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Anabela Mota Ribeiro

E passaram dois anos, dois anos de blog

14.05.15

Gosto do mês de Maio, das nespereiras carregadas, do manto cor de jacarandá que cobre Lisboa, dos primeiros dias de calor. Gosto da Vanda do filme de Pedro Costa a dizer que Maio é o mês de Nossa Senhora e da Vanda.

E agora, Maio é o mês de celebração do meu blog.

Quando comecei a disponibilizar o meu arquivo, fiz as contas por alto e percebi que, pondo um texto por dia, demoraria cerca de dois anos a partilhá-lo integralmente. Bate quase certo. Quase tudo o que fiz está no blog. Então, como agora, dou-me conta de que a qualidade é irregular, o interesse é inconstante, há erros, imprecisões, remendos a ser feitos. Mas esta é quem eu sou, quase 20 anos depois de ter começado a fazer perguntas.

Sou imensamente grata aos entrevistados, aos leitores, aos meus interlocutores nos jornais (e destaco o Público e o Jornal de Negócios, com quem tenho colaborado regularmente nos últimos anos), aos artistas plásticos que aparecem cada mês com uma imagem de fundo, à equipa do Sapo pelo acolhimento, apoio e entusiasmo.

É espantoso pensar que nestes dois anos houve mais de um milhão de visualizações, mais de meio milhão de visitas (para ser precisa: 1,034,539 visualizações, 555,606 visitas). No Facebook, os números também são generosos: mais de 10 300 seguidores, 1200 no Instagram, quase 500 no Twitter.

Muito obrigada.

E agora a lista dos 10 mais lidos:

1º Rui Nabeiro

2º Carlos e Joana Amaral Dias

3º Clara Ferreira Alves

4º Daniel Oliveira

5º Alexandre Soares dos Santos

6º Miguel Esteves Cardoso e Maria João Pinheiro

7º Nuno Markl

Dolores Aveiro

9º A Casa de Anne Frank

10º Rui Moreira

José Maria Ricciardi

14.05.15

Um banqueiro que chora abraçado a um amigo? Um banqueiro que não completa, mas que diz que devia era tê-los mandado todos à…? Um banqueiro que se apaixona por uma mulher casada e com três filhos e que não tem pejo em dizê-lo? Um banqueiro que não parece um banqueiro, como lhe disseram no futebol.

E um banqueiro que quis desde sempre ser banqueiro, mesmo que não tivesse sido educado para ser um banqueiro. Talvez isso quisesse dizer que queria ser como o pai, que foi banqueiro toda a vida. Ou, mais importante, elemento activo na família, onde são banqueiros há centena e meia de anos.

José Maria Ricciardi. Também Espírito Santo e Roquette. O Roquette não consta no BI mas o Espírito Santo sim. Em casa devem chamar-lhe Zé Maria. O primo Zé Maria. O Tio Zé Maria. Na recepção dizem que vão falar à secretária do Dr. Zé Maria. Os assessores referem-se ao Dr. Zé Maria.

Conta a história do casal de canários que quis ter. E que uma vez foi com a filha ao hospital e pensavam que ele era avozinho dela. É aquele que tem 54 anos e sonha levar os netos a ver os jogos do Sporting. O que tem pena de não poder comungar porque é casado com uma divorciada. O que não fala explicitamente de uma parte da família com quem não vai à bola – só alude. Nem confessa se sonha com a presidência do BES – pelo contrário, tece rasgados elogios ao primo Ricardo. Retrato tirado em hora e meia de conversa gravada.

É presidente do BES Investment.

 

 

Gostava de começar pelos apelidos. Como é que aprendeu a ser um Espírito Santo e como é que aprendeu a ser um Ricciardi?

A minha mãe era Espírito Santo e o meu pai é Ricciardi. A minha mãe já morreu. O meu pai está de óptima saúde, vai fazer para a semana 90 anos. Tenho um grande orgulho nas duas famílias. A família Ricciardi vem de Itália. No princípio do século XX, o meu bisavô emigrou para o Brasil. Não gostou. Voltou de barco para a Europa e o primeiro lugar onde atracou foi Portugal. As vicissitudes, como é que conheceu a minha bisavó e casou, isso não sei. O meu avô ainda falava italiano, os meus pais já não. O meu avô materno, Ricardo, que era um Espírito Santo, não teve filhos, só filhas (quatro); por isso é que o nosso último nome não é Espírito Santo. Ser Espírito Santo era ser uma pessoa muito importante. Antes do 25 de Abril havia uma diferenciação. A algumas pessoas da família, [este sentimento] fez-lhes bastante mal à cabeça.

 

Disse que tinha orgulho nas duas famílias; orgulho em quê?

A família Ricciardi foi sempre uma família de trabalho. Os valores com que me identifico – honestidade, seriedade, uma certa discrição na vida – vinham desse lado. Outra coisa: o meu avô Ricciardi casou-se com a irmã do José Alvalade. Por isso é que somos todos sportinguistas. O meu tio-avô foi fundador do Sporting. Alvalade era título, ele era Roquette. O meu pai ainda é Roquette, eu já não sou. Do lado Espírito Santo, [sinto orgulho] porque é uma família que, ao contrário do que se imagina, começou cá de baixo.

 

Conte-me a história da família como lha contaram a si. Quando eu perguntava como aprendeu a ser um Espírito Santo e um Ricciardi, no fundo, perguntava como é que vai tendo consciência quer do berço de ouro, quer da dinastia, quer do desígnio de ser banqueiro.

O meu bisavô era um filho ilegítimo. Foi educado num colégio de freiras e, como não tinha nome, puseram-lhe o nome Espírito Santo. Sendo o pai uma pessoa de sociedade, pagou-lhe os estudos às escondidas. Estou a falar em 1800 e tal. Foi assim que estudou; e depois começou a trabalhar do nada. Fez uma casa de câmbios que mais tarde se transformou num banco. Portanto, foi uma família que foi construída através do trabalho, do esforço e da dedicação.

 

Essa realidade é longínqua. Quando nasce, já é num berço de ouro.

Quando nasço, o meu avô era um dos principais banqueiros deste país. Entretanto, [na família] tinham-se casado com senhoras de sociedade, o que os ajudou muito.

 

Há nesse relato, na vida do seu bisavô, um lado de aventura. É extraordinário um homem fazer um percurso desses no espaço de uma vida. E toda a afirmação posterior, também.

O meu avô Ricardo foi presidente do banco muito novo e morreu com a minha idade – 54 anos – numa operação. Tinha nascido em 1900. Nasci em Outubro de 1954, ele morreu em Fevereiro de 55. Fui o último neto que conheceu. Mas através do que me contavam, sabia que era uma pessoa importantíssima em Portugal. Falava línguas, o que, naquela época, não era óbvio. Tinha uma presença internacional importante, conhecia muita gente no estrangeiro. Era também antiquário. A palavra está incorrecta: era um coleccionador – ele não fazia negócios com as antiguidades.

 

É daí que vem a Fundação Ricardo Espírito Santo.

A fundação foi feita com o objectivo, não só de pôr em Portugal peças ligadas à história portuguesa – como Companhia das Índias – mas também criar oficinas para restauro e recuperação. A componente das antiguidades deu-lhe também um perfil mais internacional.

 

E aristocrático.

Sim. De todos os banqueiros [portugueses], era aquele que se movimentava melhor internacionalmente. Era um homem acima da média.

 

O que é que fazia dele um homem acima da média?

Muito inteligente, com muito bom ar, um charme muito grande.

 

Tinha também os olhos azuis? O aspecto físico era semelhante ao seu?

Não sou das pessoas da família mais parecidas com ele. Acho que tinha os olhos claros, mas não tenho a certeza. Se não tivesse morrido precocemente, teria tido um problema grave: era muito amigo do Salazar.

 

Voltaremos inevitavelmente à família, mas agora fale-me de si.  

Tive uma infância normal, numa casa com muita gente, muito movimento. A minha mãe adorava ter convidados. Sou o quinto de sete irmãos; tivemos as coisas normais das crianças. As primeiras imagens são de uma vida muito boa, agradável. Talvez não tenha tido consciência da situação privilegiada em que vivia, e que muitos outros não teriam.

 

O agregado familiar era alargado a outros membros da família, além dos pais e irmãos? Como viviam, como se fazia o dia a dia?

Vivíamos no Inverno em Lisboa e no Verão em Cascais. A casa em Cascais, que a minha mãe e o meu pai construíram quando nasci, era ao lado da casa do meu avô. Lembro-me das mudanças que se faziam em Maio ou Junho (é espantoso como as distâncias se encurtaram): era como ir hoje para África! A educação era um pouco contraditória. O meu pai vivia preocupado em que não houvesse excessos, que tivéssemos consciência de que a vida não se fazia daquelas facilidades; a minha mãe, exagerando e abusando de tudo o que podia para nos fazer uma vida [mais fácil].  

 

Lembra-se de algum objecto de que gostasse em particular e que andasse consigo entre as duas casas? Um peluche?, um brinquedo. Uma coisa sua que o fizesse sentir em casa.

Gostava imenso de pássaros, tinha gaiolas com pássaros e ficava preocupadíssimo (quando mudava de casa) se não os podia levar.

 

Pássaros? 

Voltei a eles, passados imensos anos. Eram sobretudo canários. Uma história curiosa: tinha seis, sete, oito anos e começaram a aparecer em Portugal os primeiros canários encarnados. Resultam de um cruzamento com o cardinalito da Venezuela. Ia fazer anos e a minha mãe perguntou-me o que é que queria; disse que gostava de ter um casal desses canários. O preço, de que já não me lembro, era uma brutalidade. “Nem pense nisso!, é uma loucura. Se quiser, peça ao seu pai.” [risos] Estávamos todos à mesa, a minha mãe numa cabeceira, o meu pai noutra. O meu pai, com aquele ar pragmático e objectivo, perguntou: “Para que é que isso serve?”. “Oh pai, é uma coisa de que gosto muito.” “Ai custa isso? Tomara eu ter isso dentro de uma gaiola, quanto mais um casal de canários!”

 

Deram-lhe ou não os canários?

Não. Era um preço absurdo.

 

Quando é que, na sua vida, teve esses canários?

Tive mais tarde. A vida foi evoluindo, desinteressei-me dessas coisas. Queria era sair à noite e ter namoradas – as coisas normais de um adolescente.

 

Gostou especialmente do sabiá, belo e cantador, nos anos em que viveu no Brasil?

Fui para o Brasil com 20 e tal anos. Estava mais virado para o samba! Desfilei na Escola de Samba da Portela e ganhei! Foi o último ano em que a Portela ganhou. [As cores da] Portela são azul e branco e o símbolo é uma águia… É a única coisa com uma águia de que gosto.

 

Para um sportinguista doente, isso é um sacrilégio!

Isto foi em 1977 ou 78, já lá vão 30 anos. Por acaso, há dois ou três anos jantei no Rio de Janeiro com o Secretário dos Transportes, que entrou para a directoria da Portela. “Está na presença de uma das pessoas que desfilaram na última vez que a Escola ganhou.” “Você deve ser pé quente…”, “Pois sou.”

 

Como foi a sua experiência?

A Escola entrou na avenida [do Sambódromo] entre as cinco e as seis da manhã, de domingo para segunda. Via-se os recortes dos diferentes morros. Eram 60, 70, 80 mil pessoas a assistir nas bancadas. A bateria [do samba], composta por umas 700 pessoas, entrou, começou a tocar, tremeu o chão… Com o dia a nascer. É uma coisa que não se consegue descrever.

 

Marisa Monte e Lula Buarque de Hollanda fizeram um documentário dedicado à Escola de Samba da Portela. E ela produziu um disco com o repertório clássico que foi editado pela Verve.

Não sabia, vou procurar.

 

Um e outro são upper classe e fazem uma homenagem a gente talentosíssima, mas humilde. Os músicos da Portela são engraxadores de sapatos, arrumadores de carros, gasolineiros. Mas Lula e Marisa são ali, e por via da música, iguais. Onde quero chegar é se sentiu também o prazer de ser um igual. No desfile, não importava nada o seu dinheiro ou apelidos.

Nada, nada. Era um anónimo. Fui treinar no Portelão, como eles lhe chamam, na zona norte [do Rio, uma zona pobre]. Vive-se ali a alegria do povo.

 

Em algum desses momentos em que estava a desfilar se lembrou de Lovaina onde estudou ou do seu berço de ouro?

Não, não me lembrei de nada disso.

 

Essa sensação que descreve, essa alegria na simplicidade, fez-me pensar novamente nos pássaros. “Para que é que isso serve?” foi uma pergunta que o perseguiu pela vida fora?

Nunca perdi a noção de que a vida não se faz só de números ou objectivos, mas também de sentimentos. Não podemos deixar de vibrar, de chorar, de rir, de gostar, de detestar. Às vezes encaixo mal em certas figuras que tenho de fazer pela minha responsabilidade…

 

Por exemplo.

Vou para o futebol – já disse Filipe Soares Franco várias vezes: não quero ir para a tribuna não porque não consigo ver golos, não me posso manifestar ou chamar nomes ao árbitro. O futebol tem essa característica: igualiza o comportamento das pessoas. Uma vez, num final de uma Taça de Portugal, (que nós ganhámos ao Porto, se não me engano), estava um tipo ao meu lado de tal maneira incomodado que disse: “Oh pá, você nem parece um banqueiro!” “Nesta altura, quero lá saber se sou banqueiro!” Hoje em dia, uma pessoa ser espontânea, que é uma coisa admirável, é mal visto. “Este tipo é um descontrolado “.

 

Essa genuinidade e essa espontaneidade têm um preço.

Têm. Tenho pago.

 

Qual é o preço que tem pago?

Se vive num mundo em que as outras pessoas não gostam, nem olham para este tipo de comportamento como uma coisa positiva, se a pessoa tem uma certa tendência para o ter, não é bem vista. (Estou a simplificar um bocado, mas é isto).

