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Anabela Mota Ribeiro

Ler Saul Bellow

28.05.15

Em Junho, vamos Ler Saul Bellow no Chiado. 

Se fosse vivo, Bellow faria 100 anos em Junho, justamente. 
Para nos adentrarmos no seu mundo, falamos com o editor Francisco José Viegas, a crítica literária Helena Vasconcelos e o historiador e político Rui Tavares. 
Dia 4 de Junho, às 18.30h, na Bertrand do Chiado.
Moderação de Anabela Mota Ribeiro.
Ler no Chiado é uma iniciativa da revista Ler e da Bertrand na primeira quinta feira de cada mês. 
Apareçam!
 
 

Frederico Lourenço - O Lugar Supraceleste

20.05.15

Antes de chegar ao lugar mais longínquo de O Lugar Supraceleste, ou seja, à última crónica do livro, justamente intitulada “O Lugar Supraceleste”, eu tinha pensado já no movimento ascensional da escrita de Frederico Lourenço, na nota musical que diria esse lugar, esse rosto último, no encontro com o “mais íntimo tutano da alma”, para trazer um verso de Eurípides. Mas, mais do que o encontro com o para lá da abóbada das estrelas, com esse lugar arcádico, descrito por Píndaro como sendo cheio de rosas, interessou-me o lugar de onde Frederico escreve, os círculos do Inferno e do Purgatório por onde passa, a maneira como exala o perfume das rosas pelo caminho – e o segue.

Muitos leram já as crónicas que compõem este livro, publicadas originalmente no Facebook, entre Setembro de 2014 e Janeiro de 2015. Eu tinha-as lido, também. De algumas tinha uma impressão nítida, e a outras tinha perdido o rasto completamente. Não porque sejam menos conseguidas, mas porque há uma zona de mistério, um nevoeiro espesso, que permite que nos adentremos nele mas não possibilita que repitamos os passos para lá chegar. Eu sou como as crianças que podem ouvir uma história mil vezes, com o mesmo encantamento, e só depois de anunciado o epílogo, dizem: afinal já cá tinha estado.

O facto de as ter lido antes não diminuiu o meu interesse agora, e, sobretudo, não me permitiu perceber a pulsão ascensional que nos conduz a este lugar supraceleste. Um lugar de um azul celeste celestial, como diria Caetano Veloso, que Frederico Lourenço nunca cita. A sua música, as suas musas têm outra proveniência. Cita, usa, a expressão “discurso ascensional”, que é a marca da estética de Bach.

O livro é um passo a passo, para chegar a um lugar, e sabendo, desde o princípio, que “o alvo da viagem é viajar”.

“O alvo da viagem é viajar” é um aforismo de Goethe que aprendi com Maria Filomena Molder, e que não sei onde pertence. Ao contrário do Frederico Lourenço, que manuseia as peças do mosaico com destreza, com rigor, investindo-se nesse fazer laborioso, eu fico parada ante o brilho das estrelas, estonteada, e por inércia e ignorância, não procuro mais coordenadas. Estou a dizer de mim, mas estou, mais do que tudo, a dizer do Frederico, da sua erudição, do fulgor que o faz ser de outro tempo, de outro lugar. Porém, ele não só é completamente desse tempo sem tempo como é deste tempo. É isso que lhe permite falar das insónias de Zeus como se falasse das nossas.

A viagem é feita por causa de um viajar. Cheia de incompreensões, tormentos, palavras como “excruciante”, expressões como “extracção de um órgão vital sem anestesia”, momentos dilemáticos que são pontos-chave na cartografia, o som excelso do Cravo Bem Temperado, a fragrância da rosa, de certas rosas, um lugar verdejante em Inglaterra que nunca foi uma abadia mas que é um lugar sagrado.

A viagem é feita por causa de um viajar. A vida é feita por causa de uma pergunta: a pergunta pelo sentido que tem viver.

Esta é a pergunta que percorre todas as crónicas, de um modo subterrâneo ou à superfície, taxativamente ou como quem fala de uma pessoa que está longe. O livro é uma resposta de quem percebeu, virada a curva dos 50, que é no caminho que se encontra o supraceleste. Não por acaso, há uma menção à Divina Comédia e ao desinteresse dos alunos nesse território ulterior ao mundo que é o Paraíso.

Trata-se de um curioso paradoxo: superamo-nos em direcção a essa outra coisa que é linda, sabendo intimamente que não é ainda essa outra que é linda, que haverá sempre outra, e outra; mas esta dificuldade não nos inibe de continuar, vivificar nesta procura, desfrutar do gozo de ser, no instante, sabendo que morte e vida, querer e sofrer são ciclos convergentes, elos inextrincáveis, e que a beleza está neles, nesse seu modo sincopado e osmótico.

Frederico Lourenço recorre com frequência a Schopenhauer e à sua obra O Mundo como Vontade e Representação. Duas ideias são dominantes: a de que “cada desejo satisfeito não faz mais do que parir um novo desejo” e a de que não há satisfação que preencha o poço sem fundo da carência humana. Então, retomando a pergunta: o que nos faz lidar com o tédio que sobrevém à saciedade, o que nos faz lidar com o absurdo da vida, avançar círculo após círculo? O que é que o faz a ele, prosaicamente, subir as escadas do Bom Jesus em Braga, mais um degrau, sabendo onde vai dar, procurando a canseira?

(Aprendemos com ele que clímax em grego significa escada.)

A questão é: sabe-se mesmo onde se vai dar? Quem somos depois do momento climáxico? Há uma experiência fundamental que Frederico trabalha numa das crónicas: a da transformação. A de sermos outros quando fazemos caminhos, subimos escadas, nos superamos, e isso nos permitir lidar com o nosso abismo interior.

Disse que o autor virou a curva dos 50. É verdade. Mas penso que a sabedoria que extravasa destes textos resulta menos da faixa etária em que está do que do sentimento de orfandade, do ponto de se saber a sós com o mundo e consigo próprio. Sendo certo que há sempre outros, e que, em rigor, nunca estamos completamente sozinhos, uma parte de nós é extirpada com a morte dos pais. Sobreviver-lhes, reconstruirmo-nos, é uma tarefa hercúlea que amadurece, ensina, muda as coisas de lugar.

Os textos mais pungentes deste Lugar são relativos ao pai e à mãe, remetem-nos para o tempo em que foi o menino da sua mãe, e também o menino que queria ser do seu pai.

Quando se refere à mãe como a Manuela e ao pai como o M.S. Lourenço, encontro, ou encontrei, estranheza. Parecia falar deles como quem fala de pessoas nucleares, mas vagamente estranhas. Pessoas que pertencem a outros. Chamar-lhes pai e mãe traduz um vínculo que só lhe pertence a ele e à irmã, Catarina.

Demorei a perceber que os tentava ver como as pessoas que foram, com identidade vincada, e não apenas como pais daquelas crianças. Crescer é também aceitar que os nosso pais são pessoas que permanecem para sempre vagamente estranhas, que são quem são, além de serem aqueles que idolatramos, emulamos, odiamos (e dizer isto sem ter medo da palavra ódio), amamos. São a raiz que permite que a rosa venha um dia a ser rosa, com um aroma que lhe é único.

Vou lê-lo na crónica “Pai, Novamente”: “O meu processo de ‘pensar os meus pais’ é acima de tudo um processo autopsicográfico, pois não é mais do que uma maneira de me aproximar de mim mesmo. Não me sinto como tendo a chave da compreensão de quem eles foram. Mas sinto que eles são uma chave importante que me permite compreender-me a mim.”

Esta crónica, bem como aquela que diz a Manuela era filha da luz, é das que guardo, desde o momento em que as li no Facebook. Guardo também a ideia de que acabara de ler uma coisa em que a vida aparecia em cru, sem biombos. Como se falar assim dos pais possibilitasse tocar a vida com as mãos.

Estas crónicas são, todos os que escrevem sabem, difíceis de escrever. O equilíbrio entre a exposição da nossa individualidade e o excesso sentimental em que facilmente incorremos quando falamos de relações familiares é frágil.

Fazer a anatomia de uma relação amorosa, seja com os pais ou com um namorado, pode ser só desabafo, necessidade de partilha e compreensão. O espantoso é quando, ao fazê-lo, permitimos que outros o façam. Dito numa linha: que eu, tocada pelas crónicas do Frederico sobre os pais, me sinta interpelada e faça um exame da minha relação com os meus pais. Que me pergunte, como ele se pergunta, sem se perguntar assim: o que é amar? Quem são estas pessoas, este lugar de onde vimos?

O final de uma das crónicas sobre a Manuela diz assim: “A sua doçura, a sua tristeza comovem-me ainda. Felizmente, as suas múltiplas qualidades, a sua inteligência e a sua sensibilidade, perfumam ainda a vida dos seus filhos de uma maneira que me lembra a sensação do beijo de boa noite quando nós éramos crianças e a minha mãe entrava, qual epifania de beleza, no nosso quarto depois de uma festa a cheirar a um perfume que na altura se chamava “Madame Rochas”: uma fragrância feminina, requintada e francamente celestial – a quintessência, de facto, do que era a minha mãe”.

Voltamos ao reduto do que é celestial, ao momento arcádico da infância, ao tutano. Voltamos a um lugar que é acima das estrelas, a um paraíso que não é senão aqui. Voltaire: “Le paradis terrestre est où je suis.” Um paraíso terrestre onde o jardineiro cuida, contemplando, a sua flor. De novo a etimologia, o significado mais íntimo das coisas que aprendemos com Frederico: “A palavra grega “paraíso” não significa outra coisa que não: jardim”.

As flores dizem coisas, dizia Wittgenstein. A questão é ter ouvidos para as escutar, fazer uma espécie de transliteração da linguagem da rosa, decifrar o enigma, saber como sobrevivem à geada e à morte do Inverno.  

Outra ideia repetida por Frederico Lourenço é a de que a música é o que penetra para lá da fronteira, que chega onde as palavras não chegam. A música é o seu texto sagrado, o que se fala nesse Lugar Supraceleste, se posso dizer assim.

Mas o seu idioma próprio, o de Frederico Lourenço, corresponde a sentimentos soletrados, ao movimento vertiginoso da vida, à interpretação de uma partitura, ao embate que se tem com um texto-pedra, corresponde a um querer indómito.

Muito do que se pode ler aqui traduz um combate, e mostra o autor como um guerreiro – Heitor, claro – que perde, e ganha tanto antes de perder pela última vez.

Muito do que se pode ler é o processo de alguém que aprendeu com Wittgenstein que “O processo de falarmos connosco mesmos pode ser substituído por falarmos em voz alta ou então pela escrita”. Que se olha ao espelho escrevendo. Escrevendo sobre Filosofia, Música, Literatura, sexo, sobre quem é e foi sendo. Estes textos dão-no como um homem-mundo, entregue ao infindável trabalho que é viver, num agora que é azul, celeste, celestial.

 

Texto lido na apresentação do livro em Lisboa, dia 12 de Maio. 

 

Julião Sarmento

18.05.15

Julião Sarmento é o mais internacional dos artistas plásticos portugueses.

O Museu do Chiado expõe as suas primeiras obras. A exposição diz exclusivamente respeito a trabalhos dos anos 70, que utilizam materiais não convencionais, na altura. Por materiais convencionais, entendia-se a pintura, a escultura. Tudo aquilo que fugia a isso, (fotografia, vídeo, instalação, «essa tralha», como ele diz), era designado por materiais não convencionais.

