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Anabela Mota Ribeiro

Nini Andrade Silva

25.06.15

O que é criar ambientes? Não é dispor cadeiras, mesas e sofás.

É criar fantasia. E, no caso de Nini Andrade Silva, é transformar a fantasia em realidade. A premiada designer madeirense explica como é que faz.

Início da tarde. Uma luz mágica incide sobre os olhos de Nini Andrade Silva e fá-los de um azul puro. O cabelo é muito louro, corte preciso. Cara redonda, angelical. Uma beleza diáfana que é quebrada pelo que diz. Um certo modo de falar, peculiar. Adoptando expressões antigas, usando o gerúndio. O sotaque madeirense, cerrado. O riso muito largo. A descontracção de quem já viveu imenso e não sucumbiu às intempéries. A morte dos pais. A doença dela (de que fala pouco, mas o suficiente). Estática, ela é uma. E outra, ágil, vitalista, criativa, quando se expressa.

Chega pontualíssima, confere a hora no relógio, pousa a mala Prada sobre uma cadeira, mede a luz para as fotografias. Veste uma roupa preta com que anda sempre. “Os meus pijaminhas”. Para não perder tempo nos aeroportos, enrola três camisolas e duas calças iguais num saco de mão, e embarca. E para ter a certeza de que não lhe colocam objectos indesejados na mala… Depois, mistura os pijaminhas com uns sapatos de salto alto para ir jantar à embaixada, ou com os chinelos de meter o dedo para andar entre as pessoas da rua.

Com uns e outros, está sempre bem.

Com ela, nada é demasiado sério. Porque sabe ser grande e ser simples.

O que é que ela faz? Cria ambientes. É designer de interiores. Mais do que tudo, faz a arquitectura de interiores de hotéis. Something big. Positiva. “Às vezes estou fazendo um trabalho e não sei como é que vai acabar, mas sei que vai acabar bem”. Lidera uma equipa de 40 pessoas. Vive numa casa minimalista na Madeira. (Verdadeiramente vive no mundo todo). O seu estilo é minimal, ou ninimalista, como já lhe chamaram.

O que ela faz, não é para ter aquilo. É para conseguir fazer aquilo.

Tem 48 anos.

Em Novembro do ano passado ganhou prémios europeus pelo seu hotel The Vine, na Madeira.

Sim, Nini Andrade Silva está entre os melhores do mundo. E sem saber explicar porquê ela sente que já veio com o mundo inteiro dentro dela.

 

 

 

 

 

Como é a sua casa?

A minha casa já não existe. A minha casa, na realidade, era a casa dos meus pais. Os meus pais já morreram, a casa já não existe no sítio onde existia. Era uma casa fantástica, com um jardim enorme e uma escola. Os meus pais eram professores e tínhamos sempre muitas crianças em casa. Oitenta crianças, todos os dias. Eu não andei nessa escola. Fui para um colégio porque era muito acelerada.

 

Como eram os espaços dessa casa? Para depois perceber como é que cria espaços.

Os meus espaços não têm nada a ver com essa casa. As coisas que faço têm a ver com a vivência que tive no mundo inteiro. Era uma casa típica madeirense, com “tapa sóis”, portadas em reguazinhas de madeira verde. Grande, com vários quartos, salas.

 

Do seu quarto, por exemplo, o que é que fica?

Fica uma grande parede. Colava tudo na parede: os bilhetes do autocarro, as passagens do avião, os desenhos que fazia. E também podíamos fazer desenhos na parede, que a mãe deixava.

 

Começou a viajar cedo?

Vivíamos numa ilha, tínhamos de viajar. Vinha muito ao continente e ia às Canárias. Aos 14, 15 anos comecei a ir para os Estados Unidos. Saí do aeroporto JFK, olhei para a rua e não quis acreditar no que estava vendo. Era como entrar num filme!, aqueles prédios, os Cadillac. Hoje em dia, depois de ter viajado para a Ásia, o resto do mundo é muito pequeno. O mundo torna-se pequeno depois de ir à China.

 

O que é que foi fazer com 14 anos aos Estados Unidos?

Fui ver. Tinha uns grandes amigos, a família Kiekeben, que tinha uma fábrica de bordados e needle point. Tinham negócios em Nova Iorque e na Florida e trabalhavam com os melhores designers do mundo, que vinham à Madeira fazer os seus tapetes. Um designer nova-iorquino, o David Easton, vinha de Concorde até Paris, e depois Lisboa e Funchal, só para escolher uma cor. Vendiam para a Ralph Lauren, Estée Lauder, Casa Branca – top. Esta família foi muito importante para mim: abriu-me as portas para tudo o que era Decoração.

 

Eram amigos da sua família?

Os meus pais tinham sido professores dos filhos. Eu namorei um dos filhos durante muitos anos. Era uma família alemã. O que aprendi com eles? Primeiro a ser grande e ser simples. Mas isso já tinha aprendido em casa. Influenciaram-me muito devido a terem o mundo inteiro dentro deles. Levavam-me aos sítios. Esta minha coisa de ir para a China também é do senhor Kiekeben, que sempre disse que o mundo estava a mudar e que tinha de levar o bordado para fora da Madeira. Fui influenciada por várias pessoas que passaram na minha vida; uma delas foi ele.

 

Quem foram as grandes referências na sua vida?

Os meus pais, os meus irmãos. Se pudesse escolher, se voltasse outra vez ao mundo, queria voltar para a mesma casa e começar tudo de novo. Os meus pais eram fantásticos, fantásticos. Eram umas pessoas que nos deixavam ser “nós”. A mãe sempre nos disse que, fosse como fosse, tínhamos de ser nós próprios. Nunca me obrigou a fazer nada. Fisicamente era igual a mim. Tenho um irmão e uma irmã, sou a mais nova. A minha irmã foi uma excelente aluna, já sabia ler aos cinco anos, acabou o curso muito cedo. Era tudo muito correcto com ela. Trabalhou no Turismo durante muitos anos. Trabalha comigo actualmente; é quem me vê os e-mails, é quem trata da minha vida toda.  

 

Voltemos à casa da sua infância. Como eram os ambientes criados pela sua mãe? A escolha dos móveis, das cores.

Sabe, numa casa, não é o que se vê, é o que se sente. Na nossa casa sentiam-se coisas. Não era tanto se estava verde ou roxa. Era uma casa bonita. Cantávamos juntos, fazíamos peças de teatro. Do que sinto falta da casa é do que sentia dentro dela.

 

Consegue lembrar-se mais do que sentia do que dos móveis?

Tínhamos uns móveis clássicos que havia antigamente na Madeira, e que as pessoas ainda têm misturados com coisas modernas. Há sempre quem guarde o móvel da família. O nosso quarto tinha umas cortinas com umas flores laranja pequeninas e um tapete azul no chão. Tinha a cama, e por cima umas prateleiras de uma ponta à outra onde tínhamos livros e bonecos. A minha mãe mandou o mestre reforçar a prateleira não sei quantas vezes para a prateleira não cair em cima de nós.

 

O apelido Andrade Silva é de quem?

Andrade da mãe e Silva do pai. A família do meu pai, Teixeira de Aguiar, era muito, muito conhecida na Madeira. Éramos descendentes do Tristão Vaz Teixeira, que é da zona do Machico. Da parte da minha mãe, éramos da zona da Ribeira Brava. A mãe achou que tínhamos de fazer uma coisa que nascesse com aquela família, e não ficar presos a nome nenhum.

 

Pelo facto de a família do seu pai ser muito conhecida, sentiu que tinha que corresponder às expectativas?

Fui uma artista desde miúda. As pessoas sempre me deram as desculpas… Sempre fiz o que quis. Nunca liguei a nada disso, não. Às vezes as minhas amigas não podiam fazer coisas e eu fazia, porque era uma artista.

 

Havia uma diferença, na escala social, entre a família da sua mãe e a do seu pai? Isso marca as famílias com quem se dão, com quem passam férias, as casas que frequentam

Não, eram do mesmo círculo. Mas amigos, tenho de todos os níveis sociais. Sempre fui igual para todas as pessoas, talvez por isso tenha grande popularidade na Madeira. A máquina é muito grande e pode parar por causa de um parafuso pequeno...  

 

Mas, aos 20 anos, namorava com um igual, de uma família alemã, e não com o marceneiro.

Percebo o que quer dizer. Às vezes, há coisas que faltam, não pelo facto de ser marceneiro, mas pelo facto de não falarem a mesma língua. A pessoa acaba por se juntar com as pessoas que falam a mesma língua.

 

Queria ser artista, já era artista. Isso era só porque desenhava e pintava?

Não. Eu queria ter uma profissão em que pudesse andar de um lado para o outro, viajar. Queria ser artista ou do circo. O circo era o máximo porque podia andar no ar. E gostava de andar no meio de pessoas e ao mesmo tempo só. Queria ser hospedeira, artista ou do circo. E no fim das contas, consegui essas três coisas. Ando sempre de um lado para o outro a trabalhar. Quanto ao circo, era um mundo onde aconteciam coisas que não eram realidade; na minha vida acontecem coisas que não são realidade, porque eu as crio. E artista é o que sou, também.

 

Como é que chegou lá?

Quando uma pessoa quer ser uma coisa e trabalha para isso, consegue. Tem é de lutar. Enquanto muitos dos meus amigos iam para os cafés, sempre me dediquei ao trabalho. Sempre confiei em mim, nunca tive falta de confiança em mim.

 

Isso tem que ver com a educação que teve em casa, com o reforço, sobretudo, da sua mãe?

Tem. O meu pai era um artista; herdei a parte artística do meu pai. A minha mãe era mais séria, mas foi o conjunto dos dois que fez a pessoa que sou. O meu pai também trabalhava bastante. Dava explicações de Matemática e mais tarde foi trabalhar para um banco. A mãe é que trabalhou sempre como professora e, quando se reformou, deu aulas na Academia de Línguas e português para estrangeiros.

 

Isso porque era preciso ganhar dinheiro? O dinheiro era um problema?

O dinheiro é sempre um problema, não é? Há muitos anos, houve na Madeira um banco que foi à falência, e os meus avós, que tinham o dinheiro nesse banco, ficaram sem nada, e tiveram de começar de novo. Penso que os donos desse banco tinham algum engenho, porque as pessoas que perderam dinheiro receberam uma saca de açúcar em vez do dinheiro. É um grande ensinamento.

 

A história funciona ao mesmo tempo como um fantasma? “E se eu ficar sem nada?”

Se o pior acontecesse e tivesse de começar de novo, começava outra coisa de novo. Sei fazer tantas coisas…, isso não me preocupa nada, nada.

 

O que é que sabe fazer bem?

O que sei fazer bem, mesmo, é o que faço. Mas sei fazer outras coisas. Gostava de incentivar pessoas, os jovens. Às vezes vou falar a uma universidade e ficam entusiasmados. As pessoas têm de acreditar em si – é o que falta. É a única maneira de seguir em frente e serem boas naquilo que fazem. Nem que seja a vender tremoços, que é uma coisa que temos muito na Madeira. Isso, eu sabia: o que fosse, tinha de fazer bem. Quando era mais pequena era engraçada…

 

O que é que quer dizer, que era bonita?