 

No que é que isso dá? Vão dizer-lhe: “Está a portar-se mal”, “Não vá ali”? Recriminam-no? Penalizam-no?

Com certeza. De um banqueiro, espera-se uma pessoa tranquila, serena, controlada. Enfim, esperava-se!, que os tempos também já não são o que foram – senão não estávamos nestas vergonhas.  (Estou a caricaturar um bocado, mas temos este problema em Portugal: as pessoas nunca dizem bem tudo o que pensam, tudo o que sentem…)

 

Foi educado para ser um banqueiro e para se portar como é suposto que um banqueiro se porte. Certo?

Nunca fui educado para ser banqueiro.

 

Quando se olha para o seu currículo não é estranho que tenha estudado Economia em Lovaina… 

Está bem, mas justiça seja feita ao meu pai e à minha mãe: ninguém me pediu para fazer isso. Foi uma vontade que tive desde criança. O meu pai, um dia, era eu muito pequeno, levou-me à sede do banco, na Rua do Comércio. O fascínio das crianças é a caixa-forte. As portas grossíssimas, de aço, com imensas fechaduras, imensos guardas... Havia muito mais notas do que há hoje, porque os outros meios de pagamento (os cartões, os cheques) ainda não se tinham desenvolvido. Não havia os dispensadores, as máquinas que contam as notas; contavam-se à mão. Os tipos contavam a uma velocidade que as notas nem se viam! Fiquei fascinado! Foi a primeira vez que disse: “Quero trabalhar num banco”.

 

O seu pai aplaudiu imenso, não?

O meu pai só queria que fôssemos bons alunos e cumpríssemos as obrigações. “Você tem de ser isto, tem de fazer aquilo” – nunca fez. Deu-nos total liberdade. Como disse, viveu sempre um pouco preocupado com facilidades em excesso e mordomias [que tínhamos], e que teve maus efeitos em pessoas da família.

 

Ele não tinha tido essas facilidades?

O meu avô Ricciardi teve problemas na vida profissional. Durante a Segunda Guerra, a minha avó passou por dificuldades sérias. O meu pai também – coisa que nós nunca passámos.

 

O que são dificuldades sérias? Só para eu perceber a escala.

Faltar dinheiro em casa para se viver minimamente.

 

O seu pai era um homem que falava, contava histórias?

Nunca foi muito aberto, não era de grandes falatórios. Mas falava aquilo que era fundamental: incutia valores. A minha mãe tinha uma personalidade diferente; era corajosa, frontal, espontânea. Esta parte que eu tenho, vem dela. Era também generosa; era até um bocado descontrolada nesse sentido, não tinha limites.

 

Foi a sua mãe que se apaixonou pelo seu pai?

Não sei, é um assunto que nunca abordei.  

 

Ele era de uma classe social diferente?

O meu pai era um Roquette. Não eram de uma classe social diferente, mas não tinham, nem pouco mais ou menos, o dinheiro que a minha mãe tinha. O meu pai foi oficial da marinha, foi piloto aviador. Deixou a carreira militar porque o meu avô, como não tinha filhos, pediu-lhe para ir trabalhar com ele. Esteve no banco até ao 25 de Abril. Trinta e tal anos.

 

Em criança, era expansivo, genuíno como é hoje?

Tive choques grandes com a minha mãe. De tal maneira que fui morar para casa da minha tia, mãe do Ricardo Salgado. Sou quase irmão deles, mais do que primo: vivi lá alguns anos. Ela foi a minha segunda mãe. Entre os sete, 12 anos. Depois voltei. A minha mãe, apesar de gostar de mim, fez sempre algumas diferenças entre mim e os meus irmãos.

 

Que diferenças?

Afectivas.

 

Porquê?

Não sei. Talvez porque tivesse uma personalidade parecida com ela.

 

Trocando em miúdos, e era um miúdo, achava que ela não gostava de si da mesma maneira.

Pois. Achava, como criança, que ela não gostava tanto de mim como gostava de outros meus irmãos. E como sempre fui um lutador, como nunca me agachei, nunca me resignei perante as injustiças ou aquilo que achava que não estava certo, a minha reacção foi ir viver com a minha tia. Mais tarde, o relacionamento com a minha mãe foi extraordinário. Em vez de ficar azedo, dei a volta por cima. Curiosamente, fui o filho em quem ela se apoiou nos seus últimos largos anos.

 

Teve uma preceptora, foi à escola? Como foi a sua educação escolar?

Tínhamos o que se chamava – nome pomposo – uma mademoiselle. Uma senhora francesa que era uma espécie de preceptora. Cuidava de nós. Neste meio social, havia uma distância maior entre pais e filhos.

 

Lembra-se de o seu pai e a sua mãe, por exemplo, lhe fazerem festas, o sentarem no colo? 

Não muito. Havia muitas preceptoras e empregadas [que se ocupavam de tudo]. Isso fazia com que os pais tivessem uma vida menos directa, menos cúmplice do que aquela que temos hoje com os nossos filhos.

 

Se estivesse doente, os seus pais levavam-no ao hospital ou havia uma mademoiselle ou alguém do pessoal que se ocupava disso?

Se fosse uma coisa mais de trazer por casa, íamos com alguma empregada ou mademoiselle – há que assumir isso. Se fosse grave, a minha mãe ia. Fui operado às amígdalas e tive uma complicação, quase [corri] perigo de vida; lembro-me de ir com a minha mãe para o Hospital de Santa Maria sem conseguir respirar.

 

Quando é que veio para o mundo real? Se falhou a escola, que é uma primeira fase de socialização, quando é que deu o salto para o mundo cá fora?

As escolas em que andei não eram muito elitistas. Comecei pela Escola Ave Maria, que era uma escola para onde rapazes e raparigas de um certo meio social iam; mas também havia gente de outros meios sociais, que não pagavam (era-lhes oferecido ou tinham bolsas). Já não era uma coisa completamente monocromática. Depois fui para o liceu Pedro Nunes, com pessoas dos mais diversos meios sociais. Foi aí que comecei a ter uma visão mais realista da sociedade.

 

Quando foi viver para casa dos seus tios, já era claro que o Ricardo Salgado seria o eleito, o sucessor?

De maneira nenhuma. Tinha pessoas da família muito mais velhas, pessoas que morreram precocemente – isto sem tirar qualquer mérito ao Ricardo. O meu primo Manuel Ricardo morreu com 59 anos, o meu primo António morreu com 50 ou 60 anos. O Ricardo era um estudante. Eu tinha sete ou oito anos e ele tem mais 11 do que eu. Estava a entrar na universidade. Portanto, disso não se tinha qualquer ideia.

 

O que quero saber é se nessa casa, onde era mais um irmão do que um primo, havia esse culto – preparar os meninos para serem coisas extraordinárias, possíveis sucessores, de aquilo ser uma dinastia e fazerem parte dela.

Nunca senti isso. Talvez só se começasse a sentir quando entrámos na fase universitária. Começámos a ganhar a consciência de que pertencíamos a uma família que tinha um banco importante, uma companhia de seguros e outras indústrias em África. Uns abraçaram Economia e Gestão, outros, não. Entrávamos pelo nível mais baixo e fazíamos o percurso exactamente igual ao dos outros – prática que foi feita em todas as gerações. A prova disso: ao mais alto nível, estamos três pessoas no banco e a família tem centenas de pessoas.

 

Mas não começam a contar notas, ou começam?

Eu fiz tudo. Trabalhei nos balcões. Às vezes tinha problemas de consciência, insegurança. Perguntava-me se estava em certos lugares devido ao meu mérito ou devido a ser quem era. Tive essa dúvida. Percebi que era por mérito.

 

Ou seja, é uma meritocracia.

Sem qualquer dúvida. Acho que é uma das razões pelas quais a gente ainda cá esta. Se começássemos a entrar na bandalheira, dar lugar a pessoas por serem da família, sem terem qualquer competência – que é o que se vê noutras situações – a história acabaria da pior maneira possível. A todos é dada a oportunidade. Os que têm mais capacidade vão mais longe e os que têm menos não vão.

 

Mas isso sabe agora. Ou tinha a ideia que acabaria sempre por se safar?

Tive aquela idade patética em que, por ser quem era, tinha o rei na barriga – não percebendo que as importâncias das pessoas têm a ver com aquilo que conseguem fazer ou com o mérito. Com a ajuda do meu pai, e no devido tempo, percebi que isso era absolutamente incorrecto. Percebi que somos aquilo que merecemos ser, em função daquilo que somos, e não do nome que temos ou do suposto dinheiro que temos. Comecei a fazer esses raciocínios, no meu entender certos, relativamente cedo; mas houve outras pessoas da minha família que não o fizeram.

 

O que é “cedo”? E qual foi esse período da insegurança?

Os meus 20 e poucos anos. Vou dar-lhe um exemplo: antes do 25 de Abril, uma das boites mais em moda era o Stones. Eu ia muito e, como era um Espírito Santo, era muito bem tratado. Se queria mesa, arranjavam mesa, se chegava à porta e estava gente, eu entrava e outros não entravam. A seguir ao 11 de Março de 75, meu pai foi preso, a minha família estava toda em Caxias.

O 11 de Março tinha sido o dia da nacionalização da banca e eu, na minha ingenuidade, achei que ia ao Stones e que estava tudo na mesma.

 

Como é que foi recebido?

Era um período completamente revolucionário; eu era considerada uma pessoa fascista e tinha a família na prisão. A maioria das pessoas não me falava, começou a virar-me as costas. Pessoas que passavam a vida lá em casa, amigos dos meus irmãos mais velhos que fingiam que não me conheciam. Outros, comportaram-se exactamente da mesma maneira. Perguntei se havia uma mesa e não havia mesa nenhuma. Depois entrou um oficial do MFA e tiraram umas pessoas da mesa mais importante para sentaram o oficial, com uma garrafa de champagne.

 

Foi a primeira vez que foi tratado dessa maneira?

Foi aí que tive o maior ensinamento da minha vida: nós valemos é por aquilo que somos, pelas pessoas que gostam verdadeiramente de nós e se dão genuinamente connosco e não por aquilo que representamos. O nome que temos pode ser uma coisa circunstancial.

 

Nunca mais voltou ao Stones?

Depois de me formar em Lovaina, fui trabalhar para o Brasil.

Só voltei a Portugal nos anos 90. Estava a trabalhar no grupo, estávamos a recomprar a Tranquilidade, ainda nem tínhamos começado a recomprar o Banco Espírito Santo. Voltei ao Stones, fui outra vez extraordinariamente bem tratado, levaram-me quase ao colo. Toda a gente já me conhecia, já me abraçava, sentaram-me na mesa – juro – onde tinha estado esse oficial do MFA, um dos principais do 25 de Abril, ofereceram-me uma garrafa de champagne. E eu, em vez de os mandar todos…, até me ri. Percebi. Aliás, já tinha percebido há muito tempo. Se amanhã tivéssemos um problema grave ou ficássemos outra vez sem o banco, tudo se ia repetir.

 

Do que estamos a falar é do peso do dinheiro.

Estamos a falar de como muitas pessoas se comportam nas sociedades.

 

A pergunta é: o que tem realmente valor? E as palavras-chave, aqui, são dinheiro, estatuto, nome, mérito.

Há 60 anos, um grande médico ou um grande professor, não era um tipo com dinheiro – Salazar nunca pagou muito bem. Mas se tivesse grande mérito, era promovido socialmente, as pessoas convidavam-no para casa, ouviam-no, respeitavam-no. O meu pai acha que isto está um bocado ao contrário. Qualquer tipo que dê uma golpada, desde que seja bem sucedido, é levado em ombros. Um médico, se não ganhar muito dinheiro, ninguém lhe liga nada. É uma sociedade que tem um nível de hipocrisia tremendo.

 

Não me diga que nunca foi hipócrita… Nelson Rodrigues escreveu que todo o homem tem, pelo menos uma vez na vida, um acto de grande canalhice.

Com certeza que devo ter feito algumas, disse algumas mentiras, tenho muitos defeitos e cometi muitos erros. Mas não me deixei deslumbrar. Tenho a consciência de que o poder é transitório e fugaz. Na situação em que eu ou outros estamos, muita da relação que se cria não é genuína. Não é uma coisa que hoje me impressione muito – ao princípio, sim.

 

Conte-me agora como é que foi Lovaina, onde se formou, numa altura em que a sua família estava numa situação periclitante.

Quando acabei o segundo ano do curso na [Universidade] Católica, estávamos em 1975. As contas ficaram todas congeladas. O meu pai, pelo facto de ter trabalhado muitos anos nos petróleos de Angola, cujo maior accionista era a Petrofina, (na época, a maior empresa da Bélgica), foi ajudado. Eles é que emprestaram ao meu pai dinheiro para viver. E pôs-se a hipótese de eu ir para Lovaina. O meu pai deve ter falado com os belgas e arranjaram o dinheiro suficiente para eu poder ir. Fui viver de uma forma diferente daquela a que estava habituado.

 

Que vida passou a ser a sua?

Deixei de ter empregadas, passei a ter de lavar a roupa, a loiça, limpar o apartamento…, coisas normais da vida.

 

Nunca tinha feito isso?

Nunca. Tinha tido sempre gente a fazer tudo desde o dia em que nasci. Fez-me muito bem. Leuven era uma cidade escura, antiga, bonita, em que se vê o sol de três em três meses, chovia 270 dias por ano. Aterrei num apartamento que era metade desta sala [onde nos encontramos], com uma kitchenette, não conhecia ninguém.

 

Alguma vez chorou nesse período?

Acho que sim. Uma vez até chorei abraçado a um amigo que foi comigo, o Bernardo Horta e Costa. A gente conseguiu entreajudar-se. É claro que depois fomo-nos adaptando àquilo.

 

Quando acabou a licenciatura, foi para o Brasil. Aí, o quadro era outro.

