Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Anabela Mota Ribeiro

António de Sousa

25.03.15

É um homem a quem tudo aconteceu cedo. Foi Governador do Banco de Portugal antes dos 40 anos. Foi Presidente da CGD. Formou-se na Universidade Católica. Doutorou-se numa das mais prestigiadas universidades do mundo, Wharton, nos Estados Unidos. Foi Secretário de Estado da Indústria, Comércio Externo e Finanças. É o presidente da Associação Portuguesa de Bancos. E não, ele não tem 70 anos. Tem 55.

É casado (desde cedo, claro), e tem filhos. É competitivo. Talvez seja, ou tenha sido, competitivo sobretudo “contra ele próprio” – expressão que usa. Faz um bocadinho de género quando diz, por exemplo, que não ficou orgulhoso do 18 que Cavaco Silva lhe deu, quando foi seu professor. Fica picado, mas não revela a irritação, quando o provoco e digo que as nomeações para os seus principais cargos podem ser entendidas como nomeações políticas. Revela um pouco mais do seu mundo quando fala dos livros que lê, de matriz anglo-saxónica. Não aprecia por aí além a perturbação dos personagens de escritores russos. Mas sabe que a literatura é uma outra realidade. Pratica-o, aliás. Mundos separados. Trabalho é trabalho, conhaque é conhaque.

Se alguma coisa lhe correu mal? O que é que se perde quando se perde? Estas são as minhas questões centrais. Vejam como ele responde. Talvez isso nos faça chegar mais perto de quem António de Sousa é.

Pela primeira vez, e sem saber muito bem como, ele falou destas coisas de que não costuma falar.

  

Wharton mudou a sua vida?

Claramente. Como experiência pessoal e profissional. Vou para Wharton em 1979, tinha acabado o curso em 1977. Nunca tinha ido aos Estados Unidos. Foi um choque. Os carros na rua, como víamos nos filmes. Os supermercado, que já eram enormes, e estavam cheios. Nós vivíamos num país onde um dia não havia bananas, no outro não havia leite. Estive praticamente dois anos sem cá vir, o isolamento foi muito grande. O telefone era caríssimo, usava-se a carta.

 

Escrevia cartas?

Escrevia, poucas. A minha mulher escrevia mais. Ligar para Portugal era uma coisa que se fazia uma vez por mês. Do ponto de vista profissional, foi extremamente importante. Primeiro porque as universidades eram, e são ainda hoje, um campo onde é possível discutir ideias e falar com pessoas de diferentes origens. Naquele ano entraram no meu departamento uma dúzia de alunos, dos quais dois eram americanos, e sete ou oito de nacionalidades diferentes. As pessoas vinham de campos diferentes, (aqui é habitual fazer-se o doutoramento na mesma área em que se fez a licenciatura; lá não). Wharton é uma faculdade orientada para a Gestão de Empresas, embora eu estivesse na área de Planeamento Estratégico.

 

Teve um mestre?

Encontrei uma pessoa que me marcou muito na forma de pensar, o professor Russell Ackoff. Penso ainda estar vivo, deve ter 91 anos, temos mantido contacto. O livro mais interessante dele chama-se “The art of problem solving”.

 

Porque é que foi para Wharton, e em que circunstâncias?

A primeira escolha tinha sido a London Business School. Concorri para várias universidades e para vários programas. Obtive duas bolsas, que me permitiam ir para Wharton ou para Carnegie Mellon (que era particularmente conhecida porque quem tinha ganho o Prémio Nobel um ano ou dois antes era o professor Herbert Simon, do departamento desta área em que me ia especializar). A decisão final acabou por ser orientada por esta razão: há 31 anos era muito difícil levar dinheiro para o estrangeiro. Além de que o não tinha. Embora os meus pais vivessem razoavelmente bem, não tinham capacidade para ajudar. Era fundamental arranjar uma forma de sobrevivência local, baseada na bolsa. A grande diferença entre as bolsas de Wharton e Carnegie Mellon era que esta era mais alta, só que era sempre a mesma, e a de Wharton era mais baixa, mas podia haver prémios.

 

Estava decidido.

Precisamente. Ao fim de seis meses estava muito bem porque tinha ganho uma série de prémios e estava a viver à vontade.

 

Até onde é que o dinheiro marcou a sua vida?

Aqui marcou. Comecei a trabalhar muito cedo, aos 16 anos já dava explicações; depois trabalhei como monitor na universidade, com 19 anos.

 

Foi em 1975, quando ainda não tinha acabado o curso.

Sim. Depois comecei a trabalhar 25 horas por semana como assessor da gerência da empresa Lanalgo, um dos grandes armazéns de Lisboa, ao pé da Praça da Figueira. Fui para a área financeira e para repensar a estratégia da empresa; os tempos eram conturbados e havia que readaptar a estratégia. Acontece que uns meses depois o então chefe de escritório, (que chamaríamos agora de director financeiro ou CFO), teve uma doença grave; e eu, com 20 anos, fui chamado a ficar à frente do escritório, que tinha 40 e tal pessoas, quase todos administrativos. Ao mesmo tempo continuava a ser monitor na universidade, dava três cadeiras, 13 horas e meia de aulas. Entre a Lanalgo, as aulas que dava e as minhas próprias aulas, era uma vida preenchida.

 

Isto para falar da importância do dinheiro.

Obviamente que não fiz isto por gosto pessoal. O dinheiro dava muito jeito. O meu pai era empregado bancário. A seguir ao 25 de Abril teve uma diminuição substancial dos rendimentos, porque perdeu aqueles extras que mais tarde foram reinstalados, e alguns investimentos financeiros que desapareceram totalmente. Não quer dizer que ficássemos a viver mal, mas vivíamos com dificuldades que não tínhamos anteriormente. Também resolvi casar-me nessa altura. Achei que devia ser independente e para isso tinha que trabalhar.

 

Ao analisar o seu CV, surpreendeu-me que tenha sido tão novo Governador do Banco de Portugal, por exemplo; agora percebo que já tinha começado 20 anos antes a assumir cargos de responsabilidade.

Realmente, ser responsável pela área financeira da Lanalgo era importante. Estava no 4º ano da faculdade.

 

Muito jovem. Qual é a têmpera desta pessoa e a confiança que ela tem nela mesma para não recusar estes desafios?, não dizer que é cedo ou que não está preparado.

Dizer que não estou preparado é muito difícil, a não ser que seja uma coisa que não tenha nada a ver com a minha profissão. Há coisas em que sou péssimo, (tudo o que tenha a ver com produção artística. No liceu Camões, o professor de canto coral achou que estaria a brincar com ele por cantar tão mal. [riso]) No caso concreto de que estávamos a falar, o problema não se punha: precisava de um emprego, o que tinha aprendido na universidade servia, já lá tinha estado uns meses. Um dos maiores problemas que tive, como acontece com quem vai da universidade directamente para a realidade, foi como preencher uma letra. Sabemos o que é e para o que é que serve, quais é que são os movimentos contabilísticos que estão no desconto de uma letra; mas preenchê-la foi mais complicado.

 

O que diz – de lhe ser difícil dizer que não está preparado – tem uma força imensa num jovem de 20 anos. Por maior que fosse a necessidade, tinha de ter uma grande confiança em si.

Tenho consciência das potenciais dificuldades, mas acho que as coisas se vão fazendo.

 

O que é que correu mal na sua vida?

Mal, mal, nada. Como toda a gente, há alturas em que se está mais ou menos feliz, mais ou menos deprimido, mais ou menos entusiasmado. Tive alguma pena de me afastar da Universidade Católica há 15 anos. Estava ligado desde o início, 20 e tal anos, mas discordava bastante do reitor de então, o Padre Isidro Alves, que já morreu, sobre o que é que devia ser a universidade na área de Economia e Gestão. Tivemos várias discussões, muito cordiais, e decidi afastar-me. Nunca mais me considerei professor universitário de carreira, porque a minha carreira era na Universidade Católica. Voltei a dar aulas durante uma série de anos na Universidade Nova, mas sempre como professor convidado. Talvez tenha sido uma coisa que não esperaria fazer.

 

Era uma coisa importante para si, o rótulo do académico?

Nunca fui considerado um académico.

 

Mas a ligação à universidade, pelo menos aos seus olhos, garantia-lhe essa caução.

Não tanto. Este ano lectivo é o primeiro em que não dou aulas desde há muito tempo, e só não dou por razões de falta de tempo. Deixei foi de apostar na carreira. Nunca a acabei. Nunca fiz o exame para catedrático. Sou professor associado agregado. Afastei-me, acabou. Mas tive alguma pena de abandonar a Universidade.

 

Se a aposta não era a academia, não se desvincula completamente dela. A maneira como fala de Wharton e a referência à Universidade Católica fazem perceber que importância atribui ao assunto. A reputação de um académico é sempre a reputação de um académico.

Claro. Gostei dos anos em que estive a fazer a reformulação do curso de Gestão, no início dos anos 80, quando voltei dos EUA. Estive na direcção da faculdade durante um período de dez anos, só interrompido pelos dois que estive no Governo.

 

Porque é que tudo lhe aconteceu tão cedo na vida?

Essa é complicada. A parte profissional, já expliquei: foi por necessidade. Ter de depender de terceiros, não era compatível com as minhas capacidades. Tinha 24 anos quando fui para os EUA e como não gostei particularmente de lá ter vivido, e também não gosto de levar muito tempo a fazer as coisas, tinha 27 quando acabei o doutoramento e voltei para Portugal. Também tenho que dizer que ganhei uns anos em relação a muita gente da minha geração porque não tive que fazer o serviço militar. Com a idade em que estavam a voltar do serviço militar eu tinha o doutoramento feito. Em termos de entrada no mercado de trabalho, é completamente diferente.

 

Há outra diferença substancial: já não tem sobre si a pressão que tinham aqueles que eram um pouco mais velhos. De ser mobilizado e de a vida ficar ali empatada.

Quando entro na faculdade, em 1972, ainda julgávamos que íamos ter essa questão. Mas a meio do curso dá-se o 25 de Abril e a questão do serviço militar, pelo menos com as colónias, desaparece. Passámos todos à reserva.

 

Ainda sobre tudo lhe acontecer cedo: antes mesmo de entrar no mercado de trabalho, consegue identificar essa urgência no seu percurso?

Acho que não.

 

Que pessoa era?

Gostava muito de jogar à bola, como ainda hoje. Aos 15, 16 anos, gostava imenso de música, daquela de que ainda hoje gosto. Led Zeppelin, Deep Purple; noutro registo, Moody Blues, Black Sabbath.

 

Um roqueiro.

Isto não é bem rock, é um tipo de rock. Gostava imenso de motas. O liceu era simples, não me dava muito trabalho; portanto tinha imenso tempo livre. Jogava snooker. Lia imenso, o que continuo a fazer.

 

Porque é que o liceu não lhe dava muito que fazer?

Porque as matérias eram muito acessíveis, tinha boas notas e quase não era preciso estudar. Tive uma surpresa quando cheguei à universidade e as minhas notas desceram substancialmente. Não estava à espera que o sistema de sempre não funcionasse. Mas também foi uma adaptação rápida.

 

Essas coisas de que falou são hobbies. Não me dão a pessoa.

Dão. Nos cafés perto de onde morava, Avenida de Roma, Avenida dos Estados Unidos da América, estávamos a discutir esse tipo de coisas até às duas, três da manhã, todos os dias.

 

E política?

Não. O grupo em que andava não achava isso particularmente interessante; não digo que não se discutisse, mas muito marginalmente. Estávamos mais interessados na música e na literatura, no desporto.

 

Era uma cabeça realmente diferente daqueles que frequentavam o Vavá e os cafés da Avenida de Roma, da geração anterior. Muito empenhada politicamente.

Mas esses são muito mais velhos que nós. Lembro-me de algumas vezes ir ao Vavá e quase não nos deixarem sentar na esplanada por sermos uns miúdos. Eles tinham 25 e nós 15.

 

O cinema também era uma coisa mobilizadora.

Esqueci-me do cinema. Nessa altura ia duas ou três vezes por semana ao cinema. Eram as sessões clássicas do Monumental e do Império. Íamos imenso ao Imperial, um cinema que ficava ao pé da Praça do Chile, ao Lys, que depois se chamou Roxy, na Avenida Almirante Reis. Passavam dois filmes, um recente, de cartaz, e outro antigo, que era um bónus.

 

Que criança foi? Quando olha para as suas fotografias de criança, o que é que vê? É filho único?

Sou. Lembro-me muito bem da escola, dos amigos da escola e das brincadeiras que fazíamos. Era uma criança normal. Só tive televisão quando tinha uns nove anos. Ia com os meus pais ao teatro infantil, ao antigo Monumental. Incutiram-me o gosto pelo teatro quando era muito novo. Música, só a da rádio. O primeiro gira-discos foi uma prenda dos meus pais quando tinha 13 ou 14 anos.

 

Lembra-se dessa prenda?

Lembro. Dessa e do gravador, um Grundig, com bobines de fita.

 

Tudo isso é uma sucessão de factos. Não me falou ainda de nenhum sentimento.

Gosto de factos. Os sentimentos são subjectivos, e mais ainda quando estamos a tentar, hoje que tenho 55 anos, recriar os meus sentimentos aos seis anos. Só posso ter uma ideia deturpada desses sentimentos. É-me muito difícil falar disso.

 

Os sentimentos não são factos, não podemos elencá-los com exactidão, só podemos recuperá-los tal como aparecem na nossa memória.

Na nossa memória, já muito filtrada. É bastante mais fácil falar da juventude.

 

Não lhe acontece pensar frequentemente na sua infância?

Não. Tenho uma vaga ideia da infantil, lembro-me de onde era, mas pouco mais.

 

Nada do que se passou na sua infância teve uma importância capital na sua vida?

A única coisa que posso dizer, e ainda há pouco falava na confiança que tenho em mim mesmo, é que aprendi a ler na pré-primária. Foi muito fácil, em dois meses, na Cartilha João de Deus. Chegámos ao Z muito rapidamente. E também aprendi a fazer as contas. Lembro-me de ter chegado à primeira classe – e aí, se quiser, um sentimento – e de ter sentido uma certa frustração, de não aprender nada, de não ter nada para fazer.

 

Não acredito que não tivesse o sentimento de ser especial.

Não era só eu que me sentia chateado!, tinha vários colegas na turma que eram muito bons.

 

A competição existia com os outros colegas?

Tenho um colega da infantil com quem ainda hoje me dou; era outro dos melhores alunos. Havia mais competição entre grupos que se formavam para jogar futebol, mas não por serem bons ou maus alunos. Na universidade, os melhores alunos do meu curso são alguns dos meus melhores amigos. Desde um que é padrinho do meu filho até uma pessoa que trabalha comigo aqui na Associação.

 

Nunca quis ser o melhor? Nunca fez disso um investimento?

Não posso dizer que não goste de ser, pelo menos, um dos melhores. Se possível, o melhor. Isso é claramente verdade. É verdade em tudo. Não gosto de perder em nada, nem em jogo nenhum.

 

O que é que se perde quando se perde? Uma certa imagem de nós mesmos?

Perde-se confiança. E fica-se chateado por não se ter sido tão bom como se devia ser.

 

Quando diz que começou a trabalhar cedo disse que queria ser independente…

Que devia ser [independente]. Tenho a mania do dever.

 

Disse que isso tinha que ver com as suas capacidades.

O dever é um sentimento muito forte que me foi incutido desde a infância. Em minha casa, com os meus pais, os meus avós, o “dever ser” era muito importante. A questão dos valores é muito importante. Nesse aspecto, as pessoas que me marcaram mais foram os meus pais e o meu avô materno.

 

Vivia convosco?
Não, mas víamo-nos todas as semanas e nas férias. Ele morreu quando eu tinha 15 anos. O meu avô era licenciado em Economia pelo 3º curso de Económicas que existiu no país; formou-se em 1905 ou 1906. Era uma pessoa ligada à Primeira República, e actuou politicamente nessa altura.

 

Não pensa muito na sua infância, mas se pensa em alguma coisa é nessa expressão que lhe incutiam e exigiam de si.

Como o meu pai costuma dizer, não exigiam porque não era preciso. Tinha de ser bom aluno – fui. Mas tinha liberdade; aos 12, 14 anos não tinha hora para chegar a casa.

 

Porque é que, sendo uma pessoa que gosta de ler, não é um contador de histórias? No sentido de se deter nos detalhes, nos ambientes, num certo desejo de aventura.

Isso é outra vida. A vida em que estou a ler ou a viajar é outra vida. Não tem a ver com o dia-a-dia. Gosto muito de fazer separações.

 

Porquê?

Quando estou a trabalhar gosto de estar a trabalhar. Não gosto da chamada conversa de café, gosto de optimizar (outra palavra de que gosto muito) o tempo.

 

Optimizar é mesmo palavra de economista. É mais de optimizar do que de dissecar?

Exactamente. E fazer o necessário para chegar a um nível que satisfaça; não é preciso chegar ao nível ideal. Não sou um perfeccionista, nunca fui. (Esta é a tese que está na base, de uma forma muito simplista, do Prémio Nobel do Herbert Simon, em 1977).

 

Explique-me porque é que as coisas não são permeáveis. Qual é o perigo?

Há o perigo de não serem optimizadas. Não há coisa que mais me aborreça do que um daqueles dias em que trabalhei pouco, não li nada, não vi nenhum filme, não fiz bem nada. Durante o fim-de-semana tenho de ver um ou dois filmes, tenho de ler normalmente um livro.

 

Dois autores de que goste.

Um que adorava (mas ultimamente os livros estão a piorar) é o Paul Auster. O Jay McInerney (de que gosto particularmente), o Ian McEwan, o autor de origem indiana que ganhou o Booker Prize, o Aravind Adiga (o “Tigre Branco” é espantoso). Há anos gostei muito da Amy Tan e da Tama Janowitz (dos últimos não tenho gostado tanto).

 

Pergunto porque queria perceber qual é o seu mundo paralelo. É muito diferente gostar de Paul Auster ou de Dostoievski. Dostoievski inquieta um bocadinho mais.

Acho as personagens exageradas. Ou talvez não sejam, porque não conheci a Rússia no século XIX. Parecem-me todos personagens bastante perturbadas. O último que li foi “Crime e castigo”; “ O jogador” li com 18 anos e já não me lembro bem; nunca li “Os irmãos Karamazov”. Gosto de ler autores portugueses, porque os personagens estão mais relacionadas connosco. E leio muitos policiais, tenho umas largas centenas. Ainda por cima podem-se ler muito depressa – mais uma vez, optimiza o tempo.

 

É muito apressado. Há-de dizer-me porque é que corre tanto.

Detesto correr, no ginásio nunca corro [risos]. Porque acho que há muita coisa para fazer e para ver.

 

Tem uma urgência no reconhecimento de si, das suas capacidades, dos lugares que conquista?

Não. Tenho urgência no conhecimento. Há imensos sítios onde ainda quero ir, imensos livros que ainda quero ler, imensos filmes que já foram feitos, e outros que ainda serão feitos, que quero ver. Daí a pressa. Em casa tenho uma forma de arrumar os livros: umas estantes bastante grandes para os que já li, e outra estante para os que não estão lidos. Está tudo por ordem alfabética.

 

Que importância tem para si chegar aos 39 anos e dizer que é provavelmente o mais jovem Governador do Banco de Portugal de sempre?

Foi com alguma surpresa que recebi o convite do Primeiro-Ministro da altura, o Professor Cavaco Silva, e do Dr. Catroga, que era o Ministro das Finanças. Quando me telefonaram, eu era Secretário de Estado das Finanças. Estava em Londres num seminário sobre privatizações, que era um dos pelouros que tinha nas Finanças. E não percebi muito bem porquê. Não sou economista, sou de Gestão de Empresas. Quando perguntei, disseram-me que era preciso estabilizar o escudo nos mercados. E isso sei fazer. Se era esse o desafio, eram coisas que me interessavam. Aspectos mais teóricos sobre política monetária, dizem-me menos.

 

Gostou de estar no Banco de Portugal?

Era preciso fazer duas coisas essenciais: estabilizar o escudo e a preparação para o euro – o que gostei de fazer. Achava menos interessante o dia-a-dia da política monetária numa moeda estabilizada.

 

Há ainda a relação com o poder, e a gestão das relações de poder, que um cargo como este implica.

Não me dou muito com ninguém.

 

Parece que se dá sempre com um determinado círculo: católicos e PSD.

Nem sequer sou casado pela igreja. Universidade Católica é diferente. Não me dou com católicos, não é o meu meio. Tive uma educação católica, mas os meus pais não eram muito ligados à igreja. O meu meio é o dos amigos do tempo da faculdade e do liceu, são essas as pessoas com quem me dou. Não entram em nenhuma dessas classificações.