A partir dos anos 80, retoma a pintura e começa a sua internacionalização. O que produziu nesses anos está já contado, e não consta desta mostra no Chiado. Ainda que disso se fale, também, nas próximas páginas. Bem como das famosas pinturas brancas, que atravessaram os anos 90. Três décadas de trabalho onde tudo tem que ver com tudo.

Dele se diz vulgarmente que pinta o desejo. Como é fácil de supor, há muito mais do que isso.

 

Circularidade é uma palavra recorrente quando se pensa na sua obra. No filme que expôs recentemente em Serralves, as duas personagens femininas repetem o comportamento uma da outra, enfatizando a noção de espelho e circularidade. Neste material dos anos 70, em exposição no Museu do Chiado, estão já enunciados os temas que trabalhou nestes 30 anos.

Todo o meu trabalho funciona em esquemas de circularidade, em relação a si próprio, diariamente e temporalmente. Cada trabalho que faço tem sempre imbuído na sua essência esse sentido da repetição, do regresso ao início. Pode agarrar num trabalho de 1988 e noutro de 92 e juntar um ao outro. Pode agarrar num de 75 e noutro de 87 e juntar um ao outro. O meu trabalho é uma grande corrente, com vários elos, e cada elo é um dos trabalhos que fiz. Os elos, de certo modo, são todos iguais, e permitem sempre o acoplamento de uns a outros.

 

Fechados sobre si, mas não hermeticamente.

Permitem uma relação com a peça que o antecede e com a que o procede. Esse tipo de circularidade, essa passagem do fim ao princípio, é constante. O que é particularmente gratificante nesta exposição é ter a oportunidade de rever uma quantidade de coisas que há muito tempo não via... – é um bocado ridículo dizer isto, mas de facto já passou imenso tempo.

 

Tem a sensação de ser outro? Porque é que lhe dá gozo?

Porque sou um voyeur do meu próprio trabalho, essencialmente sou isso. Esta sensação voyeurística assume-se de forma mais contundente quando tenho o factor tempo a passar por mim. Como se não tivesse sido eu. Reencontro alguma coisa que a memória me apagou. Nessa altura, a nossa participação em exposições – refiro-me a mim e aos artistas da minha geração, que eram uma espécie de compagnons de route...

 

Era, justamente, uma expressão desse tempo, com resquícios da cultura francesa. A vossa aproximação era à cultura anglo-saxónica.

Era, era. A nossa participação em exposições individuais e colectivas era esporádica. Dávamo-nos ao luxo de fazer trabalhos pelo simples prazer de fazer trabalhos. Éramos três ou quatro, as exposições pouquíssimas, havia duas ou três por ano, e éramos nós que tínhamos de as organizar. Víamo-nos a braços com uma quantidade de obras que não tinham meta – para além do prazer que nos dava fazê-las. Nesta exposição há vários inéditos. É uma boa oportunidade para vê-las todas juntas. Ver cada uma destas palavras... É uma espécie de discurso amoroso.

 

As palavras são fragmentos do seu discurso amoroso, parafraseando o Roland Barthes.

Há uma relação barthiana com as coisas. Cada obra é como uma palavra e cada série de obras é como uma frase. A possibilidade de construir essa literatura efémera, (porque no fim da exposição deixa de existir), é o que dá mais gozo.

 

Estes fragmentos ajudam a perceber melhor a sustentação de todo o percurso?

A mim, não. Provavelmente às outras pessoas, sim. O meu trabalho é completamente estratificado em bases de sustentação, alicerçado no que fiz no dia anterior. É feito por acumulação e não por dispersão.

 

As coisas habitualmente imputadas ao seu universo são, ditas de forma redutora, Sexo, Morte, Memória, Solidão. Reconhece-as como fundamentais?

Não sei, não sei... É possível. Uma das minhas práticas é a mentira. Gosto muito de ser mentiroso. Gosto muito de criar, não diria mentiras, mas irrealidades.

 

Ficções?

Não são bem ficções. São coisas que pairam no limbo entre ficção e realidade. Uma das coisas que faz parte do meu trabalho é eu mentir sobre ele. Ou seja, criar uma ficção sobre a existência do meu trabalho. Por exemplo, quando fiz as pinturas azuis da Bauhaus criei uma ficção entre a criação da Bauhaus e o encontro do Joyce com a Nora Barnacle, que foram contemporâneos. Porque é que o Joyce não terá conhecido o Mies van der Rohe? Não há razão nenhuma para que não tenha conhecido, mas também não há razão nenhuma para que tenha conhecido. Eu próprio não sei se as coisas são verdade ou mentira.

 

É um exercício de alteridade? Bate certo com o voyeurismo: assiste a qualquer coisa e fica na expectativa da verdade e da mentira, do que é aquilo.

É um exercício de alteridade.

 

Isto tudo por causa do reconhecimento dos temas que lhe são imputados.

É claro que me reconheço. Quem é que não se reconhece? Mas porque é que hei-de estar associado a uma série de banalidades que fazem parte do quotidiano de todos nós? Se calhar, até me interessa...

 

Enquanto estamos concentrados nisso, não atentamos naquilo que pode ser a sua verdade mais íntima?

É muito possível. Interessa-me muito a questão do público e do privado. O meu trabalho é público e é privado. Há uma parte, que é objectivamente visível, que torno pública. Não pelo desejo de me expor, mas porque o trabalho em si é exponível. Mas há uma parte disso que continua a ser privado, que ninguém vê. Quando olha para uma fotografia, um quadro, uma instalação, um filme, há aquilo que vê, depois tira ilações – é a parte pública. Mas há uma parte que nem você nem ninguém poderá alguma vez ver.

 

Implica conhecer o contorno da verdade, o contorno das pessoas que vemos?

O que me interessa no meu trabalho é essa parte que não pode nunca ver.

 

É por isso que diz que trabalha com a essência da mulher e não com a mulher?

Trabalhar com a mulher..., parece que estou a trabalhar com a mulher enquanto objecto. Eu não objectifico a mulher.

 

Mas é muito fácil perceber a mulher enquanto objecto no seu universo. Mesmo que seja uma essência, e não uma mulher determinada.

É a mulher enquanto género, enquanto ser do sexo feminino. Está a referir-se às mulheres das pinturas brancas?

 

Não só. Nas imagens dos anos 70 que estão na exposição, não conta para nada a cara da mulher. Na sequência da mulher que corre à noite por entre a mata, vestida apenas com um casaco de peles, por acaso nem me lembro se a cara dela aparece ou não. O que conta é a força do animal que avança.

É o que interessa. Na pintura é diferente. Basta um nariz e passa a ser uma pessoa determinada, deixa de ser uma pessoa genérica. E isso é que me levou a... Não é como os americanos, que diziam que eu odiava as mulheres porque lhes cortava a cabeça!

 

Pois, fazem-lhe essas acusações de misoginia, a si que tem paixão declarada pela mulher. Mas nas pinturas brancas, a mulher aparece, não exactamente maltratada, mas com uma ameaça constante sobre si.

Interessa-se o instante entre o pairar da ameaça e a concretização da ameaça. Será que se concretiza?

 

A ameaça é perpetrada?

Nunca é perpetrada. Está sempre no limite.

 

Ainda em Serralves, passou uma obra sua, um filme pornográfico antigo onde nunca chega a haver uma explicitação da sexualidade: é cortado justamente no momento que antecede a concretização do movimento.

Exacto.

 

É sempre o lance o que lhe interessa. É aí que o desejo se consuma?

Nunca é consumado. Porque nunca fico satisfeito com o que faço. Há sempre qualquer coisa que falta. Como a faca que nunca entra na carne. E é isso que me impele a continuar: a incapacidade das coisas que faço. «Isto está bem, mas...».

 

Se há sempre um “mas”, como é que olha para uma coisa e percebe que está pronta?

Não sei. Sente-se, é uma questão quase táctil. Não há regras que determinem o término das coisas. Em teoria, pode pintar o mesmo quadro a vida toda. O “mas” é o bocado que falta. É a espera. Costumo dizer que no dia em que fizer uma obra e ficar satisfeito, saciado, dedico-me a outra coisa. A minha ideia é nunca ficar saciado, é querer sempre mais. Trabalho para me saciar, mas nunca lá consigo chegar, e ainda bem.

 

Por isso o trabalho é, para começar, para si? Não faz a mínima concessão?

É rigorosamente assim.

 

Não é difícil quando se tem uma carreira como a sua, conjugar isso que diz com as exigências do mercado, ou, pelo menos, com aquilo que o mercado espera de si?

Não conto com o que os outros esperam de mim. Durante imensos anos tive um trabalho paralelo, que era um trabalho alimentar. Não é que me agrade, evidentemente, mas se for preciso, se não conseguir vender o que faço, prefiro um trabalho alimentar a modificar um milímetro do trabalho que, como artista, quero fazer.

 

No filme «Vontade Indómita» o personagem principal é inspirado na figura do Frank Lloyd Right. Há uma cena famosa, com o Gary Cooper numa pedreira, de picareta nas mãos, porque prefere trabalhar aí e desvirtuar a sua arquitectura. Numa situação limite, a sua opção seria também essa.

É uma pergunta capciosa... Se disser que não, sou tonto. Se disser que sim, sou arrogante. Nunca faço esquemas futurológicos, mas em teoria, imagino que sim. Ainda por cima, sou mesmo teimoso.

 

Não fazia esquemas futurológicos há 30 anos? Quando começou a sua carreira, o que é que imaginava?

Nunca pensei que tivesse tanta sorte como tive.

 

Chama sorte?

Também chamo. Que tenho trabalhado imenso, é verdade. Que me esforço, é verdade. Mas que tenho sorte, também é verdade.

 

Sempre quis ser artista.

Sempre, sempre.

 

Foi para pintura porque tinha jeito para desenho. Poderia ter sido o cinema, a literatura, qualquer uma das artes que faz confluir num mesmo rio.

Absolutamente. Não as vejo de maneira nenhuma separadas.

 

Poderia ter sido um realizador, um escritor?

Realizador de cinema, não; é preciso um grande espírito de equipa, que não tenho. Ainda por cima tenho uma necessidade absoluta de ver logo aquilo que faço, logo. Estudei arquitectura, mas seria sempre um mau arquitecto; não tenho esse rigor, sou disperso. Um escritor, também não, porque me falta o talento.

 

Seria fácil para mim vê-lo como escritor. Há uma narratividade muito própria na sua obra. Vai contando fragmentos de histórias.

Mas, por outro lado, sou muito visual. Tenho de olhar para as coisas, criá-las em três dimensões. E depois, deu-me para aqui, que é que se há-de fazer? Teria necessariamente de ter uma actividade criativa, senão morria. Não consigo conceber o mundo sem fazer qualquer coisa deste género.

 

Esta capacidade criativa, existiu sempre? Era um miúdo solitário, (filho único, sobrinho único, neto único), via filmes do Antonioni aos 12 anos. Foi isto que o fez criativamente?

Não sei se fez, mas ajudou. Quando era miúdo, antes de ir ao cinema e ver essas coisas, já era criativo. Eu criava mundos muito próprios. Como era um puto bastante solitário, (não o solitário desgraçadinho...), era obrigado a inventar as minhas aventuras, as minhas brincadeiras.

 

O que é observava quando era pequeno? O que é que lhe despertava a curiosidade?