Nos primeiros tempos no Brasil, a família Espírito Santo era conhecida, mas não era a mesma coisa que em Portugal. Estávamos a recomeçar. Sou da geração que teve o privilégio de passar por uma fase em que não tínhamos o mesmo estatuto que tivemos antes e que já temos outra vez. Isso deu-nos mais realismo, os pés assentes no chão, consciência de que isto é efémero. E que o valor se constrói por aquilo que a gente faz e não pelo que tem.

 

Ocorreu-lhe ir trabalhar para outra empresa? Ou sempre foi claro que era preciso continuar nesta família e repor o estatuto de que gozavam?

Quando comecei a trabalhar, ou mesmo quando estava a estudar, a família estava a tentar recuperar tudo o que tinha perdido. Eu estava já apontado para ali…

 

Sentia aquela como uma luta também sua, e não apenas uma luta da família, para a qual tinha sido arregimentado?

Exacto, e participei nela. Já tive um papel activo, por exemplo, na reprivatização do Banco Espírito Santo em 1992. Quem liderou essa operação em termos operacionais foi o Ricardo. Formei-me em 77/78, vivi no Brasil até 81/82. O Zé Roquette, nessa altura, estava connosco. Foi fundamental nessa fase da reconstrução. Era meu primo pelo lado Ricciardi; apesar de ser um bocado mais velho do que eu, está na minha geração.

 

Vai para o Brasil, está a família a recomeçar. Todavia, não é uma situação tão constrangedora como aquela que viveu em Lovaina, onde tudo era ainda incerto. 

Quando fui viver para o Brasil, fui para casa de um irmão, que já lá estava. A casa era agradável, não era nada má. Era um apartamento na Lagoa [Rodrigo de Freitas], um dos sítios mais bonitos no Rio de Janeiro. Andava de autocarro – nada de extraordinário. Mas não tinha três chauffeurs e 20 empregados como em Portugal.

 

O fantasma da pobreza alguma vez o atormentou realmente?

Não. Percebi que podíamos passar para níveis materiais diferentes daqueles que tínhamos, mas isso nunca me assustou.

 

Quando é que deixou de lhe fazer medo?

Se tivesse de ser, tinha de ser. Nunca tive o medo de viver com um nível material [diferente].

 

Falou de períodos em que se sentia inseguro em relação ao seu verdadeiramente o seu valor, ao que conquistava por si próprio.

Tive um bocado essa obsessão.

 

Em que período?

Talvez quando voltámos e comecei a fazer a minha carreira cá. Mas a minha vida foi a pulso, degrau a degrau.

 

Casar tarde teve alguma coisa que ver com essa insegurança? Que é uma forma de dizer: elas gostam de mim ou gostam do meu dinheiro.

Não. Ter casado tarde tem duas explicações simples. Uma é ter tido um namoro comprido – daqueles tão compridos que acabam por não dar em casamento.

 

Era uma pessoa do seu meio social, presumo.

Era. Outra coisa: sou católico praticante, sempre imaginei que ia casar na igreja, com uma mulher solteira, e apaixonei-me por uma mulher casada que já tinha filhos! Foi um drama para mim. A minha mãe ficou chateadíssima. Muita gente da família achou que eu não estava bom da cabeça. Socialmente foi duro. As pessoas achavam que me estava a querer divertir e a destruir um casamento… Tinha uma grande paixão por ela; tanto tinha que casei. Os meus enteados sempre foram extraordinários comigo, nunca disseram: “O tio não é o meu pai”. Gosto deles como se fossem meus filhos. São os irmãos da minha filha. Não estou arrependido, mas demorou tempo e obrigou-me a casar tarde.

 

A questão base é se, também nesse campo, o nome, o dinheiro, o status lhe pesaram. Até porque casamentos interclassistas, só nas novelas brasileiras.

A minha mulher, graças a Deus, não tem essas características. Claro que foi logo acusada disso. Quis casar comigo com separação de bens, era professora universitária, tinha feito o doutoramento, ela é que foi à luta na família dela. Nunca tive nenhuma dúvida a esse respeito. Sinto-me suficientemente inteligente para perceber se uma pessoa anda comigo porque gosta de mim e não porque está a fim do status, do dinheiro, o que for. Se amanhã varrer as ruas – com todo o respeito por quem o faz – essa pessoa olha para mim da mesma maneira.

 

O seu comportamento, a todos os níveis heterodoxo, para um banqueiro, custou-lhe a presidência do grupo? Poderia ter sido sua, e não do seu primo, se tivesse sido ortodoxo?

Acho que não. A presidência do meu primo é absolutamente merecida. Ele é que liderou toda a reconstrução, não fui eu. Está onde está por mérito: ninguém lhe deu o lugar. E essa visão da minha família, que ficou revoltada e persegue: não temos essas características (pelo menos hoje).

 

No filme de Capra “Não o levarás contigo”, James Stewart é filho de um milionário e apaixona-se pela secretária do pai. Um dia vai a casa dela e percebe que lá todos fazem o que querem – o que, para ele, constitui a máxima riqueza. O filme termina com ele a recusar a presidência do grupo e a dizer ao pai que vai fazer o que sempre sonhou: casar com a mulher que ama e – veja-se o humor do Capra – descobrir porque é que a relva é verde!

Queria ter outra liberdade…

 

Consta que gostava, não de saber porque é que a relva é verde, mas de ser presidente daquele rectângulo relvado do Sporting…

Gostava, não escondo isso. Tenho uma grande paixão pelo Sporting Clube de Portugal. Mas não é compatível exercer as funções que exerço no grupo e ser presidente do Sporting.

 

Porquê?

Ser presidente de um grande clube é um full time job. Tinha que sair dos lugares que ocupo no grupo. E tenho a noção – se calhar é pretensão minha – que já começo a fazer alguma falta. Insubstituíveis, como costumamos dizer, estão os cemitérios cheios deles… Mas sinto que faria mossa. E faria mossa noutro aspecto: tenho o nome Espírito Santo, amanhã ia pegar-me com o presidente do Benfica ou do Porto e sabe como são as pessoas do ponto de vista futebolístico: primárias.

 

Que consequências teria?

Poderia afectar o banco.

 

Está a dizer que os portistas e benfiquistas poderiam boicotar o BES…

Teria consequências negativas. São as razões principais porque não estou em condições de fazer essa opção. E era preciso ver se teria capacidades para ser presidente de um clube.

 

Leva a sua filha ao Sporting?

Levo! A minha mulher acha que exagero, que lhe faço lavagens ao cérebro. Uma história verdadeira: a minha filha tinha três ou quatro anos e pronunciou a palavra Benfica. Fiquei petrificado! Mas que é isto? “Deve ter sido o marido da empregada que é do Benfica…” Fiquei a ruminar no que devia fazer. A minha filha vivia vidrada na Branca de Neve e nos Sete Anões. “Ó Teresinha, você está a ver a Bruxa Má? É o Benfica!”. A minha filha, minha única filha, não vai ser do Benfica! Digo isto com grande respeito pelo Benfica. O Sporting não seria o mesmo sem o Benfica e vice-versa, não é?

 

Quem é o seu rival? Como diz, o Sporting precisa do Benfica e vice-versa. É preciso alguém com quem competir.

O meu rival como? Não vejo a minha vida profissional em termos de rivalidade. Estou onde estou porque é o que os accionistas entendem. Tenho as responsabilidades que tenho pela mesma razão. No dia em que individualmente sentir que o trabalho que tenho de fazer não é aquele que acho que devia fazer, isso é uma ilação minha. Nesta organização, apesar de termos os nossos problemas e discussões, que soubemos dirimir internamente, se não tivéssemos mantido a coesão, não existiríamos. Veja-se o exemplo de alguns dos nossos concorrentes, e o efeito que [a falta de coesão] teve.

 

Só no futebol é que é preciso ter um antagonista contra o qual lutar?

 Os rivais, aqui, são os nossos concorrentes. Alguns deles com enormíssimo mérito. Aprendi na vida que quanto mais concorrência, melhor.

 

Para terminar, descreva-me uma brincadeira com a sua filha. Tem alguma relação com uma brincadeira do seu passado?

Gosto imenso de ler com ela os livros dos Cinco. Fico tristíssimo por ela não ter a mesma paciência para ler os livros da Enid Blyton. Gostava imenso de os ler na minha infância.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2009

 

 

 

José Mourinho (2003)

14.05.15

Aos 40 anos, é o homem de quem se fala. José Mourinho nasceu a 20 metros do Estádio do Bonfim, aprendeu a andar no relvado do estádio do Setúbal, jogou à bola com o pai, (o antigo guarda redes Félix Mourinho), a quem disse que queria ser treinador de futebol. Com o Futebol Clube do Porto acaba de sagrar-se campeão nacional e conquistar a Taça UEFA.

A ambição, extraordinária, é da medida do seu talento. Ninguém duvida que a carreira, a procissão, ainda vai no adro. No livro que relata a sua afirmação profissional, e que estará em breve nas bancas, é possível ouvi-lo nestes termos: «Não tenho medo nenhum do futuro. Tenho uma grande confiança em mim e nos meus conhecimentos. Sei que posso fazer a diferença e que posso vencer». Nas próximas páginas pode perceber onde radica esta confiança.  

 

Formou-se no ISEF aos 24 anos e completou um curso para treinadores na Escócia. Não é muito comum no mundo do futebol esta preocupação com a instrução.

Sempre existiu em mim a ambição de me licenciar, independentemente da minha vocação. Talvez influenciado pela minha família: «Não sabes qual vai ser o teu futuro no futebol, pelo menos constrói algo sólido».

 

Havia essa preocupação?

Havia. O meu pai esteve a vida toda ligado ao futebol com todas as dificuldades inerentes ao mesmo. Se eu tivesse sido mal sucedido nesta minha aposta, como treinador, na pior das hipóteses era professor de educação física. Paralelamente a esta preocupação, sabia o que aquilo me podia dar. Tenho uma máxima, que não é minha, mas que ouvi em qualquer lado e que guardei para mim: «Um treinador de futebol que só sabe de futebol, é um péssimo treinador de futebol».

 

De que outras coisas tem de saber?

De tudo. Há áreas científicas que nos podem ajudar no nosso trabalho, nomeadamente psicologia, pedagogia, fisiologia. Posso falar com o meu departamento médico sobre lesões, músculos, biomecânica, teoria do treino. São temas que domino. Dominar as competências psicológicas, é fundamental. Pode fazer a diferença.

 

Imputam-lhe essa competência e apontam-na como uma das razões do seu sucesso: a autoridade que tem sobre os jogadores, e, mais do que isso, o reconhecimento da individualidade de cada um deles.

Vou mais por aí. A execução da autoridade vai-se esbatendo com o tempo e com a empatia que vou criando. Quando chego a um clube sinto necessidade de mostrar quem sou e o que posso fazer; tenho necessidade de me afirmar e estabelecer algumas regras. A minha liderança, toda a gente a sente mas ninguém a vê. Ter enveredado pela via académica, possibilitou-me ser melhor treinador. O Jorge Costa dizia numa entrevista: «A partir do momento em que fui treinado pelo Mourinho, conheci o filet mignon. Se o Porto mudasse de treinador e me oferecessem carapau ou sardinha, deixava de jogar à bola». É isto: os treinadores de hoje têm de ir à procura do conhecimento.

 

Esse estigma, de que as pessoas do futebol são incultas, grosseiras, quase sempre provenientes de camadas sociais muito humildes, tende a dissipar-se?

Mudou de forma radical. Nos anos 60 o meu pai ia ao estrangeiro às competições europeias e era o único que podia comunicar em francês ou inglês.

 

O seu pai falava línguas?

Era auto-didacta. Fez o antigo curso comercial, equivalente ao sétimo ano; mas gostava de línguas e de ler, e queria evoluir.

 

Foi ele que o ensinou a falar inglês?

Não. A sua competência no inglês não é tão grande, mas era o suficiente para poder comunicar. Hoje em dia, a minha equipa vai ao estrangeiro e há um ou dois que não podem comunicar em francês ou inglês. Nos anos 70, o que é que os jogadores faziam nos tempos mortos de estágio?

 

O que era?

Jogavam cartas. Agora estão ligados à internet, consultam a imprensa internacional porque querem saber o que dizem deles, estudam, lêem.

 

Aos 15 anos teve a noção de que queria ser treinador. E essa noção era acompanhada de uma outra: a de que dificilmente seria um jogador de excepção.

Sim.

 

Ora o que queria para si era justamente a excepção. Porquê?

Como qualquer miúdo, cresci a adorar jogar. Não posso dizer que não era um miúdo com talento. No meu grupo de amigos, era dos mais talentosos. Mas a via académica exigia-me responsabilidades, tive que fazer as minhas escolhas. Senti que não valia a pena arriscar porque as possibilidades de sucesso não eram grandes.

 

Isso é que é a coisa extraordinária: ter tido essa lucidez aos 15 anos.

Sabia das minhas limitações e das minhas qualidades. O meu skill não era melhor que o skill dos outros. As minhas qualidades físicas não eram de excepção; não era rápido, e a velocidade é fundamental para o futebol de alto nível. Aquilo que me fazia melhor do que os outros era a minha capacidade de ler, analisar equipas. A visão que tinha da situação. Eu conseguia ver coisas que os outros não conseguiam, inclusive adultos.

 

É verdade que o seu pai lhe pedia para fazer a observação das equipas adversárias?

Sim.

 

Foi verdadeiramente a sua escola?

A escola de qualquer treinador começa aí. Na capacidade de assistir a jogos com outros olhos. Não é ir para o futebol e ver o jogo como um adepto normal, preocupado se A ganha ou B ganha. É a tentar perceber como é que uma equipa funciona, quais são os seus princípios de jogo.