 

São as suas duas vidas, a profissional e política e a pessoal. Foi Secretário de Estado de Mira Amaral, de Faria de Oliveira e de Eduardo Catroga. O seu percurso profissional também se faz muito à volta deste grupo de pessoas.

O ponto em comum é o Professor Cavaco Silva. Era o único que conhecia bem. Foi meu professor na faculdade. Quando eu estava na direcção do departamento de Gestão, na Católica, ele era responsável, ou acompanhava muito, o departamento de Economia. Lembro-me de ter muitas conversas com ele, nomeadamente no Banco de Portugal. A minha relação com a política teve a ver muito com isso. Nunca fui membro de nenhum partido. Essa foi a única questão que levantei quando fui convidado para o Governo.

 

Nem queria pertencer?

Não queria ter uma carreira política, não quis inscrever-me num partido. Não gosto de dizer que nunca pertencerei, porque nunca se sabe. Detesto fazer essas afirmações peremptórias, porque não são um facto. O engenheiro Faria de Oliveira, conheci na minha primeira experiência num cargo público, no princípio de 1986, quando tomei uma decisão que acabou por ter muita importância na minha carreira posterior; que foi abandonar o que estava a fazer e aceitar o convite para ser administrador do IPE.

 

O Professor Cavaco Silva foi um mestre? Foi uma pessoa importante no seu percurso, antes mesmo das portas políticas que a seguir se abriram?

Ele deu-me a cadeira de Moeda e Bancos. Tivemos algum contacto na universidade, mas nunca foi muito íntimo.

 

Quando foi convidado para Secretário de Estado foi mais uma escolha do Professor Cavaco ou dos Ministros de quem foi Secretário de Estado?

Pelo que me disseram, foi de ambos.

 

Ele lembrou-se de o chamar pela memória que tinha de si enquanto aluno? Já era uma coisa longínqua, já tinham passado mais de 10 anos...

Acho que tive a melhor nota que ele tinha dado até à altura. Um 18.

 

Ficou muito vaidoso?
Não, até foi das piores notas que tive nesse ano.

 

Está a fazer género… Seja franco.

É verdade. No último ano tive 19 a quase todas as disciplinas, ter 18 não foi brilhante. Não sou perfeccionista, mas não gosto de falhar. Tirando o primeiro ano em que tirei as tais notas, raramente tive menos de 18.

 

É curioso que seja tão exigente consigo.

É como quando estou a jogar futebol, à defesa, e falho um daqueles cortes absurdos ou a bola passa por baixo das pernas. Fico furioso. Mas isso, [falhar], acontece mais vezes. Por isso é que nunca fui jogador profissional.

 

Achou sempre que o seu grande capital era a inteligência?

Sendo sincero, acho que sim.

 

Nunca em nenhum momento duvidou disso?

Não. Foi a escola que me deu confiança. Era tudo tão fácil… Depois trabalhava e estudava ao mesmo tempo e as notas continuaram a aparecer. Isso deu-me uma enorme segurança.

 

É inseguro em relação a quê? Era um homem bonito, era inseguro por causa disso?

Um dos problemas que sempre tive foi tendência para engordar. Não é simpático. Obviamente que me perseguiu e persegue.

 

E é horrível ser apontado pelos colegas como sendo “o gordo”, mesmo que seja o gordo inteligente.

A vantagem é que era bom em desportos. Não era excepcional, mas era razoável.

 

Mas não é gordo. Emagreceu muito?

Já fui mais gordo. Hoje em dia, para a minha idade, devo ter uns cinco quilos a mais. Fiz halterofilismo e rugby, tinha uma envergadura bastante grande. Ser gordo, foi mais em miúdo.

 

O desporto era uma maneira de socializar? Pode ser estigmatizante ser muito melhor que os outros.

Nunca tive muito melhores notas que os outros. Tive a sorte de ter colegas que tinham notas semelhantes. Era bom aluno e muitas vezes terei sido o melhor, mas por umas décimas ou por um valor. Isso é bom, nomeadamente para uma pessoa competitiva e que não é perfeccionista. Estive umas semanas num outro liceu por causa de um problema que tive com um professor. O nível dos alunos era francamente pior e até já me custava participar nas aulas… é chato estar numa sala onde a pessoa que responde é sempre a mesma. Estava habituado a turmas onde não estava sempre na berlinda.

 

Porque é que teve o problema com o professor? O que é que o pode chatear de morte, a ponto de mudar de liceu?

Eu era bastante agressivo com os professores, em termos de auto-confiança. Ele zangou-se comigo. No 6º ano do liceu deu-me 10, 10, 10. Só não me chumbou porque o reitor disse que isso era inacreditável, que era mera perseguição. Não queria estar num liceu onde estava um tipo destes. Depois voltei ao Camões porque ele saiu entretanto. Tive alguns problemas com professores ao longo do tempo, mas este dizia que fizesse eu o que fizesse, teria sempre 10. Era particularmente irritante.

 

Estávamos naquele período dos anos 80 em que foi Secretário de Estado. Por três vezes. Teve pena de não ser Ministro?

Não. Para isso tinha que ter uma actividade política directa a nível partidário. Dificilmente aceitaria isso.

 

Há pessoas que foram Ministros e que não têm carreira política. São-no como “técnicos”.

É muito difícil. Gostei de ser Secretário de Estado. Em qualquer das três versões tinha coisas muito concretas para fazer. E eram coisas muito técnicas, não tendo que me meter em assuntos de amplitude mais política.

 

Não gosta desse jogo de poderes e de política?

Não, de todo. Ainda por cima não acho que isso seja compatível com o estilo de vida que quero ter. As pessoas passam a vida em reuniões à noite e em jantares, e depois não podem ler.

 

Não há dúvida quanto à confiança que tem nas suas competências. Mas muitas das suas nomeações são políticas. É uma coisa com a qual convive mal? Ficar com o ferrete de ser uma nomeação política e não uma nomeação pelas suas competências e pelos resultados que conseguiu pela vida fora.

Isso é daquelas coisas a que não sou capaz de responder. Muitas das nomeações que tive são necessariamente nomeações políticas. Para Secretário de Estado, para Governador do Banco de Portugal, para presidente da Caixa, que é uma empresa pública.

 

Também para o Totta? Quando lá esteve, ainda era um banco público?

Quando entrei, como administrador executivo, já estava privatizado, mas a participação do Estado ainda era importante. Depois o Dr. José Roquette convidou-me a ficar. Quando fui presidente da Totta Gespar foi pelos privados, o Estado já só tinha 10 ou 20% do banco. Antes disso tinha uma empresa de consultadoria com várias pessoas, colegas da universidade (o Alexandre Relvas, o Manuel Faria Blanc e o João Neves), que depois evoluiu para trabalhar na bolsa. Desde que saí da Caixa, o que criei foi uma empresa privada. Nunca fui funcionário de uma empresa por conta de outrem, a não ser como professor universitário.

 

Insisto: incomodava-o que estas nomeações pudessem diminuir perante terceiros aquilo que seria a sua competência e capacidades?

Não. Eu era claramente conhecido (pelas pessoas que estavam mais próximas da tomada de decisão) por não ter nenhuma relação partidária. Não expresso muito a minha opinião política. Não quero entrar nesse jogo, não é essa a área de actividade que me interessa seguir. Quando fui para a Caixa Geral de Depósitos, quem estava no governo era o Partido Socialista, o Primeiro-Ministro era o engenheiro António Guterres. Dificilmente se pode dizer que foi por ser muito próximo do engenheiro Guterres, (pessoa excelente que conheci no IPE, embora nos conhecêssemos mal porque tínhamos áreas completamente diferentes). Não tinha nenhuma ligação pessoal ao Governo nem às pessoas que estavam mais próximas da tomada de decisão. Até de uma pessoa que mais tarde vim a conhecer melhor, o Dr. Pina Moura, que era o ministro das Finanças da altura. Quando passei do Banco de Portugal para a CGD, ele estava no ministério há dois ou três meses; anteriormente tinha sido ministro da Economia e raramente o tinha visto, a não ser em cerimónias oficiais.

 

Essa nomeação foi para si especialmente surpreendente, por ser feita por um Governo PS? Tinha sido Secretário de Estado de três ministros PSD.

Nunca [me surpreendeu] que fosse nomeado por ser o governo A ou B. Nunca fui muito apreciado em nenhum partido.

 

Por não ser do partido?

Exactamente. E por ter muitas vezes opiniões diferentes do partido, ou opiniões diferentes dentro do próprio Governo.

 

Quando se pesquisa o seu nome na Wikipédia, vem escrito que “atribuiu condições remuneratórias principescas, incluindo pensões vitalícias, aos membros do Conselho de Administração”.

O que não é verdade. Há uns anos, quando isso foi colocado, até perguntei ao meu filho, que percebe do assunto, se valia a pena protestar; ele disse que não, porque colocariam outra coisa qualquer. A Wikipédia é uma daqueles maus exemplos da sociedade de informação: tem muita informação que pode estar certa ou errada. Há uma parte que diz: “Criou o sistema que beneficiou os seus colegas”; é verdade, beneficiei. Mas eu fui o que beneficiou menos. Até teria uma reforma muito melhor na CGD do que no Banco de Portugal. E não tivemos influência directa no assunto, foi uma imposição do Banco Central Europeu.

 

Como assim?

Tínhamos de ter um sistema totalmente claro, quer de remuneração quer de reforma, por causa da chamada independência pessoal do Governador e do Conselho de Administração do Banco. Era uma das condições de acesso ao euro – mudar a lei orgânica do Banco de Portugal – e fizemo-lo. Tenho muita pena, por muitas razões, (era uma pessoa de que gostava muito), que o Professor Sousa Franco tenha morrido. Se ele fosse vivo, dado que foi ele que fez isso pessoalmente, teria esclarecido tudo. Essa polémica surgiu um ano ou dois depois da morte dele.

 

O seu pai vai ler esta entrevista?

Quase de certeza que sim.

 

Acha que ele o vai reconhecer completamente? Este é a persona pública e não exactamente o filho que ele conhece e com quem fala nos almoços de domingo.

Também sabe que almoçamos ao domingo? [risos] Por acaso é verdade. Penso que me vai reconhecer, nomeadamente o “dever ser” e outros slogans ou valores desse género. O meu pai, nesse aspecto, é uma pessoa extremamente rígida, não o sendo na educação.

 

É o tipo de pai que segue as entrevistas do filho, em quem tem um especial orgulho?

Ainda por cima sou filho único… Não tenho grandes padrões de comparação.

 

E a sua mãe?

A minha mãe morreu há sete anos. Era licenciada em Matemática. Era uma pessoa bastante diferente do meu pai, era mais emocional. (Sou mais parecido com o meu pai). Tínhamos também uma boa relação, embora com o meu pai fosse mais próxima. Mais próxima e mais distante ao mesmo tempo. A minha mãe estava mais presente, o meu pai saía de manhã e chegava à noite. Em tempos idos, ainda havia o hábito de ir a casa almoçar, e fazíamo-lo juntos. Havia uma coisa que adorava fazer (pode achar absurdo)…

 

Conte.

O meu pai era do Instituto Comercial. Fazia aquilo a que na altura se chamavam escritas e que hoje em dia é a contabilidade das empresas. Fazia isso ao sábado, o dia que tinha livre. Desde os seis, sete anos que o ajudava a conferir facturas, a fazer livros de registo de vendas, balanços. Ele só não me deixava escrever, porque aquilo tinha de ser feito com uma letra muito bonita (que nunca tive). Adorava fazer isso com o meu pai. E era o tipo de coisas em que era capaz de competir contra mim próprio! Quantas facturas é que era capaz de conferir numa hora sem me enganar?

 

Uma tarefa com a sua mãe.

A minha mãe era professora de Matemática. Lembra-se dos livros de exercícios do Palma Fernandes? Fazia competições com ela. Por exemplo, fazer o exercício de cabeça, sem fazer contas. [risos] Ela não gostava muito, achava que eu estava pura e simplesmente a jogar, a ser competitivo. Mas a minha mãe ajudou-me muito nisso. Ser capaz de saber tanto só oralmente fazia com que achasse que não era preciso estudar mais. Já me dava confiança para ir jogar à bola outra vez.

 

O que é que faz melhor?

Talvez aquilo que saiba fazer melhor é analisar problemas e tentar encontrar soluções. O “problem solving” é aquilo que sinto que posso ser diferente a fazer. Como é que se resolve um problema que parece insolúvel, vendo-o sem as restrições que normalmente nos auto-impomos?

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2011

 

 

Carlos Moreno

18.03.15

Nasceu em 1941. Formou-se entre jesuítas. É o juiz jubilado do Tribunal de Contas que “analisa duas décadas de despesismo público” no livro Como o Estado Gasta o Nosso Dinheiro.

Um sucesso. Numa altura em que falar mal dos políticos parece ser o desporto preferido dos homens (e das mulheres), o livro está nos lugares cimeiros dos tops e já vendeu cerca de 25 mil exemplares.

De que é que se fala no livro, o que é se preconiza? Aquilo que, na entrevista, Carlos Moreno sintetiza deste modo: “Não pode continuar a culpa a morrer solteira sempre que há desperdício de dinheiro público, mesmo que não haja nenhuma ilegalidade”.

Reformou-se. “Nos meus últimos 15 anos, como juiz do Tribunal de Contas português, fiz sempre auditoria de boa gestão em áreas que tinham a ver com o executivo”. Começou em 1965, na Inspecção de Crédito e Seguros, onde passou dez anos. Pelo meio, esteve no Luxemburgo, onde foi o primeiro juiz português a integrar o Tribunal de Contas Europeu.

A entrevista tem dois momentos, um mesmo tom. Aquele em que se fala do livro e do tópico preferido dos portugueses (apesar da impotência e inactividade), e aquele em que ficamos a saber quem é este homem que aparece na televisão a dizer as coisas que, quem o encontra na rua, lhe diz que passa a compreender. Ele diz que é porque as diz de modo simples, sem floreados políticos.

Porquê um mesmo tom? Porque Carlos Moreno é o mesmo quando fala de si próprio ou das parcerias público-privadas. Um tom composto, redondo, de quem formula frases longas e diz coisas como “as mais frequentes relações”.

Encontrámo-nos num hotel de Lisboa e nas mesas do pequeno-almoço talvez estivessem homens de negócios. Quantos deles gastariam mal os dinheiros públicos?

  

Foi o primeiro juiz português do Tribunal de Contas das Comunidades. Quem é que o nomeou? Em 86 já estamos em período cavaquista.

Os governos nacionais faziam uma indigitação, depois o Parlamento Europeu fazia uma audição através da comissão de controlo orçamental, depois o conselho de ministros das comunidades nomeava. É evidente que a indigitação dos estados membros era fundamental. Quem me indigitou foi o Prof. Cavaco Silva, que era primeiro-ministro na altura.

 

Que relações tinha com alguns destes agentes políticos? Foi o primeiro nomeado, podia ser qualquer outro. É preciso perceber qual é o quadro de relações e de confiança.

O quadro é muito simples. Era desde 1980 director-geral do Tribunal de Contas, numa altura em que o Tribunal de Contas era um organismo quase marginalizado. Tirando os juízes e o director-geral não havia um único licenciado. Era um organismo burocrático, fazia o visto prévio, mais nada. Fui nomeado director-geral pelo então primeiro-ministro, Dr. Sá Carneiro, que não conhecia, e pelo ministro das Finanças, Prof. Cavaco Silva, que conhecia apenas do Ministério das Finanças. As autoridades comunitárias visitaram Portugal nas vésperas da adesão. Contactei com eles, conversámos muito sobre a realidade portuguesa. Não há aqui uma escolha pessoal, muito menos política. Eu era um tecnocrata que tinha recebido aquela incumbência. Há todo um trabalho de sapa que é feito, progressista. Já se defendia em 1983 que o sector empresarial do Estado devia ser controlado pelo Tribunal de Contas, e não apenas a estrita legalidade.

 

Teve muito poder nessa altura? Gostava de perceber a sua atracção pelo poder, porque não é por acaso que ocupa sempre cargos de poder.

A palavra poder pode ter um sentido perverso. Pode significar, ou ser entendido como arbítrio, como exercício autocrático. Tenho lugares de poder no sentido em que tenho poder de decisão. O poder de decisão que fui tendo, tirando os anos em que fui director-geral do Tribunal de Contas português (onde tinha o poder de gerir 300 e tal funcionários e uma direcção-geral importante) é poder técnico. Quando se controla tecnicamente, e se controla o poder político, é muito difícil que o poder político reaja tecnicamente ao controlo técnico. O poder político reage sempre politicamente ao controlo de natureza técnica. A minha área de controlo é o sector público empresarial do Estado.

 

As famosas (alude a elas constantemente no seu livro) PPP, parcerias público-privadas.

Fundamentalmente os meus controlados são os detentores do poder político, os executivos, os governos. A auditoria da boa gestão financeira é uma auditoria eminentemente técnica, que vai averiguar se o dinheiro é bem ou mal gasto, e porquê.

 

Quando lemos o seu livro ficamos com a impressão de que, desde que há dinheiro da Europa, desde 1985/86, isto foi um regabofe. O dinheiro público foi mal usado, ou usado de maneira pouco escrupulosa, e não foram responsabilizados os que fizeram essa gestão danosa dos dinheiros públicos. Entrando no livro, gostava que me dissesse se esta expressão que usei – regabofe – lhe parece excessiva.

Regabofe, do ponto de vista técnico, não é adequado. Nas áreas importantes que estiveram sob meu controlo, há um mau uso, um desperdício que me perturba. Sempre tive a noção clara de que havia na sociedade portuguesa um problema de educação. Enquanto a sociedade no seu todo se desligava da gestão dos dinheiros públicos, considerando que eram do Estado, eu não partilhava dessa visão. Fui professor universitário durante 25 anos; (não recebi um tostão por isso nos últimos 15 anos, dei aulas de borla de Finanças Públicas). A primeira preocupação com os alunos do 1º ano era cativá-los para estarem em sintonia comigo nesta visão das coisas. O dinheiro dos contribuintes, o dinheiro do Estado era deles, era das pessoas, e os contribuintes deviam ser exigentes para com aqueles que administravam o respectivo dinheiro. Se não houvesse pressão da sociedade sobre os detentores do poder para que o dinheiro fosse bem gerido, o desleixo, a incompetência, a má gestão, o desperdício seriam uma constante.

 

Sempre teve essa noção? Sempre pugnou por isso?

Sofro uma influência muito grande dos países da Europa do centro e do norte, onde vivi durante nove anos e onde contactei de perto com uma visão muito diferente da visão latina. Isso buliu sempre comigo. A nossa obrigação, porque temos meios escassos e temos que tirar deles o maior proveito, é controlar a floresta e não o arbusto. Deixar os pequenos actos de gestão, que não envolvem grandes montantes, e ir sobretudo para aqueles que envolvem milhões, que são os grandes negócios de Estado, os grandes eventos. O Euro 2004, a Expo 98, os grandes grupos económicos do Estado. Foi essa a opção de controlo que propus e que vingou ao longo destes 15 anos. Não sob o aspecto de legalidade, mas da boa gestão financeira, porque é a única forma que temos de encontrar os desperdícios, os desleixos e as incompetências.

 

É por isso que diz que a gestão que é feita desses fundos deve ser alvo de uma responsabilização?

Exactamente. No estádio actual da nossa legislação financeira, o Tribunal de Contas tem poderes para aplicar sanções pecuniárias, sejam multas, seja a integração nos cofres do Estado de dinheiros públicos, aos responsáveis – pelo cometimento de ilegalidades, de violação da lei. Em matéria de desperdícios, de má gestão, desde que a lei seja cumprida, a lei não prevê sancionamento. Por isso defendo duas coisas: que se torne obrigatório a quem gasta dinheiro dos contribuintes justificar [a razão de ser dos gastos], não apenas com base nos critérios de respeito pela lei, mas de respeito pelos princípios da economia, da eficiência. Ou seja, atingindo resultados sem derrapagens e ao menor custo para o contribuinte. E que quando isto não se verifique, seja criada a possibilidade de sancionar quem não cumpriu estes critérios.

 

Isso seria uma maneira de responder àquilo a que no seu livro chama “as portas abertas” que são deixadas pela própria legislação e que permite fugir por aqui e por acolá?

Formalidades legais, ou cumprir leis, não é algo de extremamente difícil em duas circunstâncias: quando o poder pode modificar as leis, e quando, sobretudo em países de tradição latina e napoleónica, “como é que posso furar a lei sem ser apanhado nas suas malhas” é um desafio que toda a gente gosta de correr. Deixe-me contar-lhe uma pequena história elucidativa a este respeito.

 

Conte.