Sim, uma menina bonita. Chegava aos sítios e as pessoas diziam: “Oh Nini, está tão gira”… Enervava-me, porque parecia que chegava só por ser bonita. Pensava: “Um dia ainda vão chegar ao meu pé e dar-me valor por aquilo que faço. Não por olhar para mim, mas pelo que faço”. Sempre tive essa mania na cabeça.

 

Porque é que se comove ao falar disso?

Porque acho que consegui [sorriso].

 

Houve momentos em que ser loira de olhos azuis, tão engraçada…

Pode ser mais difícil.

 

Porquê? É difícil lidar com a cobiça sexual dos homens, com a desconfiança das mulheres?

Antigamente as pessoas achavam que as pessoas assim mais loiras não eram capazes de fazer coisas como as outras. Ou talvez fosse da minha cabeça… Quando tinha 15, 16 anos não perguntavam: “O que fez, o que está fazendo?”. Hoje em dia não, felizmente, e eu tenho sempre histórias para contar. Há tempos estava numa embaixada na Índia, cheguei às 7 e tal e à 1 da manhã ainda estava lá, falando, falando. Estava há três meses no Oriente e aproveitei para falar português, que já não falava há muito tempo. A embaixatriz disse: “Nini, estamos a adorar. Devia escrever um livro”.

 

Queria ser notada pelas histórias que contava, pelo que fazia, pelo propósito que tinha, e não pelos seus olhos azuis.

O que faço é que tem valor.

 

Mas quando se é adolescente, e os rapazes se aproximam, não é pela beleza interior.

Pois é. Mas nunca me escondi. Sempre fui muito social. Era uma Maria Rapaz, adorava fazer tudo o que os rapazes faziam. Ficava louca quando me metiam em casa a fazer de mulher do cowboy e a assar batatas no meio de uma fogueirinha em vez de andar aos tiros com eles.

 

Nunca sonhou com o destino da mulher burguesa, bem casada, com filhos loiros e de olhos azuis?

Não, Deus me livre! Um dia perguntei à minha avó se as pessoas eram obrigadas a casar, e a minha avó disse que sim. “Tem a certeza?, ai, ai, ai”. Sempre quis ter a minha vida, fazer o meu trabalho.

 

Consegue perceber esse horror à vida matrimonial e esse desejo de aventura? Por acaso, no seu trabalho, faz mais hotéis do que casas.

Talvez seja o meu espírito de querer ir para ali e para aqui. Se fosse ligada a uma família tinha de lhe dar atenção.

 

É da sua natureza insular o desejo de partir?

Talvez. Aquele mar todo que temos à frente, a pessoa tem necessidade de descobrir o que é que está por trás dele.

 

Com que idade começou a falar?

A minha irmã aos cinco meses falava; disse “água”. Eu tinha mais de um ano, e a única coisa que dizia era “nini”. Por isso é que fiquei a Nini. Água, pai, mãe, era tudo “nini”.

 

Quando era pequena, queria ser como a sua irmã?

Não, não, queria ser como eu. Se quisesse ser como ela tinha sido, que eu fui o que quis.

 

E havia livros e filmes e conversas que alimentavam essa vida? Onde quero chegar é à razão por que cria estes ambientes e não outros. Dos enredos de que se alimentou e alimenta.

Não foi um livro nem um filme, porque toda a vida fiquei sentada a desenhar as minhas coisas. Eu vim com o mundo inteiro dentro de mim, não sei explicar o que é, mas é verdade. Isto veio comigo, agradeço sempre a Deus. Claro que uma pessoa vai na rua e vê coisas, e essas coisas vão entrando na cabeça, e às tantas junta tudo. Com os hotéis, prefiro ir às raízes, África, Amazónia, ver coisas da natureza para daí fazer coisas novas. Senão andamos sempre a olhar uns para os outros e passa a ser só uma coisinha diferente do que o outro já fez.

 

Formou-se no IADE, em Lisboa. Foi uma decisão fácil?

Quando vim tirar o meu curso, as pessoas diziam: “Design não tem interesse nenhum, nunca vai conseguir ganhar dinheiro nenhum. Arquitectura, sim”. A minha mãe chamou-me e disse: “O que é que queres ser?”, “Designer”, “Então é isso que vais ser”.

 

O seu desejo era criar ambientes onde as pessoas se sentissem bem?

Criar ambientes, criar fantasia, transformar a fantasia em realidade. Não pôr só cadeiras, mesas e sofás. Os nossos sítios têm sempre alguma magia, alguma história, alguma coisa no ar.

 

São sítios onde as pessoas se possam sentir bem, onde possam viver uma grande história, onde tenham vontade de estar?

Onde eu tenho vontade de estar. Normalmente misturo coisas. Se entrar aqui uma pessoa que gosta de um ambiente clássico, sente-se bem. Se for uma pessoa que gosta de um ambiente moderno, sente-se bem também.

 

O que é que acharia mais clássico no espaço onde estamos, o seu escritório em Lisboa?

As cortinas de veludo, que dão um ar mais solene. Modernos, tem a mesa e os espelhos.

 

Quando entrei aqui, percebi que esta é a mesma pessoa que fez o Hotel Aquapura no Douro. Sobretudo por causa da luz, pelo uso parcimonioso da cor, pelo ambiente criado.

Os meus trabalhos têm sempre alguma coisa a ver uns com os outros, mesmo que sejam diferentes.

 

Qual é a sua marca, o que é que há em comum?

É o que se sente quando se entra dentro das coisas. Dou uma alma aos sítios. Disse que entrou aqui e sentiu o Aquapura; se olhar bem à volta, o que é que isto tem do Aquapura? O Aquapura não tem esta cor, não tem ocre.

 

Há em ambos os espaços uma imensa zona de penumbra.

Isso é ponto obrigatório. É uma maneira de as pessoas terem um sítio para elas próprias serem quem são. Não gosto de mostrar tudo de uma vez. Não dá espaço para as pessoas sentirem coisas.

 

Não revela tudo de uma vez, e tem de haver espaço para o mistério e para a intimidade. Por isso é que aposta nesta luz ténue?

Sim. Talvez seja influência da Ásia. Há muitos anos que vou e adoro, e a luz asiática é esta luz.

 

No seu percurso de formação passou por Nova Iorque, Londres, Paris, África do Sul e Dinamarca. Não podem ser mais diferentes.

Não.

 

Fale-me do que aprendeu em cada um dos sítios.

Na África do Sul, pintura e murais, e tudo o que era marmoreado. Nessa altura estava muito em moda pintar as paredes. Em Nova Iorque, foram os designers e a relação com a arquitectura. Na Dinamarca, tudo o que se relaciona com arranjos florais. Na Dinamarca estive dois meses, na África do Sul seis, e aos Estados Unidos, durante 20 anos, ia todos os anos.

 

Arranjos florais?

Os primeiros arranjos de flores, quem faz, sou eu. Às vezes vêm as floristas dizer que assim não dá, e acabo sempre dizendo como é. Porque sei. A seguir as pessoas têm mais respeito. É bom mandar, mas é preciso saber por que se está mandando. Uma flor que não tenha nada a ver com este espaço, estraga tudo. Gosto muito de verdes.

 

E de pedras? São uma constante. Nos seus espaços é notória uma forte presença dos elementos da natureza.

A Madeira está rodeada de pedras. Em criança, com os meus pais, ajudávamos as pessoas menos favorecidas, fazíamos carteiras, pintávamos coisas. Os miúdos menos favorecidos eram conhecidos pelos “garotos do calhau”. Quando comecei a pintar os calhaus foi para ajudar orfanatos. Daí a minha loucura por pedras e a minha colecção chamar-se “A Garota do Calhau”. (Quando me portava mal a minha mãe dizia: “Pareces uma garota do calhau”. [risos] Era uma maneira de dizer que uma pessoa não devia fazer certas coisas).  

 

Simbolicamente, o que é que as pedras querem dizer?

Querem dizer a minha ilha, a minha terra, eu.

 

As suas telas são pedras, pedras, pedras. Continua a pintar?

Continuo. Adoro pintar. Quando estou pintando, estou fora deste mundo, é como se não estivesse aqui, as horas passam. Uma vez, no Natal, fiquei em casa, ninguém deu por mim, pintei de noite e de dia.

 

O que é que aconteceu nesse Natal para se isolar dessa maneira?

Nada. Deixe-me ver…

 

Os seus pais ainda eram vivos?

É isso que quero ver... A minha mãe tinha morrido três anos antes, três anos depois o meu pai morreu. Foi nesse ano, agora é que me estou a lembrar. Nem me queria lembrar que o Natal existia. O Natal é a família, não é?

 

Já era a Nini Andrade Silva quando eles morreram?

Não como agora, agora sou muito mais conhecida. Para eles já era!, eles sabiam que ia chegar onde cheguei. A minha mãe fez nove anos que morreu e o meu pai fez seis.

 

Chegou a criar espaços para eles, a casa deles?

Os meus pais tinham a casa deles e gostavam de como era. Só nas festas, no Natal, na Páscoa, é que fazia os meus arranjos e as minhas decorações. A nossa casa é a nossa casa, não é preciso nada disso.

 

Eles sempre a levaram a sério, mesmo quando estava a desenhar a Festa das Flores na Madeira ou os trajes para o Carnaval? Quando não tinha a dimensão internacional que tem hoje…

Sempre me levaram a sério, de certeza absoluta. Para eles eu era grande. Até mesmo se não tivesse feito metade do que fiz.

 

Durante muitos anos a sua vida foi viver na Madeira e viajar.

Com que dinheiro, se posso perguntar?

Pode. Sempre fiz dinheiro. Fazia ténis, cestas de vime e t-shirts iguais, pintava tudo. Tinha sempre a casa cheia de tintas, de frascos pintadinhos. Estava sempre a inventar coisas novas para vender.

 

O que é que teve de sacrificar na sua vida para chegar onde chegou?

Sacrificar, não sacrifiquei, porque gosto do que faço. Mas às vezes posso estar sentada num sítio e vejo passar uma família com crianças, todos a rir… fico olhando e pensando. Um dia, no aeroporto, ia para o Brasil fazer um hotel, e ao meu lado estavam umas crianças a correr, a brincar. Pensei: “Passo a vida inteira no mundo, a viajar, e aqui há uma alegria, esta gente, é bonito, também. Será que teria sido mais feliz se tivesse feito uma coisa daquelas?” Nesse dia pensei, mas depois, como a minha cabeça foi feita para isto, aquele programa já não cabe dentro deste.

 

Não pode ser mãe. Foi uma coisa muito dolorosa para si?

Não, não posso. Se tivesse pensado que queria ter uma família teria sido o fim do mundo. É engraçado, a minha mãe até chegou a dizer: “Penso que Deus escolheu por ti, assim foi mais fácil”.

 

Quando é que soube isso?

Tinha 24 anos. Fui fazer exames a Londres, fui operada duas vezes, o médico disse: “Tem dois anos se quiser ter filhos”. Até tinha namorado, podia ter tido, mas não se faz filhos só porque se tem dois anos para ter filhos. Fiquei pior. Tirei o útero. Mas ajudo crianças, tenho afilhados de orfanatos.

 

A ideia de um casamento feliz, teve de sacrificar?