 

Nesse processo de aprendizagem, que dura desde sempre, e que vai durar a vida toda – sei que continua a ser obsessivo na observação dos jogos, passa horas agarrado ao vídeo –, tinha um interlocutor? O seu pai, outros jogadores, amigos.

Não tinha muito. Vivi praticamente separado do meu pai.

 

Isso representa uma grande dor para si?

Em criança, sim. Sentia a falta da sua presença, de poder falar com ele. Mas foi uma opção que a nossa família tomou: o meu pai era treinador, ia circular de equipa para equipa, e eu e a minha irmã, enquanto estudantes, não podíamos fazer isto. Vivemos em Setúbal com a nossa mãe, e o nosso pai, nos tempos livres, quando podia, voltava sempre a casa.

 

Que marcas lhe deixou essa opção da sua família?

De tal forma me marcou que defini com a minha mulher que, onde eu for, eles vão. A minha filha tem seis anos e já esteve em três cidades diferentes. E para a formação dela, não é nada mau. A capacidade de dominar línguas, lidar com a diferença, mudar de cidade... É uma miúda com uma capacidade de adaptação fantástica. No fundo, ter carinho e estabilidade, ter o pai, a mãe e o irmão ao seu lado é muito mais importante que a tristeza momentânea de abandonar uma escola, uma professora e uns amigos.

 

Quando ganhou a Taça UEFA em Sevilha, no final do jogo olhou na direcção em que sabia que eles estavam. Era importante tê-los ao seu lado naquele momento?

Era. Não queria que a alegria deles dependesse do ganhar ou do perder; mas comecei a perceber a importância que a carreira do pai tem para eles. Eu ganho, chego a casa e eles estão em festa. Eu perco, chego a casa e eles estão tristes. 

 

Eles assistem a todos os jogos?

Não vão nunca ao futebol. Por opção da minha mulher. Não gosta que decifrem o seu estado de espírito; prefere ver [os jogos] em casa, a sós. Mas os miúdos entram dentro dela, conseguem extrair a angústia, o sofrimento... Naquele dia quis que estivessem porque sabia que podia ser o dia mais importante da minha vida desportiva. Foi meu desejo saber onde é que estavam. Até posso dizer como é que soube onde é que estavam...

 

Diga.

Pelos bilhetes, consegui perceber o sector onde iam estar; antes do jogo começar pedi a um fotógrafo amigo que, com a teleobjectiva, fosse à procura deles. «Pronto, estão ali». Do banco não conseguia ver, mas sabia que estavam naquele sítio. Quando o jogo acabou, imaginei o que estavam a viver..., e foi para eles.

 

É muito importante que os seus filhos tenham orgulho em si?

É. Mas aquilo que queremos é que tenham orgulho, independentemente do sucesso. Magoa-me que, na inocência, as crianças sejam cruéis umas com as outras.

 

Na escola, no dia seguinte?

No dia seguinte, quando as coisas não correm bem, a vida não é fácil para a Matilde; ela é capaz de sofrer em silêncio, guarda para ela. Ele, que tem três anos, não é assim; já percebi que daqui a dois ou três anos, quando o pai perder, no dia seguinte vão chamar-me à escola. Porque ele é pai! É impulsivo. Nos seus impulsos, apesar do grande coração, é agressivo. Acho que há colegas que vão levar uns estalos fortes...

 

A obstinação e a ambição são o seu talento. São, pelo menos, instrumentos que servem o seu talento. Não consigo compreender completamente a fúria com que responde, para usar uma expressão sua, ao «chamamento da vitória». Onde radica esta confiança? Porquê esta pulsão tão violenta para chegar lá?

A auto-confiança nasce da convicção no trabalho que realizo. O mais importante é passar aos jogadores a mesma convicção. O desejo de vitória e a convicção na vitória partem fundamentalmente dessa crença.

 

Pode instigar-lhes essa convicção sem estar, você, completamente convicto?

Não consigo. Porque eu estou sempre convicto.

 

Mas não se acredita em super-homens. Com certeza tem momentos de fragilidade.

Tenho os meus momentos de fragilidade. Creio que os tenho mais na vida pessoal que na profissional. Os momentos mais difíceis, sob o ponto de vista profissional, são os momentos em que me revelo mais, em que me supero. Exemplo claro: quando a minha equipa ganha, às vezes são os meus adjuntos que vão à conferência de imprensa. Quando a minha equipa perde, sou eu que vou. Vesti bem a pele de líder, de homem sem fragilidades. Que as tenho!, enquanto homem.

 

Não se admite tê-las enquanto profissional?

Não é admitir: não as sinto. Nos momentos de maior responsabilidade é quando me sinto mais cómodo, nos jogos mais impactantes é quando sinto mais prazer em lá estar.

 

Trata-se de arriscar? Ouço-o e parece que assisto a um jogo de roleta. Há o prazer do risco e de estar completamente envolvido nesse lance.

É, é realização. Não há nenhum jogador ou treinador que, em miúdo, sonhasse com um jogo de chacha. Quando sonhei com jogos, acordei sempre a pensar que ia ganhar a Taça UEFA, que ia jogar o Benfica-Porto. Um jogador quando sonha marcar golos, não sonha fazê-lo no Porto-Gil Vicente. Quando sonha, sonha à grande. Se tenho o privilégio de estar metido nessa realidade com que sempre sonhei, tenho de desfrutar. Os meus jogadores têm também este espírito. Gostam de jogos grandes, gostam de responsabilidade. Na minha vida, tenho obviamente as minhas fragilidades.

 

Onde é que se refugia?

Nos meus.

 

Era capaz de revelar essa fragilidade, por exemplo chorar, à frente de uma pessoa que não fosse da sua família?

Se fosse um bom amigo, sim.

 

Chora?

Pouco, muito pouco.

 

Quando chorou a última vez?

Em Sevilha.

 

Mas isso foi uma explosão de felicidade. Refiro-me ao choro que resulta do sofrimento.

Chorei de forma descontrolada em situações irreparáveis, na morte daqueles que amei. Falo de avós, da minha irmã, da mãe da minha mulher, de um dos meus melhores amigos. Foram momentos em que senti que não podia fazer nada. Tudo tinha acabado.

 

Ou seja, o que o faz sofrer é a impotência?

É exactamente a impotência. Podem-me vir as lágrimas aos olhos quando um filho tem um gesto especial, quando recebo no telefone uma filmagem da Matilde a ganhar uma competição de natação. Sou capaz de ficar mais emocionado com isto que com outra coisa qualquer. Perante as dificuldades, não. Perante a impotência, sim.

 

Ambiciona para si uma carreira internacional. Quando no Barcelona decidiu não seguir o Bobby Robson até Newcastle, estava já convicto do caminho que queria trilhar? Portugal primeiro e o mundo depois?

Sim, claramente!

 

Mas você dorme? Quando é que pensa nessas coisas todas?

Eles próprios, o Bobby e o Van Gaal, perceberam que tinham de me libertar de algum vínculo moral que pudesse ter.

 

Se não o libertassem, seria capaz de o fazer autonomamente? Sentia-os como pais putativos?

Seria capaz, mas não naquele momento. Não sou pessoa de dizer: «Sr. Pinto da Costa, muito obrigado por me ter contratado». Ao Bobby e ao Van Gaal não disse: «Muito obrigado por me teres dado este contrato, muito obrigado por me teres trazido para Barcelona, muito obrigado por teres mudado a minha vida». O meu trabalho e a minha dedicação são a minha forma de gratidão. Eu nunca senti, em nenhum momento, que lhes devia alguma coisa. Quando decidi ser treinador principal e vir embora, nunca pensei que estava a ser incorrecto. Não lhes devo nada, paguei-lhes tudo, e por isso senti-me sempre livre para decidir. Se sentisse que não tinham pernas para andar sem mim, se calhar hipotecava um ano ou dois da minha independência. Era capaz de o fazer. Mas eles não precisavam de mim para nada. Tanto um como outro disseram «Tu estás preparado».    

 

Em que momentos pensa nessas coisas, «agora vou fazer isto», «já estou preparado»?, quando está no chuveiro, quando anda de carro?

É um grande problema... Muitas vezes as pessoas estão comigo, mas eu não estou com elas.

 

Parece um homem solitário. Pensei nisso quando o vi a correr, de fato e gravata, depois da conquista da taça em Sevilha. O seu movimento era o de um menino solto, ondulante, exalando pura felicidade. Paradoxalmente, ainda que estivesse com milhares de pessoas, parecia correr por sua conta, entregue apenas a si.

Foi um bocadinho isso. No meu livro, escrito pelo Luís Lourenço, há uma parte em que a minha mulher diz qualquer coisa como: «Ele fala tão pouco... Muitas vezes estamos juntos e ele não está comigo. Só por conhecê-lo tão bem, consigo perceber aquilo que me quer dizer sem me dizer nada». Sou um bocadinho assim. Fechado. Preciso do meu espaço. Muito tempo do meu dia é para reflectir, faço a avaliação do treino, o que correu mal, o que pode correr melhor.

 

A quem queria provar que era bom, ao seu pai?

Não, não, não. Os meus pais nunca puseram qualquer pressão sobre mim. Nunca senti que tinha de lhes provar nada. À minha mulher, tão pouco. É das pessoas que mais acreditam em mim, no meu potencial, incentivou-me a deixar Barcelona e vir para Portugal. Em Barcelona a minha situação era fantástica: ganhava uma pipa de massa, uma pipa redondinha, bem cheia; era adjunto, não tinha tantos cabelos brancos porque as preocupações não eram tantas, queriam que continuasse. E ela, por perceber que eu era um tipo angustiado porque queria mais, disse-me para esquecer tudo e ir à luta.

 

Então, teve necessidade de provar apenas a si mesmo?

A mim mesmo. Há quem pense que eu queria provar àqueles que não gostam de mim... Porque há muita gente que não gosta de mim.

 

Quando finalmente se impôs como um grande treinador e pôde calar aqueles que olhavam para si como o tradutor do Bobby Robson, nessa altura riu à gargalhada?

Ri, ri. Mas se me disser «Vamos falar deles, vamos falar do que disseram de si», não falo.

 

Verdadeiramente eles não contam, pois não?

Mas para muita gente contam. Para mim não têm interesse absolutamente nenhum.

 

E o dinheiro?, é o seu móbil?

Não. Quero qualidade de vida. Quero que os meus filhos andem num bom colégio, quero poder vestir bem, quero ter boas férias. Não quero mais do que aquilo que um cidadão comum quer. Não tenho ambições desmedidas. Não quero ter uma casa com 800 m2, não quero ter uma quinta, não quero ter um Ferrarri. Não quero nada disso.

 

Então?, se não é o dinheiro que o faz correr, é o quê?

O sucesso! O prazer pessoal. A alegria. Ando à procura de felicidade, de plenitude. Quero ganhar títulos, quero ser reconhecido, quero, como já está a acontecer, que noutros países saibam que há um tal José Mourinho que é um treinador de futuro. Ando à procura disso.

 

Espero que nos encontremos daqui a dez anos! Vou gostar de saber o que mudou na sua vida.

Terá mudado pouca coisa. Familiarmente vai ser igual, com o privilégio, Deus me ajude nesse sentido, de ter visto os meus filhos crescerem dez anos espectaculares. E profissionalmente espero ser bem sucedido, acredito que vou ser bem sucedido. Espero ganhar títulos. Espero ter a mesma alegria naquilo que faço.

 

No fundo, aquilo que tem agora, mas numa quantidade superior?

É só isso. Mais velho fisicamente, mas mentalmente mais rico. Sinto-me cada vez mais forte, mais rico. Só vou perder pró físico, nada mais.

 

Encontramo-nos daqui a dez anos?

Combinado.

 

 

Publicado originalmente na revista Selecções do Reader’s Digest em 2003

 

Clara de Sousa

14.05.15

Clara de Sousa é uma mulher que está de bem com a vida. É pivot do jornal da noite da SIC, função que alterna com Rodrigo Guedes de Carvalho. Editou um livro de cozinha onde ensina a fazer as coisas que mais gosta de fazer. À moda da sua mãe? Sim, a cozinha é uma porta de entrada para saber dela, para falar do que lhe é essencial.

 

As nossas mães diziam que um homem se prende pelo bico. É verdade?

Conquista-se pela boca, dizia a minha. Há muitas maneiras de conquistar um homem. Não só os homens. Conquistam-se afectos. Por alguma razão as comidas das nossas mães são as melhores – vêm carregadas de afectos. Quanto aos homens, pode funcionar numa primeira fase, como uma arma; mas é acessório.

 

Neste ditado, estava também contida uma velha representação da mulher como fada do lar.

Eu não me realizaria sendo apenas uma fada do lar. Não me sentiria completa se não tivesse uma acelerada actividade intelectual. A fada do lar, no meu caso, funciona como um modo de equilíbrio.

 

Na nossa geração, as coisas mudaram substancialmente no que concerne ao papel da mulher na sociedade. E a cozinha deixou de ser vista como um lugar subalterno e exclusivo das mulheres. Os homens entraram em casa.

São estigmas. Não gosto de colocar rótulos. No noutro dia estava a ver o único livro de cozinha que a minha mãe me pôs no meu enxoval – sim, porque sou do tempo em que se fazia o enxoval à filha; eu não estou a fazer o enxoval à minha filha… – que falava da fada do lar. Se é uma imagem Estado Novo? Se para umas mulheres foi uma imposição, para outras não foi.

 

A cozinha para si não foi uma imposição, presumo. Com quem é que aprendeu a cozinhar?

Quando comecei a fazer televisão e a dar entrevistas disse que a minha mãe era cozinheira profissional. Sempre o disse com a maior naturalidade. Alguém comentou comigo que não era qualquer pivot de televisão que confessava que a mãe era cozinheira. Como se isso fosse uma vergonha! Vergonha é mentir e inventar passados que não temos. Gosto mais de ser do que de parecer, e por isso sempre o disse. Ser cozinheira, ser agricultor é um talento, é um tesouro. Tudo aquilo que presenciei, de contacto com a terra, com os animais, com a verdade do dia a dia, com a minha mãe a fazer casamentos e baptizados, e eu a ajudá-la a fazer croquetes e rissóis, dezenas e dezenas, para ela congelar e vender, tudo isso me enriqueceu.