As pessoas à minha volta. Sempre fui super-atento a tudo. Sou capaz de me sentar num café, (não hoje em dia, não tenho tempo), e ficar horas a ver pessoas. Daí, também, o meu lado voyeur. O ser voyeur não tem só que ver com um gajo meter-se num quarto escuro a espreitar pelo buraco da fechadura. Escolho uma pessoa e observo-a. Faço-o desde miúdo, antes de ver os filmes do Antonioni. Ser puxado para ver determinado cinema, ler determinado tipo de livros, ajudou, acelerou um processo. E, seguramente, se não tivesse feito isso, não seria assim, seria outro criador, provavelmente mais foleiro! Mas a criatividade e o voyeurismo estariam lá sempre.

 

A internacionalização acontece a partir dos anos 80. A sua arte é supra-nacional, (a expressão é sua).

Sempre pensei em mim, enquanto artista, em termos planetários. Nunca pensei assim: Julião Sarmento, artista português. E muito menos, Julião Sarmento, artista lisboeta. Sempre pensei, Julião Sarmento, artista. Ponto final.

 

Não era mania das grandezas...

Não tem nada que ver com mania das grandezas. Tem que ver com um sentido de busca. Dava-me muito mais gozo poder dialogar com pessoas de todos os lados, também com portugueses, como é evidente. Mas na altura, os artistas portugueses com quem dialogava eram tão poucos..., era o [Fernando] Calhau e pouco mais.

 

Impressionou-se saber que iam à embaixada americana ler revistas. É quase irreal, as grandes revistas são hoje distribuídas em Portugal, e há a internet.

Não havia computadores, quanto mais internet! Tudo o que hoje resolvemos por email, ou com um telefonema... Por exemplo, uma exposição na Polónia. Demorava meses a preparar. Porquê? Fax, não existia. Internet, não existia. Havia cartas e telefones. Telefone, era impensável!, nenhum de nós se atrevia, sequer, a fazer uma chamada para a Polónia! Restava a carta.

 

Como é que em 76, quando ainda se viviam os ardores revolucionários, acontecia fazer-se uma exposição na Polónia?

Nessas revistas que víamos na embaixada, líamos tudo avidamente. Tudo!, até os anúncios. Li uma notícia sobre uma exposição que, em termos de conceito, me interessava. Eu agarro numa cartita, «Sou um artista português, li que você fez esta coisa, tal, tal, tal». E ele respondeu. Começámos a trocar epístolas. Até que um dia, «E que tal se vocês viessem fazer uma exposição à Polónia?». Porreiro. E foi assim.

 

E ficavam na casa uns dos outros?

Nem pensar em hotéis ou pensões, não tínhamos dinheiro para isso. Ficávamos no saquinho-cama, e tinha graça, claro que tinha.

 

No início dos anos 80 recomeça a pintar. Porquê? Cansou-se dos outros suportes?

Os fenómenos culturais nunca são isolados. O regresso à pintura teve que ver com o esgotamento das práticas conceptuais. O que foi verdade para mim, foi verdade para uma quantidade de pessoas. O trabalho que fazíamos já não dava gozo nenhum; era tão cerebral, tão cerebral, que perdíamos o gozo da sensualidade do fazer. Era preciso qualquer coisa que desse novamente gozo.

 

Um gozo táctil.

Foi por isso que recomecei a pintar, foi também por isso que uma quantidade de artistas em várias partes do mundo recomeçaram a pintar. Tive a sorte de ser um dos primeiros e de ser apanhado nessa leva.

 

A sua exposição no Museu Hirshorn, em Washington, foi das mais vistas no mundo; numa lista de cem, a sua aparecia em décimo segundo lugar. Mesmo que os números portugueses sejam irrisórios, comparando com os de Washington, e com a importância de Washington, não há um lado sentimentalóide que o faz gostar de expôr cá?

Com certeza. Eu sou português, sou português absolutamente. Não é por acaso que nunca fui para fora... Tenho aqui os meus amigos, as minhas raízes, a minha cultura. Está a dar-me muito gozo fazer esta exposição cá. Se há um lado sentimentalóide agarrado à questão?, se calhar há.

 

A primeira exposição sua a que os seus pais assistiram foi a retrospectiva «Flashback» no Centro de Arte Moderna. Assistiram à sua obra já consagrada. Que é que acharam?

Não fazem juízos sobre as coisas, limitam-se a recebê-las como elas estão. Julgo que nunca foram grandes fãs das coisas que eu fazia, nunca lhes interessaram particularmente. Mas com o tempo... Estão mais por afirmação de presença que outra coisa. Têm um profundo orgulho em mim, e, por isso, qualquer coisa que faça, está bem.

 

 

Publicada originalmente na revista Elle em 2002

 

E passaram dois anos, dois anos de blog

14.05.15

Gosto do mês de Maio, das nespereiras carregadas, do manto cor de jacarandá que cobre Lisboa, dos primeiros dias de calor. Gosto da Vanda do filme de Pedro Costa a dizer que Maio é o mês de Nossa Senhora e da Vanda.

E agora, Maio é o mês de celebração do meu blog.

Quando comecei a disponibilizar o meu arquivo, fiz as contas por alto e percebi que, pondo um texto por dia, demoraria cerca de dois anos a partilhá-lo integralmente. Bate quase certo. Quase tudo o que fiz está no blog. Então, como agora, dou-me conta de que a qualidade é irregular, o interesse é inconstante, há erros, imprecisões, remendos a ser feitos. Mas esta é quem eu sou, quase 20 anos depois de ter começado a fazer perguntas.

Sou imensamente grata aos entrevistados, aos leitores, aos meus interlocutores nos jornais (e destaco o Público e o Jornal de Negócios, com quem tenho colaborado regularmente nos últimos anos), aos artistas plásticos que aparecem cada mês com uma imagem de fundo, à equipa do Sapo pelo acolhimento, apoio e entusiasmo.

É espantoso pensar que nestes dois anos houve mais de um milhão de visualizações, mais de meio milhão de visitas (para ser precisa: 1,034,539 visualizações, 555,606 visitas). No Facebook, os números também são generosos: mais de 10 300 seguidores, 1200 no Instagram, quase 500 no Twitter.

Muito obrigada.

E agora a lista dos 10 mais lidos:

1º Rui Nabeiro

2º Carlos e Joana Amaral Dias

3º Clara Ferreira Alves

4º Daniel Oliveira

5º Alexandre Soares dos Santos

6º Miguel Esteves Cardoso e Maria João Pinheiro

7º Nuno Markl

Dolores Aveiro

9º A Casa de Anne Frank

10º Rui Moreira

José Maria Ricciardi

14.05.15

Um banqueiro que chora abraçado a um amigo? Um banqueiro que não completa, mas que diz que devia era tê-los mandado todos à…? Um banqueiro que se apaixona por uma mulher casada e com três filhos e que não tem pejo em dizê-lo? Um banqueiro que não parece um banqueiro, como lhe disseram no futebol.

E um banqueiro que quis desde sempre ser banqueiro, mesmo que não tivesse sido educado para ser um banqueiro. Talvez isso quisesse dizer que queria ser como o pai, que foi banqueiro toda a vida. Ou, mais importante, elemento activo na família, onde são banqueiros há centena e meia de anos.

José Maria Ricciardi. Também Espírito Santo e Roquette. O Roquette não consta no BI mas o Espírito Santo sim. Em casa devem chamar-lhe Zé Maria. O primo Zé Maria. O Tio Zé Maria. Na recepção dizem que vão falar à secretária do Dr. Zé Maria. Os assessores referem-se ao Dr. Zé Maria.

Conta a história do casal de canários que quis ter. E que uma vez foi com a filha ao hospital e pensavam que ele era avozinho dela. É aquele que tem 54 anos e sonha levar os netos a ver os jogos do Sporting. O que tem pena de não poder comungar porque é casado com uma divorciada. O que não fala explicitamente de uma parte da família com quem não vai à bola – só alude. Nem confessa se sonha com a presidência do BES – pelo contrário, tece rasgados elogios ao primo Ricardo. Retrato tirado em hora e meia de conversa gravada.

É presidente do BES Investment.

 

 

Gostava de começar pelos apelidos. Como é que aprendeu a ser um Espírito Santo e como é que aprendeu a ser um Ricciardi?

A minha mãe era Espírito Santo e o meu pai é Ricciardi. A minha mãe já morreu. O meu pai está de óptima saúde, vai fazer para a semana 90 anos. Tenho um grande orgulho nas duas famílias. A família Ricciardi vem de Itália. No princípio do século XX, o meu bisavô emigrou para o Brasil. Não gostou. Voltou de barco para a Europa e o primeiro lugar onde atracou foi Portugal. As vicissitudes, como é que conheceu a minha bisavó e casou, isso não sei. O meu avô ainda falava italiano, os meus pais já não. O meu avô materno, Ricardo, que era um Espírito Santo, não teve filhos, só filhas (quatro); por isso é que o nosso último nome não é Espírito Santo. Ser Espírito Santo era ser uma pessoa muito importante. Antes do 25 de Abril havia uma diferenciação. A algumas pessoas da família, [este sentimento] fez-lhes bastante mal à cabeça.

 

Disse que tinha orgulho nas duas famílias; orgulho em quê?

A família Ricciardi foi sempre uma família de trabalho. Os valores com que me identifico – honestidade, seriedade, uma certa discrição na vida – vinham desse lado. Outra coisa: o meu avô Ricciardi casou-se com a irmã do José Alvalade. Por isso é que somos todos sportinguistas. O meu tio-avô foi fundador do Sporting. Alvalade era título, ele era Roquette. O meu pai ainda é Roquette, eu já não sou. Do lado Espírito Santo, [sinto orgulho] porque é uma família que, ao contrário do que se imagina, começou cá de baixo.

 

Conte-me a história da família como lha contaram a si. Quando eu perguntava como aprendeu a ser um Espírito Santo e um Ricciardi, no fundo, perguntava como é que vai tendo consciência quer do berço de ouro, quer da dinastia, quer do desígnio de ser banqueiro.

O meu bisavô era um filho ilegítimo. Foi educado num colégio de freiras e, como não tinha nome, puseram-lhe o nome Espírito Santo. Sendo o pai uma pessoa de sociedade, pagou-lhe os estudos às escondidas. Estou a falar em 1800 e tal. Foi assim que estudou; e depois começou a trabalhar do nada. Fez uma casa de câmbios que mais tarde se transformou num banco. Portanto, foi uma família que foi construída através do trabalho, do esforço e da dedicação.

 

Essa realidade é longínqua. Quando nasce, já é num berço de ouro.

Quando nasço, o meu avô era um dos principais banqueiros deste país. Entretanto, [na família] tinham-se casado com senhoras de sociedade, o que os ajudou muito.

 

Há nesse relato, na vida do seu bisavô, um lado de aventura. É extraordinário um homem fazer um percurso desses no espaço de uma vida. E toda a afirmação posterior, também.

O meu avô Ricardo foi presidente do banco muito novo e morreu com a minha idade – 54 anos – numa operação. Tinha nascido em 1900. Nasci em Outubro de 1954, ele morreu em Fevereiro de 55. Fui o último neto que conheceu. Mas através do que me contavam, sabia que era uma pessoa importantíssima em Portugal. Falava línguas, o que, naquela época, não era óbvio. Tinha uma presença internacional importante, conhecia muita gente no estrangeiro. Era também antiquário. A palavra está incorrecta: era um coleccionador – ele não fazia negócios com as antiguidades.

 

É daí que vem a Fundação Ricardo Espírito Santo.