Estava eu integrado numa equipa de investigação conjunta com a Polícia Judiciária quando esta detém um indivíduo no aeroporto da Portela para interrogatório, em 1966. Perguntado ao sujeito qual era a sua profissão, responde: “Ensinar os homens de negócios, os homens importantes, a fugir à lei sem a transgredir”. Aprendi isso como uma lição que vi desfilar diante dos meus olhos durante toda a vida.

 

Ou seja, safam-se sempre aqueles que têm dinheiro para contratar bons advogados que os ensinam a não ser apanhados nas malhas da lei.

Na vida comum do dia-a-dia isso é assim. Os processos dos homens com poder, nomeadamente económico, arrastam-se por muito mais anos nos tribunais do que os processos das pessoas que não têm poder. O formalismo, o processo, o recurso de tribunal em tribunal, é uma coisa que tem muita importância nos países de tradição latina ou de raiz napoleónica.

 

Confia na nossa justiça?

Confio. Fiz parte da justiça, se não confiasse nela… É evidente que confio. Embora admita e esteja consciente de que a justiça é extremamente lenta a resolver o que é importante e que isso é decisivo para a competitividade internacional do nosso país e para que o capital estrangeiro possa deslocar-se para Portugal. É uma das grandes áreas que precisa ser reformada para que nos tornemos um país verdadeiramente moderno no quadro mundial e europeu.

 

Há uma ineficiência que resulta dessa lentidão.

Há. A justiça aqui tem que ser entendida em termos muito amplos, que vão desde os actores sociais aos próprios agentes da justiça, e ao próprio sistema jurídico. Tudo isto precisa de reforma. Os que talvez tenham menos culpa são os juízes, que trabalham muito com poucos resultados.

 

O cidadão assiste impotente a uma sucessão de situações que atravessam vários governos, não são exclusivas de uma administração PS ou PSD. Assiste ao descalabro, às situações que resvalam para o desperdício. Por isso insisto e pergunto se confia.

Estou numa área restrita, da gestão dos dinheiros públicos. Quando me perguntam: “O cidadão pode confiar na justiça?”, diria de outra maneira: “O cidadão tem de ter um comportamento que incite a justiça, a acção do Tribunal de Contas, a ser mais eficaz, dura, a aplicar sanções no domínio do desperdício dos dinheiros públicos”. Não pode continuar a culpa a morrer solteira sempre que há desperdício de dinheiro público, desleixo, incompetência, prejuízo para o erário público, mesmo que não haja nenhuma ilegalidade. Se houver um ilícito criminal sai fora do Tribunal de Contas e, com todas as dificuldades que são conhecidas, o Ministério Público, a Polícia Judiciárias e os tribunais investigam os crimes.

 

O que é que pode objectivamente o cidadão fazer?

Pode ter um comportamento de exigência em relação ao Estado, aos detentores do poder político, fazer pressão no sentido de que as coisas se alterem. O contribuinte não tem alternativa, quando lhe cobram impostos é obrigado a pagá-los. Este dinheiro não pode deixar de estar sob a sua vigilância intelectual, sob a sua exigência de ser bem gasto. É um bem escasso, foi-lhe retirado para a realização do bem comum. O cidadão tem uma obrigação social de se interessar por saber como é que o seu dinheiro foi gerido. Se houver pressão social nesse sentido, como há nas sociedades nórdicas e da Europa do centro…

 

Intervenção cívica.

Se houver intervenção cívica, é evidente que o poder é mais escrupuloso, tem melhores leis e atribui poderes às entidades competentes para o efeito para sancionar os desvios. Só em 1996 é que o Tribunal de Contas foi dotado de competências para controlar o sector público empresarial, que gere milhões de euros, para controlar a boa gestão financeira, o desperdício, o bom uso dos dinheiros públicos. Mas não foi dotado até hoje de poderes para sancionar o mau uso dos dinheiros públicos. Estas coisas levam muito tempo a ser concretizadas. Quanto maior for a pressão social, no sentido de as coisas se modificarem, mais rápidas elas andam.

 

Gostava de lhe perguntar se o Dr. Pedro Passos Coelho o contactou recentemente. Isto que defende no seu livro, não sendo o mesmo, não é muito diferente daquilo que o líder do PSD defendeu quando veio a público dizer que aqueles que fazem mau uso dos dinheiros públicos devem ser responsabilizadas por isso.

Não o conheço, a não ser da televisão. Nunca com ele me cruzei, nem na vida profissional nem na vida pessoal. Julgo que há uma pequena diferença, pelo que ouvi, naquilo que proponho e naquilo que o Dr. Pedro Passos Coelho propõe: a criminalização.

 

No seu caso defende essa criminalização apenas quando há crime.

Quando há crime não há muito coisa a modificar, a gestão danosa já é considerada crime. O que poderá aí ter de se fazer é tornar muito mais célere a investigação e a conclusão dos processos. Agora, há um terreno, que não é o terreno criminal, que é o terreno da análise técnica da administração dos dinheiros públicos, no qual, quando o Tribunal de Contas chegar à conclusão de que há mau uso de dinheiros públicos, embora não ilegal, e sem haver crime, [é possível fazer coisas].

Quem detém, ou pode vir a deter o poder político, não se sentirá muito confortável. Porque lhe podem ir ao bolso quando toma decisões que são consideradas em Portugal inatacáveis. Há esta mentalidade: as decisões políticas, mesmo quando têm uma componente técnica, são decisões políticas, e os políticos só podem ser julgados em eleições.

 

Não deixa de ser curioso que o seu livro já tenha vendido 25 mil exemplares e que faça um grande sucesso junto da opinião pública aquilo que defende. Pelo contrário, quando o Dr. Pedro Passos Coelho interveio recentemente dizendo qualquer coisa que vai também nesse sentido, foi zurzido pela classe política e pelos comentadores de um modo geral.

A conclusão que posso tirar daí é esta: as pessoas que lêem o meu livro são os cidadãos comuns que se sentem preocupados com muita coisa que se passa no nosso país em matéria de desperdício de dinheiros públicos. As pessoas dizem-me na rua: “Porque é que o senhor explica bem as coisas e quando os outros falam não percebemos bem o que é que eles dizem?”. A classe política passou ao lado do que escrevi porque, não tenho poder político, não faço parte da esfera do poder político. Passa ao lado, convencida e consciente de que o que proponho nunca terá forma de lei.

 

Que é uma voz no deserto.

Será uma voz que não conduzirá, pelo menos nos tempos mais próximos, a modificações da legislação em vigor.

 

Porque é que só agora que se reformou é que publicou este livro? Isto é aquilo de que alguns dos seus críticos o acusam: de não se ter ouvido a sua voz enquanto esteve no activo.

Isso não é verdade. Nas minhas lições de finanças públicas, publicadas por uma editora menos visível, da UAL, onde dava aulas, muitas destas matérias estão tratadas, às vezes de uma forma mais dura do que neste livro. Enquanto lições terão sido lidas por uma elite. Este livro está escrito de uma forma mais sólida, mais simplificada, com muitos exemplos, com o objectivo, meu e dos editores, de chegar ao grande público. Não conto aí história nenhuma de derrapagem de obra pública, derrapagem de parceria público-privada, que não tenha na altura oportuna sido denunciada em relatórios do Tribunal de Contas. Mesmo esta proposta de sancionamento, tinha-a feito várias vezes em conferências, publicações. Só que o livro, pela época em que foi escrito, pela maneira como está escrito, teve a capacidade de penetrar na opinião pública. Os meios de comunicação social pediram-me para participar em programas onde defendi as mesmas ideias.

 

É inegável que agora tem mais visibilidade.

Esta minha participação pública é que é nova, porque estou liberto do peso que tinha quando estava integrado numa instituição, na qual não era o juiz-redactor que tinha a visibilidade daquilo que fazia, mas era o órgão e o respectivo presidente.

 

Conheçamos o percurso, para melhor compreender as posições que agora toma. Vamos a um momento importante da sua vida profissional. Em 1976, que pessoa era e que vida era a sua?

Era um quadro técnico do Ministério das Finanças. Estava como auditor jurídico da Inspecção de Crédito e Seguros, o organismo que fazia a supervisão bancária e seguradora. Era aquilo a que hoje se pode chamar um director. Tinha um poder incomensurável. Era o primeiro auditor jurídico que não provinha da magistratura judicial. As minhas competências eram deduzir acusações sobre as transgressões ou as violações das normas reguladoras dos mercados monetário, cambial e financeiro.

 

Estávamos no pós-revolução.

Era uma altura conturbada, sobretudo para quem tinha a supervisão bancária. Uma das grandes questões que se me punham quotidianamente eram os pedidos de várias origens, desde delegados do MFA, até delegados partidários no Banco de Portugal; por telefone, pediam-me para congelar contas bancárias de figuras que estavam na mó de baixo.

 

Em nome dos interesses políticos – era essa a fundamentação dos pedidos?

Quem vinha do antigo regime e tinha contas bancárias: [era preciso] secar-lhes a fonte de rendimento e pôr essas contas ao serviço do “povo”. Um delegado do MFA podia ser um tenente, um capitão, um sargento. Tive sempre esta postura: “No cargo em que estou, sou dependente do ministro das Finanças”. Portanto, perguntava claramente quem é que me dava ordens.

 

Escudava-se na hierarquia?

Não, escudava-me na legitimidade do poder, que é diferente. A hierarquia para mim não tem significado. Não precisava de autorização superior para poder dar uma ordem a um banco, o que precisava era de saber quem é que me podia dar ordens. Quando isso ficou clarificado, passei a ter uma vida muito mais tranquila, na medida em que respondia a toda a gente: “Se entende que deve ser congelado, dirija-se ao Ministro das Finanças”.

 

Que pessoa era para que diferentes facções da sociedade se dirigissem a si? Quem pede acha que pode pedir.

Mas é evidente, e é melhor ir-se ao sítio certo. Dirigiam-se à função e não à pessoa.

 

Quem eram as pessoas com quem se dava em 1976? Que é também uma forma de perguntar que mundo era o seu em 1976. Não a função, mas a pessoa.

Dava-me com amigos dos meus tempos de Coimbra, com amigos que fiz na tropa (Mafra, 1966). Fi-la já com dois anos de licenciatura e casado. Foi um tempo extremamente duro. E também, porque sempre foi uma vertente muito importante, dava-me com amigos do trabalho.

 

Diga-me quem são algumas dessas pessoas. Estamos a falar de um período da vida portuguesa em que tudo era efervescente.

Algumas serão desconhecidas. O António Castelo Branco Silveira, o Abílio Neto. O Basílio Horta, meu colega de serviço, o Artur Santos Silva, que era Secretário de Estado do Tesouro.

 

Do lado do PS, Salgado Zenha, dava-se com ele?

Era um homem de uma geração diferente da minha. Quando aquela equipa governativa foi para o Ministério das Finanças, com quem tinha mais frequentes relações, não só pessoais mas profissionais, era com o Artur Santos Silva, que era do meu tempo de Coimbra, embora ligeiramente mais velho. A Lei das Nacionalizações (das indemnizações que deveriam ser pagas pelas nacionalizações), em 76 ou 77, foi feita no gabinete do Artur Santos Silva. Recordo-me de uma preocupação do então Secretário de Estado do Tesouro: fazer uma lei que passasse no Conselho da Revolução, que era multiforme, e cujo preâmbulo tinha de ser muito bem trabalhado para não suscitar qualquer dificuldade. Uma das coisas que o Artur me pediu foi que fizesse esse preâmbulo; claro que foi revisto ao nível político, mas a base é minha. Passou sem uma beliscadura.

 

Era uma pessoa politizada por esses anos, antes disso?

Em 76, de forma silenciosa ou barulhenta, não houve ninguém, que ficasse indiferente à política e às ideologias políticas. É evidente que também não fiquei indiferente, embora nunca tivesse tido no campo político nenhuma actividade partidária.

 

Porquê?

Opção de vida. Em 1965, comecei por fazer uma opção: ou vir para Lisboa, para um organismo técnico do Ministério das Finanças, ou ficar assistente na Faculdade de Direito de Coimbra. O que me atraiu foi vir para Lisboa. Uma coisa que a vai deixar perplexa: um assistente ganhava cerca de 1600 escudos, e como inspector técnico de segunda classe pagavam-me 4500 escudos por mês. Fui um homem quase rico nessa altura. Tão rico que recusei durante quatro anos, eu e outros, todos os convites para ir para o privado – onde pensávamos que teríamos um patrão, e ali, não. Era um organismo que recrutava os melhores alunos nas faculdades, e que lhes pagava o suficiente para que o Ministério das Finanças tivesse bons quadros.

 

A sua observação e participação no quadro político do Portugal de então era silenciosa.

Tinha opções perfeitamente claras, mas não as manifestava publicamente nem através de qualquer organização partidária.

 

Porque é que acha que não se manifestou?

Não estou a dizer que não me manifestei, manifestei-me. Estive na Alameda, numa manifestação organizada pelo Dr. Mário Soares, o Salgado Zenha, contra a unicidade sindical [Fonte Luminosa, 1975]. Não me manifestei através de organizações partidárias. Se calhar porque não tenho grande vocação para me inserir em organizações hierarquizadas, disciplinadas, onde, com ou sem razão, e a esta distância acho que tinha razão, alguma coisa daquilo que mais prezo, a liberdade, quase o ser libertário, o poder exprimir-me como quero, quando quero, sobre o que quero, pode não ser politicamente correcto.

 

O que é que foi fazer à Alameda?

Aquilo que sentia que era minha obrigação: combater pela democracia. Uma democracia representativa, de tipo ocidental, à qual aderia intelectualmente.

 

Recuemos mais ainda. Porque é que estuda Direito, porque é que é juiz, porque é que se especializa nestas questões? Comecemos pelo princípio: de onde é?

Saí de casa aos nove anos porque os meus pais viviam no Alentejo, e quando acabei a instrução primária, na terra onde vivíamos, não havia sítio para se estudar. O meu pai era notário e de vez em quando ia ao tribunal fazer alguma coisa de advocacia. Embora sendo filho de gente que se pode considerar remediada, classe média, os meus pais fazem um sacrifício tremendo para me mandarem para um colégio interno de jesuítas em Santo Tirso (isto para não mandarem o menino à solta para o liceu de Évora, que ficava a 60 quilómetros, o que naquela altura era uma distância muito grande). Atravesso o país inteiro de comboio e vou para um colégio onde, no primeiro e segundo ano, chorava à noite com saudades de casa.

 

É famoso esse colégio de Santo Tirso. Quanto tempo lá esteve?

Sete anos, até ao 7º ano. Apanhei as duas fases que os jesuítas atravessaram como homens de ensino e educadores de jovens. Uma época mais escolástica e mais severa, e uma época depois do 5º ano, quando vai para reitor o Pe. João Abranches. Eu era considerado um jovem rebelde e recalcitrante que não aceitava determinados métodos. O João Abranches pergunta-me: “O que é que queres para deixar de protestar?”. “Três coisas: que arranje maneira de o meu pai me dar licença para fumar, que nunca mais me ponham de joelhos de castigo e que me deixem sair aos domingos à tarde”. Tenho uma estrutura moral, ética e psicológica, uma solidez que me acompanhou ao longo de toda a vida, [e que deriva do colégio]. A distinção entre o bem e o mal, o correcto e o incorrecto, o amor e o ódio, entre o que deve ser e o que não deve der, ficaram muito claras ao longo dos sete anos em que passei pelos jesuítas.

 

E o cinzento, a zona da dúvida, da hesitação, a zona em que não é tão claro o que é o bem e o que é o mal? Como é que aprendeu a reconhecê-la, a lidar com ela?

Não sou um angustiado. Não me considero nada radical, sou um homem de compromisso. Mas o cinzento nunca foi um problema que se me pusesse.

 

O cinzento por oposição a um certo maniqueísmo em que às vezes podemos cair.

Nunca tive hesitações entre o que devia fazer e aquilo que não devia fazer. Mesmo que soubesse previamente que se fizesse aquilo ia ter aborrecimentos. Como não cedia ao caminho mais fácil, procurava sempre fazer aquilo que entendia, embora isso me pudesse custar dissabores.

 

Fale-me mais do que aprendeu no colégio e que é estruturante na pessoa que é.

Aprendi que a liberdade não está fora de nós, está dentro de nós. A liberdade é a liberdade de espírito, não é a liberdade física. Mesmo fechado dentro de um colégio aprendi que era possível voar, ter o mundo inteiro. Acho que os jesuítas me marcaram com a sua visão alargada sobre o mundo, sobre um mundo que se estendia do ocidente ao oriente.

 

Aprendeu a reconhecer em si um reduto inviolável, que constituía o seu espaço de liberdade. E isso protegia-o da estrutura na qual estava inserido e na qual não tinha a liberdade total.

Sim. Isso acompanhou-me, mesmo nas alturas mais difíceis, em que estava mais azedo, mais contrariado, mais pressionado por responsabilidades.

 

Pensou ser padre?

Como todos os jovens, houve uma altura em que emocionalmente pensei que ser padre podia ser extremamente cativante. Mas racionalmente nunca pensei ser padre.

 

Pensei que fosse ao contrário, que racionalmente pudesse ter pensado que era uma vida cativante, mas que emocionalmente existisse outra vida dentro de si.

Poder dedicar-me a uma vida de meditação, de voar para junto de Deus ou de me dedicar mais ao próximo, atraiu-me muito mais emocionalmente do que racionalmente. Quando via pequenos acontecimentos como uma procissão na minha terra, como uma missa mais faustosa, como eram as dos jesuítas no 8 de Dezembro, emocionalmente sentia-me atraído.

 

Porque é que racionalmente não se sentia atraído? O que é que racionalmente decidiu que a sua vida ia ser?

Sou mais emocional do que racional, mas acabo sempre por sobrepor o racional às emoções. Sempre estabeleci relações emocionalmente profundas com os meus colaboradores. Mas quando era preciso decidir se alguém continuava ou não comigo, nunca a emoção dessas relações se sobrepôs à racionalidade.

 

Com quem é que aprendeu a ser assim? O seu pai e a sua mãe eram assim?

Sou naturalmente assim. O meu pai era mais racional, a minha mãe era uma emocional que tinha também uma costela, que julgo herdei dela, de libertária. Estava fora do tempo dela. Ensinou-nos, numa vila alentejana, a patinar, a jogar ténis. Era uma mulher que, repare o que era isto em 1950 em Vila Viçosa, ia ao café. Nunca lhe chamámos mãe. Chamávamos-lhe Joana, que era o nome dela.

 

Porque é que não lhe chamavam mãe?

Mais do que ser mãe, gostava de ser uma companheira dos filhos, das noras, do genro, dos netos. Ela não pedia, criava as condições para ser tratada pelo nome próprio.

 

E ao pai?

Ao pai chamávamos pai. E segui essa tradição, toda a gente na minha família me trata pelo nome próprio.

 

Os seus filhos não lhe chamaram pai?

Poucas vezes. E as minhas noras também me chamam pai. Tenho seis filhos, cinco rapazes e uma rapariga, e sete netos. Irmãos, éramos três. O meu irmão mais novo já morreu há muitos anos, com um cancro, era médico. A minha irmã era professora, já está reformada. Eu sou o mais velho.

 

Deixe-me perguntar se nessa decisão racional entra um factor a que já aludiu: os seus pais fizeram um esforço para que pudesse estudar no colégio. A sua escolha era também uma maneira de os compensar pelo esforço que haviam feito?

Julgo que essa escolha não está ligada às decisões que os meus pais tomaram em relação à minha educação. Mas está um factor que foi predominante ao longo da minha vida: sou um maníaco de resultados. Gosto de realizar coisas e de as ver realizadas, bem realizadas, de uma forma eficiente, com o mínimo custo em todos os sentidos. Se a emoção se sobrepusesse ao raciocínio não tinha nunca atingido, como julgo que atingi, resultados concretos, palpáveis.

 

O que é que em si ainda existe desse homem que teve uma formação entre jesuítas, profundamente crente?

As bases cristãs são uma constante em mim. O interesse, a dedicação aos outros, ao bem comum. Outra constante: considerar que aqueles que na sociedade têm posições menos relevantes devem ter mais da minha atenção. Senti-os sempre como pessoas com menos sorte na vida.

 

Mas nunca pensou que a sua vida podia ser a deles se tivesse tido outra sorte, ou pensou?

Pensei. Nunca fui rico, nunca tive dinheiro para além do que era necessário, mas senti-me sempre um homem de sorte, e que nas alturas mais difíceis teve sempre uma mão invisível que lhe foi dada.

 

Uma altura difícil.

Para um homem que não tem riqueza de família, herdada, e que tem seis filhos para criar, quando chegaram àquela idade em que no dia 20 de cada mês já não tinha dinheiro, surge-me a oportunidade de ir para juiz do Tribunal de Contas das Comunidades. Surge-me a oportunidade de dar aos meus filhos uma educação no estrangeiro e de, do ponto de vista económico, ficar muito melhor do que estava aqui. A minha mulher não podia trabalhar; se trabalhasse, o ordenado dela não chegava para pagar as creches das crianças.