 

Fale-me mais desse espaço de partilha que a cozinha representou na sua vida.

O coração da casa sempre foi a cozinha. A porta de entrada dava directamente para a cozinha, e dali fazia-se a distribuição da casa. Era onde passávamos mais tempo. Tive o privilégio de ter uma mestre, de poder ver como é que fazia. Foi um tempo de aprendizagem e de partilha, e de construção de personalidade, e de transmissão de valores.

 

Os deveres da escola faziam-se na cozinha, com a mãe por perto. Foi assim consigo?

Isso não tive, porque a minha mãe saía de manhã e chegava às oito da noite. A essa hora já tinha os meus trabalhos de casa feitos. Comecei a cozinhar cedo, nem dez anos tinha. A minha mãe nunca andou em cima de mim por causa das facas. Eu cortava, descascava. A minha mãe ensinou-me a cortar à maneira antiga, na mão. Obviamente também me cortei, e ela estava lá para sarar a ferida, mas não era ansiosa em relação a isso. Eu sou. A energia que se tem na confecção das refeições é uma energia diferente da que se tem na sala, no quarto. Há um apelo diferente.

 

Porque é que teve agora necessidade de fazer um livro de cozinha? E isso parece corresponder a uma fase em que está muito bem consigo própria.

Mas eu sempre estive bem comigo própria. A percepção que as pessoas têm disso pode ser outra. Não tive necessidade nenhuma. Até podia ser prejudicial. Uma jornalista a fazer um livro de cozinha?

 

Uma necessidade afectiva, e não carreirística. Era a isso que me referia.

Não. Eu perguntava-me a quem podia interessar o que faço na cozinha. Interessa aos meus amigos, à minha família, aos meus colegas (partilhamos receitas, trazemos coisas, acabei de provar uma bolo delicioso sem açúcar que uma colega trouxe); mas interessa ao público em geral? Depois fui ao programa da Conceição Lino e percebi que as pessoas estiveram durante anos de costas voltadas para a cozinha, e agora há a necessidade de um reencontro. Como se fosse um back to basics. O que mostrei, nos três pratos que fiz no programa da Conceição, é que era possível cozinhar rapidamente e de modo descomplicado.

 

Sente que se expôs mais a pretexto deste livro? Porque ele trouxe-a no coração da casa, na relação com a sua mãe.

Andamos todos com muito pudor, e cheios de preconceitos, e com dificuldade em abrir o coração. Várias vezes tinha falado do meu gosto pela cozinha, da minha Vespa. Este livro deu mais exposição, sim, a tudo isto. Mas talvez isto aproxime as pessoas. Uns têm um trabalho mais físico, outros um trabalho mais intelectual. Uns têm a responsabilidade por uma empresa, outros perante o público de uma televisão. É uma questão de gestão de responsabilidades. De que forma é que os afectos afectam o meu trabalho intelectual? Acho que não. Acho que o valorizam. Os estudos mostram que a inteligência emocional é cada vez mais importante na vida das pessoas. Mais importante do que ter um QI de 130. Aprendemos a tomar melhores decisões [recorrendo à inteligência emocional].

 

E se a quisermos conhecer sem ser na cozinha?

Não conhecem. Não vale a pena tentar. Uma coisa é falar dos afectos de família, outra é falarmos de namorados e maridos e homens.

 

Não era esse o meu caminho. Em todo o caso, pergunto porque é que ficou cada vez mais resguardada em relação a quem é?

A partir do momento em que me vi envolvida em processos, invenções, manipulações. Diria que uns 90% das coisas que são escritas sobre a minha vida são mentira.

 

Impressionou-a ter sido alvo desse voyeurismo? Normalmente um pivot de televisão não é tão atacado, e sim actrizes, apresentadoras, modelos.

Neste momento, em Portugal, basta ser televisivo para ter interesse. Seja no jornalismo, seja no entretenimento. No meu caso, teve que ver com o meu primeiro divórcio, que exploraram de uma maneira vergonhosa. Tudo começou com isso e com o Correio da Manhã.

 

Que promoveu um concurso que a elegeu como a mulher mais sexy do país.

As pessoas votam para dizer que gostam de alguém, que gostam da maneira como ela se afirma, também em termos físicos, e tudo encaixa naquele rótulo. Não me importa o interesse [que têm em mim]. O que me chateia são as mentiras. Há limites.

 

Esse rótulo, da mais sexy, incomodou-a especialmente por ser jornalista? Outro estigma: as mulheres bonitas, as louras, têm que provar o dobro.

Só por ser mulher é preciso provar o dobro. Se for uma mulher com uma série de atributos, mais difícil se torna. Mas acho que não me posso queixar. Não me afectou em termos profissionais.

Nós não estamos num pedestal, intocáveis, a fazer vidas de princesa, sem partir uma unha. As pessoas, fora do trabalho, têm vidas normais. Apaixonam-se, casam, descasam, têm filhos, adoptam. Muitos têm problemas de dinheiro, outros querem fazer obras na casa e ainda não conseguiram. Uns têm empregada, outros não têm. Porque é que há-de ser tão diferente? Por causa do sonho? Esse sonho é uma grande ilusão.

 

Alguma vez o teve?

Não. Nunca. Para quê? Teria que ter uma vida muito triste… Os meus sonhos de criança eram disparatados. Queria ser cantora, como todas as meninas, ou cabeleireira. Ah, e encontrar um príncipe e ser feliz para sempre. Mas não me lembro de projectar muito o meu futuro. Tal como hoje. O tempo ensinou-me que não vale a pena fazer projecções. O melhor é viver o presente e não me angustiar com o passado. Até hoje, tudo o que considerei que era importante para mim, consegui. Tenho uma casa que fiz de raiz à minha medida, à medida da minha família. Isso deixa-me muito feliz. Tenho dois filhos.

 

E os seus olhos riem só de falar neles…

Há mais do que algo que vem de nós? Há mulheres que não sentem isto, é legítimo, como há umas que não gostam de cozinha. Tenho dois cães. Tenho o meu tempo bem organizado. Tenho duas páginas de Facebook; dá-me trabalho, mas dá-me prazer interagir com as pessoas. Obviamente tive momentos duros. A morte da minha mãe foi uma coisa que me secou. Foi há onze anos. Fui encontrar forças em mim e na minha função de mãe dos meus filhos. Nos momentos de fraqueza temos de encontrar outros portos de abrigo. Não podemos ficar ancorados numa coisa má quando à volta temos vinte boas. Mesmo que a coisa má pareça ter mais 200 quilos do que as boas.

 

Como é que se fez assim, resistente?

É a minha personalidade. Cresci a ver mulheres fortes. Apesar das adversidades, apesar da dureza. Encontrar sempre soluções, nunca ficar presa nos problemas – foi o que vi a minha mãe fazer, foi o que vi a minha avó fazer. Não lhes chego aos calcanhares nessa força. Mas o que deixaram em mim tem sido a minha reserva para os momentos difíceis. E esses momentos dão-nos mais força, mais tarde ou mais cedo.

 

Porque é que nunca se deslumbrou? Conquistou o que muitas pessoas ambicionam. Ser famoso, aparecer na televisão, não ter problemas de dinheiro.

Mas não era aparecer na televisão que eu queria quando quis ser jornalista.  É fácil o deslumbramento, se não tivermos uma ligação à terra. Quando aquilo acaba, o mundo acaba. Nunca permitiria que acontecesse comigo. Nunca me esqueci de onde é que eu vinha. Quero ser reconhecida pelo meu trabalho. Admiração? Pode ser positiva. Não é a Mariah Carey a flutuar, isso é Hollywood, não é a nossa realidade. Podem ser os mais novos que dizem que fomos um role model para eles. Que possa inspirar? Também acho bonito.

 

Imagine uma refeição que gostasse de cozinhar para os seus filhos, e que tivesse uma forte carga simbólica…

Pode ser um prato que eventualmente a minha mãe fizesse para mim? O meu filho é doido por tiramisu com rum; e nunca tirei o rum. E os meus filhos gostam de café, e deixo-os beber café; eu bebia café com a idade deles, e mais do que eles. O que é que faria? É uma recordação minha: bolo de bolacha. É um bolo de criança que os adultos sempre comem. Talvez seja uma prova de que as crianças nunca saem de dentro de nós.

 

 

Publicado originalmente na revista Máxima em 2012

 

 

 

  

 

Fernanda Serrano

14.05.15

Quer esquecer. Quer que não lhe lembrem. Quer ser olhada como um caso de sucesso. Fernanda Serrano não quer ser a coitadinha. Fernanda Serrano quer assistir à sua velhice.

Viveu uma situação nada simpática. Trágica, na verdade. Mas fala-lhe ainda com bons modos. Com um misto de desprezo que não lhe atribui a importância maligna que ela tem e um respeito que lhe reconhece a importância maligna que ela tem. Como se dependesse da delicadeza desse estranho. Um cancro é um cancro, mas ela não conseguia chamar-lhe assim. Carcinoma é mais simpático. Quer isto dizer, não leva a sentença de morte.

Fernanda teve medo de morrer. Fernanda decidiu viver. Escolheu acreditar no tratamento e na cura. Desenhou sobrancelhas para dormir. Fez, como Roberto Benigni, da doença um jogo. Não jogou xadrez com a morte. Fintou-a, tendo o filho na assistência.

Mas não só o filho. Também o marido, os pais, os amigos, todos. Queria ser uma mulher forte e corajosa. Um exemplo para os que seguem a sua vida há anos através das novelas e das revistas. Jogou esse jogo consigo: não ia desapontá-los, ia vencer a batalha. Não ia chorar à frente deles, ia ser mais forte que a coisa maldita. La fleur du mal.

Fala do que lhe aconteceu com um sorriso contínuo. Imensamente nervoso. Podia estar a falar do dia de sol, e o sorriso seria o mesmo. Não perde a compostura. Não é para mim, para os leitores: é para ela mesma. Por breves momentos a cara transfigura-se, quando se indigna: porquê eu?

Sim, porquê ela? Um ícone de beleza. A cara de um banco. Uma heroína das novelas da TVI. O casamento dela a que assistimos todos. O nascimento dos filhos que acompanhámos como se fôssemos padrinhos. Uma vida feliz. E depois, uma sentença com uma gravidade bíblica… “Porquê, meu Deus?” Ínvios caminhos, os da vida de todos os dias.

Esta semana deu uma conferência de imprensa para explicar que está livre de perigo. Que clinicamente só pode ser considerada curada daqui a cinco anos. Fará a vigilância de três em três meses, depois de seis em seis, depois de ano a ano. Falámos durante uma hora e meia no dia seguinte.

Em Fevereiro será Frida Kahlo na peça Viva la Vida. Frida, a sofredora, que viveu o tormento físico até à morte. Fernanda, no princípio de Novembro, numa ferida ainda aberta. Primeira de duas entrevistas depois do cancro da mama. 

 

 

A primeira vez que sentiu o nódulo foi no dia do nascimento da sua filha. Coincidência macabra.

Eu e a minha mãe pensámos: o que quer que seja que esteja ali, tem de sair. Era um nódulo perfeitamente visível. Durante a gravidez estamos sempre a fazer apalpação, massagens, com cremes; nunca me tinha apercebido daquilo, deve ter eclodido nessa altura. Não sei como. Mas foquei-me no que era importante: amamentar, um novo ser na minha vida, a felicidade era imensa. Dois meses depois fui fazer a ecografia mamária. Nesse mesmo dia foi feita uma biopsia. Percebi logo que algo errado estava a acontecer.

 

Na cara das pessoas?

Sim. Em segundos, percebe-se o peso, a carga. Eu já tinha vivido aquilo, ainda que de modo ficcionado. Tinha interpretado uma personagem, numa novela, a quem é diagnosticado cancro da mama. Todos aqueles passos, aquele trabalho de laboratório, já o tinha feito.

 

E contudo, não tinha nada que ver.

Não tinha nada que ver. Era um passo a seguir ao outro, uma confirmação cadenciada. Um dejà vu. Quando me preparava para fazer a biopsia, estava de pé, na cabine onde trocamos de roupa, e a sensação de medo foi tão forte… Como se soubesse o que vinha a seguir. Não quis sobrepor as emoções e esperar pelos factos. Mas não posso esquecer o medo que senti nessa cabine.

 

Perguntou directamente o que tinha?

Perguntei. A doutora disse que ia fazer a biopsia porque “algo a estava a deixar inquieta”. Transmitiu-me isto de forma positiva. Mas há sempre algo que detectamos. Passei esta inquietação ao Pedro; por sua iniciativa foi informar-se junto da médica. Fui preparada por ele para receber a notícia, a informação foi doseada. Foi a constatação gradual de um desfecho… [pausa] nada simpático.

 

Trágico.

Na altura é. Tenho agora algum distanciamento, mas nunca me consigo ausentar desses momentos. [Na conferência de imprensa] pedi que me ajudassem a esquecer esta fase; mas não sei se vou conseguir. Uma prova destas não se esquece nunca.

 

Porque é que usa expressões como “nada simpático” e não escolhe palavras mais fortes e definitivas?

Porque agora já passou. E quero deixar clara a mensagem de que é possível acreditar num tratamento e numa cura.

 

As palavras têm peso. A doença pode ser chamada de diferentes maneiras. “Aquilo”, o “cancro”, o “tumor”, o “mal”.