Vivo com o meu namorado, estamos bem. Não tive de sacrificar isso. A primeira coisa que vejo quando alguém tem sucesso, a primeira coisa que me vem à cabeça, é: “O que esta pessoa trabalhou!”. Eu sei o que é. Em duas semanas já fui a Londres duas vezes, fui ao Funchal, vim aqui [Lisboa], fui a Barcelona, vou para Los Angeles. Cansa.

 

Já teve uma tromboflebite, o que limita as suas viagens de avião. Às vezes, parece que o corpo não a ajuda.

Pois. A tromboflebite: dessa vez fiz loucuras. Fui da China para a Tailândia, da Tailândia para a Índia, daí para o Dubai, Frankfurt, Lisboa, Rio de Janeiro, em menos de um mês. Fiz o que nem um piloto faz. Nessa altura eu achava que nada me acontecia. Depois de me acontecer, fiquei seis meses sem poder viajar.

 

Teve medo de morrer?

Um dia, tive. Não tem muito tempo, tem uns quatro ou cinco anos. Eu disse: “Não posso ficar cá, tenho de ir para Londres”. O médico disse: “Se se mexer, morre”. E aí percebi o que era morrer. Vi tudo negro, negro, negro, e não podia pedir ajuda a ninguém. Tinha de estar totalmente em repouso, não podia fazer nada. Se um coágulo subir aos pulmões a pessoa morre automaticamente – basta mexer-se. Foi muito difícil, mas o ser humano esquece num instante.

 

Nos seus projectos, é marca essencial a ligação aos sítios do mundo que visitou, as peças únicas que vai trazendo, a sua história. O étnico tem uma presença fundamental nos seus ambientes?

Tem, tem. Por exemplo, no Aquapura têm peças com muito valor, peças que fui recolhendo pelo mundo inteiro. Têm uns painéis lindíssimos na sala dos pequenos-almoços, que são do Índia, e que fui buscar com um guru.

 

O que é que a fez dar o salto? Nos últimos anos temos assistido a um crescendo da sua carreira. Há 10 anos não era assim.

Não. Mas é o evoluir. Não tenho um trabalho, tenho um projecto de vida. Quando se tem um projecto, as coisas vão surgindo. Estão a surgir na altura em que era suposto surgirem. E ainda vão surgir mais.

 

Qual foi o detonador?

Há várias coisas que são importantes. Entrámos para o livro do Andrew Martin [autor do guia The World Leading Designers] e as pessoas começaram a conhecer-nos.

 

Ele já a referenciou algumas vezes.

A primeira vez tem dez anos. Outra coisa muito importante para a hotelaria: o Aquapura. Foi um projecto reconhecido no mundo inteiro. O abrir do ateliê em Lisboa foi muito importante também; as capas de revista em tantos lados do mundo. Hong Kong, Coreia, China. Wallpaper, Financial Times. Começámos a ganhar prémios. Este ano sou a representante da Europa na América.

 

Porquê hotéis, mais do que tudo?

Os hotéis, de facto, são um lugar onde a pessoa pode criar. São coisas grandes e sempre gostei de fazer coisas grandes; não gosto de fazer coisas pequeninas.

 

E é preciso atender menos à personalidade de quem o habita.

Uma casa é para aquela família, é em função daquela pessoa. Um hotel é para várias pessoas, mas cada promotor sabe qual é o género de pessoas a que quer chegar. As pessoas que vão para o Fontana Park [Lisboa] não são as pessoas que vão para o Sheraton. Um hotel de design é diferente dos outros, não é para qualquer um. É para qualquer idade, mas não é para qualquer cabeça.

 

Tem a ambição de fazer hotéis para qualquer cabeça? Ou seja, uma coisa para pessoas e situações de todos os dias. O normal.

Gosto de fazer coisas que não sejam normais, porque aí é que está a imaginação, aí é que está a criação. Nós fazemos [o normal], temos várias cadeias de hotéis; mas onde queremos bater mesmo é no diferente.

 

Onde ganha prémios é no diferente.

Sim. E cada vez mais há mercado para isso. Vi isso em Barcelona, [entrega de prémios do World Architecture Festival, em Novembro], onde ficámos na short list. Tudo o que estava lá era bom, e estar no meio de tudo o que é bom é uma coisa grande. Entre os hotéis que chegaram à final estavam o The Vine, o Fasano do Uruguai, o Fasano do Brasil.

 

Existe alguma relação entre os espaços que cria e o seu estado emocional, a fase de vida em que está?

Não, sou profissional. Há coisas que influenciam. Por exemplo, se for à Ásia ou ao Brasil, apanho coisas novas. Mas o The Vine só tem a ver com a Madeira. Os lavatórios foram desenhados parecendo um carro de cesto, as banheiras como se fossem os carros de bois, o pavimento é como se fossem as praias, as torneiras são como as cascatas. As raízes antigas da Madeira com o design contemporâneo. Aquele hotel é bom em qualquer lado do mundo, mas só faz sentido na Madeira. E é disso que gosto: não chegar à Tailândia e parecer que estou na América.

 

Criar uma sensação de familiaridade?

Sim, acho que é isso.

 

É desprendida com os objectos?

Os meus? Sou, completamente. Mas há coisas pequeninas de que não me livro. Por exemplo, o meu anel da pedra. Foi o Aníbal, que trabalha comigo na Madeira, que o fez com uma pedra do pavimento do The Vine. Coisas pequeninas da minha mãe que ela usava no hospital. Foi o que guardei dela, não queria mais nada.

 

Podemos apresentá-la assim: Nini Andrade Silva, designer de interiores, uma pessoa que gosta de criar ambientes onde outros se sintam em casa.

Exactamente.

 

 

Publicado originalmente no Público.

Paulo Rangel

16.06.15

Encontrámo-nos numa brasserie de um hotel de Lisboa. Comemos o mesmo risotto com vieiras. Ele pagou, insistiu em pagar, afiançou que existe uma verba do Parlamento Europeu para isso. Começámos a gravar depois da sobremesa, e nem por isso nos livrámos do tinir dos talheres.

Começámos por falar de viagens. Era preciso entreter com qualquer coisa, vero?, tendo eu dito que não queria falar antes da entrevista das coisas de que queria falar na entrevista. Viagens é sempre um bom tópico.

Falou-me das viagens em família, de carro. Das viagens que fez adolescente, versão mochila às costas. Alguém imagina Paulo Rangel num inter-rail, de mochila às costas?

Falámos dos autores de que gostamos. Os autores alemães dele, Weimar imersa em nevoeiro. Alguém imagina Paulo Rangel mergulhado na leitura de Goethe? Esta é de resposta fácil.

Acabámos a entrevista e Paulo Rangel ficou a remoer no que tinha debitado para o gravador. Confessou que ia ficar a pensar no que não devia ter dito.

A entrevista oscila entre um registo confessional e a picardia política. Estava a dias de fazer 43 anos. Aqui fica o retrato de um homem que há um ano disputou as eleições para a presidência do seu partido.

 

Ouvi falar de si a primeira vez há oito anos. Em Serralves, Gomes Canotilho dirigiu-lhe um rasgado elogio: disse que era um dos mais brilhantes alunos que tinha tido. Não sei se tem memória disto...

Tenho uma ideia.

 

O que quero saber é se ficou embevecido porque Gomes Canotilho, em público, disse uma coisa assim.

Já mo disse várias vezes, em privado e em público. Há algum exagero da parte dele, e alguma amizade pessoal, que temos. O Dr. Canotilho tem uma grande capacidade de reconhecer o valor e o mérito dos outros. Isso no fundo diz mais dele do que de mim.

 

Nessa altura, os portugueses não sabiam quem era Paulo Rangel. Isto serve de intróito para lhe perguntar desde quando é que o convenceram de que era muito bom. Que tinha, como se costuma dizer aos jovens, um belo futuro à sua frente.

Em casa nunca me disseram. Era a lógica do “não fazes mais do que a tua obrigação”. Fui muito bom aluno na primária, também no secundário e na faculdade. Talvez no secundário, numa instituição que frequentei….

 

… o Colégio dos Carvalhos.

Era aquilo a que se chama uma instituição total, como na tropa, extremamente carismática. Estivesse como aluno externo. Aí sim, encontrei dois ou três professores que talvez tenham alimentado essa ideia. Se falássemos na questão da política, na primária todos os meus colegas achavam que ia ser político.

 

Por causa dos seus dotes retóricos?

Também, mas não só. Era obcecado com política. Tinha seis anos quando se deu o 25 de Abril, mas já sabia quem era o presidente da República, o presidente do Conselho. E depois vivi aqueles anos agitadíssimos do PREC intensamente. Os meus pais eram marcelistas, não eram salazaristas. Achavam sempre que o Marcelo Caetano foi injustiçado. Pertenciam a uma ala liberal soft. Depois foram Sá Carneiristas convictos. A quinta dos meus avós, onde o meu pai nasceu, foi sede do PPD.

 

Era uma casa muito politizada, em suma.

Tive pintado na minha casa, durante mais de seis meses: “Aqui mora o Rangel fascista”. O meu pai trabalhou em seguros a vida inteira. Lembro-me de ir a pé para o colégio, de freirinhas, em Gaia, que era uma zona quase rural, bastante agradável, sozinho, eram dez minutos, toda a gente se conhecia; recordo-me de ver uns operários que trabalhavam numa oficina de automóveis, a oficina do Zé Lopes; os operários, que levavam a marmita e comiam cá fora, diziam: “Ali vai o Rangelzinho fascista”. Cheguei a saber a composição de todos os governos provisórios e constitucionais, inteiros, como quem sabe a equipa de futebol.

 

Isso era a conversa com o seu pai?

Resultava muito da conversa com o meu pai, e do meu interesse natural, espontâneo. Quando começo a minha vida como político, para os meus colegas da primária não é surpresa nenhuma. Para mim era uma evidência eterna. Sabia que ia acontecer, só não sabia quando. Era uma vocação. Tem a ver com um lado um bocado místico, também.

 

Um lado místico?

A pessoa acha que tem uma vocação. É um chamamento que não é racional.

 

Era a vocação do “quero mudar o mundo, quero corrigir injustiças, quero ser o primeiro-ministro”?

Nessa altura não queria ser nada em concreto. Hoje também não. Como na Tabacaria: “Não quero ser nada”.

 

Mas tinha em si “todos os sonhos do mundo”?

Tive alguns. E mantenho. Não tenho projectos, mas tenho sonhos. Havia uma paixão pelos assuntos políticos que não era normal para uma criança. Mesmo política internacional. Lembro-me do Cambodja, em 1979, dos acordos de paz de Camp David. Das eleições Gerald Ford/[Jimmy] Carter, em 1976. Do James Callaghan, na Inglaterra, do Olof Palme. Lembro-me disto como se fosse hoje.

 

Em 1976 tinha oito anos. Quem eram os seus amigos? Isso não granjeia grande popularidade junto dos amigos da mesma idade.

Tinha muitos amigos.

 

Com quem é que se sentava no sofá a ver as eleições?

Nessa altura não se via [televisão] dessa maneira. Nenhum se interessava por isto, é verdade, mas depois tinha as brincadeiras de qualquer criança. Sempre fui muito social, continuo a ser. Não faço a minha vida pessoal com as pessoas com quem vivo na política. Como não faço com quem trabalho no escritório, ou com colegas com quem dou aulas na Católica.