A fundação foi feita com o objectivo, não só de pôr em Portugal peças ligadas à história portuguesa – como Companhia das Índias – mas também criar oficinas para restauro e recuperação. A componente das antiguidades deu-lhe também um perfil mais internacional.

 

E aristocrático.

Sim. De todos os banqueiros [portugueses], era aquele que se movimentava melhor internacionalmente. Era um homem acima da média.

 

O que é que fazia dele um homem acima da média?

Muito inteligente, com muito bom ar, um charme muito grande.

 

Tinha também os olhos azuis? O aspecto físico era semelhante ao seu?

Não sou das pessoas da família mais parecidas com ele. Acho que tinha os olhos claros, mas não tenho a certeza. Se não tivesse morrido precocemente, teria tido um problema grave: era muito amigo do Salazar.

 

Voltaremos inevitavelmente à família, mas agora fale-me de si.  

Tive uma infância normal, numa casa com muita gente, muito movimento. A minha mãe adorava ter convidados. Sou o quinto de sete irmãos; tivemos as coisas normais das crianças. As primeiras imagens são de uma vida muito boa, agradável. Talvez não tenha tido consciência da situação privilegiada em que vivia, e que muitos outros não teriam.

 

O agregado familiar era alargado a outros membros da família, além dos pais e irmãos? Como viviam, como se fazia o dia a dia?

Vivíamos no Inverno em Lisboa e no Verão em Cascais. A casa em Cascais, que a minha mãe e o meu pai construíram quando nasci, era ao lado da casa do meu avô. Lembro-me das mudanças que se faziam em Maio ou Junho (é espantoso como as distâncias se encurtaram): era como ir hoje para África! A educação era um pouco contraditória. O meu pai vivia preocupado em que não houvesse excessos, que tivéssemos consciência de que a vida não se fazia daquelas facilidades; a minha mãe, exagerando e abusando de tudo o que podia para nos fazer uma vida [mais fácil].  

 

Lembra-se de algum objecto de que gostasse em particular e que andasse consigo entre as duas casas? Um peluche?, um brinquedo. Uma coisa sua que o fizesse sentir em casa.

Gostava imenso de pássaros, tinha gaiolas com pássaros e ficava preocupadíssimo (quando mudava de casa) se não os podia levar.

 

Pássaros? 

Voltei a eles, passados imensos anos. Eram sobretudo canários. Uma história curiosa: tinha seis, sete, oito anos e começaram a aparecer em Portugal os primeiros canários encarnados. Resultam de um cruzamento com o cardinalito da Venezuela. Ia fazer anos e a minha mãe perguntou-me o que é que queria; disse que gostava de ter um casal desses canários. O preço, de que já não me lembro, era uma brutalidade. “Nem pense nisso!, é uma loucura. Se quiser, peça ao seu pai.” [risos] Estávamos todos à mesa, a minha mãe numa cabeceira, o meu pai noutra. O meu pai, com aquele ar pragmático e objectivo, perguntou: “Para que é que isso serve?”. “Oh pai, é uma coisa de que gosto muito.” “Ai custa isso? Tomara eu ter isso dentro de uma gaiola, quanto mais um casal de canários!”

 

Deram-lhe ou não os canários?

Não. Era um preço absurdo.

 

Quando é que, na sua vida, teve esses canários?

Tive mais tarde. A vida foi evoluindo, desinteressei-me dessas coisas. Queria era sair à noite e ter namoradas – as coisas normais de um adolescente.

 

Gostou especialmente do sabiá, belo e cantador, nos anos em que viveu no Brasil?

Fui para o Brasil com 20 e tal anos. Estava mais virado para o samba! Desfilei na Escola de Samba da Portela e ganhei! Foi o último ano em que a Portela ganhou. [As cores da] Portela são azul e branco e o símbolo é uma águia… É a única coisa com uma águia de que gosto.

 

Para um sportinguista doente, isso é um sacrilégio!

Isto foi em 1977 ou 78, já lá vão 30 anos. Por acaso, há dois ou três anos jantei no Rio de Janeiro com o Secretário dos Transportes, que entrou para a directoria da Portela. “Está na presença de uma das pessoas que desfilaram na última vez que a Escola ganhou.” “Você deve ser pé quente…”, “Pois sou.”

 

Como foi a sua experiência?

A Escola entrou na avenida [do Sambódromo] entre as cinco e as seis da manhã, de domingo para segunda. Via-se os recortes dos diferentes morros. Eram 60, 70, 80 mil pessoas a assistir nas bancadas. A bateria [do samba], composta por umas 700 pessoas, entrou, começou a tocar, tremeu o chão… Com o dia a nascer. É uma coisa que não se consegue descrever.

 

Marisa Monte e Lula Buarque de Hollanda fizeram um documentário dedicado à Escola de Samba da Portela. E ela produziu um disco com o repertório clássico que foi editado pela Verve.

Não sabia, vou procurar.

 

Um e outro são upper classe e fazem uma homenagem a gente talentosíssima, mas humilde. Os músicos da Portela são engraxadores de sapatos, arrumadores de carros, gasolineiros. Mas Lula e Marisa são ali, e por via da música, iguais. Onde quero chegar é se sentiu também o prazer de ser um igual. No desfile, não importava nada o seu dinheiro ou apelidos.

Nada, nada. Era um anónimo. Fui treinar no Portelão, como eles lhe chamam, na zona norte [do Rio, uma zona pobre]. Vive-se ali a alegria do povo.

 

Em algum desses momentos em que estava a desfilar se lembrou de Lovaina onde estudou ou do seu berço de ouro?

Não, não me lembrei de nada disso.

 

Essa sensação que descreve, essa alegria na simplicidade, fez-me pensar novamente nos pássaros. “Para que é que isso serve?” foi uma pergunta que o perseguiu pela vida fora?

Nunca perdi a noção de que a vida não se faz só de números ou objectivos, mas também de sentimentos. Não podemos deixar de vibrar, de chorar, de rir, de gostar, de detestar. Às vezes encaixo mal em certas figuras que tenho de fazer pela minha responsabilidade…

 

Por exemplo.

Vou para o futebol – já disse Filipe Soares Franco várias vezes: não quero ir para a tribuna não porque não consigo ver golos, não me posso manifestar ou chamar nomes ao árbitro. O futebol tem essa característica: igualiza o comportamento das pessoas. Uma vez, num final de uma Taça de Portugal, (que nós ganhámos ao Porto, se não me engano), estava um tipo ao meu lado de tal maneira incomodado que disse: “Oh pá, você nem parece um banqueiro!” “Nesta altura, quero lá saber se sou banqueiro!” Hoje em dia, uma pessoa ser espontânea, que é uma coisa admirável, é mal visto. “Este tipo é um descontrolado “.

 

Essa genuinidade e essa espontaneidade têm um preço.

Têm. Tenho pago.

 

Qual é o preço que tem pago?

Se vive num mundo em que as outras pessoas não gostam, nem olham para este tipo de comportamento como uma coisa positiva, se a pessoa tem uma certa tendência para o ter, não é bem vista. (Estou a simplificar um bocado, mas é isto).

 

No que é que isso dá? Vão dizer-lhe: “Está a portar-se mal”, “Não vá ali”? Recriminam-no? Penalizam-no?

Com certeza. De um banqueiro, espera-se uma pessoa tranquila, serena, controlada. Enfim, esperava-se!, que os tempos também já não são o que foram – senão não estávamos nestas vergonhas.  (Estou a caricaturar um bocado, mas temos este problema em Portugal: as pessoas nunca dizem bem tudo o que pensam, tudo o que sentem…)

 

Foi educado para ser um banqueiro e para se portar como é suposto que um banqueiro se porte. Certo?

Nunca fui educado para ser banqueiro.

 

Quando se olha para o seu currículo não é estranho que tenha estudado Economia em Lovaina… 

Está bem, mas justiça seja feita ao meu pai e à minha mãe: ninguém me pediu para fazer isso. Foi uma vontade que tive desde criança. O meu pai, um dia, era eu muito pequeno, levou-me à sede do banco, na Rua do Comércio. O fascínio das crianças é a caixa-forte. As portas grossíssimas, de aço, com imensas fechaduras, imensos guardas... Havia muito mais notas do que há hoje, porque os outros meios de pagamento (os cartões, os cheques) ainda não se tinham desenvolvido. Não havia os dispensadores, as máquinas que contam as notas; contavam-se à mão. Os tipos contavam a uma velocidade que as notas nem se viam! Fiquei fascinado! Foi a primeira vez que disse: “Quero trabalhar num banco”.

 

O seu pai aplaudiu imenso, não?

O meu pai só queria que fôssemos bons alunos e cumpríssemos as obrigações. “Você tem de ser isto, tem de fazer aquilo” – nunca fez. Deu-nos total liberdade. Como disse, viveu sempre um pouco preocupado com facilidades em excesso e mordomias [que tínhamos], e que teve maus efeitos em pessoas da família.

 

Ele não tinha tido essas facilidades?

O meu avô Ricciardi teve problemas na vida profissional. Durante a Segunda Guerra, a minha avó passou por dificuldades sérias. O meu pai também – coisa que nós nunca passámos.

 

O que são dificuldades sérias? Só para eu perceber a escala.

Faltar dinheiro em casa para se viver minimamente.

 

O seu pai era um homem que falava, contava histórias?

Nunca foi muito aberto, não era de grandes falatórios. Mas falava aquilo que era fundamental: incutia valores. A minha mãe tinha uma personalidade diferente; era corajosa, frontal, espontânea. Esta parte que eu tenho, vem dela. Era também generosa; era até um bocado descontrolada nesse sentido, não tinha limites.

 

Foi a sua mãe que se apaixonou pelo seu pai?

Não sei, é um assunto que nunca abordei.  

 

Ele era de uma classe social diferente?

O meu pai era um Roquette. Não eram de uma classe social diferente, mas não tinham, nem pouco mais ou menos, o dinheiro que a minha mãe tinha. O meu pai foi oficial da marinha, foi piloto aviador. Deixou a carreira militar porque o meu avô, como não tinha filhos, pediu-lhe para ir trabalhar com ele. Esteve no banco até ao 25 de Abril. Trinta e tal anos.

 

Em criança, era expansivo, genuíno como é hoje?

Tive choques grandes com a minha mãe. De tal maneira que fui morar para casa da minha tia, mãe do Ricardo Salgado. Sou quase irmão deles, mais do que primo: vivi lá alguns anos. Ela foi a minha segunda mãe. Entre os sete, 12 anos. Depois voltei. A minha mãe, apesar de gostar de mim, fez sempre algumas diferenças entre mim e os meus irmãos.

 

Que diferenças?

Afectivas.

 

Porquê?

Não sei. Talvez porque tivesse uma personalidade parecida com ela.

 

Trocando em miúdos, e era um miúdo, achava que ela não gostava de si da mesma maneira.

Pois. Achava, como criança, que ela não gostava tanto de mim como gostava de outros meus irmãos. E como sempre fui um lutador, como nunca me agachei, nunca me resignei perante as injustiças ou aquilo que achava que não estava certo, a minha reacção foi ir viver com a minha tia. Mais tarde, o relacionamento com a minha mãe foi extraordinário. Em vez de ficar azedo, dei a volta por cima. Curiosamente, fui o filho em quem ela se apoiou nos seus últimos largos anos.

 

Teve uma preceptora, foi à escola? Como foi a sua educação escolar?