 

Porque é que teve seis filhos?

Não sei. Os filhos foram nascendo. Se pensasse duas vezes a cada filho que nascia, a vida, do ponto de vista racional, tornava-se mais difícil; mas nunca se tornou. Acabámos sempre por superar as dificuldades. Não há nenhuma razão moral nem religiosa.

 

Quando foi para o Luxemburgo como juiz do Tribunal de Contas Europeu, foi a família toda atrás?

Não foi logo. Numa sociedade luxemburguesa, caracterizada por haver muito poucas crianças, éramos motivo de reparo. Quando os meus filhos chegaram, tivemos de ir morar para uma casa que fosse isolada, para o barulho das crianças não incomodar a vizinhança. Quando são sociedades muito agarradas à comodidade individual, à tranquilidade individual, barulho de crianças não era uma coisa agradável.

 

Isso é o Luxemburgo no seu pior?

Não acho que seja no pior nem no melhor: é o Luxemburgo em 1986. Era assim.

 

Termina o livro com uma palavra de esperança, cita o Prof. Ernâni Lopes: “Onde existe facilitismo, deve haver exigência, onde está a vulgaridade, pôr a excelência…”. À luz do país em que vivemos, isto parece uma utopia. Acha que temos emenda?

Toda a minha vida tem algo de utópico. Já lhe disse que sou um emocional, e também sou, e adoro ser, um sonhador. Não sei se será para os meus filhos ou se será para os meus netos, mas no caminho em que estamos nem os meus filhos nem os meus netos poderão viver neste país. Alguma coisa tem que mudar. Pode parecer utópico, mas se não nos tornarmos, enquanto sociedade e enquanto poder, no que toca às finanças públicas, muito mais rigorosos, competentes, sérios, trabalhadores, não será possível. Porque o país será necessariamente engolido por quem, ou de quem, do ponto de vista financeiro já dependemos: dos credores internacionais e da União Europeia.

 

 Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2010

 

 

João Duque

17.03.15

João Duque gosta de ser o João Duque. O que aparece na televisão, o que preside ao ISEG, o que foi falado para ministro (ele fez constar que não podia aceitar). João Duque está visivelmente satisfeito por ter chegado onde chegou (e vão saber na entrevista de onde é que ele vem). Tem aquela atitude de quem esfrega as mãos e pergunta o que é que há para fazer a seguir. Transborda jovialidade, talvez um pouco em excesso. Pede uma sandes que quase não come, responde às perguntas com a convicção de que sabe comunicar e contar uma história. A sua história. Não é nada pomposo, não tem um tom monocórdico. Duque fez-se na comunicação social (pelo menos para o grande público) e sabe que chatezas, além de não pagarem dívidas, não granjeiam audiência.

A intenção não era entrevistar Duque sobre o documento mais discutido da semana passada (que pretendia definir o conceito de serviço público de televisão, cujo trabalho coordenou). Mas dar a conhecer Duque, que, no dia em que falava comigo, preparava o corpo para o dar às balas. Foi mais ou menos isto que disse e de que teve noção quando escolheu os adereços que ia pôr. À noite ia à televisão, de manhã tinha intervindo na rádio, nos jornais estava o essencial da proposta.

Quem é João Duque? Dois excertos da conversa: “Dava explicações para ganhar mais uns cobres e os meus alunos tinham sucesso. A característica das minhas intervenções públicas é ser claro nas ideias que transmito.” Noutra fase da vida: “Saí da direcção da Galp para me candidatar, como bolseiro, para estudar no estrangeiro, perdi imenso dinheiro. E depois de vir de Inglaterra estive na CMVM cinco anos, saí para vir trabalhar aqui, ganhando metade, sem carro. Está a ver do que é que abdiquei para ser professor”. Quem é? Professor, responderá ele. Com uma biografia que sumariamente se adianta.

  

O João Duque não é só o João Duque que conhecemos da televisão.

Claro que não.

 

Há uma primeira coisa que o denuncia, a sua maneira de vestir.

Ah, é?

 

Apareceu com um chapéu e uma gabardina. O chapéu é um adereço de outro tempo, de outro universo, que não esperamos ver no presidente do ISEG. Parecia um romântico...

É um misto de coisas, como em tudo na vida. Há dias em que estou com alguma disposição para ser diferente, e encarar essa diferença. Hoje é um dia particular na minha vida: acabei ontem de entregar um trabalho que me obriga, perante a sociedade portuguesa, a expor-me muito.

 

[A entrevista faz-se na manhã em que é conhecido o relatório sobre serviço público de televisão, a cuja comissão presidiu, e que entregou ao Governo.]

Acordei de amanhã – talvez tivesse dormido toda a noite a pensar nisso – com uma grande resiliência para esse tipo de combate.

 

Primeiro anglicismo, resiliência.

Isso permite-me hoje ostentar o chapéu. Se fosse um dia em que não conseguisse aguentar 50 comentários sobre o chapéu, porque as pessoas notam, não teria posto o chapéu.

 

Isso denota uma confiança em si, porque num dia como o de hoje, em que está especialmente exposto, permite-se o chapéu.

Estou disponível. Está um tempo adequado ao chapéu. O chapéu é um objecto antiquado, e tenho uma parte bastante conservadora. Sou do signo Gémeos. Consigo conciliar em mim duas personalidades diferentes, uma delas é muito conservadora. Por outro lado, aquele chapéu tem um ar de Indiana Jones, de uma certa aventura, contrapõe-se ao aspecto clássico.

 

Está a falar de si? Todas estas escolhas são medidas.

O que me pediu foi para me deitar no divã, é o que estou a fazer. E sei fazer introspecção e análise. Tenho essa vertente de aceitar desafios. Não é atirar-me para os abismos, é aceitar um desafio, sentir que posso ter algum medo de não ser capaz de saltar, mas ter a confiança de que hei-de fazer as coisas. Ainda agora aceitei o desafio de coordenar uma equipa de trabalho composta por pessoas da comunicação social sobre serviço público na comunicação social. Porque é que aceitei aquele desafio? Porque [há] uma componente importante que não deve ser omitida, nos dias de hoje em particular: a componente dos recursos financeiros.

 

Além de outras razões, mais uma: porque é você a coordenar.

Esse é o problema.

 

Não é o problema, é a vantagem.

Pois, é a vantagem que compreendi quando me pediram [para o fazer]: “Está bem, como coordeno tanta coisa, vou fazer um trabalho de coordenação”. O trabalho saiu óptimo porque dei espaço aos livres pensadores. Tenho essa característica, de ir atrás de um certo romantismo. Não perco a amarra da realidade, mas onde puder ir a amarra da realidade, deixo ir. Tentei dar espaço ao pensamento livre de homens que têm opinião em Portugal sobre um aspecto concreto. Eles sentiram-se bastante bem.

 

Por que é que tantas vezes coordena? Que é uma maneira de perguntar por que é que manda, por que é que tem poder, por que é que esse acaba por ser o seu papel?

Não tenho muito poder.

 

Aqui, para começar.

Aqui tenho. Sou presidente de uma escola onde concentraram o poder todo num cargo na última revisão dos estatutos. Fizeram-no erradamente, e fui um bocado empurrado pela conjuntura e pelos meus colegas a aceitar esse cargo. É-se presidente de três áreas que são normalmente distribuídas por três pessoas diferentes: a parte administrativa e financeira, a parte pedagógica e a parte científica. Estou sempre a coordenar, o conselho científico, o conselho pedagógico, o conselho da presidência. Gosto imenso de ser professor, é essa a minha profissão, foi para isso que nasci. Estou a fazer um papel para o qual também fui treinado, tirei licenciatura em Gestão. Mas não é a minha paixão. O que gosto de fazer não é ser presidente, não tenho dificuldade em assumi-lo. Não tenho dificuldade em pisar interesses de pessoas. Assumo que é o ónus do cargo. E se não o fizer não estou a fazer bem o meu papel. Tenho uma visão para a escola, são os princípios que me regem. Muitas vezes sou capaz de me prejudicar, não tenho tachos.

 

Não recebeu um tacho agora, mas o seu antecessor nesta casa, António Mendonça, saiu daqui para ser ministro.

Mas isso também não é um tacho.

 

É uma promoção social, ou pode ser entendida como tal.

Pode ser entendida como tal. É uma situação de grande responsabilidade.

 

Ocorreu-lhe, quando assumiu a presidência do ISEG, que isso seria um destino plausível?

Nem pensar. O que quero ser é professor. Gosto muito de dar a minha opinião, de reflectir, de pensar. Posso ter contributos individuais interessantes, que podem ser socialmente úteis para os decisores. Ser executivo é uma tarefa muito rotineira, e a rotina desencanta-me rapidamente. Gosto imenso de começar porque é a primeira vez. Fui saltador – é uma das características que o meu orientador de doutoramento [me apontou]: “Always jumping around”. Abraço projectos que se consumam rapidamente para saltar para outro.

 

Ser ministro não é uma coisa rotineira. Pelo contrário.

Mas é horrível, aquilo.

 

Por que é que acha que é horrível?

Quanto mais decisão e poder se tem, mais isolado se é, mais sozinho se está no mundo. E é uma situação muito dura, estar sozinho no mundo. É horrível pela responsabilidade enorme que se tem. Imagine o que é ser Moisés e ter um povo atrás a perguntar: “Para onde é que vamos?”, como se ele fosse um iluminado. No fim do dia, como dizem os anglo-saxónicos, vai toda a gente perguntar ao líder qual é o caminho, e porquê. E a escolha é um bocado intuitiva, mesmo que fundamentada em aspectos técnicos. Às vezes dá despenho. Vimos agora há pouco tempo; o líder disse: “Endividamento, obra pública…”; deu despenho.

E depois é toda a gente a criticar tudo o que se faz. É preciso ter uma força, uma estaleca, para estar constantemente a ser socado no estômago. Sei o que é isso, sou presidente de uma escola onde os professores têm opinião e liberdade de expressão. Quero que permaneçam assim porque esta casa tem essa matriz identitária. Isto é um melting pot de opiniões, pessoas com personalidade muito vincada. Imagine-os a falar da minha acção…, também não se coíbem.

 

A isso também se chama democracia.

Claro, mas é preciso ter uma grande capacidade de encaixe para ir levando a água ao nosso moinho, dando espaço à crítica.

 

Imagino que vai responder: “Não, não gostaria de ter sido ministro das Finanças”, mas é verdade que o seu nome foi muito falado para o cargo.

Foi.

 

Do que puder contar, como é que foi, desse lado, assistir a este processo?

Foi simples: tentei dizer a muitas pessoas que não tinha condições pessoais para aceitar [ser ministro]. De facto, não tinha.

 

O que é isso de não haver condições pessoais para aceitar?

Estou num processo de alteração da minha vida pessoal e tenho três jovens a estudar; o que, para manter o nível de vida que tenho, me obrigaria, indo para ministro, a um endividamento mensal, de três mil euros. Outra coisa é dizer: “Acabou, vocês têm 16, 18 e 21 anos, vão trabalhar”. Para continuar a manter a vida e família como está, separada, precisava de um volume desses. Agora multiplique por 12 meses, e multiplique por quatro anos; chego ao fim de um mandato e estou a dever 150 mil euros. E depois vou pagar com quê, com o meu ordenado de professor?

Quem cumprir este mandato tem uma probabilidade elevadíssima de perder eleições. [Vão ser] quatro anos a massacrar as pessoas. Não acredito que seja no final de 2012 que começamos a recuperar. Espero bem que o ministro Álvaro [Santos] Pereira tenha razão, mas não acredito. Se for assim, ao fim de quatro anos, vão todos para os seus lugares de trabalho, honestos, onde estiveram, e não têm compensações nenhumas. Nem ninguém os vai chamar e dizer: “O senhor fez aquilo que devia”.

 

E não há um desígnio de salvação nacional?

Ninguém reconhece isso. Ao fim de quatro anos de ser martirizado, de martirizar o povo, acha que alguém remunera alguém?

 

Há ainda um outro lado, o do estatuto. Ser ministro é uma coisa que cai sempre bem num currículo.

Cai sempre bem a muitas pessoas, mas não procuro ser isso. Gosto de ser professor, acho mais piada estar a observar os ministros, a estudá-los, a ver as decisões deles.

 

E ficar a salvo?

Não é a salvo, também levo pancada, se comento ou critico. Não acho piada nenhuma àquilo, não é interessante. E depois expõem a pessoa nos jornais, andam à procura do passado, quantas multas teve. Sou professor em Finanças, e há um princípio em Finanças: o risco tem que ser compensado com o aumento da remuneração esperada. Passa de uma vida para ter mais risco e menos remuneração – onde é que isto faz sentido?

 

Então, onde é que cabe a sua vaidade? Uns têm a vaidade de querer ser ministro; e a sua?

A mim não me interessa nada andar na rua e ser reconhecido, baterem-me palmas, até fico encavacado com isso. A minha vaidade é a estima que os meus alunos possam ter por mim, e mandarem-me, no final do ano lectivo, um e-mail a dizer: “O professor é uma referência na minha vida pela forma como trabalhou comigo”. “Gostei imenso de ser seu aluno, aprendi, você modificou-me”. Ou anos mais tarde dizerem-me: “Trabalho no mercado de capitais porque você foi meu professor”. Isso é a coisa que de facto me remunera.

 

Quem é que teve esse papel na sua vida? Vamos agora ao divã. Vamos pensar nessas figuras que o mudaram, que o fizeram querer ser um professor de finanças.

Havia uma tia da minha mãe que dizia que eu havia de ser professor. Não tenho professores na família. Não foi por imitação. Fui andando, fui estudando, acabei a faculdade e depois ninguém me empregava. Fui o melhor aluno do ano da escola.

 

Por que é que exigiu de si ser o melhor aluno? Por que é que não se contentou em ser um aluno mediano?

Não exigi, gostava de estudar. Para mim aquilo era um desafio. Tinha-o como obrigação para com a minha família. O meu pai nunca me mandou estudar, e quando chegava e dizia as notas que tinha, dizia-me sempre: “Não fazes mais que a tua obrigação”. Claro que sabia que ele ficava contente, mas não passava disso. E depois há um orgulho ferido se se tem um 12, e tenta-se recuperar.

Não quis ser objector de consciência, tinha o serviço militar por resolver. A única entidade que não me fechou as portas foi a universidade, e como tinha média de 16 entrei para assistente estagiário.

 

Não percebo bem porque é que não está nas empresas a ganhar dinheiro. Já falou da importância do dinheiro e de um certo desafogo financeiro.

Na universidade sou dos privilegiados que ganham mais em Portugal, na administração pública.

 

Um professor catedrático ganha 2500, 3000 euros, limpos?

Neste momento, depende do nível da antiguidade. Ganho 2800 euros líquidos.

 

Qualquer aluno seu que vai trabalhar para o mercado de capitais, que é uma coisa que ensina, ganha dez vezes isso.

Há colegas meus, do meu ano, que ganham muitíssimo mais. Mas para aquilo que é a minha vida normal, chega-me, e vivo com tranquilidade. Felizmente não penso no fim do mês a partir de meados do mês. Sou romântico, nesse aspecto, prefiro fazer o que gosto tendo liberdade. Tenho o privilégio de ensinar a matéria da minha especialidade. Eu é que componho o programa, se quiser posso tirar um capítulo, faço o que quero. Tenho liberdade para pensar, para escrever. A carga horária de contacto com os alunos é aceitável, não é muito pesada. É uma vida, dentro de alguma contenção, magnífica.

 

Ser professor catedrático já não tem o estatuto que tinha há 20 anos.

Não quero estatuto para ser professor catedrático, não quero estatuto para ser ministro, não quero nada disso. Tenho 50 anos, se me reformar com 70 ou 75, estou a meio da vida activa. Espero que tenha passado metade para me ir embora aos 70. A meio da vida activa é extraordinário ter chegado onde cheguei. Não tenho dinheiro para ir para um hotel de cinco estrelas, para passar os fins-de-semana onde gostaria, para ir ver um concerto em Nova Iorque. Mas compro um disco e oiço em casa, leio um livro.

 

What makes you run? Que é uma pergunta que lhe devem ter feito quando estava a fazer o doutoramento.

Não andei a correr por nada. O espírito romântico é verdade.

 

Então atacamos já o espírito romântico? De onde é que isso vem?

Não sei, dos meus pais.

 

Fale-me dos seus pais.

Não tenho irmãos. A minha mãe era dona de casa, o meu pai era operário da construção civil. Conseguiam poupar, tinham uma vida muito austera, e estudei em full time. A minha mãe transmitiu-me esse espírito romântico da vida. Trabalho pelo prazer do trabalho, dos projectos. As coisas emocionam-me, levam-me e vou por ali. Depois os outros acabam por me reconhecer algum valor, tive essa felicidade.

 

Traduza esse espírito romântico da sua mãe. Como é que ela lho passou?

Falava da sua juventude, de um lado artístico. Vivia numa aldeia e fazia peças de teatro. Passou-me essa veia. Ser professor é ser actor, é uma peça de teatro que se representa.

 

O que é que tem da sua mãe e do seu pai? Por mais que nos construamos, e o que o percurso nos faz, somos muito esse sítio e essas pessoas de onde vimos.

Do meu pai tenho a relação com o trabalho. O trabalho é o primeiro drive para nos mantermos na Terra. Fomos expulsos do Paraíso, e temos que o conquistar, o pão de cada dia. E a seriedade da palavra, o honrar dos compromissos. Da minha mãe, um espírito conservador, algum temor – que para análise é bom. Ao pé da minha mãe sou um futurista perigoso [riso]. A minha mãe vê sempre as coisas pelo lado negativo, pinta o quadro demasiado escuro – o que me ajuda a conceber cenários possíveis de desastre.

O meu pai aceitava, com respeito pelas dificuldades da vida, os desafios. Consegui sublimar da minha mãe aquela parte negativa, e aliar esse romantismo à capacidade de ir para a frente. Conjugando isto deve dar um sujeito mais ou menos equilibrado.

 

Em que momento da sua vida estava quando o seu pai faleceu?

Já era professor catedrático.

 

Ser catedrático foi um especial motivo de orgulho para ele e para a sua mãe?

Sim. Quando me doutorei, ficaram muito sensibilizados. Levei a família toda a Inglaterra, a Manchester. Fiz as provas em Janeiro e em Julho houve a cerimónia de entrega dos diplomas. É um momento tocante ver os pais tão sensibilizados. Estavam overwhelmed.

Quando tomei posse [como presidente do ISEG] fazia-se apenas a atribuição de diplomas e prémios aos melhores alunos. Disse assim: “Todos os alunos têm direito a receber o diploma e a serem felicitados pelo presidente da escola”. É o mínimo, agradecer-lhes o facto de terem escolhido a escola e terem alcançado o sucesso. São centenas de cumprimentos, felicitações, mas é um dever meu e é um direito deles. É uma festa enorme, cada vez mais participada pelas famílias.

 

Qual é que foi o seu primeiro achievement? Foi a licenciatura?

O exame da 4ª classe [riso]. Há um momento muito bonito da minha vida, que até tenho dificuldade em contar sem me emocionar. Acabei o curso numa oral de Fiscalidade, tive 16 valores. Naquele dia não vi o meu pai. Ao fim de uns dois dias o meu pai estava em casa, às seis da tarde. O meu pai veio dar-me um abraço e não foi capaz de dizer uma palavra, e eu fiquei na mesma. Ficámos os dois a chorar. A licenciatura foi o grande achievement para os meus pais. Em abono da verdade, também para mim. Andei a vida toda, não era para me doutorar, era para me licenciar. Se tivesse ficado numa empresa… Cheguei a entrar, fui director de lubrificantes da GALP, fui director da GALP. Entro na academia por ausência de alternativas, as empresas, nenhuma me quis!

 

Era uma forma de exclusão social? Não tinha os conhecimentos que lhe franqueavam as portas de determinadas empresas apesar dos bons resultados escolares que tinha?

Isso agora não existe, andam atrás dos bons miúdos.

 

Quando se licenciou, em 84, ainda era assim.

O problema era o da situação militar. Fiquei aqui em Lisboa, pude dar aulas à noite, consegui conciliar. Acabei a tropa e fiquei a dar aulas. A universidade era muito diferente. Os meus antigos professores não queriam que fôssemos professores, queriam que déssemos umas aulas, o que é muito diferente. Quando tive responsabilidades de direcção de departamento contratava os assistentes e dizia-lhes: “Você é contratado como assistente, mas não é para sair daqui e ir trabalhar nas empresas, ouviu?” Sou catedrático dessas histórias todas, esquemas, sei-os todos. Contrato em full-time, está aqui todos os dias, quer tenha aulas, quer não tenha aulas. Se tem aulas é para ensinar, se não tem é para fazer investigação, corrigir os exames, fazer escola, pá!