 

Eram duas vidas. Uma era a de uma criança precocemente adolescida.

Não diria isso.

 

Está já a defender-se porque as pessoas dizem que envelheceu cedo demais…

Nunca ouvi ninguém dizer isso.

 

É por ser sério e compenetrado?

Nunca ninguém me deu menos idade do que a que tinha, mesmo que não pareça ter mais. Hoje pareço ter mais porque estou muito forte. Mas quando era mais magro podia até parecer a idade que tinha, mas nunca ninguém ma dava. Tem a ver com um discurso demasiado articulado que dá um ar pesado.

 

Quando as pessoas dizem que envelheceu cedo demais, ou que é uma criança crescida, isso não tem que ver com o seu aspecto físico; tem a ver com a sua postura.

Na verdade, eu era até muito infantil em muita coisa. A paixão pela política não era mais do que a paixão que uma criança tem por futebol. Ninguém estranha que uma pessoa que se dedicou ao ténis conheça todos os do ténis.

 

Quem é que era a sua plateia nessa altura? Pais, avós.

Com os pais: nunca senti que sentissem [especial orgulho]. Há pessoas que me dizem que sentiam, ou que sentem. Mas isso nunca me foi dado assim. Temos uma relação óptima.

 

Então quem era a sua plateia? Todos precisamos de plateia.

Fazia muitos discursos sozinho, desses políticos. E nas aulas intervinha muito. Nunca tive medo de falar em público. Aos sete ou oito anos era capaz de pôr uma pergunta à professora, discordar de uma coisa, de uma sanção que foi aplicada. Isso é uma plateia política no sentido do nosso mundinho. É muito importante quando se é criança.

Em 1983 fiz uma intervenção numa mesma mesa onde estavam Cavaco e Marcelo [Rebelo de Sousa]. O Cavaco tirou-me a palavra. Ainda não era primeiro-ministro, tinha sido ministro das Finanças e estava, julgo, no Conselho Económico e Social.

 

Cavaco tirou-lhe a palavra? Já a formiga tem catarro – pensaria ele.

No fundo, há aqui um percurso.

 

Quando é que se lembra de, pela primeira vez, ter pensado que queria ser primeiro-ministro?

Sinceramente não me lembro de ter pensado nisso. Para se ser primeiro-ministro, ao contrário do que se julga, não sei se tem mesmo de se querer. Acho que tem de se sentir o dever ser, e não tanto o querer ser. Uma das minhas surpresas na política foi ver a quantidade de pessoas que se acham dotadas para serem primeiro-ministro: nunca imaginei!

 

Isso, em todos os partidos, PS, PSD?

Sim. No CDS também parece que há um. [riso]

 

Acha mesmo que talvez não seja preciso querer muito para se ser primeiro-ministro?

Quem quer muito, tem probabilidade de lá chegar. Mas não sei se isso é bom. Para se ser primeiro-ministro é preciso achar que se deve ser.

 

É um imperativo ético.

É. Não sei se o querer é um requisito. [O querer] pode ser uma desqualificação. Às vezes é-se [político] porque se acha que se deve ser, porque se tem essa obrigação para com a sociedade. Muita gente não se revê nesta posição, acha que é um moralismo. Precisamos mais de gente que acha que tem a obrigação de ser do que de gente que quer ser.

 

Se há tantas pessoas que gostariam de ser primeiro-ministro, o que é que faz que uma o possa ser e outra não?

Não sei dizer. Há também o factor aleatório. José Sócrates nunca teria sido primeiro-ministro se tivesse sido líder da oposição mais tempo. O Prof. Cavaco Silva chega a primeiro-ministro depois de quatro meses de liderança.

 

São duas situações atípicas.

Todas são atípicas. Na política, como estes episódios do Egipto mostram, o imprevisível acontece sempre. Barbosa de Melo dizia, logo a seguir ao 11 de Setembro, numa conferência, que a única certeza na História é a imprevisibilidade. Há uma dose de imprevisível em todos estes trajectos, embora a sorte ajude os audazes. O empenhamento pode resultar de uma vontade de ser primeiro-ministro, ou pode resultar de se entender que se tem a obrigação nesse momento de passar por essa provação. Que é uma provação. O exercício da política e de cargos políticos de relevo é um sacrifício pessoal enorme. Mesmo para as pessoas que gostam muito e que querem muito.

 

Se não tivesse perdido as eleições para Passos Coelho há um ano, era o seu nome que hoje era falado para ser primeiro-ministro nas próximas eleições. Pensa muitas vezes nisso?

Não, não penso muito. Quando fui candidato estava consciente de que muito dificilmente seria vencedor. Desde o primeiro dia que tinha noção de que podia perder.

 

O que é que o fez perceber isso?

Não me candidatei em alturas em que ainda era, talvez, possível ganhar. Em Outubro, por exemplo. Fui muito instado a isso, por muita gente. Também instei alguma a fazer isso – não fez. Quando o fiz, estava plenamente consciente, achei que era uma obrigação, fornecer uma alternativa. Nisso, não estou minimamente arrependido.

 

Ganhar não era a questão central naquele momento?

Não era a questão central.

 

Mas é claro que quando se vai a jogo é para ganhar.

Mas ainda hoje me pergunto se queria mesmo ganhar, embora soubesse que ia perder. Isso contribuiu de alguma maneira. Muita gente, que estava muito empenhada em que eu ganhasse, tinha dúvidas sobre se eu queria verdadeiramente ganhar. Isto é uma confissão.

 

O que é que está por trás desse “não sei se queria ganhar”? Que leitura faz disso hoje, passado um ano, sobre as eleições internas?

Voltando ao inicio deste capítulo da nossa conversa: saber se temos a obrigação ou não de. Mesmo que achemos que para nós era melhor estar noutra situação. Se temos ou não essa obrigação para com a sociedade e para com os ideais em que acreditamos. Há coisas de que falei nessa campanha que valia a pena, hoje, recordar. Fui a única pessoa que disse que era preciso aumentar impostos. Falei muito na questão da educação, da agricultura. São agendas que, independentemente da agenda económico-financeira, deviam estar já tratadas pelo PSD e não estão. Há um património ideológico, de causas, que estão na génese dessa candidatura, e que estão disponíveis para que o PSD as aproveite nesta conjuntura, que espero que conduza a actual liderança à governação de Portugal. Desejo isto sinceramente. Mas há ali muita coisa que não foi partilhada pelos candidatos em disputa.

 

No seu livro, editado cerca de seis meses depois das eleições, falou de novo, essencialmente, de ruptura, que foi a palavra-chave da sua candidatura.

O país precisa de um rompimento. Uma simples mudança não dá horizontes de recuperação.

 

Acredita nessa ruptura quando assistimos, como nas eleições presidenciais, a um índice de abstenção elevadíssimo?

A abstenção é justamente porque as pessoas não viram ruptura.

 

Uma ruptura para um regime presidencialista, que é aquilo que defende?

O que defendo é que no actual regime devíamos ter um Presidente mais interventivo. Quando isso acontece, o regime funciona melhor. Não aconteceu na década de Sampaio, e não aconteceu suficientemente, apesar de ser um apoiante indefectível, com o Prof. Cavaco Silva.

 

Voltando ao ano passado, que foi um ano muito importante para si. Tanto quanto sei, Balsemão convidou-o para os encontros de Bilderberg. Foi antes ou depois da sua derrota?

Foi antes até da minha candidatura.

 

Bilderberg é um centro de discussão, de poder e estratégia. Muito poucos são convidados para ir lá. Sentiu que era o partido, que era um certo PSD, na pessoa de Balsemão, que estava a apostar em si, quando o convidou?

O Dr. Balsemão todos os anos convida pessoas diferentes.

 

Mas na iminência de haver eleições no partido, e de o senhor protagonizar…

Não sei o que é que o motivou a convidar-me. Mas se há uma pessoa que tem uma dimensão que o PSD nem sempre tem aproveitado, intelectual, ideológica, e até moral, embora não no sentido moralista do termo, é o Dr. Balsemão. Foi uma pessoa com quem tive o privilégio de lidar muito nestes últimos dois anos. Conhecia-o, mas mal.

 

Insisto: estavam a apostar em si, pensando que no futuro estaria no poder?

Não senti isso nesses termos. O que senti, e digo-o sem nenhuma imodéstia, é que tenho feito um esforço sistemático para pensar a política. Nomeadamente num livro que publiquei em 2009, O estado do Estado. [Os meus livros] não são livros para fazer campanhas. Um, por pura coincidência até surge na campanha das Europeias, mas estava combinado com a D. Quixote há muito tempo.

Há um diálogo que tenho tentado manter. Com pessoas como o Miguel Veiga, que muito admiro, e que pensa muito a política, embora com o seu código próprio, e muita gente nova; o Miguel Morgado, o Pedro Lomba, o Rui Ramos, o Henrique Raposo, o Pedro Mexia, a Sofia Galvão, o Nuno Morais Sarmento (que julgo que tem muito a dar ao país).

 

Temas dessa discussão?

Coisas como as redes sociais, ou o que vai ser a medicina nos próximos 20 anos, ou o que é a evolução da crise financeira, ou o problema da proliferação nuclear. Não se trata da cartilha dos programas banais que fazem as campanhas, mas das causas que um partido de centro-direita como o PSD deve abraçar.

 

Há pouco usou a palavra “desiderato”.

O português é para se usar. Nunca uso calão. Uma das razões é porque ele é o grande factor de empobrecimento do vocabulário.

 

Surpreende que use palavras como “desiderato” e que goste da música dos Van Halen ou dos Metallica.

Gosto desde muito cedo. Não são mundos inconciliáveis. Somos sempre figuras muito ecléticas. No Heavy Metal, um álbum dos Van Halen, de 1984, foi a minha primeira aproximação. Quando estudava loucamente na universidade, (no secundário não, mas na faculdade estudei muito, 13, 14 horas por dia, concentrado), tomava um banho às seis da tarde e ouvia na Rádio Comercial o Rock in Stock aos berros. E depois retomava no outro dia. Aquilo era o factor de relaxe. Se há uma coisa que gostava de ser era diseur. Actor, não, mas diseur gostava de ser.

 

Voltemos à política. O que é que aprendeu com a derrota?

Não sei se aprendi muito. Porque, em rigor, já me tinha sentido derrotado antes, no passado. Quando o PSD perde as eleições em 2005, quando o PSD perde as eleições em 2009. Não são derrotas pessoais, mas são derrotas.

 

Faz toda a diferença serem derrotas pessoais. Sobretudo se nas eleições para as Europeias o PSD teve uma vitória que se considerou que tinha sido grandemente sua. Não vamos escamotear o facto de ter havido, por causa disso, uma expectativa adicional em relação à sua prestação na disputa interna.

Apesar de tudo, os jogos estavam feitos. Era claro quem é que ia vingar, não havia dúvidas sobre isso, e para mim também não. A ideia da aprendizagem com a derrota não foi uma coisa penosa.

 

Apesar de ser tão expressiva a margem? Não chegou a ser vexatório para si?

Na minha opinião, 35 por cento não é uma coisa vexatória. Não tive essa experiência amarga, tive até um certo alívio. Depois tive a atitude que tenho tido: a preocupação de passar, não para a conspiração, mas para uma lógica de cooperação.