Tínhamos o que se chamava – nome pomposo – uma mademoiselle. Uma senhora francesa que era uma espécie de preceptora. Cuidava de nós. Neste meio social, havia uma distância maior entre pais e filhos.

 

Lembra-se de o seu pai e a sua mãe, por exemplo, lhe fazerem festas, o sentarem no colo? 

Não muito. Havia muitas preceptoras e empregadas [que se ocupavam de tudo]. Isso fazia com que os pais tivessem uma vida menos directa, menos cúmplice do que aquela que temos hoje com os nossos filhos.

 

Se estivesse doente, os seus pais levavam-no ao hospital ou havia uma mademoiselle ou alguém do pessoal que se ocupava disso?

Se fosse uma coisa mais de trazer por casa, íamos com alguma empregada ou mademoiselle – há que assumir isso. Se fosse grave, a minha mãe ia. Fui operado às amígdalas e tive uma complicação, quase [corri] perigo de vida; lembro-me de ir com a minha mãe para o Hospital de Santa Maria sem conseguir respirar.

 

Quando é que veio para o mundo real? Se falhou a escola, que é uma primeira fase de socialização, quando é que deu o salto para o mundo cá fora?

As escolas em que andei não eram muito elitistas. Comecei pela Escola Ave Maria, que era uma escola para onde rapazes e raparigas de um certo meio social iam; mas também havia gente de outros meios sociais, que não pagavam (era-lhes oferecido ou tinham bolsas). Já não era uma coisa completamente monocromática. Depois fui para o liceu Pedro Nunes, com pessoas dos mais diversos meios sociais. Foi aí que comecei a ter uma visão mais realista da sociedade.

 

Quando foi viver para casa dos seus tios, já era claro que o Ricardo Salgado seria o eleito, o sucessor?

De maneira nenhuma. Tinha pessoas da família muito mais velhas, pessoas que morreram precocemente – isto sem tirar qualquer mérito ao Ricardo. O meu primo Manuel Ricardo morreu com 59 anos, o meu primo António morreu com 50 ou 60 anos. O Ricardo era um estudante. Eu tinha sete ou oito anos e ele tem mais 11 do que eu. Estava a entrar na universidade. Portanto, disso não se tinha qualquer ideia.

 

O que quero saber é se nessa casa, onde era mais um irmão do que um primo, havia esse culto – preparar os meninos para serem coisas extraordinárias, possíveis sucessores, de aquilo ser uma dinastia e fazerem parte dela.

Nunca senti isso. Talvez só se começasse a sentir quando entrámos na fase universitária. Começámos a ganhar a consciência de que pertencíamos a uma família que tinha um banco importante, uma companhia de seguros e outras indústrias em África. Uns abraçaram Economia e Gestão, outros, não. Entrávamos pelo nível mais baixo e fazíamos o percurso exactamente igual ao dos outros – prática que foi feita em todas as gerações. A prova disso: ao mais alto nível, estamos três pessoas no banco e a família tem centenas de pessoas.

 

Mas não começam a contar notas, ou começam?

Eu fiz tudo. Trabalhei nos balcões. Às vezes tinha problemas de consciência, insegurança. Perguntava-me se estava em certos lugares devido ao meu mérito ou devido a ser quem era. Tive essa dúvida. Percebi que era por mérito.

 

Ou seja, é uma meritocracia.

Sem qualquer dúvida. Acho que é uma das razões pelas quais a gente ainda cá esta. Se começássemos a entrar na bandalheira, dar lugar a pessoas por serem da família, sem terem qualquer competência – que é o que se vê noutras situações – a história acabaria da pior maneira possível. A todos é dada a oportunidade. Os que têm mais capacidade vão mais longe e os que têm menos não vão.

 

Mas isso sabe agora. Ou tinha a ideia que acabaria sempre por se safar?

Tive aquela idade patética em que, por ser quem era, tinha o rei na barriga – não percebendo que as importâncias das pessoas têm a ver com aquilo que conseguem fazer ou com o mérito. Com a ajuda do meu pai, e no devido tempo, percebi que isso era absolutamente incorrecto. Percebi que somos aquilo que merecemos ser, em função daquilo que somos, e não do nome que temos ou do suposto dinheiro que temos. Comecei a fazer esses raciocínios, no meu entender certos, relativamente cedo; mas houve outras pessoas da minha família que não o fizeram.

 

O que é “cedo”? E qual foi esse período da insegurança?

Os meus 20 e poucos anos. Vou dar-lhe um exemplo: antes do 25 de Abril, uma das boites mais em moda era o Stones. Eu ia muito e, como era um Espírito Santo, era muito bem tratado. Se queria mesa, arranjavam mesa, se chegava à porta e estava gente, eu entrava e outros não entravam. A seguir ao 11 de Março de 75, meu pai foi preso, a minha família estava toda em Caxias.

O 11 de Março tinha sido o dia da nacionalização da banca e eu, na minha ingenuidade, achei que ia ao Stones e que estava tudo na mesma.

 

Como é que foi recebido?

Era um período completamente revolucionário; eu era considerada uma pessoa fascista e tinha a família na prisão. A maioria das pessoas não me falava, começou a virar-me as costas. Pessoas que passavam a vida lá em casa, amigos dos meus irmãos mais velhos que fingiam que não me conheciam. Outros, comportaram-se exactamente da mesma maneira. Perguntei se havia uma mesa e não havia mesa nenhuma. Depois entrou um oficial do MFA e tiraram umas pessoas da mesa mais importante para sentaram o oficial, com uma garrafa de champagne.

 

Foi a primeira vez que foi tratado dessa maneira?

Foi aí que tive o maior ensinamento da minha vida: nós valemos é por aquilo que somos, pelas pessoas que gostam verdadeiramente de nós e se dão genuinamente connosco e não por aquilo que representamos. O nome que temos pode ser uma coisa circunstancial.

 

Nunca mais voltou ao Stones?

Depois de me formar em Lovaina, fui trabalhar para o Brasil.

Só voltei a Portugal nos anos 90. Estava a trabalhar no grupo, estávamos a recomprar a Tranquilidade, ainda nem tínhamos começado a recomprar o Banco Espírito Santo. Voltei ao Stones, fui outra vez extraordinariamente bem tratado, levaram-me quase ao colo. Toda a gente já me conhecia, já me abraçava, sentaram-me na mesa – juro – onde tinha estado esse oficial do MFA, um dos principais do 25 de Abril, ofereceram-me uma garrafa de champagne. E eu, em vez de os mandar todos…, até me ri. Percebi. Aliás, já tinha percebido há muito tempo. Se amanhã tivéssemos um problema grave ou ficássemos outra vez sem o banco, tudo se ia repetir.

 

Do que estamos a falar é do peso do dinheiro.

Estamos a falar de como muitas pessoas se comportam nas sociedades.

 

A pergunta é: o que tem realmente valor? E as palavras-chave, aqui, são dinheiro, estatuto, nome, mérito.

Há 60 anos, um grande médico ou um grande professor, não era um tipo com dinheiro – Salazar nunca pagou muito bem. Mas se tivesse grande mérito, era promovido socialmente, as pessoas convidavam-no para casa, ouviam-no, respeitavam-no. O meu pai acha que isto está um bocado ao contrário. Qualquer tipo que dê uma golpada, desde que seja bem sucedido, é levado em ombros. Um médico, se não ganhar muito dinheiro, ninguém lhe liga nada. É uma sociedade que tem um nível de hipocrisia tremendo.

 

Não me diga que nunca foi hipócrita… Nelson Rodrigues escreveu que todo o homem tem, pelo menos uma vez na vida, um acto de grande canalhice.

Com certeza que devo ter feito algumas, disse algumas mentiras, tenho muitos defeitos e cometi muitos erros. Mas não me deixei deslumbrar. Tenho a consciência de que o poder é transitório e fugaz. Na situação em que eu ou outros estamos, muita da relação que se cria não é genuína. Não é uma coisa que hoje me impressione muito – ao princípio, sim.

 

Conte-me agora como é que foi Lovaina, onde se formou, numa altura em que a sua família estava numa situação periclitante.

Quando acabei o segundo ano do curso na [Universidade] Católica, estávamos em 1975. As contas ficaram todas congeladas. O meu pai, pelo facto de ter trabalhado muitos anos nos petróleos de Angola, cujo maior accionista era a Petrofina, (na época, a maior empresa da Bélgica), foi ajudado. Eles é que emprestaram ao meu pai dinheiro para viver. E pôs-se a hipótese de eu ir para Lovaina. O meu pai deve ter falado com os belgas e arranjaram o dinheiro suficiente para eu poder ir. Fui viver de uma forma diferente daquela a que estava habituado.

 

Que vida passou a ser a sua?

Deixei de ter empregadas, passei a ter de lavar a roupa, a loiça, limpar o apartamento…, coisas normais da vida.

 

Nunca tinha feito isso?

Nunca. Tinha tido sempre gente a fazer tudo desde o dia em que nasci. Fez-me muito bem. Leuven era uma cidade escura, antiga, bonita, em que se vê o sol de três em três meses, chovia 270 dias por ano. Aterrei num apartamento que era metade desta sala [onde nos encontramos], com uma kitchenette, não conhecia ninguém.

 

Alguma vez chorou nesse período?

Acho que sim. Uma vez até chorei abraçado a um amigo que foi comigo, o Bernardo Horta e Costa. A gente conseguiu entreajudar-se. É claro que depois fomo-nos adaptando àquilo.

 

Quando acabou a licenciatura, foi para o Brasil. Aí, o quadro era outro.

Nos primeiros tempos no Brasil, a família Espírito Santo era conhecida, mas não era a mesma coisa que em Portugal. Estávamos a recomeçar. Sou da geração que teve o privilégio de passar por uma fase em que não tínhamos o mesmo estatuto que tivemos antes e que já temos outra vez. Isso deu-nos mais realismo, os pés assentes no chão, consciência de que isto é efémero. E que o valor se constrói por aquilo que a gente faz e não pelo que tem.

 

Ocorreu-lhe ir trabalhar para outra empresa? Ou sempre foi claro que era preciso continuar nesta família e repor o estatuto de que gozavam?

Quando comecei a trabalhar, ou mesmo quando estava a estudar, a família estava a tentar recuperar tudo o que tinha perdido. Eu estava já apontado para ali…

 

Sentia aquela como uma luta também sua, e não apenas uma luta da família, para a qual tinha sido arregimentado?

Exacto, e participei nela. Já tive um papel activo, por exemplo, na reprivatização do Banco Espírito Santo em 1992. Quem liderou essa operação em termos operacionais foi o Ricardo. Formei-me em 77/78, vivi no Brasil até 81/82. O Zé Roquette, nessa altura, estava connosco. Foi fundamental nessa fase da reconstrução. Era meu primo pelo lado Ricciardi; apesar de ser um bocado mais velho do que eu, está na minha geração.

 

Vai para o Brasil, está a família a recomeçar. Todavia, não é uma situação tão constrangedora como aquela que viveu em Lovaina, onde tudo era ainda incerto. 

Quando fui viver para o Brasil, fui para casa de um irmão, que já lá estava. A casa era agradável, não era nada má. Era um apartamento na Lagoa [Rodrigo de Freitas], um dos sítios mais bonitos no Rio de Janeiro. Andava de autocarro – nada de extraordinário. Mas não tinha três chauffeurs e 20 empregados como em Portugal.

 

O fantasma da pobreza alguma vez o atormentou realmente?

Não. Percebi que podíamos passar para níveis materiais diferentes daqueles que tínhamos, mas isso nunca me assustou.