No início não conseguia dizer a palavra cancro. Dizia carcinoma. Era uma forma mais elaborada e que não me lembrava logo o que aquilo era. “Tenho um carcinoma no peito”. Um dia perguntei-me porque é que não conseguia dizer a outra palavra, que é mais comum e mais dura. E é por isso: eu não conseguia ouvir-me dizer aquela palavra, e muito menos ouvir-me dizer que eu tinha aquela doença. Para além da fase da injustiça, da fase da revolta, da fase do medo, há também a fase da negação. Cheguei, por momentos, a pensar: vou fingir que não tenho isto. Não queria acreditar. É como as crianças fazem: brincam ao faz de conta. O desespero, o não conhecer o desfecho leva-nos à infantilização. Nestes momentos, tudo vale. Tudo o que diminui o sofrimento, tudo o que nos poupa, vale. Estas foram as minhas defesas.

 

Não por acaso, foi fazer o exame com a sua mãe.

E porquê? Não quereria vê-la sofrer. Eu teria de estar obrigatoriamente mais forte ao receber a notícia. Porque a tinha ao meu lado. A minha filha estava comigo também. Nessa altura, ainda amamentava.

 

Ela mamava nos dois peitos?

Sim. Parei por ordem clínica no dia seguinte. Tive de secar o leite. Tudo isto foi bem trabalhado. Pouparam-me a um choque brutal.

 

Mas apesar da preparação, nunca se está preparado.

Nunca. “Olhe Fernanda, afinal não era nada”. Era o que eu queria receber como telefonema. “Afinal, isto é um tumor benigno”. Foi o que sempre estive à espera de ouvir – até ao último momento. Recebi o resultado por telefone, insisti imenso; a minha inquietação era tal que não aguardei pelo resultado escrito. O Pedro estava ao meu lado e percebi na cara dele que já sabia. Ele tinha tentado preparar-me, mas é sempre um choque. Acreditamos na réstia de esperança.

 

Foi também por isso que demorou dois meses a fazer a ecografia?

Até ao exame, acreditei que não era nada maligno. Associei isso ao pós-parto: caroços de leite, subida do leite, um quisto sebáceo. Mas nunca fiquei totalmente descansada.

 

Apesar de haver o fantasma do cancro da mama na sua família, os seus conhecimentos eram diminutos. Não sabia que a mulher fica especialmente exposta, que há um défice imunitário durante a gravidez.

Não sabia, não. Questionei médicos, estava tão revoltada… Como é que nós, mulheres, não temos esta informação? Médicos, técnicos de saúde, ninguém ficou espantado – é muito comum.

 

Nessa semana de espera, quem estava a par?

O Pedro, os meus pais, e eu. Soube isto numa segunda-feira à noite, e na terça de manhã ligou-me a Sandra Faria [amiga, presta-lhe apoio profissional]. Eu estava devastada.

 

Tinha conseguido dormir?

Consegui sempre. Pensava que era uma das formas que tinha para combater a situação: estar descansada para ter forças. E, pelo menos nas horas em que estava a dormir, não pensava. Era uma forma de defesa também. Arranjamos mecanismos de defesa constantemente.

 

Sonhou com a doença?

Nunca. Aliás, sonhava com coisas tão boas, que, quando acordava e constatava que a minha realidade era outra, vinha uma tristeza imensa. O que me apetecia era, literalmente, estar colada aos meus filhos. Há uma mistura, uma diversidade tal de sentimentos…, e isto ao longo do dia.

 

O calendário altera-se e passa a ser dominado por isto? Passa a ser: sei da doença há um dia, há um mês, faço tratamento no dia X, estou a X semanas de acabar o tratamento.

São dias que não esquecemos. No dia 4 de Março de 2004 rapei o cabelo para a novela Queridas Feras. No dia 4 de Março de 2005 nasceu o meu primeiro filho, Santiago. Estava marcada para o dia 4 de Março a minha cirurgia. Pedi que não fosse no dia de aniversário do meu filho. Então, foi dia 7 de Março. O dia da cirurgia, o dia do começo e o dia do final da quimioterapia e da radioterapia, são dias que não vou esquecer. Para o ano lembrar-me-ei desses dias e quero estar a celebrar coisas boas.

 

No primeiro dia, dominava-a a incredulidade? O “porquê eu?”

É uma incompreensão total. Várias vezes ouvi isso: “Não tentes procurar uma resposta porque ela não existe”. Mas com tanta gente no planeta, porquê eu? Perdoem-me se penso que existem pessoas que merecem coisas más. Porquê, porquê, porquê? Porquê eu? Porquê, Deus? Mas a seguir penso: acontece um acidente, morrem 82 crianças; que mal fizeram estas crianças para lhes ter acontecido tal vicissitude? Não podemos buscar estas respostas, este não é o caminho. Havia situações muito piores, sem retorno. Eu era mais um caso.

 

Desde o princípio estabeleceu como meta sobreviver à batalha.

Pensei: isto não vai ser impossível. Senti um forte apoio clínico. As únicas pessoas que ouvimos a 100% são os médicos – mais ninguém. O resto: as mensagens simpáticas são boas de ouvir, os exemplos de sucesso são óptimos de seguir – só quis saber destes casos; mas a única coisa que levava em consideração eram os médicos. Disseram-me que só depois da cirurgia era possível estabelecer o protocolo de quimioterapia e radioterapia. O médico oncologista, o Dr. Costa Marques, determinou que seriam seis ciclos de quimioterapia e 33 ciclos de radioterapia – supervisionados pela Dra. Maria Emília Pereira. Pertencem à equipa do Dr. Santos Costa que faz isto há 36 anos; descansa-nos muito ouvir uma pessoa que há 36 anos só faz isto.

 

Foi a segunda opinião que ouviu. O que é que a fez procurar uma segunda opinião?

A primeira não era tão simpática. Quero salientar a importância de ouvir uma segunda opinião, uma terceira, uma quarta, uma quinta, as que entenderem. A primeira opinião que ouvi era completamente diferente, e assustadora. O Pedro marcou consulta com o Dr. Santos Costa, e era outro diagnóstico. Mas o que mais me aquietou foi a calma e a confiança com que me transmitiu o seguinte: a primeira abordagem será uma cirurgia conservadora da mama, uma tumorectomia.

 

Teve muito medo de perder o peito?

Tive. Há sempre aquele lado da mulher… É importante ter uma pessoa ao nosso lado que nos faz compreender que somos uma pessoa por inteiro, e não um órgão. 

 

Quando foi para a sala de operações, estava ciente dos dois cenários?

Os médicos são muito minuciosos e criteriosos neste tipo de informação. O Dr. Santos Costa sempre disse: em princípio será apenas para retirar o tumor, e perceber se existiu passagem de algumas células cancerígenas para outras zonas do corpo, e possíveis metástases. Mas só depois de ver, de peito aberto, seria possível perceber a extensão da lesão e decidir. Preveniu-me para o caso de poder acordar sem peito.

 

Quando acordou, essa foi a primeira coisa que tentou perceber…

Foi. Toquei, olhei, perguntei. Ao meu lado estava o Dr. Santos Costa e perguntei: “Correu bem?”. “Afirmativo”, foi a resposta, e “descanse”. Às quatro pessoas que estavam comigo fiz a mesma pergunta. Era para acreditar completamente! Como se me beliscasse. Queria confirmações, confirmações. Queria que não houvesse tempos passados entre a entrada e a saída das pessoas, para que não tivessem tempo de combinar respostas entre si.

 

Tinha medo que lhe ocultassem coisas?

Tinha. E pedi desde o início que não me ocultassem nada. 

 

Quando foi fazer a operação, não tinha ainda tornado pública a sua doença. Foi uma grande preocupação o facto de outros saberem da sua doença, descobrirem o que se passava consigo?

Nesse momento só queria que me deixassem me paz. Não queria ver ninguém. Não conhecia ninguém na Clínica de Santo António, mas sempre me senti muito confortável e resguardada. Quentinha. Havia um carinho muito grande, e sei que o têm para com todos os doentes.

 

Pediu-lhes que tivessem em consideração o facto de ser uma figura pública?

Nunca pedi. Foi bom não ter que pedir: “Por favor, não digam a ninguém”, não estar preocupada com a privacidade.

 

O que é que a fez emitir um comunicado, um mês e meio depois da operação? Parecia que estava na iminência de ser tornado público, e que preferiu antecipar-se.

Estava. Fui alertada; vários directores de revistas fizeram-me chegar a mensagem: já sabiam da notícia e só precisavam da minha confirmação. “Antes que alguém torne público à sua maneira, vou torná-lo à minha. Só eu sei a realidade dos factos e isto pode ser difundido de forma errada”. Só a nós assiste o direito de revelar o nosso estado de saúde. O comunicado foi a maneira mais acertada de o fazer.

 

Quem é que o escreveu?

Sandra Faria. Nem precisei de lhe pedir. Ela é uma pessoa muito importante na minha vida. Percebeu que eu não estava em condições de escrever o que quer que fosse.

 

Como é que foi ver-se na capa de todos os jornais e revistas com aquela notícia? 

Pois… É o constatar da situação, uma vez mais. Uma coisa é estar escrito, já ter saído da nossa caixa de email; mas ainda não sabem seis milhões de pessoas. A partir do momento em que está exposto na capa de um jornal ou revista, é como estar um pouco despida. É a nossa intimidade. Também porque, apesar de estar acompanhada, familiarmente, clinicamente, é um processo muito solitário. De repente aquilo deixa de fazer parte do núcleo duro e passa a ser do domínio comum. É invasivo, e incomodou-me um pouco. Mas era uma forma de me poupar.

 

Viu os jornais e as revistas?

Vi no dia seguinte. Mas nesse dia, à uma da manhã, recordo-me de ver o programa com as primeiras páginas na SIC Notícias. E foi um choque. “Amanhã toda a gente vai ler isto…”.

 

O que quer isso dizer? Amanhã as pessoas vão olhar para mim de maneira diferente? Amanhã vão saber da minha vulnerabilidade?

Nem pensei nisso. Só me senti exposta e vulnerável. Só me apetecia ficar resguardada, em casa.

 

A Caras tinha uma caixa de mensagens com milhares de comentários de pessoas. Lia?

Lia, leio, e deixei lá a minha mensagem de agradecimento a todos. É importante saber que há pessoas a passar pelo mesmo. Há uma proximidade grande. Mas não sou do género de partilhar tristezas. Eu nem queria falar sobre isto. “Eu não quero falar sobre, eu já tenho de viver com”.

 

Era uma espécie de recusa?

Acho que sim. Não dar à doença mais espaço do que aquele que ela conseguiu conquistar na minha vida. Queria gastar os meus minutos a falar de outras coisas. É uma luta desigual: são forças diferentes, somos apanhados desprevenidos, e não temos como prevenir.

 

 Já tinha feito alguma mamografia?

Já. Andava sempre em cima. Foi-me dito por um médico que mais tarde iria ter cancro da mama. Aos 40 anos, aos 50. Preferia transpor a experiência para daqui a 20 anos – daqui a 20 anos a medicina estará mais avançada, existirão medicamentos… Nas sessões de quimioterapia, fiz questão em ter por perto o enfermeiro Reis, que desdramatizava aquela situação. Estamos sentadas numa poltrona a receber tratamento e temos um técnico que diz: “A pirâmide inverteu-se. Antigamente, os tratamentos de quimioterapia tinham uma taxa de sucesso ínfima. Hoje em dia é ao contrário”.

 

Cerca de 99,8% das mulheres cujo cancro da mama é detectado muito precocemente conseguem salvar-se.

Ouvi falar de outra estatística: 78%. Mas a primeira conotação é ainda a morte. Depois adaptamo-nos, acreditamos no tratamento, percebemos que a situação não é tão dramática.

 

Quer dizer que só achou que ia morrer no início da doença?

Achei que ia morrer. E não percebia porque é que tinha de ser já. Quando ainda tinha tanta coisa para fazer. Eu tinha tido uma filha há dois meses, devia estar com uma depressão pós-parto! E estava a ser atacada numa outra frente. “Tenho de reagir, tenho dois filhos pequenos, quero assistir ao crescimento deles, quero assistir à minha velhice”. 

 

Isso transformou-se no motor.

Sempre se ouviu dizer que o optimismo é meio caminho andado para a cura. Não sei… A cura acontece porque os tratamentos acontecem, porque reagimos bem aos medicamentos. Mas tinha o motor em casa: os meus filhos. Eles sem saberem… Um com três anos, a outra com, agora, dez meses.

 

O seu filho viu-a a cortar o cabelo. Que é que lhe explicou?

Disse que queria mudar de penteado e que queria ficar como na fotografia em que estava de cabelo rapado (da novela). “Gostas? Deixas a mamã cortar assim o cabelo?”. Inspirei-me na forma fantástica do filme A Vida é Bela, que retrata a Segunda Guerra como se fosse um jogo. Pensei que era a maneira mais fácil de transmitir ao meu filho esta coisa. Não queria passar-lhe maus pensamentos, não queria estar a chorar.    

 

Nunca lhe disse: “A mãe está doente”?

Nunca. Penso que nunca se apercebeu disso. Claro que os dias a seguir à quimioterapia eram menos simpáticos… E quando o Santiago chegava da escola via-me de roupa de trazer por casa ou de pijama, com um ar mais abatido, e perguntava-me o que é que eu tinha. Rapidamente, aquilo dava-me ir buscar forças, God knows where, para ter um sorriso nos lábios, para brincar com ele, para reagir.

 

Era normal estar com roupa de casa e de pijama? Muitas mulheres continuam a arranjar-se.

Sempre fiz isso. Apanhou-me de pijama duas vezes, nos dias mais difíceis. Foram dois dias em nove meses, uma hora ou duas. A minha disposição para a brincadeira aparecia – não sei como. Durante este tempo fiz os possíveis para estar bem comigo mesma. Arranjava-me, maquilhava-me para estar em casa, maquilhava-me para dormir.  

 

Para dormir?

Porque entretanto deixamos de ter sobrancelhas, pestanas, e é estranho vermo-nos sem esses pelos com que vivemos a vida toda. Eu não queria acordar assim! E sempre que me levantasse a meio da noite para ir a casa de banho, não tinha de me confrontar no espelho com aquela imagem.