 

Ter um projecto que o resguardava – o projecto do parlamento europeu – fez com que se sentisse menos perdido?

Está a tocar no ponto nevrálgico. Estava aqui a omitir uma coisa, não voluntariamente: a minha experiência europeia, como experiência política, é a de que mais gostei, e aquela de que estou a gostar mais. Não tem comparação com nenhuma dessas que tive, incluindo a candidatura, a liderança do Grupo Parlamentar. Devo dizer que os debates com o Eng. Sócrates foram para mim momentos muito positivos de afinação. Coisa erradíssima: considerar que o Eng. Sócrates é um grande orador, um grande comunicador. Em termos retóricos, ideológicos, vocabulares, tudo. Uma pessoa que assistiu a um debate no parlamento britânico, ou que leu um discurso do parlamento britânico, pode perceber que aquilo é de uma pobreza franciscana.

 

Mas gostava das contendas com ele.

Gostava, para demonstrar essa pobreza, para demonstrar essa vacuidade.

 

Carisma, tem, ou nem isso lhe concede?

Concedo. Carisma tem, no sentido cristão do termo – o de todos termos carisma. Tem uma coisa sinceramente positiva: é extremamente trabalhador. Aprendeu imenso. Quem o viu como eu vi, na apresentação do programa do Governo em 2005, em que a pobreza não era franciscana, era confrangedora, e quem o viu um ano depois, dois, três, é um salto extraordinário. Reconheço que consegue passar de um registo frágil para um conhecimento dos dossiers relativamente exaustivo. Na fase inicial, existia uma certa arrogância, mas insegura.

Tive um certo prazer nesse challenge, que acabou por resultar bem e ser reconhecido.

 

Já passou tempo suficiente para poder confessar: nem antes do primeiro debate se atemorizou um pouco?

Não. Fui para a campanha das europeias sem medo nenhum, convencido de que ia ganhar. Fui para as eleições internas sem medo nenhum, embora consciente que era mais uma marcação e o oferecimento de uma alternativa a alguém que tem um certo percurso – o percurso das juventudes partidárias. Não conhecia a Dra. Manuela Ferreira Leite. Ela telefonou-me uma vez a agradecer uma referência elogiosa que lhe tinha feito num programa de televisão. Foi uma surpresa quando me ligou e me convidou para essa função. A relação com os colegas deputados, com os políticos, é extremamente difícil, são pessoas que se melindram imenso. (Mas estou a incluir-me nesse grupo!) Há muitos pequenos protagonismos, que é difícil gerir. Tudo isso me assustou muito [quando fui líder parlamentar].

 

Era um newcomer na política.

Continuo a ser, num certo sentido, é assim que sou visto por muitos dos meus colegas. Ou pelo menos um outsider.

 

Já está nos partidos há demasiado tempo para ser um outsider.

Tenho o pior dos dois mundos: sou um outsider para o partido e um insider para os de fora [riso]. Há uma coisa que nunca fiz, nem sei fazer: não sou pessoa de ir almoçar, jantar ou fazer telefonemas com os colegas. Não pertenço à política dos jantarinhos. Telefonar dez vezes à mesma pessoa, pedir desculpas, não faz parte de mim. Vou às reuniões, trato das coisas que tenho a tratar e depois vou para a minha vida, que não tem nada a ver com essas coisas.

 

Pergunta provocatória: e tem vida? A ideia que temos é que a sua vida é a política, que não faz mais nada senão trabalhar.

Na vida, nunca distingui lazer de trabalho. Para mim não há tempos sagrados e tempos profanos. Pode dar a ideia de que não tenho vida, mas tenho, como as pessoas que me são íntimas sabem. Desmultiplico-me em muitas coisas. Estou no Parlamento Europeu, estou a chefiar o departamento de Direito Público na minha sociedade de advogados, ainda vou dar, de quando em vez, umas aulas à Católica, tenho convites para conferências, escrevo imenso.

 

Porque é que trabalha tanto? Corre atrás de quê?

Não quero chegar a lado nenhum. É pelo gosto que as coisas me dão. E por um certo sentido de obrigação, de retorno. Costumo dizer que sou um cristão de cultura católica (não sou um católico no sentido mais tradicional do termo). Tenho fortes divergências com o pensamento moral da Igreja Católica.

 

É conservador, mas não moralista.

Não sou um conservador, sou um liberal. É curioso, toda a gente acha que sou conservador.

 

Porque é que acha que é assim?

O Pedro Norton foi apresentar este meu livro (uma apresentação muito interessante), e só o corrigi numa coisa: a dada altura diz que sou um conservador. Não sou. Tem a ver com o perfil psicológico e com o meu perfil físico.

 

Novo parêntesis: desde quando é gordinho?

Desde os dez, 12, 13 anos. Fiz dietas múltiplas, sempre com enorme sucesso. Sou muito disciplinado e cumpro rigorosamente. Mas depois aquilo descamba, com aquele efeito que todas as pessoas conhecem, quando se faz uma dieta e depois se recupera: passa-se sempre para um nível superior àquele em que se estava antes de ter feito a dieta.

 

Como é que isso marcou a sua vida? Pode parecer uma questão frívola e lateral, mas não é.

Não é uma coisa frívola. Num mundo em que o corpo conta tanto, o facto de uma pessoa ter uma compleição física que não é a esperada pela sociedade, dá-nos, para além de alguns complexos naturais, e de alguma frustração, a noção de que temos limites. Era um bom aluno, as coisas corriam-me bem, mas tinha aquele handicap. Não jogava bem futebol, não era o herói das raparigas todas. Isto dá-nos uma certa humildade.

 

E precisava de se afirmar pelo intelecto? Formou-se com 17 na Católica, não é coisa pouca. Era uma forma de se compensar e de se afirmar?

Podia ser, mas não é. Esse percurso já estava traçado mesmo quando era magro. Fui magro até aos 12 anos, apesar de ter um historial familiar de obesidade muito grande, do lado paterno, até com consequências trágicas do ponto de vista das mortes sucessivas ocorridas na família. Numas coisas somos bons, noutras não somos, e temos de aceitar as nossas limitações, viver com elas, tirar partido delas.

 

Acha que tem fama de conservador, também, por causa da sua compleição física?

Tem mais a ver com o perfil psicológico, com o discurso estruturado, com uma certa veemência.

 

E um certo ar arrumadinho e certinho, vamos dizê-lo com frontalidade.

É capaz de ser isso. Não consigo retratar o espelho com facilidade. Tenho boas relações com a Igreja em geral, mas muitos católicos, mais fundamentalistas, têm uma ideia de distância e reserva contra a minha pessoa. Pior do que uma pessoa que não acredita é uma pessoa que acredita, mas não pensa da mesma maneira. Essa é que é verdadeiramente perigosa, essa é que pode tresmalhar as ovelhas do rebanho.

 

Outra das razões por que as pessoas pensam que é conservador é porque a sua facção no PSD é conservadora e envelhecida. Manuela Ferreira Leite, Cavaco, Pacheco Pereira…

O Pacheco Pereira é um mau exemplo, é quase um libertário do ponto de vista dos costumes. Manuela Ferreira Leite é uma pessoa muito mais aberta do que aquilo que se supõe, é diferente da imagem que se quis fabricar dela – e isto com o condicionamento socrático da comunicação social, que é como a Terra a mexer-se… E pur se muove. Apesar de tudo continua aí, mesmo que não tenha os mesmos traços graves que tinha em 2006/7/8, e que teve condicionamentos claros em 2009. Tenho por ela uma admiração e um afecto sem limites. Acho que já começa a ser feita justiça à referência que ela é.

 

É uma pessoa fundamental no seu percurso.

Há pessoas que marcaram muito a minha vida; uma foi Canotilho, outra Manuela Ferreira Leite, outro Lucas Pires, de quem também fui muito próximo.

 

Começámos por falar de Gomes Canotilho e das pessoas que o convenceram de que podia ser tudo. Voltou a empenhar-se na política na universidade?

Na universidade, é quando me empenho menos.

 

O que é que queria, ser um académico?

Quis ser astrónomo, por causa do Espaço 1999. Tinha uma enorme admiração pelo Capitão John Koenig e esperava ter uma namorada igual à Dra. Hellen. Mas depois quis ser professor. A coisa que ainda mais gosto de fazer é dar aulas. Nem a feitura de um discurso. Cheguei aos 43 anos sem nunca ter lido um discurso escrito por outros. Agora está na moda ninguém ler discursos… Esse exercício de fazer discursos confronta a pessoa com as suas próprias limitações. Há ideias que não resistem ao teste da escrita.

Fui para assistente da Católica. Embora houvesse sempre a secreta esperança de que a política podia reaparecer.

 

Não havia ninguém à sua volta metido na política?

Havia o Diogo Feyo, mais do CDS. O Diogo Vasconcelos, uma pessoa empenhadíssima, também andou lá na Católica.

 

Passou pelo escritório de Lobo Xavier, no Porto.

Tinha uma grande admiração, e tenho, pelo Dr. Lobo Xavier (de uma inteligência e cultura avassaladoras). [Tinha escritório com] Osório de Castro, Verde Pinto e Vieira Peres. Digo isto sem medo das palavras: a pessoa mais inteligente que até hoje conheci é Osório de Castro. Está num campeonato que não é dos mortais.

 

Lobo Xavier não o puxou para o CDS?

Na altura, como colega do Nuno Pinheiro Torres, de quem hoje sou muito amigo, cheguei a ser militante do CDS. Não se sabia bem se tinha sido, se não tinha sido. Foi uma das polémicas da campanha. Depois vim a descobrir que o Passos Coelho tinha sido militante do Partido Comunista e não tinha dito nada. Valia a pena ter feito esse registo de interesses, mas entendeu-se que não se devia. Não me lembrava mesmo se tinha sido [ou não do CDS]. Sei que colaborei com o Lobo Xavier, gostávamos que ele fosse líder, éramos discípulos. Mas assim que, em 1998, o Paulo Portas rompeu a AD, de que era grande adepto, escrevi-lhe uma carta a dizer que saía do partido porque não concordava com a atitude que tomou relativamente ao Marcelo. Ainda me ligou uma ou duas vezes, mas nunca falei com ele. Em 2001, o Dr. Rui Rio, por intermédio de um antigo aluno meu, convida-me para um Conselho Consultivo do PSD - Porto e para escrever o seu programa [de candidatura à Câmara]. Um programa sumário, porque aquilo eram 900 páginas; reduzi-as a 30, no mês de Agosto, em casa.

 

Uma tarefa ciclópica.

Estive nessa campanha de alma e coração. Rio quis sempre que trabalhasse com ele, mas não tinha grande apetência. E depois surge o convite de Aguiar Branco para secretário de Estado, em 2004. Inicialmente o convite não era para secretário de Estado, mas disse-lhe: “Para outras coisas não quero, porque sinto que não me trazem nenhum valor acrescentado”.

 

Acordou outra vez para o sonho da política.

De um momento para o outro, quando nada fazia esperar. Tinha acabado de ficar sócio do escritório em que estava. Fui secretário de Estado, o Governo caiu, fiquei deputado. Comecei a fazer algumas intervenções. Entretanto mudei de escritório e tive a felicidade de encontrar um dos juristas mais completos que conheci, o José de Freitas, meu sócio da Cuatrecasas - Gonçalves Pereira. Montei um departamento de direito público, no Porto, com seis pessoas, só a trabalharem em direito administrativo, que é de longe o maior fora de Lisboa, e que é também o melhor, mas isto fica-me mal dizer.