 

Quando é que deixou de lhe fazer medo?

Se tivesse de ser, tinha de ser. Nunca tive o medo de viver com um nível material [diferente].

 

Falou de períodos em que se sentia inseguro em relação ao seu verdadeiramente o seu valor, ao que conquistava por si próprio.

Tive um bocado essa obsessão.

 

Em que período?

Talvez quando voltámos e comecei a fazer a minha carreira cá. Mas a minha vida foi a pulso, degrau a degrau.

 

Casar tarde teve alguma coisa que ver com essa insegurança? Que é uma forma de dizer: elas gostam de mim ou gostam do meu dinheiro.

Não. Ter casado tarde tem duas explicações simples. Uma é ter tido um namoro comprido – daqueles tão compridos que acabam por não dar em casamento.

 

Era uma pessoa do seu meio social, presumo.

Era. Outra coisa: sou católico praticante, sempre imaginei que ia casar na igreja, com uma mulher solteira, e apaixonei-me por uma mulher casada que já tinha filhos! Foi um drama para mim. A minha mãe ficou chateadíssima. Muita gente da família achou que eu não estava bom da cabeça. Socialmente foi duro. As pessoas achavam que me estava a querer divertir e a destruir um casamento… Tinha uma grande paixão por ela; tanto tinha que casei. Os meus enteados sempre foram extraordinários comigo, nunca disseram: “O tio não é o meu pai”. Gosto deles como se fossem meus filhos. São os irmãos da minha filha. Não estou arrependido, mas demorou tempo e obrigou-me a casar tarde.

 

A questão base é se, também nesse campo, o nome, o dinheiro, o status lhe pesaram. Até porque casamentos interclassistas, só nas novelas brasileiras.

A minha mulher, graças a Deus, não tem essas características. Claro que foi logo acusada disso. Quis casar comigo com separação de bens, era professora universitária, tinha feito o doutoramento, ela é que foi à luta na família dela. Nunca tive nenhuma dúvida a esse respeito. Sinto-me suficientemente inteligente para perceber se uma pessoa anda comigo porque gosta de mim e não porque está a fim do status, do dinheiro, o que for. Se amanhã varrer as ruas – com todo o respeito por quem o faz – essa pessoa olha para mim da mesma maneira.

 

O seu comportamento, a todos os níveis heterodoxo, para um banqueiro, custou-lhe a presidência do grupo? Poderia ter sido sua, e não do seu primo, se tivesse sido ortodoxo?

Acho que não. A presidência do meu primo é absolutamente merecida. Ele é que liderou toda a reconstrução, não fui eu. Está onde está por mérito: ninguém lhe deu o lugar. E essa visão da minha família, que ficou revoltada e persegue: não temos essas características (pelo menos hoje).

 

No filme de Capra “Não o levarás contigo”, James Stewart é filho de um milionário e apaixona-se pela secretária do pai. Um dia vai a casa dela e percebe que lá todos fazem o que querem – o que, para ele, constitui a máxima riqueza. O filme termina com ele a recusar a presidência do grupo e a dizer ao pai que vai fazer o que sempre sonhou: casar com a mulher que ama e – veja-se o humor do Capra – descobrir porque é que a relva é verde!

Queria ter outra liberdade…

 

Consta que gostava, não de saber porque é que a relva é verde, mas de ser presidente daquele rectângulo relvado do Sporting…

Gostava, não escondo isso. Tenho uma grande paixão pelo Sporting Clube de Portugal. Mas não é compatível exercer as funções que exerço no grupo e ser presidente do Sporting.

 

Porquê?

Ser presidente de um grande clube é um full time job. Tinha que sair dos lugares que ocupo no grupo. E tenho a noção – se calhar é pretensão minha – que já começo a fazer alguma falta. Insubstituíveis, como costumamos dizer, estão os cemitérios cheios deles… Mas sinto que faria mossa. E faria mossa noutro aspecto: tenho o nome Espírito Santo, amanhã ia pegar-me com o presidente do Benfica ou do Porto e sabe como são as pessoas do ponto de vista futebolístico: primárias.

 

Que consequências teria?

Poderia afectar o banco.

 

Está a dizer que os portistas e benfiquistas poderiam boicotar o BES…

Teria consequências negativas. São as razões principais porque não estou em condições de fazer essa opção. E era preciso ver se teria capacidades para ser presidente de um clube.

 

Leva a sua filha ao Sporting?

Levo! A minha mulher acha que exagero, que lhe faço lavagens ao cérebro. Uma história verdadeira: a minha filha tinha três ou quatro anos e pronunciou a palavra Benfica. Fiquei petrificado! Mas que é isto? “Deve ter sido o marido da empregada que é do Benfica…” Fiquei a ruminar no que devia fazer. A minha filha vivia vidrada na Branca de Neve e nos Sete Anões. “Ó Teresinha, você está a ver a Bruxa Má? É o Benfica!”. A minha filha, minha única filha, não vai ser do Benfica! Digo isto com grande respeito pelo Benfica. O Sporting não seria o mesmo sem o Benfica e vice-versa, não é?

 

Quem é o seu rival? Como diz, o Sporting precisa do Benfica e vice-versa. É preciso alguém com quem competir.

O meu rival como? Não vejo a minha vida profissional em termos de rivalidade. Estou onde estou porque é o que os accionistas entendem. Tenho as responsabilidades que tenho pela mesma razão. No dia em que individualmente sentir que o trabalho que tenho de fazer não é aquele que acho que devia fazer, isso é uma ilação minha. Nesta organização, apesar de termos os nossos problemas e discussões, que soubemos dirimir internamente, se não tivéssemos mantido a coesão, não existiríamos. Veja-se o exemplo de alguns dos nossos concorrentes, e o efeito que [a falta de coesão] teve.

 

Só no futebol é que é preciso ter um antagonista contra o qual lutar?

 Os rivais, aqui, são os nossos concorrentes. Alguns deles com enormíssimo mérito. Aprendi na vida que quanto mais concorrência, melhor.

 

Para terminar, descreva-me uma brincadeira com a sua filha. Tem alguma relação com uma brincadeira do seu passado?

Gosto imenso de ler com ela os livros dos Cinco. Fico tristíssimo por ela não ter a mesma paciência para ler os livros da Enid Blyton. Gostava imenso de os ler na minha infância.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2009

 

 

 

José Mourinho (2003)

14.05.15

Aos 40 anos, é o homem de quem se fala. José Mourinho nasceu a 20 metros do Estádio do Bonfim, aprendeu a andar no relvado do estádio do Setúbal, jogou à bola com o pai, (o antigo guarda redes Félix Mourinho), a quem disse que queria ser treinador de futebol. Com o Futebol Clube do Porto acaba de sagrar-se campeão nacional e conquistar a Taça UEFA.

A ambição, extraordinária, é da medida do seu talento. Ninguém duvida que a carreira, a procissão, ainda vai no adro. No livro que relata a sua afirmação profissional, e que estará em breve nas bancas, é possível ouvi-lo nestes termos: «Não tenho medo nenhum do futuro. Tenho uma grande confiança em mim e nos meus conhecimentos. Sei que posso fazer a diferença e que posso vencer». Nas próximas páginas pode perceber onde radica esta confiança.  

 

Formou-se no ISEF aos 24 anos e completou um curso para treinadores na Escócia. Não é muito comum no mundo do futebol esta preocupação com a instrução.

Sempre existiu em mim a ambição de me licenciar, independentemente da minha vocação. Talvez influenciado pela minha família: «Não sabes qual vai ser o teu futuro no futebol, pelo menos constrói algo sólido».

 

Havia essa preocupação?

Havia. O meu pai esteve a vida toda ligado ao futebol com todas as dificuldades inerentes ao mesmo. Se eu tivesse sido mal sucedido nesta minha aposta, como treinador, na pior das hipóteses era professor de educação física. Paralelamente a esta preocupação, sabia o que aquilo me podia dar. Tenho uma máxima, que não é minha, mas que ouvi em qualquer lado e que guardei para mim: «Um treinador de futebol que só sabe de futebol, é um péssimo treinador de futebol».

 

De que outras coisas tem de saber?

De tudo. Há áreas científicas que nos podem ajudar no nosso trabalho, nomeadamente psicologia, pedagogia, fisiologia. Posso falar com o meu departamento médico sobre lesões, músculos, biomecânica, teoria do treino. São temas que domino. Dominar as competências psicológicas, é fundamental. Pode fazer a diferença.

 

Imputam-lhe essa competência e apontam-na como uma das razões do seu sucesso: a autoridade que tem sobre os jogadores, e, mais do que isso, o reconhecimento da individualidade de cada um deles.

Vou mais por aí. A execução da autoridade vai-se esbatendo com o tempo e com a empatia que vou criando. Quando chego a um clube sinto necessidade de mostrar quem sou e o que posso fazer; tenho necessidade de me afirmar e estabelecer algumas regras. A minha liderança, toda a gente a sente mas ninguém a vê. Ter enveredado pela via académica, possibilitou-me ser melhor treinador. O Jorge Costa dizia numa entrevista: «A partir do momento em que fui treinado pelo Mourinho, conheci o filet mignon. Se o Porto mudasse de treinador e me oferecessem carapau ou sardinha, deixava de jogar à bola». É isto: os treinadores de hoje têm de ir à procura do conhecimento.

 

Esse estigma, de que as pessoas do futebol são incultas, grosseiras, quase sempre provenientes de camadas sociais muito humildes, tende a dissipar-se?

Mudou de forma radical. Nos anos 60 o meu pai ia ao estrangeiro às competições europeias e era o único que podia comunicar em francês ou inglês.

 

O seu pai falava línguas?

Era auto-didacta. Fez o antigo curso comercial, equivalente ao sétimo ano; mas gostava de línguas e de ler, e queria evoluir.

 

Foi ele que o ensinou a falar inglês?

Não. A sua competência no inglês não é tão grande, mas era o suficiente para poder comunicar. Hoje em dia, a minha equipa vai ao estrangeiro e há um ou dois que não podem comunicar em francês ou inglês. Nos anos 70, o que é que os jogadores faziam nos tempos mortos de estágio?

 

O que era?

Jogavam cartas. Agora estão ligados à internet, consultam a imprensa internacional porque querem saber o que dizem deles, estudam, lêem.

 

Aos 15 anos teve a noção de que queria ser treinador. E essa noção era acompanhada de uma outra: a de que dificilmente seria um jogador de excepção.

Sim.

 

Ora o que queria para si era justamente a excepção. Porquê?

Como qualquer miúdo, cresci a adorar jogar. Não posso dizer que não era um miúdo com talento. No meu grupo de amigos, era dos mais talentosos. Mas a via académica exigia-me responsabilidades, tive que fazer as minhas escolhas. Senti que não valia a pena arriscar porque as possibilidades de sucesso não eram grandes.

 

Isso é que é a coisa extraordinária: ter tido essa lucidez aos 15 anos.

Sabia das minhas limitações e das minhas qualidades. O meu skill não era melhor que o skill dos outros. As minhas qualidades físicas não eram de excepção; não era rápido, e a velocidade é fundamental para o futebol de alto nível. Aquilo que me fazia melhor do que os outros era a minha capacidade de ler, analisar equipas. A visão que tinha da situação. Eu conseguia ver coisas que os outros não conseguiam, inclusive adultos.

 

É verdade que o seu pai lhe pedia para fazer a observação das equipas adversárias?

Sim.

 

Foi verdadeiramente a sua escola?