 

Pá? Isso é uma expressão da esquerda.

A minha juventude é passada depois do 25 de Abril.

 

As pessoas de direita também diziam pá?

Hoje dizem: “Ó pázinho”. É uma expressão muito queque.

 

Por que é que nunca foi de esquerda?

Fui de esquerda, uma esquerda muito moderada. Nunca tive filiação partidária. O conceito romântico da esquerda é bom, muito próximo do conceito cristão, de me juntar aos explorados, aos oprimidos, humilhados e ofendidos.

 

“Humilhados e ofendidos”, título famoso de Dostoievski. Ainda não me falou de um autor romântico, ou outro, de que goste e que tenha sido iluminante para si.

O autor de que mais gosto não é romântico, é realista, o Eça.

 

Isso foi antes de se tornar um cínico. O Eça é cínico. Quando se é romântico e se está num período de formação não se é cínico.

Mas gostei logo do Eça. Comecei a ler o Eça com 16, 17 anos. Estamos a falar de 1978/79, depois do 25 de Abril, aquilo era ainda quente. O Eça conseguia ser crítico, espetar a farpa, mas dentro de um padrão de certo conservadorismo comportamental, não andava a pôr bombas. Não é que os autores românticos me tenham cativado, é por coração [que sou romântico]. A personagem mais romântica que me cativou foi Jesus Cristo, é muito importante na minha formação como homem. Fui educado na catequese, fiz tudo por ali acima.

 

Tem um bocadinho ar de quem foi acólito.

Não fui, com muita pena. Na igreja que frequentava isso estava reservado a uma casta de meninos em que não estava socialmente incorporado.

 

Qual era a sua igreja?
A Igreja de Fátima, na Avenida de Berna.

 

Que tem vitrais do Almada Negreiros. Percebeu cedo que havia castas para tudo?

Sim, muito cedo. Pertencia a uma família muito humilde, senti isso e continuo a sentir. As pessoas desses níveis, entendo-as. Têm que ter uma atitude proactiva para saírem de onde estão. Não se pega nas pessoas que estão no bairro degradado [para pô-las] lá em cima como directores das empresas. Isso não existe, a sociedade é muito crua.

Se esmagar as condições humanas das pessoas, isso é um risco terrível para as pessoas que têm coisas. Os que têm coisas, se forem inteligentes, repartem, para evitar que os outros fiquem em situação de não terem nada a perder. Isto é a visão cruel da repartição. A visão romântica é a de que não consigo ver ninguém esfomeado, corta-me o coração, parto o meu pão e dou metade ao outro.

Na altura iam todos para a escola pública. Éramos confrontados com a diferença na forma de vestir, apesar de haver umas batas, para tentar nivelar. Mas era fácil, chegávamos ao intervalo e cada um metia a mão na algibeira: uns tiravam carrinhos de plástico, outros tiravam carrinho de metal, outros não tiravam nenhum. E o professor estratificava. Tinha um colega cigano que estava na última fila, levava pancada todos os dias. Os primeiros, davam prendas ao professor no Natal, prendas que ele divulgava.

 

As suas filhas andam em escolas privadas ou públicas?

Tínhamos pouco tempo para acompanhar as miúdas, pusemo-las nos privados. A partir de determinada altura, públicas, para perceberem que a vida não é a redoma do colégio. E também porque não tenho dinheiro para as pôr em instituições de ensino privado que lhes dêem uma educação outstanding.

 

Enquanto estudante do ISEG, integrou listas da JS como independente. O que é curioso é que tenha derivado cada vez mais para a direita, um percurso não tão comum numa pessoa com a sua origem social.

Não sei se é bom se não é, é o meu [percurso]. Determinadas questões, que se costuma dizer que são bandeiras da esquerda, são para mim princípios inatacáveis.

 

O direito ao apoio social?

Sim. O respeito, a defesa do trabalhador. Mas é do trabalhador, não é do empregado. Defendo até às últimas consequências um trabalhador. Estou farto de pessoas oportunistas que sob a capa de defenderem uma quantidade de bons princípios não defendem coisa nenhuma, e estão a defender uma série de pessoas que não merecem ser defendidas. É isso que condeno. O princípio da remuneração de acordo com a qualidade do desempenho é fundamental. E nunca humilhar ninguém porque tem um trabalho que na hierarquia da empresa ou da instituição é considerado menor! Talvez por causa da minha origem social. As pessoas que me conhecem contam comigo para qualquer luta [contra o que é] uma injustiça, seja da esquerda seja da direita.

 

A esquerda não conta muito consigo.

Aqui na escola fui apoiado por colegas da direita, do PS, do Bloco de Esquerda. Quando as pessoas são capazes de tirar os óculos da cor do partido para porem outros óculos, que são os delas, e verem o que é que pensam sobre o assunto, como é que se governa uma escola, e que escola queremos ter, são capazes de estar comigo.

 

É curioso ter usado a expressão “governa uma escola”, pensei que diria “dirige uma escola”. Isto é como governar?

É. Um dos princípios que nos orientam é o princípio do bom governo. Dirigir é uma das tarefas da governação. Temos que fazer a análise da situação, propor medidas, aprová-las, implementá-las. Tenho uma responsabilidade acrescida. A percepção das mudanças, que é fundamental para um indivíduo que vai a conduzir um barco – ver se não está um iceberg lá à frente. Não recebo ordens do reitor para governar, tenho uma liberdade mais ampla.

 

O grande público começou a ouvir falar de si com as suas idas ao Mário Crespo, e depois com o programa Plano Inclinado. Foi o começo de uma exposição pública, vamos continuar a ouvir falar de si?

Se as pessoas me pedem opinião, dou. Não consigo aliar-me a partidos, isso é que não consigo, filiar-me.

 

Há uns quantos independentes neste governo, como havia no anterior.

Não quero ser ministro, não é minha aspiração ser ministro.

 

A última pessoa que entrevistei que me disse isso acabou por ser ministro da Economia deste governo.

Mas digo-lhe isso e tenho um motivo muito forte, a sustentabilidade da família. Imagine que dentro de uns anos as minhas filhas ganharam a sua independência e chamam-me para essa situação, e acho que o meu contributo pode ser interessante, se calhar aí… Se vir que Portugal precisa de mim e se estiver em condições, se calhar tenho que considerar que é algo que tenho que fazer em prol de Portugal.

A sociedade portuguesa não reconhece o esforço dos que se dedicam. Veja o caso dos antigos combatente, que é lapidar. Maltratam-se as pessoas, não se admite opinião diferente. Hoje na rádio o António Pedro Vasconcelos disse, e tive oportunidade de responder, que as opiniões do grupo de trabalho que esteve a estudar o serviço público de comunicação social eram ridículas e disparatadas, proferidas por pessoas que são ignorantes. Não considero que as opiniões dele sejam ridículas nem disparatadas, são as opiniões dele, são tão válidas como as dos outros. Só temos que apresentar as nossas ideias, o modelo. Cada um, depois, pensa como quer.

 

É um resiliente? Foi uma palavra que usou no princípio e que agora já existe em português; mas na altura em que estudou em Inglaterra não se usava.

Pois não, foi uma palavra recentemente introduzida. Acho que sim, acho que tenho uma capacidade para ir aguentando. Há dias em que me vou um bocado abaixo. Mas normalmente a noite limpa, faço reset. No outro dia venho outra vez com alegria para o posto de trabalho. Consigo esquecer o dia de ontem com uma facilidade incrível. É uma característica importante que contribui para a resiliência. Se começamos a acumular, um dia estoiramos. Tomar decisões é muito duro. E enfrentar as pessoas sobre as quais temos que tomar decisões, pior.

 

A ginástica, disse que queria falar dela, porque é determinante na sua vida.

Comecei com oito anos de idade porque tinha um problema no externo. O médico achou que tinha o peito em quilha e mandou-me fazer ginástica. Fui em 68/69 para o Sporting porque o meu pai era do Sporting e o meu padrinho também. Fiquei até me casar, em 87. Depois fui para o Ateneu até 90. E depois, em Inglaterra, parei. No Sporting fiz os grandes amigos da minha vida, conheci a minha mulher, com quem casei e tive filhas. Percorri Portugal de lés a lés a fazer exibições. Fui campeão nacional por equipas de trampolins. Individualmente fui segundo lugar, medalha de prata e vice-campeão regional. Internacionalmente representei o Sporting, e mais tarde o Ateneu. A ginástica permitiu-me conhecer outras culturas, fui à China, fui aos Estados Unidos, à Alemanha. A ginástica é dolorosíssima, as pessoas sofrem. E repetitiva, cai e faz. Até que um dia faz e começa a ganhar confiança.

 

E endurance.

A resiliência.

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2011

 

Manuel Carvalho da Silva (2012)

16.03.15

Carvalho da Silva, “sindicalista até morrer!”, é um sociólogo que fala da malvadez à solta. O ex-líder da CGTP mantém a violência do tiro de um canhão: “A manutenção deste Governo é um perigo a cada dia que passa. Tornou-se um factor de apodrecimento aceleradíssimo da democracia portuguesa.” No livro “Vencer o Medo – Ideias para Portugal” e nesta entrevista dispara, previsivelmente, sobre Passos Coelho, Vítor Gaspar, sobre o neoliberalismo. Fala de Cavaco tolhido, que não age e que não conta. Fala de políticas criminosas como foram criminosas as políticas de Pol Pot. De os tiques dos governantes portugueses se parecerem com os dos governantes franceses de Vichy. Do medo que paira no ar como uma nuvem de chumbo.

É investigador do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, cuja delegação, em Lisboa, dirige. A voz dele já não é a voz da central sindical, mas deixa um recado: “A mobilização social tem que ter expressões todos os dias.”

 

 

No seu livro fala de um processo “que desejamos pacífico e solidário, mas que não podemos saber se assim será...”. Há nele uma incitação à desobediência? Precisamos dela?

Precisamos da desobediência, e de forma premente, na interpretação daquilo que na Constituição portuguesa está definido como “direito à indignação”. Precisamos, simultaneamente, ou em articulação, de um acto de desobediência que, sendo forte, tenha como preocupação antecipar grandes descalabros. Ou seja, não devemos pré-anunciar guerras, devemos agir para que elas não surjam. Julgo que é esse o tempo em que estamos. O de uma desobediência que force soluções. Se não houver essa desobediência, e em tempo útil, podemos ter uma situação de guerras.

 

Porque é que o direito à indignação, consagrado na Constituição, não é suficiente para enfrentar os tempos que correm?

Há um livro de um monge italiano, Luciano Manicardi, que me foi oferecido pelo Tolentino de Mendonça, que gosto de citar. O título é “A caridade dá muito que fazer”. Manicardi diz que crise significa dias maus. Dias maus são dias de muita malvadez difusa. Eu costumo dizer: muita malvadez à solta. Assistimos a isso todos os dias. Vivemos debaixo da expressão contínua de malvadez. O conceito de interesse nacional está deturpado. Os objectivos dos nossos credores e agiotas [transformaram-se] na base do interesse nacional.

Os portugueses têm fortíssimas razões para se indignarem. Já não é apenas o interesse individual do trabalhador que, por medidas desajustadas, fica no desemprego, daquele que, em função dos cortes a direitos, fica na pobreza, da classe média que de um momento para o outro se vê desarmada e em situações de carência absoluta. São todas estas expressões; mas é também o interesse colectivo, comummente designado como interesse nacional, que está manipulado. É preciso uma reacção forte, porque quando um país se submete a essa interpretação do interesse nacional é um país ocupado.

 

Segundo a sua leitura, seria uma dupla ocupação. Existe a ocupação da Troika. “Temos um governo externo que manda”, escreve, “definindo o nosso interesse nacional em função dos objectivos e proveitos dos nossos credores”.

Sim. A Troika é uma representação simbólica de poderes: do poder financeiro e económico que domina o mundo, da Europa e dos interesses estratégicos dos grandes poderes políticos e económicos. O que quero colocar em relevo é que este clima gera desalento. Estamos debaixo de uma dupla ocupação. É a ocupação concreta pelas políticas que são impostas e é a subjugação a conceitos, a valores que nos estão a aniquilar. Não há saídas sem responsabilização. E isto mata a possibilidade de responsabilizar as pessoas. Mata a esperança, que é gerada pela razão, e não pela crença.

 

Crença? Que crenças?

O que ouvimos do ministro das Finanças e de outros não são mais do que crenças. Que comprovadamente falharam. Toda a gente sabe que no final do ano vamos ter uma dívida maior, que vamos estar mais pobres. Continuar a dizer que esta é uma saída não representa outra coisa que não uma crença. Quando a racionalidade política é substituída pela crença, a coisa torna-se perigosa.

 

O Governo segue esta estratégia, confia na eficácia deste caminho. Há uma leitura diferente da sua.

Muitas vezes se diz que não há governante que não quisesse fazer melhor pelo seu povo. É uma falácia. Em certa medida, não há seres humanos maus. Até conseguem fazer-se reposições da vida do Hitler nas quais ele tem afecto pela sua cadela. Mas os caminhos que os seres humanos percorrem, ou são sustentados por valores – por uma ideologia concreta – que têm viabilidade do ponto de vista da vivência colectiva, ou resultam em desastres. É com esta preocupação que as coisas têm de ser feitas. Não ponho em causa as preocupações pontuais do ministro das Finanças ou do Primeiro Ministro [PM]. Não é na dimensão dos afectos que está o problema. Mas o caminho que [escolheram] é desastroso.

 

Porque é que considera que estamos na emergência de uma nova era?

Em 2011, na conferência anual da Organização Internacional do Trabalho, o relatório apresentado pelo director-geral despertou-me para essa noção. A observação tem uma enorme actualidade. Os valores, os dogmas, as instituições que nos conduziram até aqui estão em falência.

 

Este é o fim da era pós-Segunda Guerra, do projecto europeu que emergiu depois de 1945, e que ruiu num processo irremediável com a queda do Muro do Berlim?

Não. Pode ser mais profundo do que isso. Muito, muito mais. Qual será?, não sei. Se uma nova era está em emergência? Na minha opinião, está, indiscutivelmente. Quando se analisa a evolução do peso relativo dos países no mundo, e fazemos considerações sobre a dinâmica do desenvolvimento da China ou do Brasil ou da África do Sul ou de outros países, estamos a falar dos contornos do que há-de ser a nova era. Que está em fermentação. Pela nossa acção, há-de resultar qualquer coisa concreta, com mais solidez do que aquela que agora se poderia afirmar.

[O fim] da Segunda Guerra e da queda do Muro são factores muito importantes; poderíamos falar de um outro: da internet, e do que isso veio significar para a movimentação financeira, para a manipulação financeira...

 

... e juntar, já agora, a China como potência, nesta nova equação.

Sim. A maior parte dos comentários, a maior parte dos economistas, comparando o crescimento e as condições vida na China com o crescimento e as condições de vida nos Estados Unidos, na Europa, normalmente faz comparações a partir do produto per capita; esquecem-se de questões fundamentais. É que a cultura dos chineses, no que diz respeito à habitação, à alimentação, às coisas mais estruturantes da vida, são totalmente diferentes das nossas. Por exemplo, a capacidade de poupança de um chinês, com o mesmo nível de vida, médio, de um europeu, é talvez o dobro. Outro aspecto: a ideia de que a China está a modernizar-se aculturando-se ao Ocidente é um erro. É uma situação passageira.

 

Acha que esta aculturação ao capitalismo é uma coisa passageira?

O que vai ser a própria evolução do capitalismo, não sabemos. Mas a cultura está para além do sistema capitalista. Há uma coisa que, se reflectirmos um pouco, não é difícil concluir: não vai ser a cultura ocidental que se vai impor à cultura chinesa. Ela pode ter – está a ter – fortíssima influência nesta fase de transição. Mas estamos a falar de um povo que tem uma presença organizada no mundo de milénios, anterior às civilizações agora dominantes. As dimensões culturais são múltiplas, e muito profundas.

Queria voltar à questão inicial: as mudanças inerentes ao que chamei uma nova era parecem mais do que um mero reacerto. Porquê? Observemos as dimensões da crise do sistema capitalista e das suas contradições. As dimensões são financeiras, económicas, políticas, climáticas, energéticas, de relações comerciais...

 

Está a dizer que é todo o edifício que está em colapso, prestes a sucumbir. Não é possível refazer portas e janelas, é preciso ir aos alicerces?

Sim, tem de se ir muito ao fundo. A União Europeia tem de se recompor? Claro. Mas a UE não vai ter acesso às matérias primas nas mesmas condições. Nem pensar! Em muitos aspectos, o sistema, tal como vinha sendo delineado, o nosso estilo de vida, o estilo de vida para que somos todos os dias chamados, não é sustentável.

Esta noite [entrevista realizada quarta-feira de manhã] estava a ouvir a evolução dos resultados eleitorais no EUA; ouvi um comentador dizer que Obama ganhou no acompanhamento ao furacão Sandy. O sistema – e ali está o coração o sistema – mostrou-se incapaz de lidar com uma catástrofe como aquela. Tudo deixou de funcionar. Esta situação pode ter despertado em muitos americanos a ideia de que o problema ecológico é importante. E Obama surgiu como mais sensível para o observar.

 

As guerras começam, tantas vezes, pela escassez de cereal...

Isso é complementar do que eu estava a dizer. Grande parte das guerras, hoje, dos conflitos dolorosos que causam miséria e morte, são provocados pelos efeitos das alterações climáticas cruzadas com esta lógica de mercado (em que a utilização da terra não tem nenhuma racionalidade).

 

Voltamos a falar da possibilidade – será uma inevitabilidade? – de um cenário de guerra. Noutra passagem do livro diz: “Quase sempre estas situações desaguam em guerras”.

Quase sempre. Procuremos agir para que isso não aconteça. Por essa razão, num dos textos que fazem parte do livro, e que apresentei numa conferência na Quinta das Lágrimas, em 2010, digo que a globalização é – deve ser – universalismo, multilateralidade e multiculturalidade.

 

Estamos a dias da chegada de Angela Merkel a Portugal. A chanceler chega dia 12, segunda-feira, e dois dias depois é a greve geral marcada pela CGTP. Que reacção prevê para cada um destes dias? É um homem habituado a ler estes cenários...

Sou sindicalista até morrer! [sorriso] Negava-me a mim próprio se dissesse que não sou sindicalista. Não estou em actividade, mas as raízes mais fortes da minha formação vêm do sindicalismo, das leituras que o sindicalismo me permitiu.

Não gosto de fazer antevisões. Os pronunciamentos que ouvi sobre a vinda de Merkel são diversos, têm alguma contradição. A contradição que resulta de dizer que não nos submetemos e, ao mesmo tempo, de reconhecer um papel de supremacia no exercício do poder à senhora Merkel. Esta dicotomia tem que ser trabalhada para se encontrar caminhos de eficácia. Não me pergunte como, não tenho solução. Era interessante que surgisse um posicionamento bem sustentado... Mas isso implicava que houvesse nas instituições do poder uma abertura e uma sensibilidade, e não a temos. Primeiro, porque o Governo está submetido ao pensamento e à acção que Merkel representa; e por outro, o presidente da República não conta. É uma infelicidade para o país.

 

Cavaco disse na terça-feira, depois de um longo silêncio, que o PR não tinha de intervir ao sabor da opinião pública.

Um presidente que não acompanha no dia-a-dia o sofrimento, os anseios, as contradições que o povo vive, e que procura não fazer leituras, interpretações, construção de dinâmicas, então, o que é que está a fazer? Está à espera de pareceres técnicos, sejam eles de interpretação jurídica [ou de outra ordem], e que são coisas complementares?

 

Ainda voltamos a Cavaco. Para já, retomamos a tópico da vinda de Merkel.

Não tem que haver falsas expectativas. Estar à espera que Merkel venha expressar entendimento pelo sofrimento do povo português, seria um exercício de hipocrisia sem sentido. Vejo formadores de opinião a dizer que Merkel devia ser solidária e tal... Para quê? Para subjugar mais o povo português? A questão fundamental era que ela percebesse que as suas políticas não são futuro. E que isso chegue ao povo alemão.

 

O que é que seria preciso fazermos aqui para que Merkel e o povo alemão o percebessem?

Nós, como os gregos, os espanhóis, os italianos, temos que agir e ajudar a desmontar a [narrativa], sob a qual se desenvolvem estas políticas, de que os alemães e povos do centro e norte da Europa – que representam os credores – são os trabalhadores, os cumpridores, e que os do sul são preguiçosos, devedores, etc. Não é fácil. Ainda por cima quando foi inculcado, até à exaustão, que andámos mesmo a viver acima das nossas possibilidades, e que os alemães e outros vieram aqui numa atitude altruísta oferecer-nos dinheiro que gastámos de forma incorrecta. Foram do interesse da Alemanha as opções adoptadas neste caminhar da UE. A indústria alemã, os interesses estratégicos alemães, beneficiou de políticas que foram impostas a Portugal e a outros em troca dos meios que aqui foram disponibilizados.