 

Politicamente, o que é que o faz dar nas vistas?

Marques Guedes, que era o líder parlamentar na altura de Marques Mendes, convida-me para fazer o discurso do 25 de Abril de 2007. Julgo que isso muda a minha carreira política. Acabou por criar uma dinâmica que esteve na origem de ter sido líder parlamentar.

 

Ainda sonha ser líder do PSD, quem sabe primeiro-ministro?

Não sonho. Neste momento é um assunto que não ponho. Estou muito empenhado nesta minha dimensão europeia. Os oito deputados do PSD estão a fazer um trabalho notável.

 

Também sabe que é suficientemente novo para esperar pela sua vez.

Claro. Já lhe disse que tenho sonhos, não tenho projectos. Nunca nenhuma dessas coisas foi programada. Vivo cada uma com uma grande intensidade, faz parte do meu ADN. Outro dia tive de fazer uns versos para o livro de curso da 4ª classe de uma sobrinha minha, que tem dez anos. Perdi um dia inteiro a fazer os versos. Gosto de pôr tudo o que tenho nas coisas que faço.

 

Isso é um verso de Pessoa: “Põe tudo quanto és no mínimo que fazes”.

Não estou a descrever isto como uma virtude, é uma característica. Se vou fazer uma conferência, preparo-a com todo o gosto. Se faço uma peça jurídica, sou capaz de meter uma frase do Júlio César, do Shakespeare, do Camões. Tudo isso me preenche.

 

Quando os seus pais lerem esta entrevista, o que é que eles vão achar? Vão reconhecer este como o filho deles ou existe um que não aparece de todo nesta entrevista?

Há-de haver um que não aparece de todo nesta entrevista. Até mais do que um, não tenha dúvidas.

 

Resguarda-se muito?

Sim. E há-de haver algum, ou alguns, que eles também não conhecem. E alguns deles que eu também não conheço. Isso faz parte do mistério da nossa existência, e do nosso encanto. Temos sempre mundos que são só nossos. Isto é inerente à natureza humana, não é uma coisa singular. Mas acho que não vão ter grandes surpresas.

 

Qual deles lê mais e segue mais a sua carreira pública?

É o meu pai. A minha mãe é o adversário da minha carreira política. É uma pessoa que tem uma enorme influência naquilo que faço e penso. Aos 43 anos já se pode dizer, sem receio: o meu pai é um fã, sempre apoiou qualquer coisa que eu faça. Não com deslumbramento, mas como supportive. No caso da carreira política, a única coisa em que senti o apoio familiar foi na candidatura às Europeias. Achavam, o que é verdade, que o Parlamento Europeu era uma etapa de formação. Não houve nenhum sítio nem escritório onde aprendesse tanto como no Parlamento Europeu. Depois de um ano daquilo uma pessoa não é a mesma. Tem outro mundo, outra maneira de ver, aprende coisas extraordinárias.

 

Posso fazer uma pergunta íntima? Pensa casar e ter filhos, ou isso não faz parte dos seus planos?

Não sei. Gostava, mas julgo que me acontecerá como o resto: quando acontecer, acontece, se acontecer. É uma coisa que me preocupou mais no passado, há dez, 12 anos. Achava que ia acontecer, e que devia acontecer. Foi uma coisa que desapareceu das minhas preocupações.

 

Preocupava-o a possibilidade de isso não acontecer?

Tinha pena se não acontecesse, e hoje não tenho. Nunca desisti da dimensão pessoal. Mas alimentar esse sonho, como um sonho, não. Tenho muito tempo sozinho e muito tempo com gente. Estar fechado em casa, muitas vezes a ver televisão de baixa qualidade, é uma coisa que me liberta imenso.

 

E a comer gelado.

A comer gelado, não. A fazer asneiras gastronómicas. Mas não vou confessar quais. Há uma série, “As aventuras do Merlin”, o feiticeiro, que se passa quando ele tinha 19, 20 anos, ainda o Rei Artur não era rei. Na Sic Radical, aos fins-de-semana. Adoro ver aquilo.

 

Um miúdo.

É um lado infantil.

 

Deprime, às vezes? Ou não tem essa propensão?

Não acho que tenha. Quando tinha 29, 30 anos, tive um período de um ano em que estive muito em baixo. Estava fechado, só a investigar. Em casa, a ler autores alemães e franceses, ingleses e espanhóis, dias e dias a fio. Às vezes tenho, como toda a gente, desgostos, de amor e sem ser de amor, e esses também nos fazem ir abaixo. Mas uma pessoa pode estar triste sem estar deprimida. Não sou uma pessoa deprimida, mas também não tenho um optimismo antropológico como o Mário Soares.

 

Parece sempre muito confiante, todo o seu percurso é ascensional. E inseguranças?

Não acho que seja ascensional, é muito variado. Inseguranças, há bastantes, mais do domínio pessoal. Não me custa nada reconhecer que há – faz parte da minha idiossincrasia.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2011

 

Guilherme d'Oliveira Martins

04.06.15

É um católico tranquilo. Uma pessoa que não precisou de se revoltar contra nada nem contra ninguém. Uma pessoa conciliadora, até nas opções: “Nunca fiz uma escolha excludente e esse é um dado que é importante no meu percurso. Às vezes olho para mim e digo que foi bom como que viver várias vidas”.

Ainda hoje parece viver várias vidas. Com quem estou a falar? Com o presidente do Tribunal de Constas?, como o presidente do Centro Nacional de Cultura?, com o ex-ministro de Guterres, o “discípulo” de Sousa Franco? Com um socialista que se tinha deslumbrado com Sá Carneiro? Com um homem de poder, que diz não ser, apesar do muito poder que tem?

Para começar, encontrámo-nos no Centro Nacional de Cultura, no Chiado. Estava assente que a entrevista não seria sobre a sua acção no Tribunal de Contas, nem sobre as notícias de todos os dias (sobre corrupção, coisas assim). Seria sobre ele. E posto isto, talvez o CNC fosse mais a sua casa.

Guilherme d’ Oliveira Martins é um homem culto, inteligente – epítetos consensuais. E surpreendente. Não é estranho ouvi-lo falar de Sophia ou Jorge de Sena, mas é improvável saber da sua paixão pela banda desenhada. É como, de repente, encontrar vestígios da criança que ele foi.

Talvez nesse tempo tenha sido menos arrumado, bem comportado. Mas o que hoje temos é um homem arrumado e bem comportado.

Nova suspeita de que há outro mundo nele: refazer em África o percurso de Bruce Chatwin. Oliveira Martins, em África, nos passos de Chatwin?

Depois há o de sempre: ter no nome Oliveira Martins e isso trazer, no código genético, uma forma de estar.

Nasceu em casa, em 1952. Tem menos de 60 anos, sim. Por ser muito sério, pode parecer mais velho. Mas depois há um vigor físico que faz perceber que é um homem jovem. Tanto quanto se pode ser jovem aos 58 anos.

Chega pontualmente, sai pontualmente. É disponível para as fotografias e para a entrevista. Como um profissional que sabe o que quer e o que esperam dele. Mas enquanto está, entrega-se ao que está a fazer. Senta-se no topo da mesa, com um caderno aberto, que nunca consulta e onde nunca toma notas. Olha nos olhos. Tem uma voz forte, o tom é constante, a colocação é algo gongórica. Mas a pose, não.

 

 

Estou a ver que escreve à mão. Através da caligrafia de uma pessoa podemos saber muito sobre ela, como diz o seu amigo, grafólogo, Alberto Vaz da Silva. O que é que a sua caligrafia diz de si?

Desde cedo comecei a escrever para jornais, e não havia computadores. Por causa do tempo e da urgência, escrevia à mão, e tinha de escrever de modo a que os tipógrafos compreendessem. Portanto, comecei por escrever numa letra bastante redonda e segura. Naturalmente não lhe vou dizer o que é que o meu querido amigo Alberto diz, mas ele acha que a minha letra é coerente com aquilo que sou.

 

Porque é que não pode dizer mais do que isso?

Há uma preocupação de ordem, de regularidade e de respeito. Tenho estes cadernos – este é o 56º volume. São sempre cheios. São óptimos instrumentos de trabalho. Escrevo de modo a poder compreender depois.

 

Para se poder compreender? Não só os outros, mas também o senhor?

Exacto. Escrevo um pouco de tudo. Notas de leitura, encontros, aquilo que é mais importante nesses encontros ou nas reuniões. Estes cadernos têm uma enorme vantagem, uma vez que estão numerados e têm datas. Guardo aqui o essencial, aquilo que preciso de recordar.

 

Funciona também como um diário?

Nunca tive um espaço diarístico, de me dirigir ao meu diário. No entanto reconstituí, em várias circunstâncias, referências a partir deste caderno. Há impressões e comentários que transcrevo para o caderno.

 

Vamos às características da sua caligrafia, à coerência em relação a quem é.  Porque é que é assim? Porque é que é essa pessoa com intenção de ser entendido pelos outros?

É difícil responder porquê. A minha formação influenciou-me muito. Em primeiro lugar a família e depois as escolas por onde andei. Sempre públicas. Fui aluno de uma escola pioneira em Campo de Ourique, a Escola nº 6, de que me orgulho.

 

Escolas públicas: por alguma razão especial?

Porque era o melhor ensino. O liceu Pedro Nunes foi, nos anos 60, e na história da educação em Portugal, um exemplo de experiência pedagógica. Tínhamos os melhores professores, o Rómulo de Carvalho, a Dra. Luísa Guerra.

 

Muito antes das escolas, vem o facto de ter nascido numa biblioteca. Queria que me contasse essa história. É como se o Oliveira Martins já estivesse imbricado desde o princípio.

Apesar de viverem nos arredores, os meus pais estavam em Lisboa quando nasci; por circunstâncias singulares, nasci no quarto que estava disponível: a biblioteca do meu avô. Que era professor de História. Vivi os meus primeiros anos muito em ligação com essa biblioteca. Quando comecei a ler embrenhei-me nos livros a que podia ter acesso (livros de ilustrações, de arte). O meu avô tinha uma grande colecção sobre os grandes museus do mundo. Para uma criança é um fascínio; uma criança visita esses quadros, essas referências.

 

Era como se ele lhe pegasse pela mão e lhe mostrasse esses quadros e esses percursos?

Era. Sobretudo porque depois me pegava literalmente pela mão e caminhávamos pela cidade de Lisboa. Era um olissipógrafo muito criterioso e conhecedor. Cada canto, cada circunstância, cada momento era uma oportunidade para falar da evolução histórica. Ao caminharmos na Mouraria, o meu avô explicava a Mouraria antes da reconquista de Lisboa, o pós-terramoto, os conventos. Fazíamos uma viagem efectiva, não virtual. E aprendi a olhar a cidade na sua relação com a natureza. Vivíamos em Campo de Ourique e começávamos por Monsanto, esse pulmão que tinha sido reflorestado recentemente. O meu avô era professor de História e Geografia e dizia-me que para entender a vida era necessário compreender os lugares e os mapas.

 

Como se fossem pessoas?

