxarcados de sexo, de haver uma descompressão em termos sexuais, ainda há muita pessoa a sofrer com problemas sexuais que não pede ajuda. Eventualmente vai à internet, como há uns anos ia a uma revista. Claro que podemos fazer especulações várias: numa sociedade aparentemente tão livre, em que há tão poucos constrangimentos a nível sexual – na heterossexualidade, houve tabus que desapareceram: a virgindade, o pecado_, em que há muito mais aceitação das diferenças, porque é que não procuram ajuda.

 

Que explicação dá?

Provavelmente sentem-se tão infelizes, tão infelizes por ter problemas que não deviam ter, que até têm vergonha de pedir ajuda.

 

Já não há a culpa católica?

Muito, muito menos. No sentido em que a minha geração a viveu, seguramente que não. Pode haver um desconforto, pode haver pessoas a alinhar num tipo de sexualidade que não lhes dê muito prazer, mas supõem que toda a gente faz assim, e também fazem. Há pessoas jovens sexualmente desiludidas. Depois de uma euforia inicial, rapidamente chegam à conclusão que aquilo afinal não é uma coisa tão, tão, tão.

 

O que é que o fez decidir-se por este tema há 30 anos?

1969, estava a fazer serviço militar em Chaves, antes de ir para África; vinha a descer a Rua de Santo António, no Porto, passo por uma livraria e vejo um livro intitulado «La réaction sexuelle», autores: Masters e Johnson. Lembrei-me de uma viagem que tinha feito dois, três anos antes, com paragem em Bordéus, onde fui a uma livraria de medicina comprar livros. Vi nessa livraria uma revista lindíssima chamada «Planette», onde se escrevia que estava para sair nos Estados Unidos um relatório sobre comportamento sexual, que iria ser um segundo Kensey. [O relatório] Kensey tinha sido publicado em 48 e 53, o masculino e o feminino, e este era, de facto, o primeiro grande trabalho que iria complementar Kensey. Fiz a associação com a «Planette» e comprei o livro. Fui com a Ana [a mulher] passar o fim-de-semana a Monfortinho e comecei a ler o livro.

 

Numa primeira leitura, o que é que o surpreendeu?

A primeira coisa que concluí foi que tudo o que sabia sobre sexualidade não tinha nada que ver com o que estava ali escrito. E foi importante até em termos pessoais!, eu estava casado há seis meses! Mas depois, dali tive de ir para África, e na bagagem iam os clássicos da psiquiatria; o Masters e Johnson ficou esquecido em Portugal continental. Entretanto regressei em 1972 e punha-se o que é que eu ia fazer: acabar a psiquiatria, acabar a especialidade. Falei com um amigo meu, um psiquiatra que admiro, que me aconselhou: «Estuda coisas relacionadas com a sexualidade. É um pavor quando alguém entra no consultório com um problema sexual, a gente não sabe o que é que há-de fazer. Comprei um livro que dá montes de respostas e que te permite, estudando o livro, organizar um esquema terapêutico».

 

O livro era o de Masters e Johnson?

O segundo. O primeiro tinha sido publicado em 66 nos Estados Unidos, traduzido para francês em 68 e tinha-me vindo à mão em 69. O que era extraordinário!, não tínhamos bibliografia nenhuma! Em 72 vinha-me parar à mão um livro que tinha saído em 70. O primeiro livro era a fisiologia, o segundo era a terapêutica. Como bom aluno, estudei aquilo. Achei que era uma forma terapêutica perfeitamente possível de ser feita. E com uma colega, montámos os primeiros protocolos de tratamento e começámos a tratar os primeiros casos, exactamente no esquema Masters e Johnson, com entrevista diária com os casais – entrevista diária!, tudo gravado!

 

É incrível pensar que tudo isto aconteceu apenas há 30 anos. Quando é que mudou realmente o comportamento dos portugueses em relação ao sexo?

Tenho um bocado a mania das datas... Datas que marcam isto ou aquilo. Claro que não marcam completamente, mas as cronologias ajudam muito a compreender as coisas. A mudança significativa direi que ocorreu nos anos 90. Dou-lhe um exemplo. Ainda no início dos anos 90, colaborei num programa de rádio da TSF sobre sexo, o «Caleidoscópio Sexual». Fiz um programa sobre homossexualidade e não arranjava ninguém, ninguém; as pessoas não queriam revelar-se. Nessa altura exacta, o PSR funda um núcleo homossexual e deram-me o telefone do líder do grupo, que veio de Lisboa; no programa a seguir veio uma lésbica, catalã, foi o que se arranjou. Hoje não teríamos qualquer dificuldade.