A escola de qualquer treinador começa aí. Na capacidade de assistir a jogos com outros olhos. Não é ir para o futebol e ver o jogo como um adepto normal, preocupado se A ganha ou B ganha. É a tentar perceber como é que uma equipa funciona, quais são os seus princípios de jogo.

 

Nesse processo de aprendizagem, que dura desde sempre, e que vai durar a vida toda – sei que continua a ser obsessivo na observação dos jogos, passa horas agarrado ao vídeo –, tinha um interlocutor? O seu pai, outros jogadores, amigos.

Não tinha muito. Vivi praticamente separado do meu pai.

 

Isso representa uma grande dor para si?

Em criança, sim. Sentia a falta da sua presença, de poder falar com ele. Mas foi uma opção que a nossa família tomou: o meu pai era treinador, ia circular de equipa para equipa, e eu e a minha irmã, enquanto estudantes, não podíamos fazer isto. Vivemos em Setúbal com a nossa mãe, e o nosso pai, nos tempos livres, quando podia, voltava sempre a casa.

 

Que marcas lhe deixou essa opção da sua família?

De tal forma me marcou que defini com a minha mulher que, onde eu for, eles vão. A minha filha tem seis anos e já esteve em três cidades diferentes. E para a formação dela, não é nada mau. A capacidade de dominar línguas, lidar com a diferença, mudar de cidade... É uma miúda com uma capacidade de adaptação fantástica. No fundo, ter carinho e estabilidade, ter o pai, a mãe e o irmão ao seu lado é muito mais importante que a tristeza momentânea de abandonar uma escola, uma professora e uns amigos.

 

Quando ganhou a Taça UEFA em Sevilha, no final do jogo olhou na direcção em que sabia que eles estavam. Era importante tê-los ao seu lado naquele momento?

Era. Não queria que a alegria deles dependesse do ganhar ou do perder; mas comecei a perceber a importância que a carreira do pai tem para eles. Eu ganho, chego a casa e eles estão em festa. Eu perco, chego a casa e eles estão tristes. 

 

Eles assistem a todos os jogos?

Não vão nunca ao futebol. Por opção da minha mulher. Não gosta que decifrem o seu estado de espírito; prefere ver [os jogos] em casa, a sós. Mas os miúdos entram dentro dela, conseguem extrair a angústia, o sofrimento... Naquele dia quis que estivessem porque sabia que podia ser o dia mais importante da minha vida desportiva. Foi meu desejo saber onde é que estavam. Até posso dizer como é que soube onde é que estavam...

 

Diga.

Pelos bilhetes, consegui perceber o sector onde iam estar; antes do jogo começar pedi a um fotógrafo amigo que, com a teleobjectiva, fosse à procura deles. «Pronto, estão ali». Do banco não conseguia ver, mas sabia que estavam naquele sítio. Quando o jogo acabou, imaginei o que estavam a viver..., e foi para eles.

 

É muito importante que os seus filhos tenham orgulho em si?

É. Mas aquilo que queremos é que tenham orgulho, independentemente do sucesso. Magoa-me que, na inocência, as crianças sejam cruéis umas com as outras.

 

Na escola, no dia seguinte?

No dia seguinte, quando as coisas não correm bem, a vida não é fácil para a Matilde; ela é capaz de sofrer em silêncio, guarda para ela. Ele, que tem três anos, não é assim; já percebi que daqui a dois ou três anos, quando o pai perder, no dia seguinte vão chamar-me à escola. Porque ele é pai! É impulsivo. Nos seus impulsos, apesar do grande coração, é agressivo. Acho que há colegas que vão levar uns estalos fortes...

 

A obstinação e a ambição são o seu talento. São, pelo menos, instrumentos que servem o seu talento. Não consigo compreender completamente a fúria com que responde, para usar uma expressão sua, ao «chamamento da vitória». Onde radica esta confiança? Porquê esta pulsão tão violenta para chegar lá?

A auto-confiança nasce da convicção no trabalho que realizo. O mais importante é passar aos jogadores a mesma convicção. O desejo de vitória e a convicção na vitória partem fundamentalmente dessa crença.

 

Pode instigar-lhes essa convicção sem estar, você, completamente convicto?

Não consigo. Porque eu estou sempre convicto.

 

Mas não se acredita em super-homens. Com certeza tem momentos de fragilidade.

Tenho os meus momentos de fragilidade. Creio que os tenho mais na vida pessoal que na profissional. Os momentos mais difíceis, sob o ponto de vista profissional, são os momentos em que me revelo mais, em que me supero. Exemplo claro: quando a minha equipa ganha, às vezes são os meus adjuntos que vão à conferência de imprensa. Quando a minha equipa perde, sou eu que vou. Vesti bem a pele de líder, de homem sem fragilidades. Que as tenho!, enquanto homem.

 

Não se admite tê-las enquanto profissional?

Não é admitir: não as sinto. Nos momentos de maior responsabilidade é quando me sinto mais cómodo, nos jogos mais impactantes é quando sinto mais prazer em lá estar.

 

Trata-se de arriscar? Ouço-o e parece que assisto a um jogo de roleta. Há o prazer do risco e de estar completamente envolvido nesse lance.

É, é realização. Não há nenhum jogador ou treinador que, em miúdo, sonhasse com um jogo de chacha. Quando sonhei com jogos, acordei sempre a pensar que ia ganhar a Taça UEFA, que ia jogar o Benfica-Porto. Um jogador quando sonha marcar golos, não sonha fazê-lo no Porto-Gil Vicente. Quando sonha, sonha à grande. Se tenho o privilégio de estar metido nessa realidade com que sempre sonhei, tenho de desfrutar. Os meus jogadores têm também este espírito. Gostam de jogos grandes, gostam de responsabilidade. Na minha vida, tenho obviamente as minhas fragilidades.

 

Onde é que se refugia?

Nos meus.

 

Era capaz de revelar essa fragilidade, por exemplo chorar, à frente de uma pessoa que não fosse da sua família?

Se fosse um bom amigo, sim.

 

Chora?

Pouco, muito pouco.

 

Quando chorou a última vez?

Em Sevilha.

 

Mas isso foi uma explosão de felicidade. Refiro-me ao choro que resulta do sofrimento.

Chorei de forma descontrolada em situações irreparáveis, na morte daqueles que amei. Falo de avós, da minha irmã, da mãe da minha mulher, de um dos meus melhores amigos. Foram momentos em que senti que não podia fazer nada. Tudo tinha acabado.

 

Ou seja, o que o faz sofrer é a impotência?

É exactamente a impotência. Podem-me vir as lágrimas aos olhos quando um filho tem um gesto especial, quando recebo no telefone uma filmagem da Matilde a ganhar uma competição de natação. Sou capaz de ficar mais emocionado com isto que com outra coisa qualquer. Perante as dificuldades, não. Perante a impotência, sim.

 

Ambiciona para si uma carreira internacional. Quando no Barcelona decidiu não seguir o Bobby Robson até Newcastle, estava já convicto do caminho que queria trilhar? Portugal primeiro e o mundo depois?

Sim, claramente!

 

Mas você dorme? Quando é que pensa nessas coisas todas?

Eles próprios, o Bobby e o Van Gaal, perceberam que tinham de me libertar de algum vínculo moral que pudesse ter.

 

Se não o libertassem, seria capaz de o fazer autonomamente? Sentia-os como pais putativos?

Seria capaz, mas não naquele momento. Não sou pessoa de dizer: «Sr. Pinto da Costa, muito obrigado por me ter contratado». Ao Bobby e ao Van Gaal não disse: «Muito obrigado por me teres dado este contrato, muito obrigado por me teres trazido para Barcelona, muito obrigado por teres mudado a minha vida». O meu trabalho e a minha dedicação são a minha forma de gratidão. Eu nunca senti, em nenhum momento, que lhes devia alguma coisa. Quando decidi ser treinador principal e vir embora, nunca pensei que estava a ser incorrecto. Não lhes devo nada, paguei-lhes tudo, e por isso senti-me sempre livre para decidir. Se sentisse que não tinham pernas para andar sem mim, se calhar hipotecava um ano ou dois da minha independência. Era capaz de o fazer. Mas eles não precisavam de mim para nada. Tanto um como outro disseram «Tu estás preparado».    

 

Em que momentos pensa nessas coisas, «agora vou fazer isto», «já estou preparado»?, quando está no chuveiro, quando anda de carro?

É um grande problema... Muitas vezes as pessoas estão comigo, mas eu não estou com elas.

 

Parece um homem solitário. Pensei nisso quando o vi a correr, de fato e gravata, depois da conquista da taça em Sevilha. O seu movimento era o de um menino solto, ondulante, exalando pura felicidade. Paradoxalmente, ainda que estivesse com milhares de pessoas, parecia correr por sua conta, entregue apenas a si.

Foi um bocadinho isso. No meu livro, escrito pelo Luís Lourenço, há uma parte em que a minha mulher diz qualquer coisa como: «Ele fala tão pouco... Muitas vezes estamos juntos e ele não está comigo. Só por conhecê-lo tão bem, consigo perceber aquilo que me quer dizer sem me dizer nada». Sou um bocadinho assim. Fechado. Preciso do meu espaço. Muito tempo do meu dia é para reflectir, faço a avaliação do treino, o que correu mal, o que pode correr melhor.

 

A quem queria provar que era bom, ao seu pai?

Não, não, não. Os meus pais nunca puseram qualquer pressão sobre mim. Nunca senti que tinha de lhes provar nada. À minha mulher, tão pouco. É das pessoas que mais acreditam em mim, no meu potencial, incentivou-me a deixar Barcelona e vir para Portugal. Em Barcelona a minha situação era fantástica: ganhava uma pipa de massa, uma pipa redondinha, bem cheia; era adjunto, não tinha tantos cabelos brancos porque as preocupações não eram tantas, queriam que continuasse. E ela, por perceber que eu era um tipo angustiado porque queria mais, disse-me para esquecer tudo e ir à luta.

 

Então, teve necessidade de provar apenas a si mesmo?

A mim mesmo. Há quem pense que eu queria provar àqueles que não gostam de mim... Porque há muita gente que não gosta de mim.

 

Quando finalmente se impôs como um grande treinador e pôde calar aqueles que olhavam para si como o tradutor do Bobby Robson, nessa altura riu à gargalhada?

Ri, ri. Mas se me disser «Vamos falar deles, vamos falar do que disseram de si», não falo.

 

Verdadeiramente eles não contam, pois não?

Mas para muita gente contam. Para mim não têm interesse absolutamente nenhum.

 

E o dinheiro?, é o seu móbil?

Não. Quero qualidade de vida. Quero que os meus filhos andem num bom colégio, quero poder vestir bem, quero ter boas férias. Não quero mais do que aquilo que um cidadão comum quer. Não tenho ambições desmedidas. Não quero ter uma casa com 800 m2, não quero ter uma quinta, não quero ter um Ferrarri. Não quero nada disso.

 

Então?, se não é o dinheiro que o faz correr, é o quê?

O sucesso! O prazer pessoal. A alegria. Ando à procura de felicidade, de plenitude. Quero ganhar títulos, quero ser reconhecido, quero, como já está a acontecer, que noutros países saibam que há um tal José Mourinho que é um treinador de futuro. Ando à procura disso.

 

Espero que nos encontremos daqui a dez anos! Vou gostar de saber o que mudou na sua vida.