Com pessoas. Questão diferente era a relação com as casas. Todas as casas têm a sua alma, e cada casa tem também a marca das pessoas que aí estiveram. Sobretudo casas antigas onde viveram várias gerações. Hoje vivo naquela que foi a última casa desse meu avô, na Lapa. O Alberto Vaz da Silva, quando soube que ia mudar de casa, olhou para mim um bocadinho assustado, mas quando lhe disse que era a casa do meu avô, invocando essa ideia da alma e da vitalidade das casas, ficou mais descansado.

 

Foi pacífico voltar à última casa do seu avô? Os seus apelidos, a presença do seu avô foram asfixiantes? Teve necessidade de se demarcar dela e de conquistar o seu próprio espaço?

É verdade que existe sempre essa tensão na afirmação do espaço próprio. Ao longo da minha vida tenho procurado conquistá-lo. Nunca deixei de, através da investigação histórica, e através da reunião dos testemunhos daquela Geração de 70, que envolve o Antero de Quental, o Eça de Queirós, o Ramalho Ortigão, [manter uma ligação a esse grupo]. Tem sido uma experiência muito positiva, como um hobby. Não sou historiador. Gosto muito de História, por várias circunstâncias sou professor de História da Cultura Portuguesa, mas mais pelo que tenho feito em termos desse hobby.

 

O princípio desta conversa eram os livros de ilustração e as visitas virtuais aos museus, pela mão do seu avô.

Isto leva-me a um outro hobby que tem a ver com a ilustração, com o desenho e com a banda desenhada. Aqui está um espaço que me é muito próprio: como calcula a geração do meu avô via com desconfiança a banda desenhada... Não se estava no tempo em que a banda desenhada de qualidade, com bom sustento literário, pudesse existir. Mas existe, e o século XX foi a confirmação disso. O meu pai é um desenhador e incutiu-nos um grande gosto pelo desenho. Dediquei-me só à caricatura, nunca tive qualquer aprendizagem, trata-se de uma actividade despretensiosa.

 

[Mostrar-me-á, no final da entrevista, uma folha A4 com uma caricatura de pessoas que integram um grupo de trabalho. O traço é preciso, o retrato humorístico].

Quando falo da importância da banda desenhada, falo da necessidade de compreender a representação. Hoje em dia, nas mais modernas expressões da literatura, inclusivamente em Portugal, temos uma ligação cada vez maior entre a palavra e a imagem.

 

Dois heróis de banda desenhada.

O Tintim e Blake e Mortimer. Mais tarde o Corto Maltese, que chega a Portugal quando estou na universidade. Desde que tomei contacto com o Corto Maltese, tive uma grande ligação a essa personagem.

 

É o espírito de aventura que o faz ter uma ligação a estes personagens?

É. E no caso de Blake e Mortimer, essa curiosa ligação entre o imaginário e a ficção científica. A escola belga, dirigida por Hergé, e fortalecida por Edgar P. Jacobs, vai dar-nos essa extraordinária ideia da ligação entre a representação, a cor e o movimento. Em Portugal, a mais moderna banda desenhada é de grande qualidade.

 

Um herói de BD portuguesa de que goste.

Os autores de banda desenhada portuguesa dedicam-se a determinados temas e não têm heróis. A banda desenhada portuguesa tem raízes muito antigas que nos levam a grandes autores como Stuart ou Botelho; esses autores procuraram ter heróis, à semelhança do que acontecia internacionalmente.

 

Conhece Filipe Seems, o herói de Nuno Artur Silva e António Jorge Gonçalves? O mundo dele cruza a literatura de Borges com a imagem de “Blade Runner”, por exemplo. E passa-se em Lisboa. O senhor é um rapaz de Lisboa.

Conheço. É muito interessante.

 

Alguma vez quis ser, fora dos livros, um herói de BD? Alguma vez foi rebelde e quis viver uma vida aventurosa?

Uma das minhas características é ser profundamente realista. Gosto da aventura, indiscutivelmente. Por isso gosto das viagens. Todas as viagens que tenho organizado no Centro Nacional de Cultura envolvem um lado de aventura. Fomos a África na peugada do Bruce Chatwin. Fomos ao Benim, até à fronteira do Togo visitar uma tribo onde se praticava o vudu. No ano seguinte fomos ver como é que esse vudu se tinha repercutido no candomblé de Salvador; e fomos à casa branca onde Jorge Amado se iniciou. Fazemos viagens com os livros, lendo os livros.

 

Nem na adolescência foi rebelde? Queria saber do gérmen de inquietação, de curiosidade, de não resignação, que deve ter existido lá atrás.

Nunca fui um rebelde, até porque na família tive sempre um grande espaço de liberdade e compreensão. E na universidade, em 1969, o grande ano da crise académica da minha geração, a minha rebeldia era compreendida. Não precisei de me revoltar contra nada nem contra ninguém. Em 1968, recebemos no Pedro Nunes colegas que vinham de Paris, discutíamos com eles com toda a naturalidade. Nessa altura fui vítima do primeiro acto de censura.

 

Porquê?

Uma situação um bocadinho absurda. Era aluno do Padre Alberto, que era uma figura importante como exemplo, e na Páscoa lançámos uma iniciativa com diversos colóquios sobre a fome no mundo. Pediram-me para fazer um cartaz para anunciar a iniciativa e eu, suponho que de uma revista francesa, recortei uma imagem do Biafra, que estava na ordem do dia, e afixei-a no átrio do liceu. Fomos para as aulas e, para grande surpresa, quando regressámos o cartaz tinha desaparecido. Na casa da minha família havia um retrato de Antero de Quental, o que no século XIX era difícil, porque ele era um suicida e as pessoas procuravam não recordar essa circunstância. Eu tinha uma grande admiração por ele, mesmo sendo um suicida. Para alguém que vive num ambiente aberto, onde falávamos da liberdade, do socialismo, foi um choque [aquele acto de censura].

 

Como é que se explica a uma criança que alguém acaba com a sua vida? Tem memória disso?

Explicaram-me em virtude de haver uma doença, Antero de Quental era bipolar. Na minha família a explicação não era dramática, não era a de um julgamento negativo. Encontrei descendentes do próprio Antero de Quental que me diziam que na sua família não se falava [do assunto].

 

Sobretudo para os católicos, Antero tinha cometido um pecado contra o seu próprio corpo. Era esta a maior dificuldade?

A minha relação com o sagrado e com a vida religiosa foi sempre positivamente influenciada por pessoas com horizontes abertos, onde essa questão do pecado final de Antero nunca era colocada. Antero continuava a ser para nós aquele que Eça de Queirós tinha designado como Santo Antero.

 

Dante põe nos círculos do Inferno poetas que admira enormemente. E à porta do Purgatório, um suicida. É espantoso, atendendo ao período em que a “Divina Comédia” foi escrita e ao cristianismo do autor.

Na relação entre fé e razão houve sempre, nas pessoas que mais me influenciaram, uma preocupação de um equilíbrio entre os dois elementos.

 

E não uma prevalência da razão? Olhando para o seu avô pensaria que sim.

Significa valorizar a razão, mas compreender também os limites. Conheci pessoas muito inteligentes, (o mestre Sousa Franco foi das pessoas mais inteligentes que conheci); e os mais inteligentes são aqueles que compreendem os limites. Quem encara a razão como algo omnipotente, é alguém que não compreende a limitação própria daquilo que levava Carl Popper a dizer “nunca saberemos o suficiente para ser intolerantes”. Considero que a investigação e crítica científica são fundamentais e que a compreensão da História e dos tempos obriga a entendermos o papel da crítica, da ciência, do conhecimento. Mas simultaneamente o entendimento de que esse conhecimento envolve limites. Temos de funcionar como o atleta do salto em altura, temos de ir por fases, e ir sempre tentando saltar mais alto, conhecer mais.

 

Pode falar-me da sua relação com a fé e com a igreja? É uma coisa determinante na sua vida, na sua identidade?

É um elemento muito importante, porque relaciona os limites, a dúvida e o sentido. Através de grandes poetas que admiro, como Sophia de Mello Breyner, Ruy Belo, Jorge de Sena, Eugénio de Andrade, António Ramos Rosa, através da sensibilidade e da poesia, podemos aproximar-nos um bocadinho mais desses limites de que temos de ter consciência.

 

Como se fosse uma via, não de conhecimento, mas de acesso?

Sim, claramente. Ainda que na relação fé/razão concorde com o meu amigo Frei Bento Domingues, um dominicano e alguém que pode reler, à luz da modernidade, um autor como São Tomás de Aquino, que era muito preocupado com o elemento racional, com a demonstração. No entanto, é indispensável compreendermos que essa racionalidade obriga a entender aquilo que está para além dela, e aquilo que significa a incerteza.

 

A propósito de Sousa Franco, que referiu como sendo uma pessoa com grande importância na sua vida: a relação com ele teria sido a mesma se não fossem ambos católicos?

Certamente que sim. Encontrámo-nos em 1971, 1972, ele era meu professor. Foi uma relação antes de mais ligada às matérias que ele dava e que depois eu segui, porque fui seu assistente nas Finanças Públicas. Hoje, no Tribunal de Contas, estou num lugar onde ele também esteve.

 

Qual a história dessa relação?

No início houve uma relação de um grande professor que influenciava os seus alunos e que tinha uma presença e uma entrega efectivas. Fascinou-me a tal ponto que no campo científico, do Direito, segui as áreas que eram as áreas que ele cultivava. Com o tempo, aproximamo-nos mais.

 

Apesar do gap geracional?

Tinha mais 10 anos do que eu, mas era um jovem. Tivemos uma relação praticamente familiar, era padrinho da minha filha mais nova. As circunstâncias levaram a que os meus dois filhos mais velhos tenham sido, também, assistentes dele.

 

Um pouco consanguíneo, tudo isto.

Um bocadinho. A nossa relação pessoal foi influenciada pelos valores comuns que tínhamos, mas no início foi uma relação puramente académica.

 

Foi verdadeiramente um mestre para si?

Foi, indiscutivelmente. Há várias referências, em vários domínios na minha formação. Já há pouco falei da minha professora de Filosofia, que nos introduziu no Existencialismo; e a de um intelectual como o padre Manuel Antunes.

 

Tenho ideia que o professor Sousa Franco não era tão bem comportado como o senhor parece ser. Isso, para si, era uma coisa fascinante? Ter aquele brilho e aquela presença, e simultaneamente ser mais desalinhado.

Isso é um motivo de admiração. Esse lado também me fascinava nele. Tivemos sempre uma relação óptima e nunca nos zangámos.

 

Sempre foi bem comportado, mesmo em criança?

Fiz tropelias, como todas as crianças.

 

Disse que todos temos que nos demarcar em relação à família. Gostava de saber como é que traçou o seu percurso individual. Fale-me mais das angústias, das fracturas, das coisas que estão dentro de si e que o fizeram escolher esta opção e não aquela.

Fui sempre avesso a fazer escolhas prejudiciais. Por isso escolhi o Direito Económico, que não está no coração do Direito; está numa margem e numa relação interdisciplinar com outra área, a Economia. Por outro lado, desde cedo senti uma grande atracção pelo mundo da educação. Alfabetizei todos os meus filhos.

 

Porque é que decidiu fazê-lo?