 

Para além da oportunidade, sentiu que era um tema apaixonante?

Sim. Houve uma altura, que coincidiu com 1987, em que comecei a sentir algum incómodo. Já levava 12 anos de trabalho, já era bastante conhecido na área, e pensei em pegar noutras coisas da psiquiatria.

 

Porque é que sentiu o desconforto?

Havia a ideia de que a sexualidade era assim uma coisita, que a sexologia não era uma coisa assim muito importante, que as pessoas podiam ser um bocado mal vistas ou vistas de maneira sensacionalista.

 

Sentiu que não o reconsideravam enquanto académico?

Não, não, nunca tive problemas. Além da consulta, tinha um curso de introdução à sexologia médica na faculdade de medicina, com autorização do conselho científico e colaboração de parte significativa do corpo docente. De 76 a 86, no mês de Maio, o curso era aberto, intensivo, livre, cinco noites por semana. Não havia um lugar livre no anfiteatro, nem nas escadas! Hoje está tão às moscas como os outros... Mas achei que precisava de outro apelo, que aquilo se me estava a colar demasiado à pele. Que o sexologista estava a abafar o psiquiatra. Mas depois, ao contrário, achei que a sexologista era vastíssima.

 

Os cursos estão às moscas porque a realidade é completamente diferente. Vivemos submergidos pela presença do sexo.

Nos últimos quatro anos houve uma mudança aparatosa ao nível da investigação: a medicina descobriu a sexualidade. A medicina e a indústria farmacêutica.

 

Coincide com o Viagra?

Claro. O problema da sexualidade é hoje importante na oncologia, nas doenças cardíacas, na medicina interna, na diabetes. Os médicos, não os psiquiatras, mas os investigadores, entraram na sexologia.

 

Era de prever que o Viagra introduzisse estas alterações? A questão do dinheiro, em especial na farmacologia, não é nada despicienda.

Não sabia que iria ter o impacto que teve. Mas, voltando às datas, 1998 é uma data lindíssima: marca o fim, em termos de sexologia, dos anos do homem, e o início dos anos da mulher. A partir daí, toda a estrutura de investigação se virou para a mulher.

 

Porquê a sua tara pelas datas?

Não sei, mas é uma coisa tremenda. Fui no liceu um mau aluno, um aluno muito sofrível, excepto numa disciplina em que era uma barra, História. É engraçado verificar a coincidência das coisas: no ano de 1960 foi lançada a pílula contraceptiva no mercado mundial; marca o fim do modelo reprodutivo do sexo e o início do modelo prazenteiro. Também em 1960 aparece na universidade de Coimbra a «Carta à jovem portuguesa». Em Portugal era proibido prescrever a pílula, excepto para estimulação da fertilidade; havia quem receitasse, obviamente.

 

O que era a sua vida em 1960?

Era difícil em determinados aspectos. Já agora, para ir a mais datas, em 1960, o fim da prostituição legalizada em Portugal.

 

Há uma relação entre a primeira e a segunda parte da sua resposta?

 

Perguntou-me qual era a minha vida em 1960, penso que se estava a referir à minha vida afectiva e erótica...

 

Por acaso estava a pensar na vida toda.

Era estudante, essa parte era fundamental. Estávamos nesta conversa, estava a falar-lhe da «Carta à jovem portuguesa»... É evidente que para um jovem da minha idade, o grande escape era a prostituição.

 

Era normal que a iniciação fosse feita assim.

Sim, sim.

 

E era normal que casassem cedo porque era a forma de ter sexo regular.

Absolutamente. Compare um casamento dessa altura com um casamento dos dias que correm; quando casávamos, iniciávamos uma explosão de sexo. Hoje quando se casam, já o sexo vai..., puff, por aí abaixo, já vai domesticado, sonolento, já não é novidade.

 

Mas eu estava a pensar na sua vida toda.

Eu sou um alentejano de Mértola, de onde saí com nove anos de idade para um colégio interno no Estoril, onde estive oito anos. Que foi óptimo, magnífico.