A outra questão é que os alemães (e não só) devem perceber que não têm o direito de se voltar para um grego, para um português, para um espanhol e ter as atitudes de sobranceria que assumem. Estão muito longe de ter um resquício de fundamento para essas atitude.

 

Não falou ainda do problema da dívida. E diga o que disser do que nos foi inculcado ou do comportamento dos alemães, a verdade é que a nossa dívida é colossal.

É enorme. Admitindo que vivemos acima das nossas possibilidades: temos então de pôr os pés no chão. Mas não temos de empobrecer. Nunca este caminho – primeiro vamos empobrecer porque empobrecendo vamos resolver os problemas. Nós queremos pagar a dívida.

 

Defende que ela seja renegociada?

Digo-o desde a primeira hora: é indispensável. Podem fazer discursos contra a renegociação, insultar os que a defendem e dizer que esses não a querem pagar... É mentira. Quem quer pagar a dívida, a sério, tem de ter condições para a pagar. Precisamos, para isso, não de destruir emprego, mas de ter emprego. Há uma série de mentiras que é preciso denunciar. Aponto uma: criou-se nas pessoas a ideia de que isto está a acontecer na Europa porque não há dinheiro.

 

Diz que há.

Imenso, imenso. Muitas vezes é dinheiro sujo. Está mal distribuído, e cada vez está pior. E está a ser mal utilizado, neste jogo especulativo extremamente complexo. Se há dinheiro para comprar a dívida alemã a juros negativos, ou para fazer certos investimentos em certos grupos financeiros a juros negativos, é porque há muito dinheiro.

 

Merkel vai ter eleições no Outono do próximo ano...

É um dos dramas para nós.

 

O drama é ainda faltar quase um ano?

É. E o drama redobrado é se ela ganha as eleições. O que não é improvável.

 

Se por um lado, Merkel tem de responder perante o seu eleitorado, por outro lado, há o modo como vai ficar nos livros de História. Acha que a chanceler alemã quer ficar com o ónus de pôr em risco o projecto europeu?

A questão não é querer. Ela interpreta um determinado quadro. Há uma influência fortíssima daquilo que genericamente se cataloga de neoliberalismo, e que domina a Europa. A Europa tornou-se a frente avançada do neoliberalismo de há uns anos para cá. O grande desvio começa em Maastricht. Percebe-se que tenha sido na Europa que o neoliberalismo mais atacou: estavam aqui sediadas as maiores conquistas sociais. A senhora Merkel não é nenhum líder político em quem se vejam capacidades próprias, pensamento profundo.

 

Acha que é uma peça da máquina?

É.

 

Tem menos desígnio do que parece? Tem menos desígnio do que poder?

Isso é verdade. O que não significa que, se ela quisesse, não pudesse usar o poder.

 

Usar o poder num outro sentido – é o que está a dizer?

Claro.

 

Volto ao livro: “Não podemos tolerar por mais tempo esta escabrosa experimentação social, uma espécie de crença movida por interesses de classe”. Mais à frente fala de aprendizes de Pol Pot. Pergunto-lhe se isto é uma radicalização do seu discurso...

É, um pouco para fazer um alerta.

 

É porque o que diz é muito grave. Perguntamo-nos imediatamente: em quem é que está a pensar quando fala de aprendizes de Pol Pot?

Se formos ver as experiências Pol Pot no mundo (e há de diversos matizes), elas sustentavam-se em crenças. Crenças que substituíam a racionalidade política e sustentadas em valores que apontei. Quem reflectir mais profundamente sobre estes problemas vê similitudes. Não estou com isto a dizer que está aqui em potência um Pol Pot. O que estou a dizer é que os horrores da Humanidade partem desse caminhar, dessa experimentação, que vai sem parar. Se pegar em alguns discursos de governantes nossos, quando falam do interesse nacional, e comparar com discursos de governantes franceses do Governo de Vichy, encontra similitudes. É uma coisa que arrepia. Não estou a dizer que os nossos governantes estão num estádio de demência do ponto de vista político e que estejamos às portas de uma subserviência ao nazismo. Agora, os mecanismos mentais que conduziam os franceses do Governo de Vichy, quando falavam do interesse nacional francês, naquele contexto de ocupação alemã, os tiques, as expressões usadas, têm a mesma origem. Temos de ter isto em atenção.

Para onde caminhar quando o ministro das Finanças sistematicamente apresenta a inevitabilidade, a inevitabilidade, a inevitabilidade? Ele próprio já vem reconhecendo que o país vai ficar pendurado durante décadas... Mas se isso é uma evidência, se os altos responsáveis do FMI dizem que este caminho não dá, se o próprio Durão Barroso a espaços tem de vir dizer que este caminho não dá...

 

Porque é que nada muda? Neste contexto, ou cai o Governo, ou há uma revolta popular, ou Cavaco intervém. Quais são as possibilidades, na prática, de acontecer alguma coisa?

[Nada muda por duas razões:] as relações de forças que se constituem para um projecto e esse próprio projecto. É um problema que se coloca no plano nacional e no plano europeu. Se o neoliberalismo está a ganhar, se as forças conservadoras e mais retrógradas estão a ganhar, é porque os outros estão a perder. É uma evidência. A questão está em ir construindo relações de forças e apresentação de propostas que comecem a gerar esperança, que levem as pessoas a dizer: “Vale a pena ir por aqui”.

 

Não há alternativas?

Alternativas, existem. Não quero negar que o partido A, o partido B, o partido C têm alternativas e as afirmam como alternativas possíveis de serem encetadas. Mas o povo não as reconheceu como tal, ainda. É preciso trabalhar para que o povo as reconheça. Não adianta dizer que um dia o povo há-de estar connosco e há-de vir connosco. Para o país sair do buraco em que está vai ser necessário conciliar posições muito diferenciadas.

 

Está a dizer que todos vão ser chamados, e ter de ceder? Está a falar de um governo de salvação nacional?

Não sei como é que do ponto de vista político-partidário ou do funcionamento das instituições [essa conciliação] se vai encontrar. O que defendo é que é indispensável salvaguardar a soberania do povo. O povo tem que ser chamado e responsabilizado.

 

Vou continuando a tentar traduzir o seu discurso: agora está a dizer que seria preciso convocar eleições, no caso de Cavaco destituir este Governo.

Não deve haver soluções sem haver eleições, perante a situação em que nos encontramos. Mas pode ter que haver uma solução passageira que, datada, substitua o descalabro que estamos a viver. Se formos para eleições, num prazo não muito longo, mas com este Governo no poder, podem-se criar situações muito complicadas. Estou convencido, e digo isto com uma certa dose de medo, de que há gente que está no poder e que, se puder, como diz o povo, escavacar tudo – pôr em cacos – para impedir ou dificultar que os que vêm a seguir encontrem soluções, o fará sem hesitar.

 

É a tal malvadez à solta de que falava?

É. É a tal malvadez à solta e a interpretação dessa crença de que [o neoliberalismo é o caminho]. A manutenção deste Governo é um perigo a cada dia que passa. Tornou-se um factor de apodrecimento aceleradíssimo da democracia portuguesa. Tornou-se um factor de crescimento da desconfiança entre o povo e os actores políticos, e está a contaminar as relações entre as instituições. Se olharmos a justiça, a instituição militar (que é sempre muito importante..., talvez haja menorização dela no país), se olharmos outras instituições, vemos que a manutenção deste Governo, pelas suas políticas concretas, é um perigo. Julgo que com isto lhe digo o que podem ser caminhos. Quem tem de intervir? Os partidos políticos, a Assembleia da República, o Presidente da República.  

 

Quando olhamos para o passado e para as mudanças de paradigma, elas normalmente acontecem com uma revolução, com qualquer coisa que rasga e inaugura uma nova era. Para o bem e para o mal.

As grandes mudanças são feitas da convergência de reformas e rupturas. Com revoluções ou sem revoluções. Se a sua expressão tem uma amplitude mundial, temos de dizer que há revoluções em curso. Mais silenciosas, menos silenciosas.

Tivemos em 1974 uma revolução a sério que nos mostra que é possível uma revolução sem sofrimento do povo, sem conflito, sem violência; e que nos mostra também que uma revolução muda contextos (às vezes muito importantes) mas não muda a mentalidade das pessoas de um dia para o outro. Aspecto fundamental: há uma enormíssima transformação social em curso, há estilos de vida dominantes que estão a ser postos em causa e que vão ter que ser reformulados. Este é o tempo que vivemos, mas a mudança não tem de ter a expressão que outras tiveram.

 

Voltemos a Cavaco. “E quando o PR, primeiro magistrado da nação, não tem incorporação de memória histórica, dimensão ética e moral, visão estratégica e se limita a ir no desastre, o sofrimento do povo aumenta e as interrogações sobre o futuro do país ampliam-se”. É uma porrada valente.

É, mas é o que penso. Os anos em que convivi com Cavaco Silva, como PM e mais tarde como PR, propiciaram-me uma observação do ser humano e do actor político. Tem uma percepção dos problemas sociais, naquilo a que eu chamaria uma “observação primária”, que, em muitos casos, até é melhor do que a de outros políticos situados à sua esquerda. Essa sensibilidade talvez tenha a ver com as suas origens, com o percurso que fez. Mas é numa abordagem primária.

Uma das coisas que mais me impressionam na personalidade de Cavaco Silva é ter feito um percurso político muito longo, e ter inculcado muito pouco daquilo a que chamo cultura (na verdadeira acepção da palavra).

 

O quê, em concreto?

Capacidade de olhar a sociedade, de interpretar, de ser capaz de descodificar os comportamentos. Mostra uma limitação... É um homem sempre a fugir da abordagem mais profunda dos problemas. Faço comparações entre ele e um Lula da Silva. Lula não teve a formação académica que teve Cavaco, é um operário; mas quando o vemos a intervir, independentemente das valorações que cada um faz sobre ele, [percebemos] que está ali um poço de cultura. Um poço de capacidades de interpretação do ser humano, dos contextos em que o ser humano vive. Cavaco é um homem tolhido neste aspecto. E não é capaz de agir.

 

O que é que acha que lhe tolhe a acção?

Isto: a falta de segurança na interpretação. A falta de bases. Ele não tem uma formação ideológica sustentada, que é importante, e que qualquer um dos presidentes da República que tivemos, tem. Mesmo Ramalho Eanes, que era um militar. Jorge Sampaio tem um lastro fortíssimo, Mário Soares tem um lastro fortíssimo. Cavaco não tem. (Não estou a pôr em causa a base primária de valores e sentimentos, que tem ao nível do comum.)

 

Gostava de ser presidente da República?

Não! [riso] Essa questão não se coloca, ponto final.

 

No dia 14 de Novembro há uma greve geral. As manifestações têm sido nos últimos meses diferentes das que durante anos tivemos.

Têm sido muito grandes. E muito pacíficas.

 

Acha que é sobretudo uma questão de dimensão? Desde a manifestação de 15 de Setembro, o povo português mostra estar farto do rótulo de ser um povo manso, ao contrário dos gregos e dos espanhóis. Esta saída para a rua vai mudando a cada manifestação?

As saídas para a rua, as mobilizações, as lutas que o movimento sindical (neste caso, a greve que a CGTP convocou e à qual estão a aderir imensas organizações) são absolutamente indispensáveis. Podemos estar a aproximar-nos de um tempo em que, por mais que isso incomode alguns, a mobilização social tem que ter expressões todos os dias. Designadamente expressões de rua.

 

Por outro lado, fala-se dos milhões que se perdem de cada vez que isso acontece, de como isso dá cabo da economia.

Não são as manifestações que dão cabo da economia. As maiores manifestações que se têm realizado têm sido ao fim de semana. O número de greves em Portugal é menor do que noutros países europeus. É uma conversa que não tem sentido. Infelizmente é retomada ciclicamente. O que eu digo é que precisamos de muito mais mobilização social. Não haverá uma responsabilização das pessoas para sair da crise sem essa mobilização.

Respondendo sinceramente à sua pergunta, e com a consciência de que isto vai ser lido por muita gente, dir-lhe-ia que ainda existe muita subjugação às inevitabilidades e a estes slogans (que vivemos acima das nossas possibilidades, que somos todos responsáveis, que não há outro caminho, que é pela purificação na pobreza que nos vamos salvar...). Tem havido evoluções positivas, mas ainda estamos mais num clima de desalento do que num clima de “vamos a isto” para encontrar alternativas.

 

Olhamos para a manifestação de 15 de Setembro e interrogamo-nos se o sucesso dela não se deve ao facto de ser apartidária. Teve um carácter diferente daquela que se lhe seguiu, no Terreiro do Paço, convocada pela CGTP. As pessoas estão...

... compartimentadas?

 

E zangadas com os políticos. E descrentes da classe política.

Cada dia que tivermos um Governo como o que temos actualmente, cresce a desconfiança em relação à política e aos políticos. Não encetaremos nenhum caminho de mudança e de resposta à crise sem uma governação que seja reconhecida pelo povo como uma governação com ética, transparente, rigorosa.

As manifestações são diferentes. Não secundarizemos o papel dos partidos. Responsabilizemos os partidos. Nesse sentido, a manifestação de 15 de Setembro foi importante. Não secundarizemos a mobilização sindical. O lugar do trabalho na sociedade actual é central. Esta destruição dos valores do trabalho, o ataque sistemático dos trabalhadores, o anunciar como medidas positivas a destruição de 60 mil empregos na administração pública, o encerramento disto ou daquilo..., só na tal loucura das crenças. A base da economia é a base produtiva. Os impostos recaem sobre quem? 80% dos impostos recaem sobre o produtivo, os outros 20% [recaem sobre o] outro lado. Um desequilíbrio enorme.

 

O grande falhanço deste Governo, mais do que tudo, é a economia e a incapacidade de criar postos de trabalho?

O Governo segue caminhos que são contrários a qualquer possibilidade de haver investimento (e de haver criação de emprego e crescimento). Mas o fracasso associa o económico e o social e o político.

 

Porque é que o título do seu livro é “Vencer o Medo”?

Por isto que estava a dizer. Porque as pessoas estão atrofiadas na sua capacidade de acção. Porque muitas estão colocadas num sofrimento individual. Acentuou-se o individualismo. Lançou-se uma espiral regressiva que toma qualquer direito de qualquer indivíduo como um exemplo de excesso. “Se aquele tem e eu não tenho, que aquele deixe de ter para ficar igual a mim”. Isto vai caindo, caindo, isolando as pessoas. Diz-se que o Estado social não é sustentável – ou seja, que a resposta colectiva não existe. Que não há dinheiro para a saúde, para a segurança social – cada um que tente salvar-se. Que não há políticas de emprego – cada pessoa, ela própria, e só por si, que cuidar dos seus problemas. Isto gera medos muito grandes. O contexto global também gera medos. Então, o desafio é mesmo vencer o medo pela razão, pela afirmação de valores de progresso. Não temos que nos subjugar e aceitar o empobrecimento.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2012 

José Manuel Fernandes (2008)

15.03.15

José Manuel Fernandes. O director do Público. O homem suficientemente poderoso para Sócrates o considerar o seu melhor inimigo. O embaixador da administração Bush em Lisboa – acusam os detractores. Aquele que se comove até às lágrimas com a queda de Saddam – mas também com a libertação de Ingrid Betancourt, acrescenta ele. Apesar de tudo, aqui era mais fácil. Mais consensual – excepto se se for do PCP, como não se coíbe de dizer. Não se coíbe, aliás, de dizer o que pensa. E de dizê-lo de modo excessivo, extremado. Como um revolucionário que pega em armas. Ou se mata ou se morre.

Foi assim na sua experiência política. Ou se era maoísta ou se abandonava o maoísmo. Não há meias tintas. E contudo, é um conciliador. Um director que não manda seguir o texto para a gráfica sem o dar a ler a alguém. Que escolhe para editora de política uma pessoa que pensa de modo diferente do seu.

José Manuel Fernandes, o Zé Manel, pensa pela sua cabeça e não precisa dos aplausos dos que estão à volta. Tudo parece mais um jogo de si para si. O que lhe interessa são os argumentos. A esgrima. A inteligência. E trabalha, trabalha, persiste, persiste.

Podia ter sido investigador. As questões do ambiente sempre o interessaram. Não cogitou ser corredor de automóveis, mas guia a velocidades inconfessáveis. Gosta do risco. Gosta mais ainda, ou precisa, de o medir. Sabe bem o chão que pisa. Há dez anos que dirige o diário de referência português. 

 

A sua nota biográfica na Wikipedia dá conta de um percurso político enquanto estudante. Porque é que não é um político?

É preciso enquadrar isso no tempo. A altura em que tive maior actividade associativa política foi nos dois anos anteriores ao 25 de Abril e nos três anos e meio a seguir – um período em que praticamente toda a gente em Portugal fazia política. Eu tinha 15 anos quando comecei a participar nas reuniões do movimento associativo, e 17 quando se deu o 25 de Abril. Isso correspondia a um sentimento de que tinha de se fazer alguma coisa. Alguma coisa para acabar com a guerra colonial, com o regime – para ter liberdade. E isso correspondia a projectos políticos. As pessoas enquadravam-se em movimentos políticos ou mesmo em partidos.

 

Ou em jornais com uma orientação política muito marcada.

Sim. Eram jornais organizados pelos partidos: o PS tinha o seu, o PCP tinha o seu, os grupos de extrema-esquerda – onde eu estava – tinham os seus. Isto era controlado directamente pelos membros de topo das organizações. O Cunhal reunia com a célula de militantes do “Diário”. Era uma direcção muito próxima, não era longínqua.

 

Esta promiscuidade, entre a orientação ideológica de um partido e o exercício do jornalismo, era “natural” nesse tempo…

Não se pode falar de promiscuidade. Era um jornalismo de características diferentes, de tendência. Não se pretendia ser independente. Corresponde a um tipo de sociedade em pirâmide: as pessoas procuravam saber as opiniões dos seus “guias espirituais”, (como eram vistos os líderes partidários), e procuravam-nas através da imprensa. Continua a haver situações em que jornalistas passam para a política ou políticos passam pela direcção de informação. O actual mayor de Londres era um jornalista da Spectator. Temos casos em Portugal: Balsemão, Marcelo Rebelo de Sousa, Paulo Portas. Pedro Silva Pereira foi director adjunto de informação da TVI.

 

Explique melhor por que não foi político.

Envolvi-me em grupos maoístas. A partir de 76, começaram a ocorrer eventos que me deixaram perplexo. Demonstraram que algo que tinha defendido e em que tinha acreditado não fazia sentido. Um desses eventos é o funeral do Mao Tse Tung. Nas fotografias do funeral, o Bando dos Quatro estava lá. Nas fotografias que vi das revistas que chegavam da China, tinham sido apagados. Já se falava de manipulação de fotografias desde o tempo do Lenine, Estaline; mas ver uma espécie de dentadura a que faltam quatro dentes… Era uma manipulação da história que implicava repensar tudo. Quando se é comunista, ou maoísta, quando se quebra, não se pode ficar a meio caminho.

 

Está a dizer que não lhe restava outra opção senão sair?

Quando uma pessoa se entrega, a ponto de ser funcionário, de fazer vida profissional disso, a quebra é obrigatoriamente radical. Para muitas pessoas é um choque. Recordo-me de discutir coisas assim: parece que nos campos soviéticos morreram mais pessoas do que nos campos nazis. Não acreditei. Hoje sabe-se que é verdade.

 

Porque é que não acreditou?

Isso contradizia tudo aquilo em que eu tinha acreditado. Depois, vamos procurar porque é que aquilo aconteceu, e não ficamos apenas com a desilusão dos factos. Procuramos saber se era um desvio ou uma questão de fundo. A União Soviética era um desvio, a China era um desvio, a Albânia era um desvio… Não sobra nada. Se calhar, não era um desvio… Se calhar, o problema era da doutrina.

 

E recusa-se a doutrina?

Começa-se a fazer uma evolução, que eu fiz com mais pessoas. Passa de acreditar numa possibilidade de transformar o homem e a sociedade para uma posição mais céptica em relação à natureza humana.

 

Não é político porque se desiludiu?

Deu-se essa ruptura. E aquilo que eu sabia, por dentro, sobre o funcionamento de uma organização política, não me deixou nenhuma vontade de ser político.

 

Quando defendeu a intervenção no Iraque com a paixão com que o fez, pensou no entusiasmo que teve nos anos de juventude pelo maoísmo e na subsequente degenerescência do seu sonho? Põe a hipótese de acordar para uma realidade completamente diferente daquela que agora vê?