Terá mudado pouca coisa. Familiarmente vai ser igual, com o privilégio, Deus me ajude nesse sentido, de ter visto os meus filhos crescerem dez anos espectaculares. E profissionalmente espero ser bem sucedido, acredito que vou ser bem sucedido. Espero ganhar títulos. Espero ter a mesma alegria naquilo que faço.

 

No fundo, aquilo que tem agora, mas numa quantidade superior?

É só isso. Mais velho fisicamente, mas mentalmente mais rico. Sinto-me cada vez mais forte, mais rico. Só vou perder pró físico, nada mais.

 

Encontramo-nos daqui a dez anos?

Combinado.

 

 

Publicado originalmente na revista Selecções do Reader’s Digest em 2003

 

Clara de Sousa

14.05.15

Clara de Sousa é uma mulher que está de bem com a vida. É pivot do jornal da noite da SIC, função que alterna com Rodrigo Guedes de Carvalho. Editou um livro de cozinha onde ensina a fazer as coisas que mais gosta de fazer. À moda da sua mãe? Sim, a cozinha é uma porta de entrada para saber dela, para falar do que lhe é essencial.

 

As nossas mães diziam que um homem se prende pelo bico. É verdade?

Conquista-se pela boca, dizia a minha. Há muitas maneiras de conquistar um homem. Não só os homens. Conquistam-se afectos. Por alguma razão as comidas das nossas mães são as melhores – vêm carregadas de afectos. Quanto aos homens, pode funcionar numa primeira fase, como uma arma; mas é acessório.

 

Neste ditado, estava também contida uma velha representação da mulher como fada do lar.

Eu não me realizaria sendo apenas uma fada do lar. Não me sentiria completa se não tivesse uma acelerada actividade intelectual. A fada do lar, no meu caso, funciona como um modo de equilíbrio.

 

Na nossa geração, as coisas mudaram substancialmente no que concerne ao papel da mulher na sociedade. E a cozinha deixou de ser vista como um lugar subalterno e exclusivo das mulheres. Os homens entraram em casa.

São estigmas. Não gosto de colocar rótulos. No noutro dia estava a ver o único livro de cozinha que a minha mãe me pôs no meu enxoval – sim, porque sou do tempo em que se fazia o enxoval à filha; eu não estou a fazer o enxoval à minha filha… – que falava da fada do lar. Se é uma imagem Estado Novo? Se para umas mulheres foi uma imposição, para outras não foi.

 

A cozinha para si não foi uma imposição, presumo. Com quem é que aprendeu a cozinhar?

Quando comecei a fazer televisão e a dar entrevistas disse que a minha mãe era cozinheira profissional. Sempre o disse com a maior naturalidade. Alguém comentou comigo que não era qualquer pivot de televisão que confessava que a mãe era cozinheira. Como se isso fosse uma vergonha! Vergonha é mentir e inventar passados que não temos. Gosto mais de ser do que de parecer, e por isso sempre o disse. Ser cozinheira, ser agricultor é um talento, é um tesouro. Tudo aquilo que presenciei, de contacto com a terra, com os animais, com a verdade do dia a dia, com a minha mãe a fazer casamentos e baptizados, e eu a ajudá-la a fazer croquetes e rissóis, dezenas e dezenas, para ela congelar e vender, tudo isso me enriqueceu.

 

Fale-me mais desse espaço de partilha que a cozinha representou na sua vida.

O coração da casa sempre foi a cozinha. A porta de entrada dava directamente para a cozinha, e dali fazia-se a distribuição da casa. Era onde passávamos mais tempo. Tive o privilégio de ter uma mestre, de poder ver como é que fazia. Foi um tempo de aprendizagem e de partilha, e de construção de personalidade, e de transmissão de valores.

 

Os deveres da escola faziam-se na cozinha, com a mãe por perto. Foi assim consigo?

Isso não tive, porque a minha mãe saía de manhã e chegava às oito da noite. A essa hora já tinha os meus trabalhos de casa feitos. Comecei a cozinhar cedo, nem dez anos tinha. A minha mãe nunca andou em cima de mim por causa das facas. Eu cortava, descascava. A minha mãe ensinou-me a cortar à maneira antiga, na mão. Obviamente também me cortei, e ela estava lá para sarar a ferida, mas não era ansiosa em relação a isso. Eu sou. A energia que se tem na confecção das refeições é uma energia diferente da que se tem na sala, no quarto. Há um apelo diferente.

 

Porque é que teve agora necessidade de fazer um livro de cozinha? E isso parece corresponder a uma fase em que está muito bem consigo própria.

Mas eu sempre estive bem comigo própria. A percepção que as pessoas têm disso pode ser outra. Não tive necessidade nenhuma. Até podia ser prejudicial. Uma jornalista a fazer um livro de cozinha?

 

Uma necessidade afectiva, e não carreirística. Era a isso que me referia.

Não. Eu perguntava-me a quem podia interessar o que faço na cozinha. Interessa aos meus amigos, à minha família, aos meus colegas (partilhamos receitas, trazemos coisas, acabei de provar uma bolo delicioso sem açúcar que uma colega trouxe); mas interessa ao público em geral? Depois fui ao programa da Conceição Lino e percebi que as pessoas estiveram durante anos de costas voltadas para a cozinha, e agora há a necessidade de um reencontro. Como se fosse um back to basics. O que mostrei, nos três pratos que fiz no programa da Conceição, é que era possível cozinhar rapidamente e de modo descomplicado.

 

Sente que se expôs mais a pretexto deste livro? Porque ele trouxe-a no coração da casa, na relação com a sua mãe.

Andamos todos com muito pudor, e cheios de preconceitos, e com dificuldade em abrir o coração. Várias vezes tinha falado do meu gosto pela cozinha, da minha Vespa. Este livro deu mais exposição, sim, a tudo isto. Mas talvez isto aproxime as pessoas. Uns têm um trabalho mais físico, outros um trabalho mais intelectual. Uns têm a responsabilidade por uma empresa, outros perante o público de uma televisão. É uma questão de gestão de responsabilidades. De que forma é que os afectos afectam o meu trabalho intelectual? Acho que não. Acho que o valorizam. Os estudos mostram que a inteligência emocional é cada vez mais importante na vida das pessoas. Mais importante do que ter um QI de 130. Aprendemos a tomar melhores decisões [recorrendo à inteligência emocional].

 

E se a quisermos conhecer sem ser na cozinha?

Não conhecem. Não vale a pena tentar. Uma coisa é falar dos afectos de família, outra é falarmos de namorados e maridos e homens.

 

Não era esse o meu caminho. Em todo o caso, pergunto porque é que ficou cada vez mais resguardada em relação a quem é?

A partir do momento em que me vi envolvida em processos, invenções, manipulações. Diria que uns 90% das coisas que são escritas sobre a minha vida são mentira.

 

Impressionou-a ter sido alvo desse voyeurismo? Normalmente um pivot de televisão não é tão atacado, e sim actrizes, apresentadoras, modelos.

Neste momento, em Portugal, basta ser televisivo para ter interesse. Seja no jornalismo, seja no entretenimento. No meu caso, teve que ver com o meu primeiro divórcio, que exploraram de uma maneira vergonhosa. Tudo começou com isso e com o Correio da Manhã.

 

Que promoveu um concurso que a elegeu como a mulher mais sexy do país.

As pessoas votam para dizer que gostam de alguém, que gostam da maneira como ela se afirma, também em termos físicos, e tudo encaixa naquele rótulo. Não me importa o interesse [que têm em mim]. O que me chateia são as mentiras. Há limites.

 

Esse rótulo, da mais sexy, incomodou-a especialmente por ser jornalista? Outro estigma: as mulheres bonitas, as louras, têm que provar o dobro.

Só por ser mulher é preciso provar o dobro. Se for uma mulher com uma série de atributos, mais difícil se torna. Mas acho que não me posso queixar. Não me afectou em termos profissionais.

Nós não estamos num pedestal, intocáveis, a fazer vidas de princesa, sem partir uma unha. As pessoas, fora do trabalho, têm vidas normais. Apaixonam-se, casam, descasam, têm filhos, adoptam. Muitos têm problemas de dinheiro, outros querem fazer obras na casa e ainda não conseguiram. Uns têm empregada, outros não têm. Porque é que há-de ser tão diferente? Por causa do sonho? Esse sonho é uma grande ilusão.

 

Alguma vez o teve?

Não. Nunca. Para quê? Teria que ter uma vida muito triste… Os meus sonhos de criança eram disparatados. Queria ser cantora, como todas as meninas, ou cabeleireira. Ah, e encontrar um príncipe e ser feliz para sempre. Mas não me lembro de projectar muito o meu futuro. Tal como hoje. O tempo ensinou-me que não vale a pena fazer projecções. O melhor é viver o presente e não me angustiar com o passado. Até hoje, tudo o que considerei que era importante para mim, consegui. Tenho uma casa que fiz de raiz à minha medida, à medida da minha família. Isso deixa-me muito feliz. Tenho dois filhos.

 

E os seus olhos riem só de falar neles…

Há mais do que algo que vem de nós? Há mulheres que não sentem isto, é legítimo, como há umas que não gostam de cozinha. Tenho dois cães. Tenho o meu tempo bem organizado. Tenho duas páginas de Facebook; dá-me trabalho, mas dá-me prazer interagir com as pessoas. Obviamente tive momentos duros. A morte da minha mãe foi uma coisa que me secou. Foi há onze anos. Fui encontrar forças em mim e na minha função de mãe dos meus filhos. Nos momentos de fraqueza temos de encontrar outros portos de abrigo. Não podemos ficar ancorados numa coisa má quando à volta temos vinte boas. Mesmo que a coisa má pareça ter mais 200 quilos do que as boas.

 

Como é que se fez assim, resistente?

É a minha personalidade. Cresci a ver mulheres fortes. Apesar das adversidades, apesar da dureza. Encontrar sempre soluções, nunca ficar presa nos problemas – foi o que vi a minha mãe fazer, foi o que vi a minha avó fazer. Não lhes chego aos calcanhares nessa força. Mas o que deixaram em mim tem sido a minha reserva para os momentos difíceis. E esses momentos dão-nos mais força, mais tarde ou mais cedo.

 

Porque é que nunca se deslumbrou? Conquistou o que muitas pessoas ambicionam. Ser famoso, aparecer na televisão, não ter problemas de dinheiro.

Mas não era aparecer na televisão que eu queria quando quis ser jornalista.  É fácil o deslumbramento, se não tivermos uma ligação à terra. Quando aquilo acaba, o mundo acaba. Nunca permitiria que acontecesse comigo. Nunca me esqueci de onde é que eu vinha. Quero ser reconhecida pelo meu trabalho. Admiração? Pode ser positiva. Não é a Mariah Carey a flutuar, isso é Hollywood, não é a nossa realidade. Podem ser os mais novos que dizem que fomos um role model para eles. Que possa inspirar? Também acho bonito.

 

Imagine uma refeição que gostasse de cozinhar para os seus filhos, e que tivesse uma forte carga simbólica…

Pode ser um prato que eventualmente a minha mãe fizesse para mim? O meu filho é doido por tiramisu com rum; e nunca tirei o rum. E os meus filhos gostam de café, e deixo-os beber café; eu bebia café com a idade deles, e mais do que eles. O que é que faria? É uma recordação minha: bolo de bolacha. É um bolo de criança que os adultos sempre comem. Talvez seja uma prova de que as crianças nunca saem de dentro de nós.

 

 

Publicado originalmente na revista Máxima em 2012

 

 

 

  

 

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