 

Era um colégio de jesuítas?

Era um colégio laico. Teria 200, 300 alunos, dos quais 100 seriam internos. Tinha um edifício central, uma vivenda apalaçada, onde havia aulas, onde se comia, e depois tinha vivendas espalhadas pelo Monte Estoril onde ficavam os alunos internos, de acordo com a sua idade. A vivenda do sexto e sétimo ano não tinha ninguém a tomar conta, não tinha prefeitos, e os alunos podiam sair à noite, podiam ir tomar café. Já viu?, anos 50!, uma coisa destas! Ou seja, à medida que íamos crescendo, íamos tendo privilégios. Não havia camaratas, mas quartos para três, quatro pessoas, e havia um aconselhamento fortíssimo da parte dos responsáveis a não fechar nada à chave: não havia roubos.

 

Como era o Estoril nessa altura?

Tudo aquilo era extremamente familiar, tranquilo, bem arranjado – embora tivesse grandes bolsas de miséria para cima, para a zona de Alcabideche. Assisti à transição desse Estoril para o outro Estoril. A transição é marcada pelo primeiro Carnaval, com um desfile de um corso gigantesco, onde vinham estrelas de cinema. O rei do primeiro Carnaval, quem era? Era o Fernandel!, um francês que representava em França o que o Totó representava em Itália. Tenho ainda para aí espalhados autógrafos de várias personalidades – eu ia atrás dos autógrafos! – entre os quais um da Martine Carol, que era um mulher espectacular. A cisão da Sociedade Estoril provocou uma modificação enorme na vila, que teve reflexos no colégio.

 

Como assim?

Não era um colégio religioso; mas o director era um homem cheio de princípios morais, de honestidade, de seriedade. Meninos muito bem-educados, que em qualquer sítio se podiam ver porque não se metiam nisto nem naquilo. E a certa altura, começámos a violar regras, a violar regras. Perdemos a cabeça. Apareciam mulheres lindíssimas, estrangeiras, biquinis de todos os lados... Enfim, perdemos a cabeça.

 

Ainda que tenha gostado muito do colégio, não teria preferido viver com os pais?

Só ia a casa no Natal, na Páscoa e no Verão. O colégio era a casa. As cartas, a ligação a casa, tudo isso era mantido; ao mesmo tempo não havia um conflito próprio da relação pais-filhos: naqueles quinze dias de férias era tudo muito bom. Lembro-me de, quando ao fim começavam a surgir pequenos atritos, o meu pai dizer: «Estás a precisar de colégio como de pão para a boca». O meu rendimento também foi afectado por toda aquela transformação no Estoril. Era um aluno que ia passando, ia passando, mas quando cheguei ao sétimo ano já não passei. Fiz três das seis disciplinas e no ano seguinte fiz uma. Aí o meu pai disse: «Acabou-se a colónia balnear do Estoril Praia. Vais para Coimbra». Não faz ideia do choque que foi quando cheguei a Coimbra.

 

Que mundo foi esse?

Achava tudo horroroso. A praxe, a coisa mais absurda deste mundo – andei o primeiro ano sempre rapado. Os Bichos, (estudantes de liceu) e os caloiros, não podiam sair depois das seis da tarde. Eu saía sempre e era rapado.

 

Como é que entra em Medicina se é um aluno sofrível?

Nessa altura entrava toda a gente. Era muito difícil, por exemplo, entrar em Direito.

 

Porque é que quis ser médico?

Ah, sempre quis ser médico. O meu pai era médico, tinha uma grande admiração por ele. O meu pai era João Semana. Se for ver a Mértola, lá tem a Rua Dr. Manuel Francisco Gomes. A minha mãe era de Coimbra, doméstica, tão doméstica que era capaz de passar meses sem sair de casa.

 

Já que gosta tanto de datas, se tivesse de apontar uma outra data que marca um momento fundamental na sua vida, o que é que lhe ocorre?

1974 é uma data sempre importante, é incontornável.

 

Teve algum envolvimento político?