Para fazer uma experiência, moldar crianças de cinco anos de idade, e ver quais as diferenças. Li as referências históricas da pedagogia. Vários colegas meus, designadamente pedagogos, viram com muita desconfiança essa minha audácia, disseram que isso era uma temeridade. E eu persisti, e com sucesso. Ainda hoje os meus filhos reconhecem que foi muito bom. Quando alguns colegas estavam nos primeiros passos da alfabetização, já eles seguiam noutro caminho.

Portanto, havia esta preocupação com a Educação. Depois, nunca deixei o campo da História, da investigação, da reunião dos documentos. Nunca fiz uma escolha excludente e esse é um dado que é importante no meu percurso. Às vezes olho para mim e digo que foi bom como que viver várias vidas.

 

É reconhecidamente uma pessoa muito inteligente. Não o imagino inseguro quanto a isso, com necessidade de se afirmar nesse domínio… Ou teve?

Todos temos necessidade de nos provar permanentemente. Provar, não as nossas qualidades, mas provar que podemos fazer. Não basta dizer que temos esta ou aquela qualidade. Nada do que é verdadeiramente importante pode ser fácil. Estamos no Centro Nacional de Cultura e à nossa frente está um quadro de Júlio Pomar. Pomar disse-me uma coisa que nunca esqueci: “Na minha produção artística recuso permanentemente a facilidade”. A exigência é muito importante. Temos de sentir dificuldade na afirmação da diferença.

 

Foi por causa dessa dificuldade que foi para a política? Porque tinha de ir a votos, merecer a aprovação do outro, dos seus pares políticos, dos seus eleitores?

Para ser franco, não. Gosto muito do fenómeno político, do envolvimento político. Não é tanto para provar que gosto da vida política, mas sim para confrontar as ideias e as realizações, o pensamento e a acção. Recuso a ideia de que há um fatalismo do atraso para Portugal. Muitas vezes, quando verifico a popularidade dos discursos negativos, pergunto-me como é que se resolve o problema. No caso português há um dado que é insofismável: durar nove séculos significa que há qualidades indiscutíveis para superar dificuldades. É preciso vermos que capacidades existem.

 

Porque é que se envolveu na política, de facto?

A ideia do meu envolvimento político tem a ver com a capacidade de demonstrar que é possível passar dos ideais à acção. Muitas vezes me têm perguntado o que é que considero melhor e pior na minha passagem pela Educação. O que teve resultado positivo foi a educação pré-escolar. Em 1995, quando o professor Marçal Grilo me convidou para ser Secretário de Estado, a educação pré-escolar era acção social, era guarda de meninos em creches, e hoje temos uma das mais altas taxas de frequência da educação pré-escolar da Europa.

 

É a sua marca, apesar de só ter estado dois anos na Educação?

Como Ministro, mas estive quatro anos como Secretário de Estado. Sim, é aquilo em que a equipa tem mais orgulho. Houve um pensamento, um programa, todos temos a nossa responsabilidade. Depois há a capacidade que o país, o sistema e as pessoas tiveram de pôr isso em prática. A frustração tem a ver com o ensino secundário, que é muito virado para o prosseguimento de estudos, e não é um ensino secundário moderno, capaz de valorizar a dimensão artística ou profissional. Ao contrário do que muitas vezes se pensa, a educação artística está na primeira linha de qualquer sistema educativo. A arte está no início. É pegando por aí que é possível compreender um processo de aprendizagem.

 

Em relação à sua passagem pelas Finanças, tem também um diagnóstico feito?

A minha passagem pelas Finanças foi relativamente rápida e em circunstâncias particularmente difíceis. Fui Ministro das Finanças porque era Ministro da Presidência e assumi uma responsabilidade política. É muito difícil haver uma marca. Olhando para trás há uma orientação de rigor e de disciplina que foi possível dar e de que me orgulho. A frustração é inerente às circunstâncias e à dificuldade das mesmas.

 

Foi chefe de gabinete do professor Sousa Franco em 1979. Foi a sua primeira ligação ao poder? Antes tinha um passado estudantil activista, e na Juventude Social Democrata.

Tinha estado no PSD e tinha trabalhado com o Francisco Sá Carneiro. Fui secretário-geral adjunto em 1975 e foi uma experiência particularmente importante. Trabalhei na área da juventude, mas também na formação política por esse país, de norte a sul, com o Pedro Roseta e o António Rebelo de Sousa. Dedicámo-nos à formação sobre a social-democracia. Interiorizámo-la de tal forma que, no meu caso, continuei como social-democrata no sentido próprio.

 

Fale mais dessa relação com Sá Carneiro.

Era uma personalidade muito interessante, alguém que corria contra o tempo. A minha ligação com ele começa na ruptura de Francisco Sá Carneiro na Assembleia Nacional e na Ala Liberal. Quer Sá Carneiro, quer Miller Guerra influenciaram muitos jovens que admiraram aquela coragem extraordinária de romper.

 

Viam neles a coragem de romper naquele segmento, naquele grupo. Que era diferente do grupo Soarista, outro grupo de resistência.

A oposição clássica tinha a nossa admiração.

 

Mas não era o seu grupo.

Ainda que tenha participado nos primórdios da SEDES. E tínhamos uma relação muito próxima com aquilo que em 1969 foi a CEUD, [Comissão Eleitoral de Unidade Democrática], a candidatura promovida por Mário Soares. Onde esteve, por exemplo, António Alçada Baptista, um grande amigo e uma pessoa que me influenciou também, na experiência d’ O Tempo e o Modo. Francisco Sá Carneiro era uma personalidade muito impositiva. A minha relação com ele foi muito boa, tenho uma óptima recordação desse tempo.

 

Porquê a ruptura?

Ocorre em 1979. Por causa de um tema particularmente interessante para nós: a evolução da democracia e saber qual o caminho que se devia seguir. Se o de uma nova Constituição, porventura por via referendária, ou se devíamos cumprir escrupulosamente o que estava estabelecido na Constituição de 76 e nos dois pactos que foram celebrados entre o MFA e os partidos. O meu entendimento era o de que se devia cumprir, como se cumpriu, aquilo que a Constituição estabelecia: haver uma revisão constitucional, como viria a acontecer em 1982, e nessa revisão constitucional fazer-se a transição para um regime plenamente civil. Essa foi a razão da divergência. Que no entanto não afectou as relações pessoais. Entre a política e a vida pessoal deve haver sempre uma distinção clara.

 

Desejou ser político, ter uma carreira política? Pensou nisso como uma via possível onde tinha desejo de se afirmar? Ou queria ser um jurista e fazer a sua carreira no seio da universidade?

Entendi sempre que a vida política deve decorrer da responsabilidade cívica. Recusei uma carreira política porque entendo que a independência de quem está na vida política é muito importante. Recuso o discurso contra os políticos, mas entendo que os melhores políticos são os que têm vida própria e que podem dizer com independência aquilo que se lhes oferece dizer. A política profissional tem um terrível inconveniente: a dependência. Nunca me passou pela cabeça ter uma carreira política como profissional, por isso tive sempre a universidade e a carreira de jurisconsulto. Disse que continuava a ser um jurista no activo. É importante para o meu próprio equilíbrio.

 

Não quis pelo menos ser um homem de poder?

O poder atrai sempre muito.

 

O que é que atrai exactamente?

É a capacidade de influenciar e marcar a História. Mais do que a importância de uma lógica de poder, que não tenho, a minha atracção pela política passa pela ligação entre as ideias e a acção. Procurar que as ideias não fiquem apenas no domínio etéreo da sua formulação. Mas não me vejo como homem de poder.

 

Neste momento ocupa dois cargos de imenso poder. É presidente do Tribunal de Contas e presidente do Centro Nacional de Cultura. Como é que, mesmo assim, não consegue ver-se como um homem de poder?

Porque não.

 

Mas tem a noção de que tem muito poder? Depois, tudo depende do exercício desse poder.

Certamente que sim. Realisticamente temos que compreender a importância do poder e dos poderes. Quando Montesquieu formula a teoria da separação de poderes, que é uma pedra angular dos sistemas constitucionais modernos, diz: “Só o poder pode limitar o poder”. Temos de ter plena consciência disso, mas nunca considerar o poder como um fim em si mesmo. Isso é altamente corruptor.

 

Quando aceitou o cargo para a presidência do Tribunal de Contas, pensou em Sousa Franco?

Tinha que pensar.

 

Como se fosse uma espécie de tributo ao mestre.

Pensei em Sousa Franco e todos os dias, quando entro no meu gabinete, onde tenho a fotografia dele, me lembro de tudo o que me ensinou, do que falámos. Lembro-me da última conversa que tive com ele, foi no meio da campanha eleitoral para o Parlamento Europeu. Falámos longamente do Infante D. Pedro, que é uma figura maldita da História, uma vez que morre numa estúpida guerra civil em Alfarrobeira. A reflexão que fizemos, a propósito do poder, foi a dessa contradição que acontece muitas vezes com figuras marcantes. Às vezes, momentos fugazes do exercício da vida política podem ser mais influentes do que momentos mais longos. Tudo está nessa capacidade de transformar as ideias e os ideais em factos e em acção. Quando recordo Sousa Franco, recordo sempre o lado que ele tinha de influenciar o futuro através de determinados gestos, e simultaneamente esse elemento de permanência e persistência que leva a que as sociedades funcionem.

 

Quando tomou posse destes cargos de poder, e voltando à sua família, essa presença ainda se fazia sentir? Pensou se o avô teria orgulho em si?

Francamente, não. Não foi algo que me viesse logo ao pensamento. A memória das pessoas que me são queridas é recordada em momentos fundamentais, mas procuro que a minha reacção seja comedida e relativa.

 

A expressão “Vencidos da Vida” era própria da Geração de 70, a que pertenceu um seu tio-bisavô. Na sua vida, teve sempre a certeza de que não seria um vencido da vida?

Nos estudos que tenho feito, a expressão “Vencidos da Vida” é irónica. Ramalho Ortigão enquanto lia uma revista disse que havia um clube em Paris que se chamava “battus de la vie”. “Vencido”, aqui, não é derrotado. O professor Eduardo Lourenço salienta que a memória dos Vencidos da Vida não é uma memória de derrotismo, mas uma memória de um desafio em que temos de ser melhores. Eu concordo com ele. Ele usa uma expressão extraordinária: “Temos que nos ater à nossa maravilhosa imperfeição”. Temos de compreender essa imperfeição. Não há sociedades perfeitas – esse é o desafio.

 

Pergunto de outra maneira: o medo do falhanço perseguiu-o em algum momento?

Esse risco existe sempre para quem entende que a responsabilidade é um dado importante. Estamos sempre no fio da navalha. E na decisão política muitas vezes cai sobre os nossos ombros uma grande responsabilidade. Nesse aspecto nunca podemos ter a certeza de que vamos vencer. E ao não ter essa certeza, temos de trabalhar e exigir muito. O talento e a inteligência não bastam. É indispensável que através de uma grande persistência e trabalho possamos superar as dificuldades e os obstáculos.

 

Por fim, uma graça. Ainda fica furioso, ou não fica furioso, quando lhe falam do Mr. Bean?  Quando googlamos o seu nome, imediatamente aparece, também, uma fotografia do Mr. Bean.

Não fico furioso, como nunca fiquei furioso. Lido muito bem com essa situação.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2010