 

O mais duro era olhar-se ao espelho ou saber que o seu marido, ali ao lado, a via naquele estado?

Também. Mas era mais para mim. Se eu gostasse, ele ia gostar de certeza.

 

O que é que mudou no seu corpo?

É um tempo longo em que existe uma inércia quase total. E tomamos uma quantidade bruta de medicamentos, que não desaparecem, ficam cá. Fui alertada para isso: há pessoas que emagrecem muito, e há pessoas que incham, incham. Não houve mudanças muito significativas, mas notei, sim, que o meu corpo não estava como antes.

 

Tocava o peito? Quando punha creme, por exemplo.

Há zonas em que nem conseguimos tocar, porque o corpo está dorido. Ainda é visível esta veia [estende o braço]… Está negra porque está queimada, da quimioterapia. Agora já consigo esticar o braço. Com o tempo, o corpo regenera, a actividade física volta a ser possível. Recorri à ajuda do Dr. Humberto Barbosa, da Clínica do Tempo para o pós-tratamento, com o aval clínico do meu médico. Aumentei o consumo de vegetais, passei a odiar beterraba, (que faz muitíssimo bem às pessoas que fazem tratamento oncológico). Felizmente consegui sempre alimentar-me e obrigava-me a comer. Era a única arma ao meu alcance: comer, dormir, para me reabilitar e ajudar os químicos a trabalhar. 

 

Sentiu falta de uma vida normal?

Sim. No meu caso, era impossível estar a trabalhar 12 horas por dia num estúdio de gravação fazendo este tipo de tratamento. Ocupei-me com outras coisas: ser mãe, pesquisar peças de teatro para fazer, ver filmes, ler. O que mais fiz foi estar com os meus filhos.

 

Vive enquanto actriz dos seus afectos, mas também da sua beleza.

Por mais que não queiramos admitir, passa por aí.

 

E tinha o rótulo da bomba sexy. Isso não tornou tudo mais difícil?

Cheguei a pensar que depois desta situação se tornar pública, a ideia da mulher bonita, sexy, apelativa, nunca mais voltaria... Temos a ideia que a mulher bela e sexy é perfeita; portanto, não tem doenças. Aos olhos de algumas pessoas ia deixar de ser a mulher perfeita. Mas também nunca defendi a ideia da perfeição. Os meus exemplos não são pessoas politicamente correctas, são pessoas.

 

Vai custar-lhe não encarnar essa mulher sexy que era até agora?

Se fosse há dez anos, oito anos, talvez fosse uma preocupação. Neste momento não. Pensei nisso, mas a prioridade era sentir-se bem, para mim e para a pessoa que está ao meu lado.

 

A doença é o último tabu. Até há pouco tempo, as mulheres deixavam de ser sexys quando passavam à categoria das mães; agora, é quando deixam de ser saudáveis.

Exactamente.

 

Para esse sentimento contribuiu o facto de não ter sido mastectomizada?

Sabe que vi mulheres que tinham feito mastectomia radical e dupla e que têm peitos muito bonitos.

 

Quando reapareceu em público, na gala da TVI, usou um vestido cai-cai. Porque é que quis vestir um vestido que chamava a atenção para o seu peito?

Foi propositado. E tirar o papel do peito, também. No fundo, estou contente por ter os dois peitos. Mas se não os tivesse, acho que estaria bem e feliz na mesma. Hoje em dia é possível fazer reconstrução mamária num curto espaço de tempo, e perfeita.

 

 Toca sem problema o peito doente?

Sim. Já me passou a fase de olhar e pensar que se passou ali uma coisa aparentemente não muito grave, mas que podia causar-me a morte.

 

Ia ao supermercado, andava na rua durante este período?

Fiz sempre isso, excepto nos dois primeiros meses após [a notícia] ter sido tornada pública. Evitei ao máximo andar na rua e restringi-me aos sítios onde me sentia segura.

 

Optou por usar peruca. Porquê?

Usei peruca desde o momento em que rapei o cabelo, porque o Santiago não gostou de ver a mamã assim; pediu-me para colar o cabelo. Arranjei essa solução rápida e eficaz. Por ele.

 

Se vai na rua e vê uma mulher de lenço…

Chama-me a atenção. No trabalho que tinha feito [na novela] tinha andado de lenço, de cabeça rapada. Mas as pessoas reconhecem-se muito na rua e há uma cumplicidade de segundos... Basta um sorriso, um olhar.

 

Na sala de espera, na clínica, as pessoas olhavam-na? Para elas era a Fernanda Serrano ou era mais uma mulher que estava a enfrentar o cancro da mama?

De repente, as pessoas perguntam-se o que é que a Fernanda Serranos está a fazer na sala de quimioterapia... Fui protegida. Quando a notícia ainda não era do domínio público, não fazia os tratamentos de quimioterapia na mesma sala que as outras pessoas. Mas claro que me cruzava com pessoas dentro da clínica. Há um discurso do qual não quero fazer parte, com perguntas, a comparar a situação…

 

Não queria ser olhada como uma coitadinha.

Ali, estamos todas a passar pelo menos. Mas cá fora, “coitada!”. Quero que me vejam como uma pessoa feliz, que ultrapassou um obstáculo.

 

Como é que acha que as pessoas a olham?

Não penso muito nisso. O feedback que tenho tido é das pessoas mais próximas, que falam com admiração e orgulho. “Se estivesse no teu lugar não sei se teria coragem para fazer o que tu fizeste”. Eu nem considero isto coragem. É só uma forma de lidar com o assunto. É uma defesa, e não coragem.

 

Como actriz, trabalha com os seus sentimentos. Agora, o mapa afectivo muda. Que papéis vai fazer numa próxima novela? A coitadinha cola-a à sua realidade. Uma megera não será muito convincente…

Vai apetecer-me mais fazer uma vilã ou uma bem disposta. Agora não me apetece fazer uma pessoa que sofre muito. Serão outros dispositivos, outros interruptores, que não conheço, que ainda não domino. Há coisas que agora me fazem chorar e que antes não faziam.

 

Chorou muito?

Muito, muito. Optava por chorar sozinha.

 

Não chorava à frente do seu marido ou dos seus pais?

Eu queria passar-lhes a mensagem que estava bem, que era forte. Guardava esses momentos para mim – podiam acontecer de forma descontrolada… Tive momentos, em que queria tanto chorar, tanto, tanto, tanto. “Tenho que chorar agora. Já. Muito”. Agarrava no meu carro e saía para chorar. Entretanto, quando chegava a um local onde podia chorar à vontade, já não conseguia chorar! E ria-me. Rio-me com as minhas dificuldades. Que é que estou aqui a fazer? Fazemos coisas tão estranhas… Isto é uma aprendizagem total, até de nós próprios.

 

Porque é que lhe é tão difícil chorar à frente de outros?

Quis sempre protegê-los. Quando amamos muito as pessoas, não queremos que sofram.

 

No fundo, continuava a tomar conta da situação e dos outros.

Pois. Na realidade estava a tomar conta.

 

E eles aceitaram?

Se se aperceberam, aceitaram. Eles não sabem disto.

 

Passou a ser uma referência. Houve mulheres que seguiram o caso da Kylie Minogue, houve pessoas que seguiram o caso da Fernanda Serrano. A dada altura, a Fernanda já não é a Fernanda, é a personagem pública que as pessoas seguem e cujo exemplo de coragem precisam de ter. Como é que fez este desdobramento?

Nem sei. Acho que foi uma decisão que tomei logo no início quando percebi que não ia conseguir manter a situação em privado. É uma opção pessoal, mas eu, não conseguindo omitir, também não ia andar a fugir, a esconder. Decidi tornar público. Procurei casos de figuras públicas – como a actriz brasileira Patrícia Pilar – e fiz aquilo que outros fizeram comigo. Também fui em busca. Quero que o meu caso não seja falado como uma coisa poucochinha, “coitada, teve isto”. Quero que sirva de exemplo como mais um caso feliz.

 

O meu ginecologista diz que o número de mulheres de 30 anos que foi fazer apalpação e pediu mamografias depois de o seu caso ter sido tornado público subiu exponencialmente.

É muito bom saber isso. Também tive esse feedback aquando do meu outro trabalho. Uma mulher foi ter comigo e disse-me que no dia em que fiz apalpação e descobri o nódulo no peito (na novela), ela fez e descobriu também! Quinze dias depois estava a ser operada. Disse-me isto no supermercado, e tinha o cabelo mais curto do que o meu. Eu estava grávida do meu primeiro filho. “Graças à Fernanda, graças ao seu trabalho, descobri o que tinha. Fui motivada pelo seu papel. Devo a minha vida àquele momento”. Foi tão forte… Chorei. Não devia tê-lo feito, que quem estava a passar pela situação era a outra pessoa, não eu. Se me dissessem isto agora… Foi bom ter tornado isto público, foi bom falar de tratamento e de cura. É bom saber que há uma luz ao fundo do túnel. Para que daqui a uns anos, a primeira conotação da palavra não seja aquela que eu lhe dei: cancro igual a morte.

 

 

Publicada originalmente na Revista Pública, em Novembro de 2008

 

 

 

 

Rui Nabeiro

14.05.15

Este homem demorou quarenta anos a construir um império. Rui Nabeiro é o patrão de Campo Maior, vila alentejana onde se entra e se sente o cheiro do café. A empresa que fundou em 61, a Delta, é líder de mercado e vende-se no mundo inteiro.

O senhor Rui, como todos lhe chamam, é rico, mas parece não se importar muito com o dinheiro. Cerca de 1600 pessoas trabalham para si; diz que as conhece, e à sua história, uma a uma. Começou a trabalhar ainda menino, empurrando carrinhos de café. Tem dois filhos, quatro netos, nasceu em 1931.   

  

Consegue explicar a razão do seu sucesso? Deve-se à sua capacidade de trabalho?

Penso que é a vertente número um. Homens que fizeram coisas muito grandes, muito grandes, tiveram uma atitude de vida diferente – um inconformismo. Mas ninguém fez nada sozinho. A forma como se vai ajuntando e amealhando amigos, que nos empurram, que, por acreditarem em nós, nos recomendam, é fundamental. O trabalho é a mola real de tudo, mas tem de ser ajudado. Vemos, nesta região, o cavador que trabalhava de sol a sol... Trabalhava muito, e não passava do trabalho.

 

O seu pai começou por trabalhar na terra e depois passou a motorista. O senhor, que poderia cumprir o mesmo destino, deu o salto para uma vida diferente.

O meu pai começou como cavador; depois teve a audácia, e a ajuda, na tropa, para tirar a carta de condução. Ficou de motorista de um lavrador e médico. Como tal, fez com que os filhos, nesse Alentejo dos anos 30, onde o analfabetismo era total, tirassem a quarta classe. O grande mérito do pai e da mãe foi o de se sacrificarem, trabalharem bastante para nos permitir que fôssemos à escola.

 

Os seus pais eram analfabetos?

A minha mãe era. O meu pai, na tropa, conseguiu fazer a segunda classe para poder tirar a carta. Lia umas coisas, sabia fazer a sua assinatura, e pouco mais.

 

Foi o contacto com esse médico que o fez perceber a importância da instrução?

Não há dúvida que tira partido dessa convivência. O meu pai trouxe algo da cultura que via nessa casa, a casa de uma pessoa formada que tinha uma lavoura razoável. O meu pai era uma pessoa querida, um trabalhador nato, e como tal, entrava na casa do patrão praticamente como se fosse na sua. De tal maneira que teve dificuldades em sair de lá. Sempre que queria sair, o patrão vinha buscá-lo, «Não te podes ir embora». Aconteceu duas, três, quatro vezes, e à última veio mesmo embora. Porque um irmão o desafiava a vir trabalhar com ele. Daí a nossa origem nos cafés.

 

Era o irmão Joaquim. Já lá vamos à história. Nessa altura fazia-se sentir uma estratificação social muito acentuada? As pessoas misturavam-se?

No Alentejo de um modo geral, não, na nossa terra, não mesmo. Os estratos sociais estavam completamente divididos. Caso curioso: em Campo Maior havia um café onde se juntavam à noite as pessoas; tinha a ala dos homens ricos, a ala dos remediados, (os pequenos e médios lavradores), e a ala da gente pobre, (que não eram trabalhadores do campo, mas o alfaiate, o barbeiro, o sapateiro). O trabalhador do campo não entrava sequer, tinha umas tabernas ao pé. Mais tarde, nos anos 70, um ou outro foi entrando.

 

O que é que recorda da escola primária?

A escola era bastante humilde, havia o masculino e o feminino, não havia cá mistas! O que posso recordar de útil é que fui mesmo útil na escola. Quando cheguei à terceira classe, apanhei um professor que tinha uma imaginação social desenvolvida e que quis fazer uma cantinazinha para os alunos mais carenciados. Fui um dos escolhidos para lhe dar apoio. Ia buscar a sopa à Santa Casa da Misericórdia. O professor escolhia-me para exemplificar muitas coisas. A escola deu-me uma certa vivacidade e um certo querer pela vida.

 

Disse que nunca teve tempo para ser criança. Não viveu a juventude nem a infância, sempre atento ao mundo dos adultos, e muito responsável.

É tal qual. Durante a instrução primária, a minha preocupação era ajudar os meus pais. Éramos quatro filhos, as carências eram bastantes. Por vezes os casais têm os seus desequilíbrios, e os desequilíbrios são quase sempre de ordem económica. Aos onze anos, apercebia-me de situações. No que pudesse laborar cá fora para levar para casa, laborava. Vocacionava a minha pequena ajuda para a minha mãe. Desde que a minha mãe não tivesse problemas, o casal também não os tinha. 

 

Entregava o dinheiro à sua mãe, era assim?