Não. Mas em 1975 fiz parte do conselho directivo da faculdade de medicina; era o porta-voz nos plenários. Ser membro de um conselho directivo, (eleito pela esquerda, obviamente), eleições que tinham de ser ratificadas em plenário; os plenários estavam cheios, com os vários agrupamentos políticos, numa altura complicada em que havia coisas como saneamentos. As cicatrizes brutais e rupturas inter-pessoais que um processo desses pode determinar... E depois a ressaca.

 

É em situações limite que as pessoas se revelam na sua mais pura essência.

Claro. Foi um período importante e moldou muito a minha personalidade.

Era muito difícil o ambiente que se vivia, exigiu um grande esforço de diálogo.

 

E conciliação?

Quando a palavra conciliação era proibida.

 

Porque a sua imagem é a de um homem conciliador, inspira segurança e confiança.

Penso que tem muito que ver com o estatuto que se adquire, com a pele que acaba por se nos colar. Eu sentia-me uma pessoa extremanente insegura. Quando retomei as minhas funções de assistente universitário sentia uma ansiedade horrível antes das aulas... Uma ansiedade quase patológica por falar para pequenos públicos. Isto em 73. Agora veja lá em 75 ser porta voz em frente de um plenário!

 

Como é que venceu a insegurança?

Tive de me expor brutalmente. Fiz auto-terapia.

 

Ou seja?

Elaborei um protocolo para mim. A estratégia passava por expôr-me. Com um êxito extraordinário, devo dizer. Eu sabia que tinha de me expôr. Mas como é que havia de me expôr? (Nunca contei isto em público...) Houve um seminário conduzido por um inglês sobre terapia de comportamento no Hospital Júlio de Matos; qual era a estratégia? Ele acabava, «Há perguntas?», e eu punha o braço no ar! A partir daí, os dados estavam lançados, tinha de falar. Fiz isso sistematicamente, sistematicamente...Uff!

 

Com imensa dor, ao princípio?

Ah, sim. Julgo que ninguém se apercebeu. Pelo contrário, devem ter pensado que eu era aquela pessoa que conheciam, brincalhão, sempre a contar histórias, e a falar, falar demais! Se dissesse que tinha dificuldade em falar em público, as pessoas riam-se todas! Se dissesse que tinha uma ansiedade enorme, as pessoas riam-se todas! Mas eu sabia que a tinha. Claro que não tinha de a divulgar; tinha era de tratar do meu problema. E tratei.

 

Nunca pensou procurar ajuda? O seu processo foi de auto-ajuda. Não me refiro apenas ao problema específico de falar em público.

Não. Isso aconteceu logo depois de vir de África, em 72. Havia uma certa inibição... Até porque estávamos todos a aprender... Depois os plenários resolveram definitivamente o problema.

 

Como foi a sua vivência em África?

Estivemos em África 27 meses – a minha mulher estava comigo – , sempre no mato. Durante 19 meses estivemos isolados. Nos outros oito meses estivemos numa terra que tinha 300 ou 400 habitantes, não havia o arame farpado, havia um comboio, podia meter-me no comboio e ir a Nampula. Era médico do Tabaco, do Banco Nacional Ultramarino, era delegado de saúde. Havia uma coisa muito característica da geração que estava em África: não se falava disso. Não se falava antes de ir, não se falava depois de vir.

 

Não se falava especificamente do quê?

Da Guerra.

 

Isso quer dizer que não se falava do medo de morrer?

Não é isso. Era uma experiência anunciada. A partir de primeiro ou segundo ano de medicina sabia perfeitamente que quando acabasse o curso, ia. Todos os anos ia com as minhas cadeiritas mostrar que tinha passado de ano, para poder continuar a estudar, para poder ser médico, para poder ir como médico. Mas sabia que era infalível ir. Portanto, não se falava. Os que vinham, entravam na sua vida, e os outros já sabiam que também acabavam por ir. A primeira vez que falei em público da minha experiência de guerra foi o ano passado na Ordem dos Médicos. Foi a primeira vez que levei um texto escrito.

 

Doeu-lhe?

Ah, doeu-me imenso, imenso. Nos últimos tempos em África, todas as manhãs, a única coisa em que pensava era «Como é que vai ser quando voltar?, Terei o meu lugar? Chego em Junho e volto a dar aulas?»

 

O lugar a que se refere era o posto de trabalho, ou, mais do que isso, era o seu lugar numa sociedade em mudança?