Perfeitamente. Tenho escrito textos sobre os quais digo, depois: “Estava enganado, a análise estava errada”. Não deve custar admitir o erro, porque nunca sabemos os dados todos. Há pessoas que fazem contorcionismos para provar que têm sempre razão, e não raciocinam em função do que se sabia quando tomaram uma determinada posição. Uma vez, o Eduardo Prado Coelho escreveu no jornal que aquilo que distinguia a esquerda e a direita era apoiar ou não a intervenção no Iraque. Olhando para o mundo, isso implicava estar ao lado do Le Pen e dizer que este é de esquerda; ou dizer que o Christopher Hitchens, que é um colunista da Vanity Fair, era de direita. A intervenção do Iraque não foi nada uma questão de preto e branco como se apresentou nas polémicas. Não gosto de uma divisão política esquerda/direita. É redutora das muitas dimensões que tem hoje a política.

 

Mas o seu entusiasmo pela administração Bush é notório.

Critiquei várias vezes. Guantánamo, por exemplo. O primeiro editorial que escrevi sobre Bush foi para dizer mal – sobre Quioto. Agora, quando acredito numa coisa, bato-me por ela. Não gosto de textos meias tintas.

 

Quando é que deixou de ser um idealista?

Acho que continuo a ser um idealista. Mesmo na questão do Iraque. O autor do livro “What’s left of the left”, (um jornalista de esquerda), não consegue compreender porque é que os seus amigos de esquerda não tinham apoiado uma intervenção que tinha uma forte componente idealista. Na minha opinião, também.

 

A sua formação inicial não tem nada que ver com a política ou o jornalismo. Estudou biologia.

Basicamente sou uma pessoa curiosa. Sou assim desde miúdo. A minha formação em biologia marcou-me, e o meu pai é biólogo. Há uma presença de questões ecológicas em toda a minha vida. Imaginei que seria investigador. O meu médico da altura convenceu-me de que podia ser investigador tirando o curso de medicina. Mas não me dei bem com as aulas de anatomia. Dissecar uma perna…, não tinha estômago – indo directo ao assunto. Fiz uma coisa estranha: sair do curso onde ninguém entrava e ir para o curso onde toda a gente entrava. E comecei logo a trabalhar como jornalista, aos 19 anos.

 

Porquê?

Casei com 18. Tive o meu primeiro filho 11 dias depois de fazer 19.

 

Ah, por essa razão…

Sim, mas continuo casado com a mesma mulher. Fui trabalhar para um jornal para receber um ordenado. Depois, fui ficando. Houve uma altura em que tive que optar. Faltou-me acabar o último ano do curso. Mas já estava muito metido no jornalismo, era outra paixão.

 

É como se o casamento e a paternidade precoce tivessem decidido a sua vida…

Passamos a vida a fazer escolhas. A escolha importante é a consciente – não resulta de acasos. Não era obrigatório que tivéssemos tido o primeiro filho, não era obrigatório termos casado, não era obrigatório termos passado por períodos complicados – os primeiros anos foram ao nível do salário mínimo. Tinha podido fazer aquela escolha porque quer a minha família quer a família da minha mulher eram um pára-quedas. Tinha a sensação de que não ficaria completamente desprotegido se alguma coisa corresse mal. Mas também tinha a noção de que tinha de fazer por que nada corresse mal.

 

Porque é que quis assumir essa responsabilidade?

Já que tinha acontecido, não via razão para… Tinha vontade. Gostava de poder sair de casa, queria montar a minha casa. Acreditava que seria capaz de continuar a estudar e a trabalhar – e fui. E que as coisas acabariam por correr bem – e correram. Não tinha um plano. Não planeio muito a vida. Não planeei sair do Expresso quando foi o nascimento do Público. Quando fui convidado para director do Público tinha acabado de chegar à Guiné-Bissau, e recebi o telefonema no meio de um bombardeamento…

 

O convite foi inesperado para si?

Um bocadinho. Nesse ano recebi um convite para dirigir um outro jornal, e optei por não ir – uma decisão avisadíssima. Levo tempo a tomar decisões, mas quando as tomo é para lutar por elas.

 

Escolhe com a razão, a prudência, o coração, a contingência…

Um bocado de tudo. A contingência é importante. Às vezes fala-se da sorte do repórter. Eu acho que nunca há só sorte. Recordo-me de um trabalho que fui fazer a Sarajevo. Estavam 15 graus negativos. A maior parte dos meus colegas, com o frio e o cansaço, preferiu ficar no quarto. Saí, apanhei um eléctrico e encontrei uma pessoa que tinha entrevistado seis meses antes. Tive imensa sorte, mas se tivesse ficado a dormir como os outros não a teria encontrado. A vida é um bocadinho assim… Se tentamos, temos mais possibilidades de ter sorte do que aqueles que não tentam.

 

Porque é que essa é a sua atitude? O seu pai é determinante na sua história?

O meu pai é, a minha mãe também. Somos cinco irmãos. A família era relativamente pequena, não tenho primos nem essas dispersões. Nascemos todos em Lisboa, vivi sempre em Lisboa até há dois anos – fui para Sintra. [Os meus pais] tiveram naturalmente influência, pelos livros que deram a ler, pelas viagens que proporcionaram, pelos exemplos que davam, pelas conversas. O meu pai ia almoçar a casa todos os dias. Vivíamos em Conde Redondo. A primeira viagem de avião: Londres e Paris, quando tinha 16 anos.

 

O seu pai lia o jornal todos os dias?

O meu pai comprava três jornais por dia: Diário de Notícias, O Século e um vespertino. Os jornais custavam um escudo (dez tostões). Quando passaram a custar 15 tostões, ele, que gastava três escudos, continuou a gastar três escudos – cortou O Século, o que deixou a minha avó muito desgostosa.

 

Era uma altura em que toda a gente lia jornais…

A televisão nasceu no ano em que nasci. Mas não chegou logo a casa das pessoas. Era um objecto de luxo. Já andava na escola quando o meu pai comprou a primeira televisão; emitia quatro horas por dia. O que se ouvia era rádio. A rádio não tinha noticiário de hora a hora, tinha três vezes por dia.

 

Estava a tentar perceber como se aproxima dos jornais…

Foi ocasional. Como disse, estava nas associações de estudantes ligadas à extrema-esquerda. Era eu que fazia os jornais. Porque era o que escrevia mais depressa, porque achavam que eu escrevia melhor, porque escrevia os relatórios da direcção (eram os documentos programáticos)

 

Para si, escrever é uma extensão do pensar?

Para arrumar as ideias preciso de escrever.

 

Escreveu sempre? Diário, teve?

Tive um diário. A minha mãe disse no outro dia que o tinha guardado… Até tenho medo de ver o que lá está! Não tive ainda o impulso para pegar naquilo.

 

Acha que vai embater nas suas imbecilidades?

De certeza. Tinha 13, 14 anos, só se podem dizer coisas imbecis. Vê-se uma rapariga na rua e escrevem-se coisas imbecis. Tenho ideia de não ter escrito muito tempo. [O diário] servia para muita coisa: era muito apaixonado por cinema e tomava nota de tudo. Ia a cineclubes, a centros culturais, sítios que passavam cinema aos sábados de manhã… Via pelo menos dois filmes por semana e punha notas.

 

Essa descrição parece ser a de um rapaz solitário. Ou era gregário? Quem era o seu principal interlocutor?

Variou com o tempo. Tinha amigos no liceu. O liceu não era misto… [riso] Mas no movimento associativo já havia, e havia acampamentos. Sou tímido. Partilho com muita gente o que penso – pela escrita. Mas oralmente não é tão frequente.

 

Onde radica essa timidez?

Não faço ideia. Faz parte dos genes, se quiser…

 

Quando me preparava para a entrevista falei com uma pessoa que o conhece há 30 anos e que dizia: “Nunca conseguimos saber completamente o que é que ele pensa”. Fica-se no insondável.

É possível. Não sou expansivo. Participo nas discussões, e no jornal tenho de dirigi-las, muitas vezes; tento fazê-lo da forma mais assertiva possível. Mas dando sempre espaço para que haja pontos de vista diferentes. Chamo pessoas para ver se o título da primeira página está bem, não gosto de mandar um texto para publicação sem que outra pessoa o leia. Também porque sou rápido, não sou um perfeccionista.

 

Quanto tempo demora a escrever um editorial?

Não é o tempo que levo a pensar, mas a concretizar é uma hora, ou menos.

 

Quando falamos consigo, há uma afabilidade, até no tom da voz, que contrasta com a assertividade e um radicalismo que encontramos nos seus textos. Parece que tem dois registos… Dizem que gosta de encontrar consensos; também isso contrasta com as opções extremadas dos editoriais.

Não é contraditório. Só se chega a um consenso a partir de uma convicção. Um editorial em que as pessoas dizem sim, mas, sim, mas, sim, mas… Chega-se ao fim [sem perceber] o que é que ela pensa realmente. Prefiro assumir um risco. Ser assertivo é positivo porque permite clarificar o que pensamos – o que não quer dizer que não nos precipitemos, porque isto é uma coisa que se faz todos os dias, não é uma ciência exacta. Acho que as pessoas preferem isso, desde que haja argumentação, desde que não haja apenas jogos de palavras.

 

Fala-se do divórcio que existe entre si e a sua redacção. De o grosso da equipa não se rever nas suas posições.

Isso é uma ficção, é uma ficção exterior. Não tenho tensão com ninguém na redacção – de vez em quando há uma tensão ou outra, mas têm que ver com questões puramente profissionais. No que diz respeito ao tipo de jornalismo e à possibilidade de haver muitos pontos de vista, esse problema não se coloca. Não se coloca, em boa parte, porque procuro não impor as minhas ideias a ninguém – não digo: “Isso não sai porque sou contra”. Por outro, porque tentámos evoluir no sentido se as peças serem mais objectivas, mais anglo-saxónicas. Nos espaços de opinião – que são múltiplos, inclusive para os jornalistas do jornal – podem dizer o contrário do que eu digo. Essa questão nunca perturba a relação de trabalho. De fora pode parecer estranho.

 

Esquizofrénico – é a palavra que se usa.

Sim, eu sei. A São José Almeida é redactora principal do jornal; aquilo que ela pensa sobre a maior parte dos assuntos é muito diferente do que eu penso, mas quem a nomeou editora da [secção] Política fui eu. Recentemente vieram novas pessoas para a direcção e a visão que têm do mundo é muito diferente da minha. Em contrapartida, estamos muito sintonizados em relação ao jornalismo que queremos fazer. Sempre acreditei que o importante são os argumentos. Se os defender bem, não tenho que estar a desarmar os outros para conseguir, no fim do dia, que mais pessoas fiquem convencidas.

 

Podemos ler editoriais diferentes consoante o membro da direcção que os assina. Lê isto como um exercício plural?

Um exercício plural num país onde há pouco pluralismo. Há um trabalho feito pela Cristina Ponte (da Universidade Nova), que comparou os editoriais do Público e do El Pais durante a guerra do Kosovo. Nos editoriais de ambos os jornais apoiava-se a intervenção. Mas ela notou que em todas as notícias do El Pais perpassava a linha dos editorais, e no Público isso não acontecia. Há quem diga que isso é esquizofrénico. Para mim, é um elogio.

 

Na primeira fase da sua carreira os seus directores foram José António Saraiva e Vicente Jorge Silva.

O principal foi o Vicente. Pelo tempo que estive no Expresso, pelo tempo que ele esteve aqui, pelo tipo de relação que tive com ele – mais frontal. O Vicente é mais extrovertido e as coisas discutiam-se – às vezes aos gritos, mas discutiam-se. O Saraiva sempre se fechou mais no gabinete.

 

O Saraiva e o Vicente são dois modelos de directores. No seu caso, foi director muito cedo – tinha 41 anos. Teve um período de insegurança? Procurou colar-se ou afastar-se destas figuras tutelares?

O meu percurso é sui generis. Comecei a trabalhar com 19 anos num jornal que durou quatro ou cinco meses. Depois, passei por umas coisas que nem contam. Quando entrei na Voz do Povo, com 21 anos já era chefe de redacção. O facto de chefiar pessoas não era estranho para mim – também na experiência política associativa tinha passado por experiências de liderança. Durante o período que estive no Expresso fui essencialmente repórter. Mas quando o Público foi fundado, em 89/90, entrei logo para a direcção. Tinha 32 anos. Quando cheguei a director já tinha quase oito anos de experiência de levar este barco. Tenho dificuldade em identificar-me quer com o estilo do Vicente quer com o do Saraiva.

 

Tento perceber se esta diferença foi procurada, acentuada… E como é que encontra a sua voz.

Acho que quer um quer outro fazem coisas muito melhor do que eu, e que eu gostava de conseguir fazer, mas tenho dificuldade. Faziam também outras coisas que eu sei que são erros; procuro evitar cometer esses erros. Mas não tenho obsessão de ser igual ou diferente.

 

É um tímido, como disse, mas esteve quase sempre em lugares de poder. Tímido pode ser, mas inseguro não…

Tenho algumas características que não são muito habituais em líderes – como ser bastante conciliador. E tenho uma grande capacidade de trabalho, sou capaz de compensar defeitos esforçando-me mais.

 

Quando falta o génio, sobra o trabalho?

Não sei se é quando falta o génio, que não costumo ser genial… Sei que sou capaz de dormir menos horas, trabalhar mais naquele assunto, escrever mais um documento a ver se convenço as pessoas. E não pretendendo ser um académico, procuro estudar os assuntos – em Portugal é uma grande vantagem. Não facilito, ou facilito o menos possível. Finalmente, tenho capacidade de improvisação – o que também ajuda e dá alguma confiança. Quando quero muito uma coisa sou persuasivo, e teimoso. Não sou um sedutor, de maneira nenhuma. O Vicente tem um lado de sedutor muito maior…

 

O que é que invejava no Vicente?

O Vicente tem uma capacidade maior de pensar coisas fora do comum. Muitas das coisas que se pensam fora do comum são disparates; mas se nunca se pensa fora do comum nunca se faz nada de realmente diferente. Ele era também um excelente catalisador de reuniões, as reuniões eram um fervilhar de ideias – mandava coisas malucas para a mesa... Foi das primeiras pessoas a dar atenção ao fotojornalismo.

 

Estou a auscultar a sua apetência pelo poder. E não é inocentemente que se está sempre em equipas de liderança…

É importante dizer que sou competitivo. Apesar de tímido. Sempre quis ser o melhor aluno da turma.

 

E era?

Quase sempre havia uma pessoa que se batia bem comigo. Fomos colegas imensos anos, e às vezes era eu, às vezes era ele. Sempre era um estímulo. Se vou fazer uma reportagem, vejo o que os outros fazem. Se fizeram melhor ou pior do que eu. O lado competitivo é importante porque nunca nos deixa distraídos. Mas nunca planeei nada na minha vida para ser o número um.

 

Era o filho mais velho, para começar, sobre o qual recaía uma especial expectativa…

Acho que sim. É inevitável, com um filho mais velho fazem-se coisas que não se fazem com os outros. Contam que eu bebi água destilada muito tempo; até uma altura em que chapinhei e bebi água num lago de patos; a minha mãe achou que já tinha anti-corpos suficientes e que não era preciso destilar a água. Isto mostra o que já não se faz com o segundo filho. Se eles caírem, levantam-se. Mas todos os pais têm expectativas em relação aos seus filhos. Posso dizer que tive ambição. Não ambição de poder. Mas a ambição de fazer coisas de que gosto e que sejam úteis.

 

A sua ambição no Expresso era um dia ser director ou ser o melhor?

No Expresso nunca pensei ser director. A minha ambição, no limite, era ser o melhor. Mas sempre tive noção que, não sendo perfeccionista, é muito difícil ser o melhor. É mais fácil comparar-me com um atleta do decatlo do que com um atleta de qualquer uma das especialidades do decatlo. Só há especialidades individuais no jornalismo – o melhor repórter, o melhor entrevistador, o meu editorialista, o meu cronista. Para isso [ser o melhor], precisava dessa coisa que não tenho: a obsessão pela perfeição. Apesar deste meu ar calmo, faço tudo um bocado depressa. Casei-me depressa, tive filhos depressa, comecei a trabalhar relativamente depressa, escrevo depressa, guio depressa.

 

Guia depressa por causa do risco? Por não resistir ao risco?

Desde pequeno que gosto de carros. Gosto de ver uma boa corrida, gosto de andar depressa. A iminência de estar em risco não me deixa confortável. O risco tem de ser sempre calculado. Vou todos os fins-de-semana passear com os meus cães para umas arribas no Cabo da Roca. Há lá umas cruzes de pessoas que caíram; quando vejo um sítio complicado, não me meto. Mas 90% dos meus amigos não se aproximariam dos sítios por onde passo.

 

Em tudo mede o risco? Estou a pensar na sua polémica com José Sócrates. O PM aponta-o como o seu melhor inimigo. Gosta da tensão desta relação?

Não gosto. Não escolhi. Não escrevi nem mais nem menos sobre o engenheiro Sócrates do que escrevi sobre outras pessoas. Santana Lopes tem mais razões de queixa, por exemplo. Paulo Portas, talvez. O que faz aqui muita diferença é o modo como ele reage às críticas.

 

Como é que é quando se cruzam?

Por acaso não sei quando nos cruzámos pela última vez… Acho que nos cumprimentámos. Ele é uma pessoa extraordinariamente diferente do que eu sou. A maneira como nos relacionamos com a vida, as pessoas, os temas e o que queremos fazer é distinta. O que li d’ “O menino de ouro” e o que sei e que não vem em parte nenhuma reforça ainda mais essa convicção. Quer no carácter quer na forma como gere a política.

 

Nunca teve uma boa relação com José Sócrates.

A maior parte das coisas que escrevi no início deste governo eram muito favoráveis. Havia vários conflitos com jornalistas do Público. A nossa regra desde o princípio é não deixar cair o jornalista. Só porque somos pressionados, o jornalista não abandona aquele tema e não pomos lá outro. Houve a história com o [José António] Cerejo, houve outros episódios… Não vou contar o que se passou nas vésperas da publicação da primeira história. Mas a forma de relacionamento do gabinete do Primeiro-ministro, e de outros gabinetes de outros ministros, com os órgãos de comunicação é muito pouco saudável.

 

Quando há dez anos assumiu a direcção do Público, era muito jovem. Acha que teria, então, a confiança necessária para encetar esta guerra, tão dura, extenuante e difícil? É preciso estar confortável no seu papel para ir a este braço de ferro.

Estou a tentar lembrar-me se tive alguma guerra no princípio... Os riscos que calculo quando estou a conduzir não são os riscos que calculo quando dou uma opinião. Se uma pessoa começa a calcular os riscos de dar uma opinião ou mandar fazer uma investigação, está no lugar errado. Se começo a pensar: não posso dizer esta palavra senão perco uma fonte, não posso dar esta notícia senão aquela pessoa vai ficar zangada comigo… É necessário, até por uma questão de pedagogia democrática, que todas as pessoas se habituem às críticas. Há pessoas que critiquei em editoriais de quem continuo a ser amigo. Os falsos amigos é que não fazem críticas.

 

O jornalismo é apontado como uma forma de poder. Não foi um político. Mas tem o poder de dirigir o mais reputado diário português.

Tenho consciência de que tenho alguma influência. Posso condicionar algumas decisões, posso levantar problemas, colocar na agenda política temas que não estariam. Já senti uma vez ou outra que textos que escrevi em véspera de debates parlamentares, [fizeram com que] estes corressem de uma maneira um bocado diferente, porque as pessoas tomaram em consideração um argumento que lá estava. Mas em última análise não decido nada.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2008

 

Fernando Pinto (2009)

13.03.15

Quem é Fernando Pinto? Um sujeito que gosta de aviões. Que só fala de aviões. Que vive no meio dos aviões.

Foi o adolescente que não bebeu porque no dia seguinte tinha aulas de voo. Foi o estudante que se insurgiu contra as greves universitárias porque queria aprender – e ser engenheiro de aviões. É um homem que atende o telefone e pergunta: “O tempo está ruim daquele jeito?”. Como se isso interferisse com os planos de voar.

É um sujeito – como se diria no Brasil – que não parece um sujeito brasileiro. Aquele que diz que sambar não é a sua especialidade. Porque a sua especialidade, como é sabido, são os aviões.

Porquê?

Talvez os aviões sejam uma forma de estar em casa. Com a família. Atente-se na forma como apresenta a família, na reprodução da orgânica familiar, nas características que vêm com o código genético. Talvez voar, construir aviões, discutir aviões seja a forma primordial de comunicarem e de estarem uns com os outros.