Casei em 53, em Outubro, e em Setembro ainda entreguei o ordenado à minha mãe. Tudo o que conseguia... Vendia peixe, fui pregoeiro, (de novidades, coisas que se arrendavam ou vendiam, anúncios da câmara). Quantas vezes fui substituir o pregoeiro porque aquilo dava uns escudos. E não era para gastar num doce qualquer, era para a mãe ficar menos carente.

 

Nesse tempo, os miúdos só comiam doces nas festas.

Comprar qualquer coisa doce, nunca fiz. Bolos, na nossa casa, só num dia de festa, num dia transcendente. Estava muito carente disso, e quando as pessoas têm carência, olham, olham com interesse... Lembro-me de entrar na casa de um senhor, «Dá um doce aí ao moço, que o moço está desejoso». E eu disse, «Não, não», mas até estava. Acontecia comigo e com a maior parte das pessoas.

 

Entregava o dinheiro à sua mãe e depois à sua mulher?

Sim, acontece ainda hoje. A minha mulher tem a sua mensalidade, gere a sua mensalidade. Quando vivia só do ordenado e não tinha o negócio, o ordenado ia para as mãos da minha mulher, ela é que o geria.

 

Quanto era o seu primeiro ordenado?

Nunca tive um ordenado fixo. Tive sempre a preocupação de levar quatro e não levar dois. O tio tinha já um negócio razoável na fronteira, e convidava-me sempre. Dava-me sempre em conformidade com as suas disponibilidades. Gostava muito de mim, sentia que eu tinha um futuro grande à frente.

 

O que é que o distinguia dos seus irmãos para que o seu tio Joaquim acreditasse em si?

Cada pessoa tem o seu estilo. Eu sou uma pessoa que acarinha. Não há nada melhor na vida que as pessoas saberem acarinhar. Aos meus tios, ele e a esposa, que faleceram há poucos anos, não os larguei nunca. Não saíram para lares, e quando ficaram gravemente doentes, criei um mini-hospital para que aquilo funcionasse em pleno. Com um médico em prestação de serviço e uma enfermagem que inventariei dentro da fábrica, «Tu fazes isto, tu fazes aquilo».

 

Havia uma disputa familiar entre o seu Tio Joaquim e o seu Tio João. Da relação tensa que viviam, surgiu o negócio do café.

O meu tio Joaquim foi um homem que aos 13 anos já estava fora da casa dos pais. E porquê? Porque queria para ele uma vida diferente, lá ser cavador, não. E como tínhamos o problema de Espanha aqui ao lado... Levava daqui algum café verde, (café cru para ser transformado), e viu lá uma torrefacção de cafés. Fez a sua própria fabriqueta, totalmente artesanal. O tio João era também uma pessoa de muito trabalho, um lutador. Até era funcionário do Estado.

 

Conta-se que um era contrabandista e outro lguarda-fiscal.

É verdade. Na guarda fiscal fazia o seu serviço, e a seguir ficava a fazer mais coisas. Até na arte da escovaria, que se usava para esfregar o chão, com aquelas escovas de piaçá. E vendo que o irmão estava a fazer alguma coisa, tentou igualar o irmão. Montou também uma fabriqueta de café e saiu da guarda fiscal.

 

Nunca se deram bem?

Mal não se davam. Mas as famílias, linha geral, têm sempre as suas coisas. Havia um pique... O Tio Joaquim tinha criado uma marca de café, a Cubana, e o Tio João respondeu com uma marca, a Cubano...

 

A avaliar por um pormenor desses, amigos também não eram... Quando começou aos 12 anos a empurrar os carrinhos de café, a fabriqueta já existia há muito?

A fabriqueta é mais ou menos do ano em que nasci. O seu desenvolvimento liga-se à Guerra de Espanha, no ano 36. A exportação de produtos para Espanha possibilitou um comércio diferente.

 

Falava com o seu tio das questões políticas da Guerra Civil de Espanha?

Sim. Esse meu tio tinha algo para contar, ele e outro tio, casado com uma irmã, o tio Silveira. Os dois levavam café para Espanha, foram presos pela guarda, levados para Madrid e dali para a frente de combate. A sua vida perigava, a família estava em sobressalto permanente. De maneira que passaram muitas privações até que os ministérios respectivos e o governo intercedessem para que os portugueses pudessem regressar. Regressaram a Lisboa, por via marítima. Eu era muito jovem, mas lembro-me, lembro.

 

Esteve de algum modo envolvido na guerra civil espanhola?

Não. Mas trabalhei bastante. Nestas coisas de guerra há sempre quem tire partido de ir e vir, ir e vir. Produtos alimentares, eram todos carentes em Espanha. Desde arroz, açúcar, massas, sabões, azeites.

 

Era isso que o senhor levava?

Arranjava para as pessoas levarem. Eu não era portador.

 

Foi portador algumas vezes?

Não. Não é porque não quisesse fazer aquilo, mas porque era muito jovem. A minha atitude era ajudar quem fosse comprar produtos a Elvas ou Estremoz para abastecer uma linha da frente, aqui na povoação, onde vinham os espanhóis; a autoridade tinha ordem para facilitar. Daí, cingi-me ao café, mais nada.

 

Nesse tempo, tinha a ambição de enriquecer?

Coisa que nunca me passou pela cabeça foi a ambição de enriquecer.

 

Nunca lhe passou pela cabeça que pudesse ter tanto dinheiro como tem hoje?

É que eu não tenho dinheiro, sabe? [riso] O dinheiro do homem do comércio, que cresce e faz coisas grandes, tem de estar sempre envolvido. Tive a ambição de fazer bastante, nunca hesitei em trabalhar.

 

Queria transcender a sua condição de homem do povo?

Quero continuar a situar-me na minha origem. Aconselho a toda a gente nunca esquecer a sua origem. Falo dela com muita satisfação, ou, pelo menos, com muito respeito. Pensei sempre, isso sim, em ter uma vida diferente, tanto eu como as pessoas que pudessem depender de mim. Pensei sempre no plural. A minha riqueza, aquela por que luto, é a que dá estabilidade.

 

Gosta de ser o patriarca da região?

Não faço alarde de sê-lo, mas qualquer ser humano gosta que seja conhecida a sua atitude.

 

Uma coisa é ser considerado pelo desenvolvimento que trouxe à região. Outra coisa é a estima desinteressada. As pessoas dependem de si.

Compreendo. Há inimigos nas terras, aqui também não deixará de haver. As pessoas reconhecem e são amigas porque estive uma vida ao serviço, não é por dar mais emprego, menos emprego. Emprego dou, porque quando chega para mim, chega para os outros. E tem muita gente que sabe que penso assim. O número de pessoas que trabalham na nossa empresa é de tal forma elevado que tudo o resto se movimentou à volta disto. Mesmo quando aparece uma pessoa descrente, aparecem dois que dizem «Estás enganado, é desta forma ou doutra».

 

Quer dizer que à partida não desconfia dos que vêm ter consigo?

Logicamente já tive situações de pensar que uma pessoa vem com determinada intenção... Mas digo-lhe uma coisa que já disse hoje numa sessão de trabalho: há que saber esperar. Aguardo pelo dia seguinte e tiro a prova dos nove. Até mesmo a pessoas a quem podia dizer «Vais para o lugar, vais para o emprego», digo «Vais, e depois se vê se deves continuar ou não».

 

Só o futuro pode tirar a prova dos nove?

Para mim é assim.

 

Imagine que à volta desta mesa está um adulador, que faz vénias sucessivas. E também alguém que diz as coisas que têm de ser ditas e não se curva. Em quem confiaria?

O bajulador, cá em casa, não entrava. O rigoroso, desde que esse rigor transporte seriedade, objectivade, é aquilo que eu também faço. Isso é trabalho. Prefiro comprar por mais um décimo a uma pessoa que é sensata do que a uma pessoa que hoje me traz algo doce a amanhã amargo.

 

Sabe com o que conta.

Claro. O bajulador... Às vezes fazemos cara de parvos, mas depois não passa! [riso]

 

Disse uma vez que esta estátua, erguida pelo povo, no centro de Campo Maior é mais significativa que a comenda que lhe foi entregue por Mário Soares.

A comenda, guardo-a em casa. E a estátua, está ali. Tenho de ser mais ponderado comigo mesmo e com as pessoas que me seguem. O fardo da responsabilidade fica sobre as costas.

 

Essa responsabilidade em relação ao povo traduz também uma forma de gratidão? Quando regressou a Portugal, depois de ter estado anos em Badajoz, foi recebido de forma carinhosa pelas pessoas da terra.

O povo testemunha todos os dias a minha gratidão. O que os preocupava com a minha não-presença era de tal forma grande, que foi mostrado pelo conjunto. Com aquela estátua, uma estátua em vida, é uma vida que está ali patenteada. Uma pessoa não pode desviar-se de uma conduta equilibrada, se bem que mesmo sem estátua a deva usar.

 

O que sentiu quando regressou?

São dias que não podem esquecer. Foi em Julho ou em Maio, se fizer um bocadinho de esforço sei o dia... As pessoas de Campo Maior, e não só, mostraram como gostam de nós. Isso dá, de facto, uma força interior que nos empurra, nos faz lutar cada vez mais. 

 

Quando foi para Badajoz havia acusações de dívidas de impostos de cerca de 500 mil contos. O que sente uma pessoa face a uma notícia deste tipo, quando tem um mandado?

Sente-se triste, com certeza. Sente-se traído, no nosso caso, sente-se traído. Tenta reagir. Procurar os meios da sua razão, que coloca. Ser forte, sensato, usar a filosofia do equilíbrio. Quando fui daqui, foi para vencer. Para demonstrar com tranquilidade como as coisas eram e não eram. Se estivesse aqui, teria menos hipóteses de me defender. E seria inactivo. Em Espanha, com a protecção de ter passado de um lado para o outro, trabalhei todos os dias, geri de longe a minha empresa, dei trabalho da mesma forma, crescemos da mesma forma. As coisas levaram o seu tempo, chegámos às conclusões finais. É isto que lhe posso dizer. São casos que nos tocam e nos sentem, mas ter falado nisto não prejudica nada.

 

Continua a trabalhar em média 18 horas por dia, diz que leva o dia a correr. O que faz um homem que tem este império trabalhar tanto? Acaba por não ter tempo para gozar aquilo que conquistou.

Cada pessoa goza à sua maneira. Uns gozam indo à praia, indo ao cinema, visitando o estrangeiro. Eu gozo na minha luta. Gozo olhando para a minha fábrica, para o meu pessoal. Trabalho as horas que disse, mas sempre juntei o útil ao agradável, o trabalho ao privilégio. Viajei muito na Europa, viajei muito pelo mundo. Procurando negócio, instalava-me bem.

 

Se não trabalhasse tanto, envelhecia mais aceleradamente?

Por acaso, preciso de descansar, e hei-de arranjar forma de descansar. Prometo-me, e prometo à minha mulher, que vamos fazer uma pausa ao meio da semana. Vemos exemplos de gente que pára, falta qualquer coisa, e a pessoa cai. Eu não caía. Parando, era parar com uma actividade directa, mas tinha tantas coisas em que ocupar o tempo, tantas coisas onde podia continuar a ser útil... Não me levantava às seis, levantava-me às nove, já era uma hora decente, que muita gente não usa...

 

A preguiça faz-lhe impressão?

Impressão e mal-estar. Reajo muito negativamente. Ás vezes é também uma doença, incontrolável, e quando é assim, não há nada a fazer. Se uma pessoa estiver doente, ligada à droga ou a qualquer outra coisa, dou a minha ajuda, dou trabalho. Nessa situação, incomoda-me sobremaneira. É um estilo de parasita, não é? Mas temos de aceitar, a sociedade é assim.

 

Em 1961 nasce a Delta. Tinha anos de trabalho com o seu tio, com o qual aprendeu os meandros do negócio. Em que momento percebeu que a sua vida era já diferente da dos seus pais, que tinha dinheiro?

Quando criámos a Delta, o meu pai já não existia. Trabalhava com os tios, o Tio Joaquim e o Tio Silveira. Eu queria uma coisa que crescesse, andasse, tivesse meios. O meu trabalho e as parcas economias que tinha, pu-las ao serviço e criei a empresa. Criei neste mesmo espaço onde estamos hoje um escritoriozinho, e lá ao fundo a fábrica. E não deixei de trabalhar na outra fábrica, de onde vinha o rendimento para mim e para a família. Levei muitos anos sem ser capaz de vender um quilo de café, muitos anos. As marcas estavam de tal forma fidelizadas no mercado que entrar outro qualquer era impossível. O que é que eu resolvi? Especializei-me nas misturas populares, a cevada moída, que se vendia muito no centro e no norte. Foi assim. 

 

Lembra-se do seu primeiro milhão?

Não. Ouço essas expressões, «O meu milhão, os meus milhões»; os meus estão agrupados na força da empresa. Uma coisa que uso é não ter dois bolsos. A empresa só tem um bolso. Portanto, nunca seleccionei um milhão nem meio milhão. Os nossos milhões estão envolvidos no nosso trabalho, nas nossas fábricas.

 

Nunca sentiu a felicidade de pensar que é rico, que pode fazer e comprar o que lhe apetecer?

Não. Nunca foi a minha preocupação, nem o é. Essa mensagem levo-a também a quem anda junto de mim, sobretudo aos filhos. A nossa preocupação é ter uma casa forte, boa, ter um património de amigos excelente, um património de clientes a quem somos dedicados e que são dedicados a nós.

 

De que é que se orgulha especialmente?

Não pensei ainda muito nisso. Mas tenho uma coisa que me dá muita satisfação: na rua de Campo Maior, e mesmo na rua de qualquer cidade do país, as pessoas conhecem-me e fazem referência, «É fulano». Isso dá-nos uma felicidade grande. É porque não passamos anónimos, é porque passamos com admiração e carinho.          

 

 

Publicado originalmente na revista Selecções do Reader’s Digest em 2002