O lugar no trabalho, que era muito importante. A minha mulher estava grávida, a minha filha nasce em 72. O lugar era o de um assistente, e com isso não se vivia. Havia a carreira médica hospitalar, que tinha começado quando eu estava na tropa; ainda podia tentar. Em termos técnicos, são três anos perdidos. A experiência clínica africana? Infecções, diarreias, ferimentos, as coisas que por ali havia.

 

E o medo?

Numa fase inicial, sim, depois tornou-se secundário. Medo físico, não. Havia o medo de sujar as mãos. Há o sujar as mãos porque uma pessoa faz uma coisa que suja as mãos. E há o ver uma pessoa que suja as mãos e calar que essa pessoa suja as mãos; também não se vem com elas muito limpas... Felizmente, nunca se verificaram situações desse tipo; mas perto de mim, sim. Tudo depende do comportamento das unidades, e tudo depende da força das circunstâncias.

 

A pessoa quando vem, vem com uma história. É comparável àquilo a que se assiste nos hospitais? É mais duro assistir a situações que mexem com honra e dignidade do que assistir a situações físicas limite?

Sim, sim, absolutamente. Primeira situação terrível: ver chegar uma série de homens sem pernas ao quartel, pessoas que conhecia, e estar ali, a mexer-lhes na carne, a tentar mantê-los com vida até que chegasse um avião que os evacuasse. Claro que isto é traumático. É emocionalmente traumático, mas não é moralmente traumático. Ao passo que estas pequenas coisinhas, eram traumáticas. E estar sempre a ouvir, ouvir, ouvir.

 

A sua vida profissional parte do ouvir. A cura faz-se pela palavra?

Não só pela palavra, mas sim, a palavra é muito importante. A gente receita-se com o medicamento, a gente também vai lá dentro. É o que chamamos de «factores inespecíficos de terapêutica», e que são a relação muito especial que se estabelece com uma pessoa. É o êxito do nosso trabalho. Eu adoro fazer clínica. Deixei o hospital mas não deixei a clínica. Só deixarei de ver doentes quando morrer ou quando deixarem de me procurar.

 

Na multiplicidade e diversidade de histórias que ouve, o que é que o comove mais intimamente?

Aquilo que considero ser uma das minhas qualidades, no contacto com os doentes, é raramente fazer um juízo de valor.

 

Não é difícil?

É.

 

Em casos de pedofilia, por exemplo.

Há situações que recusei. Justamente porque estava a fazer juízos de valor. E outra qualidade é nunca sentir desprezo. Nunca senti que eu era a pessoa saudável e aquele tipo o desgraçado. O Andre Malraux, nas suas anti-memórias, faz uma conversa com um padre de uma zona montanhosa, agreste, de onde ele, Malraux, era natural. E pergunta: «Ó Padre, que é que lhe ensinaram quinze anos de confissão?». O padre pensou e disse: «Em primeiro lugar, que as pessoas sofrem muito mais do que se julga. E depois, que não há grandes pessoas. Não por serem excessivamente perversas. Mas porque, de facto, se sofre muito».

 

É a sua visão?

O ser humano é um ser que sofre imenso. E tem que sofrer: o humano é a construção mais cruel da natureza. Nasce com um handicap horrível: primeiro, sabe que inevitavelmente morre; segundo, não sabe quando; e terceiro, não sabe o que lhe sucede depois que morre.

 

Eu acrescentaria um quarto: não sabe o que lhe acontece até morrer.

Já viu?, temos de viver com isto. Por outro lado, há quem diga que a natureza humana é má. Eu digo: «Quem quiser ver como a natureza humana é boa, é assistir ao casamento de dois jovens».

 

Como assim?

Vão fazer uma ligação que a maior parte das pessoas sabe como vai terminar. Eles mesmos, quando estão na igreja, sabem bem da vida: sabem que o pai e a mãe se divorciaram, que os amigos se divorciaram. Mas quando estão a dizer o sim, com toda a pompa e toda a jura, estão convictos de que com eles vai ser diferente. E isso é extraordinário.

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2002

 

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01.02.15
Pode-se dizer tudo? Vamos tentar discutir tudo.

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Com os ilustradores e cartoonistas André Carrilho, António Jorge Gonçalves e Luís Afonso e a presidente do Sindicato dos Jornalistas, Sofia Branco.  

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