E voar, que será isso? Que sensação será essa, que arrebatamento será esse? A resposta não é sensorial, não é a de um romance. Fernando Pinto tem uma cabeça de engenheiro. Não fala de romances, e lê menos do que gostaria. Voar é um composto de duas peças: a lúdica e a responsabilidade. A mecânica é o que o fascina.

Tem um filho piloto e uma filha que quer ser médica. Tem 60 anos. Parece ter mais – por causa da atitude bem comportada, do sujeito que nunca faz bobagens. Que outros mundos haverá nele?

Não falou nunca do medo, do risco, da morte. Experimentou todas as formas de voo, excepto a de pára-quedas. Há qualquer coisa nele de atleta de alta competição, que subordina toda a vida ao exercício.

Tem uma voz muito grave, funda. Surpreende quando fala de namoradas complicadas. O andar, os gestos, são ágeis. Tá?

Nessa tarde iria ter uma reunião com os sindicatos. Será o presidente da TAP por um novo mandato.

  

Para falarmos de aviões, começamos por falar do seu pai. A ligação aos aviões…

Vem de lá. Meu pai é descendente de portugueses, da região de Marco de Canaveses. Em 1911, seu pai, meu avô, foi morar numa cidade no extremo sul do Brasil, fronteira com o Uruguai. Por alguma razão, desde pequeno, meu pai era ligado em avião. Via revista, começou a construir pequenos modelos. Via-se, de casa, um campo de avião; aeronaves militares operavam ali, aviões muito antigos. Talvez fosse isso. O meu pai, com os amigos, compraram um planador pequeno e fundaram um clube de planadores. Aviões sem motor, ? Eram planadores primários, rebocados por um carro. Na época, um Ford 29.

 

O que fazia?

Subia, podia fazer umas curvas e pousava em frente. Foram a Porto Alegre, a capital, e compraram esse avião na Varig. Que, na época, era uma empresa muito pequena, tinha uns dez aviões. Foi a primeira ligação que teve com a Varig.

 

De onde vinha dinheiro para essa aventura?

Doações da comunidade de Bagé. Bagé, Rio Grande do Sul.

 

Porquê essa rota migratória do seu avô, e que levou a família a fixar-se aí?

Houve uma comunidade portuguesa que foi para Pelotas, uma cidade não muito longe de Bagé. (Tanto que os doces de Pelotas, famosos, claramente são doces portugueses). O clima é semelhante ao que temos aqui. Porto Alegre, a capital do estado, foi fundada por açorianos. O irmão do meu avô tinha chegado antes e não ficou em Pelotas: andou para dentro mais 200 km e fez ali uma loja de ferragens. O meu avô, quando chegou, cinco anos mais tarde, já foi com um emprego nessa loja de ferragens.

 

Há duas gerações atrás, a sua família era humilde e estava na situação de procurar uma vida melhor.

Exactamente, a emigração foi para isso.

 

Conheceu esse avô?

Muito! Pessoa que sempre me impressionou pelo bom senso e pelas histórias que contava de Portugal. Contava muito das suas aventuras morando nas margens do Douro. Podia cruzar o Douro a nado ou numa embarcação. Correntes muito fortes. Quando vim para Portugal, visitei a casa dele. Era de um grande vigor físico e destemido. O irmão faleceu e ficou com a loja de ferragens. Abriu um armazém, que desenvolveu. A minha avó era de uma família portuguesa, já nascida em Pelotas; excepcional doceira e extremamente rígida.

 

As mulheres da sua família têm uma têmpera diferente da dos homens. A ambição é incutida por elas?

Tinha um temperamento forte, e isso teve uma influência na vida dos filhos. O meu avô era empreendedor; o armazém de secos e molhados que abriu era grande; chamava-se Clarão da Lua. Ficava do lado da casa. Eu já nasci em Porto Alegre. O meu pai trabalhava na Varig, entrou em 1940. Casou com a minha mãe em 45. Minha mãe era filha de um médico de origem suíça e belga, família Abs. Minha mãe tem hoje 89 anos, vive no Brasil. Na minha casa o meu pai e a minha mãe dividiam [o espaço e as forças]. O meu pai era calmo, tranquilo, a minha mãe era uma líder, era a matriarca.

 

É parecido com o seu pai e o seu avô? Na ponderação, calma, bom senso.

Sou. A audácia é uma influência da personalidade forte das mulheres. Mas o meu pai e o meu avô também a tinham. No caso do meu pai: a audácia de sair de uma cidade pequena e tornar-se o primeiro comandante de uma empresa que só tinha alemães; foi o primeiro brasileiro puro a chegar a essa empresa.

 

A ida para Porto Alegre teve que ver com isso: com a prossecução de um sonho?

Sim, foi estudar para Porto Alegre. Os meus avós continuaram em Bagé. As estradas não eram boas, demorava-se cinco horas a fazer estes 200, 300 quilómetros.

 

A aviação tornou-se uma obsessão para o seu pai. E depois, para toda a família. Alguma vez o ouviu falar, ou à sua mãe, do medo da queda, do despenhamento, da morte?

O meu pai completou 40 anos como comandante, nunca danificou um avião, nunca teve um problema mais grave nas suas 25 mil horas de voo. Era considerado um “pé quente” – uma pessoa que tem sorte.

 

Acha mesmo que era uma questão de sorte? O que fazia do seu pai um excepcional piloto?

A tranquilidade. E o conhecimento técnico. Uma vez, fazia muitos anos que o meu pai não voava planador e quis actualizar a sua licença. Eu era instrutor de planador e fui o responsável por verificar se estava em condições. Fiquei impressionadíssimo! Como voava bem! “Quem tem de aprender sou eu!, quem tem de ser verificado sou eu”.

 

Inversão curiosa, o filho verificar o pai. Foi ele que o ensinou a voar?

Não, foi o meu irmão. Somos seis irmãos, eu sou o terceiro. O meu irmão mais velho seguiu a carreira do pai. Voou desde o Dakota até o Boeing 777. Foi instrutor, formador, piloto-chefe, na carreira que fez na Varig. (Nós temos em conjunto um avião pequeno, lá no Brasil). Depois tem a minha irmã que vive na Alemanha, casada com uma pessoa que… conheceu num avião! Tenho outra irmã que mora no Rio de Janeiro, que não é casada com ninguém da aviação; apenas o filho é piloto de 737 e é casado com uma aeromoça. Outra irmã: dedicada ao ensino religioso. A mais nova é casada com um chefe de escala da Air France no Brasil.

 

Uma dinastia. Não há-de ser por acaso que casam com outros cujo universo coincide com o que tinham em casa. Nunca quis ser outra coisa senão piloto?

Deixe-me pensar… quando era novo sempre dizia que queria ser piloto. “Ah, mas que falta de criatividade! Só porque teu pai é e o teu irmão quer ser…”. Era natural para mim. Com nove anos um dos meus hobbies, ou brincadeiras, era fazer aeromodelos – aviões pequenos.

 

Lembra-se do primeiro que fez?

Sim. Nós apanhávamos o meu pai na Varig no final do dia, a minha mãe dirigindo – só dava para ter um carro. Um dia vi dentro do estaleiro um avião que devia ter um metro, dois metros, todo construído em varetinhas. Achei aquilo maravilhoso! Em casa, tentei fazer uma coisa parecida. O meu pai assistiu e trouxe-me de uma viagem aos Estados Unidos um kit para fabricar um avião. Então dizia: “Quero ser piloto e quero ser engenheiro”. Queria também saber construir. Minha vida toda foi voando aviões e desenvolvendo a parte da construção. Cheguei a ter uma fábrica de aviões leves. Cheguei a projectar aviões.

 

Foi engenheiro e piloto. A sua formação e percurso são esses.

Por influência do meu pai, também. Sempre se frustrou por não saber mais da parte técnica. Fez dois anos de engenharia por correspondência, pela universidade de Cambridge. Lembro-me das apostilas [sebentas pelas quais estudava]. Escreveu um livro, que um comandante nosso encontrou recentemente no interior de Portugal! Ensinava as bases para calcular um avião. Conheci esse livro quando tinha 15 anos. Fui um pouco auto-didacta. Já nessa época sabia como é que um avião voava.

 

Então a sua vida não podia ser outra.

Pois é! [riso] Não podia não. A parte da engenheira foi sempre muito importante para mim: sempre gostei de construir. Descobri mais tarde que também em gestão se fabrica, monta processos. É uma construção.

 

Conte-me uma conversa que tenha tido com o seu pai, íntima, e que não tenha que ver com aviões.

[gargalhada] Isso é muito difícil! O meu pai pouco falava, e pouco participava na nossa educação do dia-a-dia. A principal participação era pelo exemplo. Lembro-me de uma vez só em que levantou a voz comigo. É fácil ver pela casa em que estávamos morando: eu tinha dez anos. Fomos para essa casa quando eu tinha oito anos.

 

Porque é que a recorda especialmente?

Havia um campo junto à casa. O paraíso! Caminhei na frente da minha casa e soltei o meu primeiro planador. Só que o planador sumiu. O planador não aterrou mais. Corri atrás e não consegui pegar. Foi parar em cima de uma árvore, muito longe. Uma angústia muito grande.

 

Era uma criança tímida? E como era a relação com o lado feminino da casa? Tudo isto parece ser uma conversa de rapazes.

São duas etapas. No início, o contacto era com o meu irmão mais velho – as brincadeiras eram as mesmas, com os aeromodelos. Ele saiu muito cedo de casa e foi voar. Dezoito anos, por aí. Passou a estar com as minhas irmãs. Era paparicado! “Traz um suco para mim”. Com treze anos mudámo-nos para o Rio de Janeiro.

 

Não parece um carioca. Faz lembrar uma canção do Jobim e do Chico Buarque sobre um sujeito que não gosta de samba, não gosta de chope gelado em Copacabana.

[riso] Ainda no Rio Grande do Sul: todo o dia, chegávamos da escola e ocupávamos um campo de futebol num colégio jesuíta. Chegávamos lá de bicicleta, levávamos o avião atrás. Há uma ausência de medo nisso tudo.

 

Até quando persistiu esse fio de inocência?

Até ao momento em que entrei na faculdade, a Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1969. Foi no período mais duro da revolução. Era um período de grande contestação. Havia greves a toda a hora. Eu era contra! Muitas vezes fui lá na frente: “Tudo tem seu lugar. Tudo tem limites. Há muita gente querendo estudar”. Mas de uma hora para a outra comecei a ver estudantes a desaparecer… Nunca me envolvi politicamente. Fiz um enorme sacrifício para passar o vestibular e entrar na melhor universidade do Rio. Queria estudar e ter retorno daquilo.

 

Temeu que o seu gesto fosse mal interpretado? Que fosse considerado um apoiante do regime?

Não. Sempre fui claro: “Não estou defendendo nem um lado nem outro”. Estava defendendo vários alunos que queriam ter as suas aulas. Era um mundo hostil, com grupos diversos.

 

Em que zona vivia?

O meu bairro era o da Ilha do Governador, perto do aeroporto.

 

Alguma vez foi à escola de samba da Ilha?

Na minha época não existia a escola União da Ilha. Mas fui algumas vezes, não muitas, na passarela.

 

Sabe sambar?

Não é a minha especialidade. [gargalhada] Admiro, até. É bonito ver o espectáculo.

 

Não corresponde ao protótipo do brasileiro expansivo, com uma relação expansiva com o corpo. Basta olhar para si para perceber isso.

Não são todos assim no Brasil. Uma coisa importante: não nasci no Rio de Janeiro, não tenho algumas dessas influências. Outra coisa: fui sempre prematuro na formação da personalidade. Cheguei no Rio com 13 anos com uma personalidade formada. Como é que eu era? Como sou hoje! Não mudei. Uma pessoa consciente, relativamente sério, com uma dose de preocupação com o meio. Nunca ninguém me viu excedendo na bebida.

 

Nem fumou maconha, que todos os brasileiros fumam como tabaco comum?

Não. Lembro-me de uma vez em que deitei na cama depois de tomar gin tónico… via tudo à roda. Mas nunca disse bobagem. Que era uma coisa desagradável que via noutros caras que bebiam demais e eram inconvenientes. Meu irmão era assim, meu pai também. Questão de origem: você acaba reproduzindo o que conhece. Eu não podia ficar até tarde numa festa porque no dia seguinte tinha que voar.

 

Tudo é subordinado ao voo. Ajudava o seu irmão a dar aulas, com 16 anos. Para ganhar um dinheirinho, para ganhar experiência?

Ajudava porque eu gostava de voar. Era voar sem precisar pagar. Não ganhava nada com isso, mas não tinha que pagar.

 

É um homem ligado à família. Como se uma parte da sua vida e da sua cabeça ainda estivessem nessa redoma. Estar em aviões é estar em família.

Sou muito ligado à família! Isso precisa ser bem interpretado. Ainda não cheguei na segunda parte da minha vida – a da vida profissional. Dou muito valor ao que fizeram por mim, à formação que me deram. Não é fácil pôr seis filhos no caminho e seis filhos com a cabeça no lugar. Sei do sacrifício que foi. Posso garantir que nenhum dos meus irmãos esteve envolvido com drogas, nenhum dos meus irmãos teve problemas de alcoolismo, nenhum dos meus irmãos tem um carácter duvidoso.

 

Nunca teve um desejo, nem na adolescência, de se emancipar?

O caminho natural que quis seguir foi ser piloto. A minha rebelião foi partir para outro caminho. Escolher engenharia/gestão.

 

Foi uma certa separação do seu pai? Simbolicamente.

Não. Era qualquer coisa que ele gostaria de ter feito, mas não pôde fazer. Foi dos que mais me apoiaram em ser engenheiro. Tive outras rebeliões, namoradas complicadas…

 

É tão bem comportadinho que não se imagina que tenha tido namoradas complicadas.

Tive, como todo o mundo!

 

Começa a revelar-se um personagem da galeria de Nelson Rodrigues: uma pessoa de classe média, com vida normalíssima, que de repente surpreende pela ousadia. É o que está na série de contos “A vida como ela é”. Leu?

Li. [riso] Não chega a ser Nelson Rodrigues, a minha vida paralela. Mas bom. A gente estava onde?

 

Nas namoradas complicadas.

Acontecia.

 

Imaginaria que, à semelhança do seu pai e do seu avô, procurasse mulheres fortes, vivas, parecidas com a sua mãe.

Acabei casando com uma mulher muito forte, uma guerreira. Casei tarde porque queria casar uma vez só. Tinha 36 anos. Por duas vezes andei muito próximo de casar. A minha sensação era a de que aquilo não ia ser duradouro.

 

A sua vida profissional encaminhou-se no sentido da engenharia e da gestão. Quando é que percebeu que podia ser o CEO da Varig? Que podia ambicionar o que quisesse.

Ambicionar o que quisesse: isso é por sua conta. Nunca fui uma pessoa ambiciosa. Gostava, e gosto, de enfrentar desafios. Como aconteceu a minha ascensão na Varig? Meu pai me apresentou a um engenheiro responsável pela manutenção, eu estava me formando. Me deu uma oportunidade. Dediquei-me muito, enquanto estagiário. Trabalhava até altas horas, aprendendo. Já no final do estágio tive a oportunidade de ser o responsável por um projecto que estava sendo construído. Algo que valia muitos milhões de dólares. Deu certo. Mostrei que tinha garra, capacidade, força e tal para coordenar esse projecto. Até hoje orgulho-me disso.

 

Subiu na empresa por causa dessa experiência?

Foi natural passar a ser o responsável pela revisão de motores. Montei uma equipa de 300 pessoas. Comecei a aprender o que era a liderança. Fui fazer uma especialização na Fundação Getúlio Vargas: aprender a gerir. O meu pai deu-me as bases. Uma vez perguntei para ele o segredo: só tomo decisões que são consideradas justas, correctas. Muitas vezes ser justo é ser rígido, é ser duro. Esse tipo de ensinamento e posicionamento que procura usar o bom senso, mais do que a força, aprendi com ele. O resto, é técnica.

 

Se olharmos para a sua actuação na TAP, para a forma como foi sanando conflitos, percebemos essa matriz.

Sim. Aprendi muito também no período em que dirigi a equipa de 300 pessoas. Uma vez chamei a atenção do chefe à frente de todo os outros. Me dei conta do absurdo do que tinha feito, chamei todos de novo e pedi desculpa àquele chefe. Eu tinha a razão. Mas a forma como a fiz [prevalecer] estava errada. Isso trouxe-me mais respeito. Não tenho dificuldade em reconhecer um erro.

 

Como evoluiu a carreira?

O sucesso desse projecto fez-me viver um ano em Toulouse. No regresso, convidaram-me para ser director técnico de uma empresa menor, ligada à Varig, que estava em grandes dificuldades. Passei a presidente. A Rio Sul transformou-se num enorme sucesso. Por causa disso chamaram-me para a Varig, em 1996. Inesperadamente. Não tinha a mínima expectativa de vir a ser presidente da Varig.

 

Onde eu queria chegar – e por isso falei em ambição – é à confiança que tem de ter para fazer este trajecto.

É verdade. Para aceitar determinados desafios precisa de ter um determinado nível de confiança. Sabe onde é que comecei a liderar? No aeroclube de planadores. Com 16 anos dava instrução. Com 17 anos praticamente assumi a responsabilidade técnica, de gestão dos pilotos, dos instrutores, manutenção, contactos com a autoridade, com a força aérea brasileira… eu era muito jovem. Ali, diria que aconteceu uma parte importante da minha formação. Deu-me confiança.

 

Qual é o seu sucesso?

A Varig tinha 23 mil trabalhadores, uma dívida de 2.4 mil milhões de dólares, que reduzimos para 900 mil em quatro anos. Fiz uma análise e vi que se atacássemos cinco pontos específicos tínhamos grande chance de sucesso. Procuro simplificar um problema extremamente complicado em três ou quatro soluções. Make it simple. E ataca aquilo, e procura trazer as pessoas junto. Aconteceu a mesma coisa na TAP. Pedi uma análise a um banco de investimento inglês que me recomendou: “Fica longe! É uma empresa inviável. Por causa do envolvimento do Governo, dos sindicatos, greves…”. Mas com a nossa equipa, concluímos que se atacássemos certos pontos podia dar certo.

 

Se não fosse a crise a desestruturar novamente a empresa, teria aceitado este mandato, que assumiu recentemente?

Não era a minha intenção. A minha intenção era chegar ao final do mandato anterior e encerrar a minha ligação à empresa. Com ela privatizada. Teria cumprido a minha meta. Tivemos um ano absolutamente fora do normal. Nunca o combustível teve o preço a que chegou. As empresas todas sofreram, as que fizeram protecção, as que não fizeram. E isso seguido de uma crise económica e financeira inexistente no mundo moderno. Obviamente a TAP perdeu muito dinheiro. Previa um ganho de 40 milhões. Perdeu 200 e tanto. Achei que não seria bom nem para mim nem para a empresa sair agora.

 

Era uma questão de honra para si?

Era. Entrar para a empresa, numa situação muito ruim, a empresa vem sendo corrigida, consertada, ajustada ao longo de quase oito anos; ela bate o recorde de resultados; e no último ano, pum, espanca tudo e é uma desgraça. É uma questão de honra não sair numa situação dessas. É importante a minha continuidade. Mas será o último mandato. Fico mais três anos.

 

Descreva-me a sensação de voar. Como se fechasse os olhos e sentisse.

É que não é fechar os olhos. Só não voei em cabo de vassoura porque não sou bruxo! [riso] Mas voei balão, planador, avião, ultra-ligeiro, asa delta. Pára-quedas, não!, pára-quedas é emergência. Cada uma é uma experiência diferente, um voar diferente. O planador é um voar em que você sente que está no ar pela força da natureza. Já fiquei mais de cinco horas no ar, assim. Está só vendo a paisagem, subindo, subindo. Ali tem uma paz. Tem o lado lúdico e, ao mesmo tempo, a responsabilidade. Cuidado com a euforia, com os níveis de oxigénio, não pode entrar numa área de conflito com o tráfego aéreo. No ultra-ligeiro é a mesma coisa; mas eram aviões primários. Tínhamos um que guardávamos na garagem do meu irmão; descolávamos na frente da casa.

 

Como quem tem o carro estacionado na garagem!

Exactamente isso! Era só botar as asas. Era perigoso, os motores não eram fiáveis, e se tivéssemos um problema teríamos de aterrar na estrada em frente. Mas aquilo era o contacto com a natureza e o meio. Voávamos a três metros de altura, passando ao lado das casas. “Vamos encontrar na praia tal e comer um peixe?” E íamos voando.

 

Uma imagem de romance: quando morrer quer que as suas cinzas sejam espalhadas a partir de um avião? Alguma vez pensou nisso?

Eu não!! [risos] Um avião é uma coisa maravilhosa. Eu quero é aproveitar muito enquanto estou aqui.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2009

  

Pág. 1/2